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DO AUTOR Helder Macedo ENSAIO: Nós, uma leitura de Cesário Verde: Plátano Editora, Lisboa, 1975; edição, 1978; edição, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986; edição, Editorial Presença, Lisboa, 1999. Do Cancioneiro de Amigo (em colaboração com Stephen Reckert): Assírio e Alvim, Lisboa, 1976; edição 1979; edição, 1996. Camões: Some Poems (com Jonathan Griffin e Jorge de Sena): The Menard Press, Londres, 1976; edição, 1978. Do Significado Oculto da Menina e Moça (Prémio General Casimiro Dantas, Academia das Ciências de Lisboa, 1977): Moraes Editores, Lisboa, 1977; 2." edição, Guimarães Editores, 1999. Contemporary Portuguese Poetry (com a colaboração de E. M. de Melo e Castro), Carcanet Press, Manchester, 1978. NÓS Camões e a Viagem Iniciática: Moraes Editores, Lisboa, 1980. Cesário Verde: o Romântico e 0 Feroz: & Etc., Lisboa, 1988. Menina e Moça de Bernardim Ribeiro: Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990; edição, 1999. UMA LEITURA DE As Viagens do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português (com Fernando Gil): Campo das Letras, Porto, 1998 (Prémio Jacinto do Prado Coelho, Associação Internacional de Críticos Literários, 1999). CESÁRIO VERDE POESIA E FICÇÃO: Vesperal: Folhas de Poesia, Lisboa, 1957. Das Fronteiras: Pedras Brancas, Covilhã, 1962. Poesia 1957-1968: Moraes Editores, Lisboa, 1969; edição, 1971. Poesia 1957-1977: Moraes Editores, Lisboa, 1979. Partes de África: Editorial Presença, Lisboa, 1991. Edição brasileira: Editora Record, Rio de Janiero, 1999. Viagem de Inverno: Editorial Presença, Lisboa, 1994. Pedro e Paula: Editorial Presença, Lisboa, 1998; edição, 1998. Edição brasileira: Editora Record, Rio de Janeiro, 1999. Editorial Presençado reconhecimento da impossibilidade da fruição do amor dentro de fronteiras confinantes, e da consequente descoberta dorida de uma igualmente inevitável solidão que poeta assume quando diz «nunca mais amarei». Assim, naturalmente, só fora da cidade, só na liber- dade psicológica do campo conseguiu ir reflectir na experiência de cujo entendimento o poema é registo: E como é necessário que eu me afoite A perder-me de ti por quem existo, Eu fui passar ao campo aquela noite 7 E andei léguas a pé, pensando nisto. A CIDADE E A NOITE (Estrofe 24) O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL A sua companheira, no entanto, é um produto genuíno da cidade, uma que (como todas as crianças) não põe em «O Sentimento dum Ocidental» é a investigação final e defini- questão o mundo a que pertence. Ela vai certamente amar de novo. tiva de Cesário sobre a cidade. Tal como poema E, pomba que só deseja ser, volta nessa noite para regista as percepções e as impressões de um observador caminhando o seu ninho. Mas, numa pungente e irónica inversão final, o ninho nas ruas nocturnas da cidade. Mas narrador de para onde regressa sozinha sob a persistente luz nostálgica e materna ia acompanhado; narrador de «O Sentimento dum Ocidental» des- do luar não é o enorme» dos seus sonhos impossíveis mas creve um passeio solitário. sim uma a sua pequena prisão dentro da prisão da cidade O seu passeio não é apenas um movimento no espaço das ruas nocturna: da cidade; é também um processo no tempo, uma viagem para den- tro da noite durante a qual o narrador penetra e confronta o mundo E tu que não serás somente minha, simbólico de sombras reais que é a cidade nocturna. Noite e cidade, Às carícias leitosas do luar, como em Fechada», são equivalentes simbólicos. Recolhes-te, pálida e sozinha, A cidade é Lisboa; o do título é do narrador, À gaiola do teu terceiro andar! natural do extremo ocidental do Europa, um português. Mas a cidade também representa todo da civilização ocidental a que Portugal (Estrofe 25) pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civilização e um protesto contra ela. O poema, como uma sinfonia em quatro andamentos, desenvolve- -se em quatro secções de onze quadras. A simetria desta estrutura é internamente reforçada pela simetria das inter-relações funcionais entre as várias imagens, situações, caracteres e sentimentos regista- dos no poema e pelas subtis correspondências no tratamento do espaço e do tempo. A progressão da noite, desde crepúsculo e 0 acender das luzes até à completa escuridão das mortas», é acompanhada, num 164 165complexo contraponto, por um correspondente aprofundamento dos A noite desce como uma barreira opressiva que vem fechar a cidade sentimentos e percepções do caminhante solitário nas ruas da cidade. também de cima; na crescente escuridão, os prédios e os seres come- O melancólico absurdo de sofrer» despertado pelo anoitecer çam a fundir-se numa massa informe, num todo orgânico que torna é justaposto com uma nostálgica evocação visionária do passado; o ar saturado com a sua sombria humanidade. As próprias ruas estão a mórbida exacerbação da angústia ao acender das luzes é justaposta infectadas de melancolia: o desejo de sofrer despertado no poeta é com as alucinações febris de um presente fantasmagórico; a inten- «absurdo» porque lhe é imposto irracionalmente, por contágio da sificada amargura provocada pela crescente escuridão é justaposta própria cidade: com a presença espectral dos seres reais que se movem na cidade; finalmente, na escuridão total das horas mortas, a evocação ansiosa Nas nossas ruas, ao anoitecer, de um futuro gerado pela própria noite, como a sua necessária nega- Há tal soturnidade, há tal melancolia ção num novo dia, é justaposta com a culminante visão desesperada Que as sombras, 0 bulício, Tejo, a maresia da dor humana como um sinistro mar de fel em busca dos seus Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. amplos horizontes bloqueados. A visão totalizante da cidade como facto social, paisagem O céu parece baixo e de neblina humana e condição espiritual -, que é 0 efeito final do texto do poema, O gás extravasado enjoa-me, perturba; é assim, por sua vez, resultado do efeito cumulativo do método E edifícios, com as chaminés, e a turba poético nele adoptado. Na verdade, a própria organização narrativa Toldam-se duma cor monótona e londrina. do poema que regista o deambular do observador pelas ruas da cidade transforma a aparente ausência de nexo da sua progressão (Estrofes 1-2) aleatória no seu plano estrutural. Conforme o texto se desenvolve e a sequência justaposta das coisas observadas vai emergindo como A cor que escurece prédios e as chaminés e que transforma um longo e complexo assíndeto, misteriosas relações implícitas entre as pessoas numa escura multidão «a turba» é caracterizada como elas e as reacções por elas provocadas vão-se revelando até se defi- e que ao mesmo tempo vem contrair e expan- nirem como a expressão objectivada do que é efeito dir a gama de associações evocadas pela descrição da cidade. Londres compósito do poema como um todo. era a grande capital mercantil da civilização industrial. A cor drina» de Lisboa relaciona assim, sugestivamente, «as nossas ruas» à cidade monstruosa que se tinha tornado, na literatura do século XIX, 1. Ave-Marias num símbolo do desespero, da miséria e da opressão da sociedade industrial.¹ A primeira secção do poema, intitulada «Ave-Marias» desig- O efeito aprisionador da cidade, que se fecha sobre si própria à nação das seis da tarde ironicamente sugestiva da organização da medida que as sombras escurecem e o ar se contamina com o vida segundo ritmos bem ordenados de uma comunidade unida cheiro nauseante do gás extravasado, provoca no poeta uma ânsia pela devoção religiosa -, abre com a descrição de uma angustiada inacessível de fugir, não necessariamente para qualquer outra das reacção psicológica ao impacto das múltiplas impressões sensoriais cidades enumeradas, mas para a vasta totalidade delas extrapolada, do anoitecer nas ruas familiares («as nossas ruas») de Lisboa. mundo», ironicamente representada na passagem dos de A visão das sombras que se acentuam, o escutar dos sons inces- que levam via-férrea» que literalmente santes gradualmente abafados e o cheiro a maresia exalado pelo rio, despertam um generalizado absurdo de sofrer» que é a Veja-se Raymond Williams,Batem os carros de aluguer, ao fundo, ros de aluguer representara a ânsia de abarcar espacialmente o mundo Levando à via-férrea que se vão. Felizes! real, esse desejo exprime-se agora na ânsia pelo mundo do passado Ocorrem-me em revista, exposições, países: heróico, por uma viagem nostálgica no tempo: Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, 0 mundo! E evoco, então, as crónicas navais: (Estrofe 3) Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Mas, a lembrar-lhe espaço real e objectivo do momento pre- Singram soberbas naus que eu não verei jamais! sente, logo vê também a cidade aprisionante a propagar-se, des- multiplicando-se em novas, pequenas prisões, ainda inacabadas: (Estrofe 6) Semelham-se a gaiolas, com viveiros, A evocação de Camões, que epitomiza a grande fase criadora do As edificações somente emadeiradas: passado português, concentra numa só imagem multifacetada Como morcegos, ao cair das badaladas, impulso heróico que tornou possível lançar ao mar as Saltam de viga em viga mestres carpinteiros. naus» que narrador, reduzido a cismar junto aos botes atracados, não verá jamais. De par com o seu valor metafórico, a referência a (Estrofe 4) Camões serve também para tornar todo do poema, onde funcio- nalmente se integra, na homenagem que Cesário lhe quis prestar, ao A edificação das da cidade surge assim como uma escrevê-lo: o poema, originalmente publicado numa folha intitulada actividade crepuscular e sinistra, associada com a imagem ne- e editada pelo de Viagens» em 10 de fasta do morcego, a personificação tradicional das forças escuras Junho de 1880, foi escrito como uma contribuição para as come- do mal. morações do tricentenário de Camões². Neste mundo crepuscular que, no contexto do poema, vai adqui- O contraste, central à estrutura temática do poema, entre a rea- rindo gradações simbólicas sucessivamente intensificadas, o pas- lidade objectiva do presente e o seu significado subjectivo para seante solitário penetra em ruas que se abrem como abismos e em narrador, é assim expresso na alternância do tema do aprisiona- estreitas passagens que subitamente se fecham, OS e mento na cidade sombria com o tema da fuga para um mundo de os junto aos cais de onde emergem os calafates, em gru- liberdade simbolizado, nesta quadra, pelas heróicas viagens de des- pos, escurecidos da fuligem: Numa carta a Macedo Papança, futuro conde de Monsaraz, Cesário escreve Voltam os calafates, aos magotes, sobre a recepção deste poema: poesia minha, recente, publicada numa folha De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos; bem impressa, limpa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, um desdém, uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou, nem num noti- ciário, nem numa conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal! Apenas Ou erro pelos cais a que se atracam botes. um crítico espanhol chamava às chatezas dos seus patrícios e dos meus colegas pérolas e afirmava - fanfarrão! que meus versos "hacen malíssima figura (Estrofe 5) en aquellas páginas impregnadas de noble espíritu nacional". Tu mesmo, meu caro, enviando-me teu poema tão fino e tão mimoso, e que, embora não seja verdadeiro e justo psicologicamente e historicamente, é, todavia, como poesia, um sublime desenho linear de sentimento, tu mesmo, na dedicatória pões expansões afectuosas, Os pequenos barcos atracados ao longo dos cais renovam 0 desejo generosidades de estima; mas literariamente parece que Cesário Verde não existe.» de fugir; mas enquanto que na terceira quadra a passagem dos car- Obra Completa, pp. 204-205. 168 169cobrimento narradas nas crónicas navais³. Mas poeta não pode É no contexto desta caracterização social do meio que várias per- mais do que saudosamente evocar esse mundo: as naus» sonagens da fantasmagoria citadina começam a emergir: já há muito que partiram; ele está em terra amarrado ao presente crepuscular do fim da tarde nas ruas da cidade que é a sua inco- Num trem de praça arengam dois dentistas; modada inspiração: Um trôpego arlequim braceja numas andas Os querubins do lar flutuam nas varandas; E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! Às portas, em cabelo, enfadam-se lojistas! De um couraçado inglês vogam escaleres; E em terra num tinir de louças e talheres (Estrofe 8) Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. Os vociferantes dentistas, o patético arlequim cujo ganha-pão é (Estrofe 7) caminhar em andas pelas ruas da cidade (figura degenerada das repre- sentações mímicas da comédia social), e ambíguos A justaposição dos da moda» com inglês»E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, 2. Noite Fechada Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vêm sacudindo as ancas opulentas! A segunda do poema, tem óbvias rela- Seus troncos varonis recordam-me pilastras; ções temáticas com poema do mesmo título: contraste entre a E algumas, à cabeça, embalam nas canastras luz do gás e luar, a presença sombria das igrejas, a sensação claus- Os filhos que depois naufragam nas tormentas. trofóbica de confinamento, a massa informe dos seres humanos acu- mulados, incessante patrulhar da cidade, e a reacção compadecida (Estrofes 9-10) e desesperada a tudo isto dum observador essencialmente solitário. Na secção anterior, a sua inicial visão de conjunto da soturni- A grandeza épica das varinas, como a do passado heróico sim- dade e da melancolia da cidade foi confirmada pela justaposição bolizado por Camões, é uma dimensão que não cabe na realidade significativa dos exemplos objectivos que a particularizaram. O per- estagnada do presente. A associação implícita entre essas mulheres curso discursivo do narrador conduziu-o através de uma cidade opres- «hercúleas» e mundo épico das navais» é subtilmente siva, pululante e apodrentada, de um mundo crepuscular contrário reforçada na relação, que dinamicamente aproxima o passado e o ao da grandeza épica do passado. O sentimento subjectivo de opres- presente, entre a imagem do naufrágio de Camões, «no Sul, sal- são e de aprisionamento encontrou expressão metafórica na carac- vando um livro a nado», com a imagem dos filhos das varinas terização descritiva dos prédios objectivamente em construção como depois naufragam nas tormentas». Por outro lado, contraste entre pequenas prisões, com A quadra inicial da a visão etérea dos lânguidos do com a descrição da segunda secção reintroduz o tema da prisão: firmeza opulenta das varinas as mães varonis dos náufragos futu- ros que no entanto são perpetuadores e os herdeiros da aventura Toca-se às grades, nas cadeias. Som marítima do passado constitui um comentário poderoso, porque Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! objectivamente representado na realidade social observada, sobre O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças, a inversão dos valores naturais nas situações respectivas das suas Bem raramente encerra uma mulher de «dom»! classes sociais. Esta denúncia moral é revoltadamente reforçada pela revelação (Estrofe 12) compadecida das condições de vida das varinas: O absurdo de sofrer» despertado pela soturnidade e pela Descalças! Nas descargas de carvão, melancolia do anoitecer nas ruas da cidade tem aqui o seu paralelo Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; nas mansas» deixadas pelo som mortificante que anuncia E apinham-se num bairro aonde miam gatas, a noite nas celas da prisão. Mas esta prisão é uma prisão real: o E o peixe podre gera os focos de infecção! Aljube, um microequivalente da cidade, cárcere de mulheres e de crianças que só raramente não vêm das classes populares. (Estrofe 11) A explícita denúncia social destes versos desenvolve a crítica social implícita no contraste oblíquo dos hotéis da moda, flamejan- Como os calceteiros de («Homens de carga! tes de luz na escuridão circundante, com a vizinhança sórdida de Assim as bestas vão curvadas!»), as varinas são usadas como bes- gatas estridentes e de peixe podre, ou entre os flutuantes «queru- tas de carga manhã à noite», quando recolhem aos bairros bins do lar» e as varinas, firmes como pilastras, que embalam à pestilentos onde apinham» junto ao peixe apodrecido, que sim- cabeça, nas canastras, filhos que depois naufragam nas tor- boliza a sua própria degradação material. mentas». 172 173Com o acender do gás nas ruas, 0 desejo absurdo de sofrer des- O anticlericalismo, já discernível no poema Fechada» na pertado pelo anoitecer acentua-se numa melancolia tão profunda que caracterização do padre que fica a olhar para a companheira do nar- o narrador chega a suspeitar de que padece de uma doença mortal: rador rapada, gordo e presumido») e na descrição da igreja que cobria parte de uma praça uma mitra», torna-se explí- E eu desconfio, até, de um aneurisma cito na imagística lúgubre destas estrofes⁶. Através da evocação do Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes; passado, «momento» que, como entendido por Taine, resulta À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, do devir da História funde-se com A continuidade histó- Chora-me o coração que se enche e que se abisma. rica do passado e do presente é assim demonstrada, objectivamente, pelo ambiente das ruas da cidade: (Estrofe 13) Na parte que abateu no terramoto, A sua mórbida depressão é assim relacionada directamente com Muram-se as construções rectas, iguais, crescidas; as prisões, a Sé e as cruzes, que se tornam simbolicamente equiva- Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas, lentes pela sua justaposição e pelo efeito psicológico comum que E sinos dum tanger monástico e devoto. têm sobre narrador. A rítmica iluminação das ruas e dos prédios transforma a Lua (Estrofe 16) numa aparição irreal conjurada por um falso mundo de ilusões, (referência oblíqua ao arlequim da primeira e os A cidade do presente ainda está dominada pelo clero negro eMas, num recinto público e vulgar, A recolha dos soldados defensores sombrios e espectrais da Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, ordem social é imediatamente seguida pela partida das patrulhas Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, de cavalaria: a ronda da cidade é inexorável. Às formas passadas de Um épico doutrora ascende, num pilar! repressão seguiu-se também a repressão presente: actuais quar- téis são antigos conventos: (Estrofe 17) Partem patrulhas de cavalaria A estátua de Camões noE mais: as costureiras, as floristas A entrada do narrador como uma «personagem» no mundo que Descem dos magasins, causam-me sobressaltos; retrata, ao separá-lo temporariamente do complexo de sensações Custa-lhes a elevar seus pescoços altos e de percepções que serviram para caracterizar esse mundo e essa E muitas delas são comparsas ou coristas. personagem, cria um efeito de distanciamento que recorda ao lei- (Estrofe 21) tor que 0 que está a ser registado no poema é a representação sig- nificativa da realidade objectiva e não a própria realidade objec- As ricas «elegantes» as clientes dos hotéis da moda que tiva. Parte integrante dessa representação é a perspectiva ideológica ao anoitecer, as mulheres de que Aljube não em que o «eu» do poema se coloca para ver mundo e o critério encerra curvam-se, a sorrir, sobre as jóias exibidas para a sua osten- moral implícito nessa perspectiva. Assim, os «efeitos» persona- tação, enquanto as costureiras e as floristas que estiveram também gem, realidade objectiva e significado subjectivo convergem, na curvadas, mas todo o dia, a trabalhar (como calceteiros de escrita do poema, para a construção da visão totalizante do real coluna nunca se ao deixarem emprego, que o próprio poema constitui. mal conseguem levantar seus pescoços. Mas como a versão redu- zida das «elegantes» que é a actrizita de algumas 3. Ao Gás ainda conseguem ir desempenhar para as massas o seu papel de «comparsas ou coristas» no «demi-monde» do teatro. Esta secção do poema termina com o auto-retrato irónico de Na terceira secção do poema, Gás», a opressão crescente da Cesário e do seu método poético: noite «A noite pesa, esmaga» cria uma atmosfera de alucinação e de histeria em que a realidade externa e a sua interpretação sub- E eu, de luneta de uma lente só, jectiva se fundem indissociavelmente. Eu acho sempre assunto a quadros revoltados: O tema da doença, presente nas duas primeiras secções (a melan- Entro na brasserie; às mesas de emigrados, colia e a náusea, o desejo absurdo de sofrer, a morbidez imaginada Ao riso e à crua luz joga-se o dominó. de uma aneurisma, o apodrecimento do peixe em focos de infecção, a visão apocalíptica do cólera e da febre), reentra no poema como (Estrofe 22) um significante social na aparição das prostitutas ambulantes: O seu soturno isolamento na cidade sombria e a essencial soli- E saio. A noite pesa, esmaga. dão da sua consciência social revoltada é acentuada pelo contraste Nos passeios de lajedo arrastam-se as impuras. irónico entre a sua obsessiva inquietação e a aparente despreocupação moles hospitais! Sai das embocaduras dos emigrados, porventura foragidos políticos que, riso e à crua Um sopro que arrepia os ombros quase nus. luz», jogam o «dominó» nas brasseries. Mas observador isolado que acha assunto a quadros (Estrofe 23) revoltados» é também o poeta que regista através do monólogo interno do poema. A auto-ironia do quadro que de si próprio repre- Na riqueza morbidamente perturbadora desta imagem extraordi- senta sugere que está consciente de que a sua «luneta de uma só nária, há uma profunda percepção social: as prostitutas, lente» pode levá-lo a ter uma visão limitada do real. A metáfora iró- hospitais» de uma sociedade doente, estão elas próprias infectadas nica, no entanto, é de dois gumes: a visão por «uma lente só» pode e doentes, são «as impuras» no sentido mais literal do aparente eufe- ser limitada, mas pode ser também a única possível porque há sem- mismo. Expostas e trémulas, arrastam nos passeios de lajedo a sua pre causas para revolta na realidade objectiva. carne regelada. 178 179A associação entre as prostitutas e hospitais é paralela à asso- Em contraste com esta desvitalização doentia, a imagem flamejante ciação entre comércio e a igreja. Cercado por lojas o de um forjador brandindo um malho, e cheiro acalentador do pão no narrador, visão alucinatória, pensa estar numa imensa cate- forno tornam-se emblemáticos de vigor, de honestidade e de saúde: dral profana: as lâmpadas de gás são os círios laterais; as lojas suces- sivas, as filas de capelas; os manequins nas montras, as imagens dos Num cutileiro, de avental, ao torno santos; os clientes, a congregação dos fiéis; e a mercadoria, OS ando- Um forjador maneja um malho, rubramente; res, ramos e velas dos altares: E de uma padaria exala-se, inda quente, Um cheiro salutar e honesto a pão no forno. Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso Ver círios laterais, ver filas de capelas, (Estrofe 26) Com santos e fiéis, andores, ramos, velas, Em uma catedral de um comprimento imenso. Estes versos conseguem uma extraordinária concentração de efei- tos através da justaposição da imagem dinâmico-visual do forjador (Estrofe 24) com a imagem simultaneamente táctil, olfactiva e moral do pão no forno: o rubro refulgir da forja é transposto para o gesto do forja- Nesta perspectiva, a falta aparente de conexão e de desenvolvi- dor («maneja um malho e o salutar e honesto» mento lógico na referência às histéricas do do pão é fundido com calor do forno; cada uma destas imagens na quadra seguinte revela, pelo contrário, a profunda interdepen- compósitas reforça a outra, criando uma complexa sensação orgâ- dência de dois mundos relacionados: nica que é comunicada como uma visão objectiva de saúde, de calor e de honestidade dinamicamente opostos à doença, à hipocrisia e ao As burguesinhas do Catolicismo histerismo da sociedade. Resvalam pelo chão minado pelos canos; Este contacto retemperante com a vitalidade e a energia traz para a E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, consciência imediata do poeta o propósito da sua própria função criadora: As freiras que OS jejuns matavam de histerismo. (Estrofe 25) E eu que medito um livro que exacerbe, Quisera que o real e a análise mo dessem; O regresso ao tema religioso associado com a perseguição e a Casas de confecções e modas resplandecem; repressão («a nódoa negra e fúnebre do clero» o «ermo inquisidor Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe. severo» e os sinos dum tanger monástico e funciona, assim, como um desenvolvimento do tema da doença e Longas descidas! Não pintar do histerismo da sociedade. A intoxicação religiosa das «burguesi- Com versos magistrais, salubres e sinceros, identificada na mente do narrador com o doente dos A esguia difusão dos vossos reverberos, pianos» e jejuns suicidas das freiras histéricas, é um sintoma da E a vossa palidez romântica e lunar! mesma repressão interior que tornou necessários os hospi- Como chão aparentemente sólido mas, na realidade, minado (Estrofes 27-28) pelos canos dos esgotos, a solidez das instituições laicas e religio- sas (hospitais, catedrais, comércio e, em suma, a ordem social) é O real e a análise do real, projectados em magistrais, ilusória. Prostitutas, burguesinhas e freiras são, todas elas, salubres e sinceros» (um eco do e honesto» que caracteri- ras» infectadas pela mesma doença social. zou o cheiro a pão no forno), produzirão o tipo de livro que o nar- 180 181rador reputa válido: «um livro que exacerbe». A exacerbação dese- A cujo mortífero magnetismo é concentrado na jada é, por implicação, um desafio e um incentivo à consciência do metáfora da cobra a qual, por sua vez, é reforçada pela música sibi- leitor. O registo e a análise dos factos significativos do real não é, lante da frase «escolhe uns xales com debuxo» é uma figura fami- portanto, um fim em si próprio mas um meio: a expressão crítica liar nos poemas citadinos de Cesário. Mas o olhar irónico, que observa de uma realidade social complexa através do registo dos seus fac- que a sua hipnótica configuração serpentina é «espartilhada», vê tam- tos objectivos no contexto de um discurso que, ao justapô-los dina- bém as possibilidades sarcásticas de justapor a atracção magnética micamente, torna explícitas as relações implícitas entre eles. O efeito daAs luzes apagam-se no ritmo em que se tinham acendido, grito pria realidade objectiva, e neste seu encontro há uma alusão literal rouco de um vendedor de lotaria corta súbito silêncio da noite, as ausente do encontro imaginário de Dante deambulando com Virgílio fulgentes» transformam-se em a cidade no Inferno: no tempo de Cesário, havia efectivamente um professor sepulcral é gradualmente abandonada à sua escuridão: de Latim «homem terrível, com a cara cheia de que acabou a vida a pedir nas ruas de Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco; 4. Horas Mortas Da solidão regouga um cauteleiro rouco; Tornam-se mausoléus as armações fulgentes. Na secção final do poema «Horas Mortas», a viagem nocturna do narrador levou-o até ao momento da escuridão mais profunda. (Estrofe 32) As luzes da cidade as «estrelas» artificiais desse pequeno universo aprisionado já se apagaram todas. Reintegrada assim na noite natu- Porém, como uma assombração espectral ou um pesadelo acusador, ral, a noite da cidade já não esmaga e, embora ainda enclausurante, o lamento suplicante de um mendigo ainda persiste na noite solitária: (Cidade irreal, «Dó da miséria!... Compaixão de mim!...» No nevoeiro castanho duma madrugada de Inverno, E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, Uma multidão escorria sobre a Ponte de Londres, tantos, Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso, Nunca pensei que a morte tivesse desfeito tantos. Meu velho professor nas aulas de Latim! Suspiros, breves e infrequentes, eram exalados, Cada caminhante com olhos fixos sobre pés.) (Estrofe 33) (Versos 60-66) A equivalência é tornada explícita nas notas sobre esta do poema, onde Eliot indica as passagens relevantes do de Dante. T. S. Eliot, Collected A caracterização do mendigo como sem repouso» vem Poems 1909-1962, pp. 63, 81. Uma inspiração literária mais próxima poderá no acentuar no poema um elemento simbólico já subliminalmente suge- entanto ter vindo dos versos de Shelley em Bell the Third is a rido na descrição do ambiente: 0 percurso do poeta pelas ruas noc- city much like London, / a populous and smoky [0 Inferno é uma cidade parecida com Londres, / uma cidade populosa e cheia de fumo]. turnas da cidade é também uma viagem simbólica por um mundo Cesário viu na cidade de Lisboa uma semelhante equivalência. A este respeito, de fantasmas onde, como Dante, no Inferno, encontra seu deve mencionar-se que John T. H. Timm, num artigo onde analisa Sentimento Mas em Cesário, como sempre, o símbolo está na pró- dum Ocidental» do ponto de vista específico das incidências no poema do «gro- tesco» como definido por Wolfgang Kayser, escreve seguinte: análise de "O Sentimento dum Ocidental" temos vindo a notar vários pontos muitas vezes T. S. Eliot em Waste Land» («A Terra Estéril») vê na cidade de Londres pontos que parecem insignificantes só por si que tornam todo da obra verda- um equivalente para círculos do Inferno de Dante («I see crowds of people, wal- deiramente exemplar do grotesco. O resultado é essencialmente retrato da cidade king round in a ring»o seu fundo de oxigénio» parece permitir a azul de A imagem desses olhos fixos e grotescos, emblemáticos do pavor alucinatório da escuridão constritora da cidade nocturna, é justa- posta com o som pastoril de uma flauta distante, emblemática da O tecto fundo de oxigénio, de ar, libertação associada com campo: Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, E eu sigo, como as linhas de uma pauta Enleva-me a quimera azul de transmigrar. A dupla correnteza augusta das fachadas; Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, (Estrofe 34) As notas pastoris de uma longínqua flauta. Esta vaga promessa de liberdade é no entanto contradita pela (Estrofe 36) compadecida luz natural das estrelas longínquas, com olheiras» cansados de chorar de luz» imagem obliqua- O contraste entre a fragilidade etérea das notas magoadas que mente reminiscente do sobre a escuridão moral de um sobem no silêncio movimento inverso ao das «lágrimas» compa- mundo de fantasmas que anseiam por O desejo de decidas das estrelas descendo sobre mundo e a pesada fixidez fugir no espaço geográfico «Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, das estruturas confinantes da cidade é acentuado no símile que com- o mundo» ou no tempo histórico passado heróico das para a geometria rígida da rua onde o narrador caminha uma das cas navais» acumulou-se numa ânsia simultaneamente física e rectas paralelas da Baixa pombalina de Lisboa com as linhas de espiritual (como a ambiguidade da palavra sugere) de uma pauta musical e assim também, implicitamente, próprio per- quebrar os limites confinadores do próprio ser. Mas a situação exis- curso do narrador, e o poema que o descreve, com a melodia infausta tencial do narrador é a realidade objectiva que o rodeia e a sua ânsia da flauta. O som da melodia pastoril nas ruas silenciosas da cidade, é uma «quimera», a expressão individual impossível de uma ânsia com a sua nostálgica mensagem de que o campo invisível não está social colectiva. Por baixo do fundo de oxigénio» continua longe, torna-se simbólico da ânsia espiritual do poeta pela eterni- a haver os «portões», os as «fechaduras», «arruamen- dade a libertação da prisão final da morte e do seu equivalente tos» e, em suma, a cidade da sua identidade bloqueada: desejo de uma maneira perfeita de viver em que a intemporalidade do amor tomasse o lugar da solidão e do desespero: Por baixo, que portões! Que arruamentos! Um parafuso cai nas lajes, às escuras: Se eu não morresse, nunca! E eternamente Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. Esqueço-me a prever castíssimas esposas, Que aninhem em mansões de vidro transparente! (Estrofe 35) (Estrofe 37) Na verdade, embora o som de um parafuso caindo sobre as lajes venha porventura recordar que a firmeza artificial de todas as pri- O desejo de escapar à divisiva solidão associada com a cidade sões é desmontável, os pormenores significativos da realidade obser- é assim dramatizado na imagem compósita que reúne as conota- vada confirmam a prisão fantasmagórica da cidade onde, sob a pálida ções recorrentes na poesia de Cesário de «aninhar» e de luz natural das estrelas distantes, faróis próximos de uma car- parência». A satisfação existencial do amor partilhado é associada ruagem são olhos sangrentos, de pesadelo. com uma forma de habitação que, ao permitir a entrada da luz, 187 186é metaforicamente oposta à cidade constritora: o amor só é pos- pela intersecção do tempo e do espaço: mas agora do presente e do sível na liberdade. É interessante notar que as maneiras opostas futuro em vez do presente e do passado. de viver, representadas pelos dois tipos de mulher que personifi- Mas dentro da cidade ou da esterilizante estrutura social por cam a antinomia campo cidade na poesia de Cesário, têm a sua ela significada a renovação da vitalidade criadora é uma espe- expressão dramática no contraste entre a imagem das rança vã: esposas» aninhadas como aves e a imagem da elegante como uma o inimigo tradicional das aves Mas se vivemos, emparedados, nos seus ninhos. Sem árvores, no vale escuro das muralhas!... O anseio pela perfeição da eternidade e do amor é, no entanto, Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas apenas outra azul». A morte é certa e a esperança possí- E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. vel pertence apenas às gerações futuras: (Estrofe 40) nossos filhos! Que de sonhos ágeis, Pousando, vos trarão a nitidez às vidas! A liberdade dos ardente!» é impossível novamente ambígua são as folhas aguçadas das navalhas cujo brilho Numa última justaposição significativa do aprisionamento e da ameaçador julga avistar na escuridão infestada por gritos estran- doença da cidade, guardas-nocturnos (os detentores literais de cha- gulados de socorro¹⁰. ves simbólicas da prisão) fazem a sua ronda, enquanto as doentias O desfalecer da esperança é marcado pelo regresso da náusea prostitutas, os hospitais» emblemáticos da sociedade enferma doentia dos primeiros versos do poema. No labirinto dos (a antítese das imaginadas esposas» em de corredores» as tabernas, como ventres fétidos, oferecem um sór- e o equivalente degradado dos