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Peter Pál Pelbart A NAU DO TEMPO-REI 7 Ensaios sobre o Tempo da Loucura — Série Logoteca — Direção JAYME SALOMÃO Imago © Peter Pál Pelbart, 1993 Capa: Visiva Comunicação e Design Foto da capa: Ricardo Bhering CPI-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Pelbart, Peter Pál, 1956- P433n A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura/ Peter Pál Pelbart. — Rio de Janeiro: Imago Ed., f 993. 132 p. (Série Logoteca) Apêndice ISBN 85-312-0281-7 93-0172 1. Psiquiatria - Filosofia. 2. Loucura. I. Título. II. Série. CDD-157 CDU-159.972 Todos os direitos de reprodução, divulgação e tradução são reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia, microfilme ou outro processo fotomecânico: 1993 IMAGO EDITORA LTDA. Rua Santos Rodrigues, 201-A — Estácio CEP 20250- 430 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: 293-1092 Impresso no Brasil Printed in Brazil A Lulu Porto SUMÁRIO PRÓLOGO "Um pouco de possível, senão eu sufoco" 11 I - TEMPO DOS ANJOS 1 — Um desejo de asas 17 2 — A nau do Tempo-rei 29 3 — Ecologia do invisível 47 4 — Rapsódia húngara 63 5 — O anjo de Swedenborg 71 II - MANICÔMIO MENTAL 6 — Da loucura à desrazão 89 7 — A utopia asséptica 101 APÊNDICE HOMENAGEM A FÉLIX GUATTARI: Um direito ao silêncio 113 REFERÊNCIAS Textos desta edição (relação e especificação) 129 PRÓLOGO "UM POUCO DE POSSÍVEL, SENÃO EU SUFOCO..."1 Este livro fala dos anjos de Wenders, do tempo dos loucos, das loucuras do Tempo, dos desarrazoados, do invisível e do intempestivo que frequentam secretamente o belo e infame mercado da vida... Talvez seja enganoso qualificar de ensaios os textos aqui reunidos. São no máximo balões de ensaio, soltos ao vento com o gosto capeta (e incendiário) de ver como sobem, somem, caem ou explodem. Foram redigidos por ocasião de colóquios diversos acerca do tema da loucura, mas seu propó- sito é pouco científico. Estas falas, embora impregnadas por anos de (con)vivência clínica com pacientes ditos psicóticos, visam simplesmente rea- cender a potência de evocação, de questionamento e de estra- nhamento embutidas na loucura. Eis, pois, a molecagem filosófica que as inspira: a partir das disrupções da loucura, repensar algumas das clausuras nossas (temporais, políticas, estéticas, existenciais). A meio caminho entre a filosofia, a clínica, o manifesto, a literatura, o género híbrido corre o risco óbvio de desgostar a todos. Aos profissionais do conceito, pelo aspecto ligeiro, aos da transferência e da vida, pelo caráter aleatório ou duvidoso. Teriam um quê de razão, uns e outros, não fosse a circunstância particular de que determinadas experimentações teóricas e vitais têm na divagação e na digressão sua matéria-prima. Pois na sua textura mais íntima, mesmo quando atreladas a aparatos académicos rigorosos, as experimentações teóricas comportam um quinhão irredutível de ficção. Assim, ao invés de negar a dimensão ficcional do pensamen- to, mimetizando sistemas insossos e pseudocientíficos, tratou-se l Gilles Deleuze, Conversações, trad. Peter Pál Pelbart, Ed. 34, 1992, p. 131. aqui de construir brinquedos, ressonâncias caleidoscópicas. O livro-caleidoscópio. Brincar de desfazer certas ordens cristaliza- das no espelho do Tempo, incluindo aí novas e estranhas pedrinhas, a fim de criar outras ficções de vida, outras vidas. Não é este um dos sonhos do pensamento? O de insuflar na vida, a partir dela mesma, uma grande e nova leveza lúdica? E por que fazê-lo na vizinhança da loucura? Por ser ela o campo das questões limítrofes, inapagáveis. É ali que se dá o entroncamento impensável entre a subjetividade, a cultura, a ruína, certos conceitos insólitos e todas as insubordinações desarrazoadas. A partir do colapso psicótico, por exemplo, é possível repensar aspectos de nossa temporalidade, de nosso modo de vivenciar a história, de nossas evidências lógicas, das visibilidades incontestes, consensos políticos etc. Não se trata de "usar" o sofrimento do louco para "fazer filosofia", mas de infletir-nos a partir daquilo que o campo da loucura dispara e conturba em nós. É uma maneira entre outras, porém esquecida e valiosa, de "ouvir" a loucura. As muitas referências a Gilles Deleuze c Félix Guattari se devem ao fato de terem eles (re)inaugurado a trilha do pensa- mento nas adjacências da esquizofrenia. Esta aventura, longe de estar esgotada, foi pouco explorada. É em parte o que se tentou aqui. Os conceitos de Deleuze-Guattari (e muitos outros) foram operados ao longo destes textos com a mesma desenvoltura que eles próprios sempre defenderam e exercitaram. É preciso que um conceito tenha ao mesmo tempo uma estranheza e uma necessidade, diz Deleuze. Ora, nem a estranheza nem a neces- sidade são dadas, elas precisam ser testadas e talhadas num processo paciente mas intempestivo, de variação das condições, dos contextos, das conexões, das associações, com tudo de ziguezagueante que isso implica. Nesse sentido, não cabia ocultar as hesitações, contradições, perguntas em suspenso que entremearam a feitura deste traba- lho. São parte constitutiva de uma viagem; mais, constituem seu estofo romanesco, aventuresco. O tom oral e por vezes dema- 12 siado coloquial tampouco foi alterado; com a ilusão, talvez, de que se pudesse preservar uma certa hecceidade da fala. Este livro não é dirigido só a filósofos, psicanalistas, traba- lhadores em saúde mental (embora a estes possa ser particular- mente útil), mas aos que alguma vez já desconfiaram que essa vida morna e tola que nos é oferecida e alardeada como a única possível, desejável e saudável esconde outras tantas. Cuja beleza e tentação cabe reinventar. 13 I - TEMPO DOS ANJOS l - UM DESEJO DE ASAS Wim Wenders mostrou pela primeira vez em circuito pla- netário como são e o que fazem os anjos numa metrópole contemporânea. Com Asas do Desejo ficamos sabendo, espanta- dos, que eles são muitos. Só em Berlim contam-se às dezenas. Perambulam pelas cidades meio ao acaso, invisíveis, enfiados em grandes casacos, com o cabelo preso em rabicho, mãos no bolso, observando em silêncio o sofrimento dos mortais. Quan- do querem, ouvem os pensamentos dos homens, mulheres e crianças. Aproximam-se deles devagarzinho, inclinam a cabeça em direção ao ombro e escutam seus monólogos, suas preces, devaneios, anseios. O que faz uma anjo quando percebe que a desesperança invade a alma de um humano? Toca-lhe no ombro de leve, com a ponta dos dedos, e o sofredor se dá conta de algo a roçar-lhe o entorno, mas não sabe ao certo o quê. Intui uma presença estranha mas nada vê; sente como que um farfalhar de folhas, uma perturbação desconhecida, uma espécie de cintilân- cia. E aí seu corpo caído retoma um vigor inesperado, o pensa- mento de repente bifurca para longe da morte, ocorre-lhe como que um pequeno renascimento. Mas os anjos não são deuses. Eles não podem tudo. Por exemplo, não podem estancar a queda de um suicida do alto de um arranha-céu. Não podem dar trabalho a um desempregado. Tampouco têm o poder de agenciar parceiro para uma trape- zista solitária. Nem sequer está ao alcance deles criar um público para um narrador envelhecido, num mundo que não quermais ouvir suas histórias, pois prefere perder a memória. Os anjos 19 não podem mudar a face do Planeta nem dirigir o curso do Mundo. No máximo podem tornar mais leve o fardo de uma ou outra vida, de um ou outro momento de uma vida ou outra. Um pouco como um terapeuta: essa disponibilidade para ouvir, para tocar, essa presença discreta que pode às vezes suscitar um novo começo — mas também essa impotência para determinar, para resolver, para viver no lugar de. O que poucos sabem — e isto se aprende no filme — é que os anjos têm inveja dos homens. Eles vêem muita coisa, ouvem tudo, podem estar em todos os lugares, observam os humanos ora com espanto, ora com admiração, ora com compaixão — mas sempre com uma pontinha de inveja. Do que têm inveja os anjos? Da finitude dos mortais. Da sua fragilidade, da sua inscrição no tempo, do sentir frio, do sentir fome, do sentir doce, do esfregar as mãos uma na outra numa madrugada gelada, de sentir o calor de um copo de café esquentando o corpo, de ter saudades, incertezas, de morrer de amor e de ter medo da morte. A imortalidade dos anjos é para eles um cárcere cruel. Ela os aprisiona no tédio infernal do Mesmo, na repetiti- vidade sem história, num eterno presente que é em si a imagem cinza de uma morte sem desfecho. Curiosa inversão: então não são os homens os infelizes do filme, como seria de se esperar, mas os anjos. Sua permanência tediosa sobre a face da Terra, seu eterno flutuar por sobre coisas e homens, sua desencarnação assexuada, sua ahistoricidade, tudo isso está muito mais próximo do sofrimento da loucura do que da disponibilidade dos terapeutas. Pois há na loucura um sofrimento que é da ordem da desencarnação, da atemporali- dade, de uma eternidade vazia, de uma ahistoricidade, de uma existência sem concretude (ou com um excesso de concretude), sem começo nem fim, corn aquela dor terrível de não ter dor, a dor maior de ter expurgado o devir e estar condenado a testemunhar com inveja silenciosa a encarnação alheia. No filme de Wenders, um dia um anjo resolve encarnar. Vira um mortal de carne e osso, com frio, fome, sede, saudade, sangue e dor, tudo aquilo a que nós temos direito cotidianamen- 20 te e que é o nosso quinhão precioso sobre esse planeta. O ex- anjo-recém-encarnado apaixona-se então pela trapezista soli- tária, e vive com ela um instante único, em que sente ter descoberto pela primeira vez a verdadeira eternidade. Não aquela eternidade vazia dos anjos, mas a eternidade cravada na fugacidade de um devir. Um pouco como diz o poeta: eterno enquanto dura. E o ex-anjo-recém-tornado-mortal, através desse instante diamantino, embarcou no que se poderia chamar de um devir-anjo. Ele não virou anjo, mas entrou num devir-anjo, o que é diferente. No fundo, é também o que a trapezista entristecida sempre buscara, um devir-anjo, fosse através de seus malabarismos circenses ou de sua letargia embalada em rock'n roll. É igualmente o que o narrador sem público buscava em sua nostalgia de história, ou os estudiosos da biblioteca gigante de Berlim. Cada qual a seu modo buscava um devir-anjo, tinha um desejo de asas. A religião, o amor, a literatura, o cinema, tudo isso oferece asas para um devir-anjo. Mas há uma condição: é preciso ser um mortal. Apenas os mortais têm acesso ao devir- anjo. Os anjos mesmo estão condenados ao tédio eterno, a menos que eles encarnem. Mas nós não acreditamos mais em anjos. Os anjos não existem. Se existem, são infelizes. Se são infelizes, mereceriam ser salvos. Em linguagem moderna diríamos: se sofrem, mere- cem ser curados. O que significa: merecem ser reconduzidos à condição de mortais, para aí sim poderem constituir um devir- anjo. E alguns de nós, terapeutas de psicóticos, que nos encar- regamos dessa tarefa insensata de ajudar a encarnar os anjos, o que pretendemos com isso? Traduzindo em miúdos, no contexto de nossas cidades trata-se do seguinte: um Hospital-Dia para psicóticos, ou um serviço público experimental podem ser muita coisa; entre outras coisas podem vir a ser um dispositivo institucional a mais de normalização do social. Parece óbvio, vago, primário, e no entanto nada mais perigoso. Um Hospital-Dia lembra às vezes a Nau dos Insensatos que Foucault descreve no início de sua História da Loucura, mas que ao invés de vagar à deriva das águas, como na Renascença, aportou em solo urbano, com todas as promessas e riscos que isso implica. Uma nau atracada, um pouco como as barcas-casa nos canais de Amsterdã, um tantinho flutuantes mas já sedentárias, numa indecisão saborosa entre o fluxo do rio e a fixidez da cidade. Um atendimento alternativo pode transformar-se facilmente numa extensão burocrática do Hospital ou do Estado urbano, num jardim de infância pedagó- gico, numa indústria de cura ou num depósito de estranhos personagens. Talvez ele efetivamente corra o risco de transfor- mar-se num híbrido disso tudo se não conseguir refletir suficien- temente sobre o seu lugar cultural numa sociedade que de algum modo tem coibido o devir-anjo de seus mortais. Eu ousaria dizer que às vezes vira anjo quem não consegue suportar ser mortal, mas isso também porque o ser mortal em nossas sociedades foi de algum modo expurgado do devir-anjo. Daí a ideia de que é preciso criar muitos modos de devir-anjo, os mais diversos, os mais múltiplos, os mais variados. Seria preciso engravidar o real com virtualidades desconhecidas de devir- anjo, para que o tédio de ser mortal não vire uma camisa de força ainda pior do que o tédio de ser anjo. E isso tem tudo a ver com os terapeutas de psicóticos, que às vezes temos a mão leve e mágica dos anjos de Wim Wenders para a dor alheia, mas ao mesmo tempo vemos nos pacientes anjos desencarnados buscando imanência. Não podemos oferecer-lhes, porém, a encarnação seca que nós mesmos suportamos mal e que fre- quentemente pensamos transcender com nossas histórias, dro- gas, aventuras, com nosso esforço em multiplicar nossos devires-anjo, em viver várias vidas ao mesmo tempo, muitas dimensões, em fazer proliferar o real para além da mortalidade mortífera que nos é proposta e imposta por todos os lados. No fundo travamos uma briga encarniçada contra a pobre- za de opções disponíveis no mercado da vida. O leque dos possíveis contém cada vez menos modelos de normalidade ou de anormalidade, cada vez menos e mais pobres formas de viver a familiaridade, a criação, a política, a conjugalidade, os modos de subjetivação, como se assistíssemos a uma homogeneização 22 crescente de um social cada dia mais codificado. Nosso trabalho cotidiano mostra que socialmente temos pouco a oferecer como alternativas de vida a nossos pacientes, não porque sejamos estreitos ou mesquinhos, mas porque nossa configuração sócio- histórica tem restringido e pasteurizado sua diversidade poten- cial. Por isso, não creio que se possa desvincular a criação de dispositivos os mais diversos de sustentação para experimenta- ções pluridimensionais num espaço terapêutico e a mesma criação num espaço extraterapêutico. Em ambos os casos trata- se de combater uma espécie de entropia subjetiva e social. Daí o proveito que poderíamos tirar da ideia de Félix Guattari, de que a heterogeneidade precisa ser produzida. Não basta reco- nhecer o direito às diferenças identitárias, com essa tolerância neoliberal tão em voga, mas caberia intensificar as diferenciações, incitá-las, criá-las, produzi-las. Talvez essa seja uma das coisas mais fascinantes e mais difíceis de fazer no trabalho com psicó- ticos; o multiplicar as formas de conexão, de linguagens, de abordagens, de entendimento. Pluridimensionar o campo. Re- cusar a homogeneização sutil mas despóticaem que incorremos às vezes, sem querer, nos dispositivos que montamos quando os subordinamos a um modelo único, ou a uma dimensão predo- minante. Aceitar esse paradoxo de que quando um dispositivo está dando certo demais é que eleja não serve mais, que quando um grupo está demasiadamente bem sucedido alguma proces- sualidade foi emperrada, que quando entendemos muito bem é porque deixamos de entender um bocado, que quando esta- mos muito sãos é porque já estamos muito é neuróticos. Para retomar uma fórmula feliz de Jean Oury, um dos diretores da Clínica de La Borde, na França, é preciso conseguir o n-1. Ou seja, é preciso subtrair de um conjunto dado a unidade que o totaliza, sobrecodifica e homogeneiza. Se uma clínica tem n dimensões de funcionamento, por exemplo, espaciais, dramá- ticas, sonoras, linguísticas, investimentos e modos de exis- tencialização possíveis, o mais difícil é conseguir abrir esse leque em direção à sua pluralidade, ao invés de reconduzi-la a uma unidade significativa qualquer. 23 Mas por que será tão difícil assumir e intensificar essa multiplicação de dimensões? Parece haver nessa operação o risco de uma espécie de proliferação demoníaca, cancerígena, sem forma nem finalidade. Ao invés de um contorno para o mundo, de uma imagem de mundo reasseguradora, teríamos de fato um mundo sem uma imagem de mundo, monstruoso, sem modelo. Num dos belos livros de filosofia escritos no pós- guerra (Diferença e repetição), Gilles Deleuze propôs substituir o que ele chamou de uma imagem do pensamento por um pensamento sem imagem. Imagem do pensamento significa grosseiramente uma forma à qual o pensamento está submeti- do. Ao contrário, forjar um pensamento sem imagem de pen- samento, isto é, sem uma imagem prévia do que seja pensar (será isto possível? ou trata-se apenas de outra imagem do pensar?) pode implicar em abrir mão de uma forma, de um modelo. Um pouco como fez a arte abstraia, que ao dispensar a figurativida- de pôde liberar cores, linhas e uma série de virtualidades pictóricas até então aprisionadas debaixo da representação figurativa1. O resultado é mais caótico e enlouquecido, porém mais rico e pluridimensional. Isso que ocorreu na pintura também acontece na literatura e na filosofia. Bastaria citar Jackson Pollock, James Joyce, Nietzsche, para ficarmos simplifi- cadamente num exemplo eminente para cada domínio. Mas também na política pode estar em curso algo semelhante: com o desmoronamento do modelo clássico de socialismo no Leste europeu, o caminho fica desimpedido para se inventar um outro modelo, ou, ideia todavia mais vertiginosa, uma política sem modelo, uma política sem uma imagem de política a aprisionar- lhe as virtualidades. Sobre a clínica, porém, é difícil saber se ela precisa de uma revolução destas, se ela a deseja, se é capaz de provocá-la e, sobretudo, se ela a suporta. E a pergunta que imediatamente vem ao espírito é: Como fazer uma clínica sem l Em Deleuze não se confundem em absoluto a imagem do pensamento e o modelo. A extrapolação é abusiva e corre por minha conta, com o propósito exclusivo de introduzir a questão dos modelos teóricos através de um ângulo de abordagem "escancarado". 24 um modelo de clínica quando no fundo está todo mundo atrás do melhor modelo? Quando já custa um esforço tão hercúleo achar um modelo, por que tornar-se iconoclasta? Deixemos um pouco em aberto essa questão provocativa, mas não de todo. Mais do que abrir mão dos modelos — o que nos afundaria na intuição cega, que é o pior modelo — talvez na clínica seja preciso de algum modo repensar o estatuto do modelo. Por exemplo, injetando na própria ideia de modelo a precariedade que lhe é intrínseca, a fim de que ele possa constantemente derivar para longe de seu equilíbrio ordinário, liberando tudo aquilo que um modelo encobre ou o que lhe escapa, e que em geral é o essencial. Talvez também fosse útil submeter a noção de modelo à ideia de perspectiva no sentido nietzscheano; isto ao menos nos evitaria a ressonância pseudo- científica evocada pela ideia de modelo. Assim, ao invés de perguntar se tal modelo "é verdadeiro", "adequado", se "corres- ponde", se "representa" a realidade (psíquica, antropológica etc), perguntaríamos a que perspectiva tal modelo corresponde, isto é, de que tipo de vida tal modelo é sintoma, ou quais forças (ativas, reativas?) forjaram tal perspectiva, e com que interesses, no interesse de qual tipo de vida? Caso remetêssemos os mode- los aos tipos de "saúde" que eles implicam, contornaríamos dilemas epistemológicos inúteis. Num âmbito mais geral, e não especificamente da clínica, porém, o que parece evidente é que a expansão e a difusão de um modelo hegemónico de subjetividade e de sociabilidade meio esvaziado emperra e murcha nossos devires-anjo. Somos pequeninos e às vezes impotentes; como os anjos de Wenders, não está ao nosso alcance mudar a face da Terra ou dirigir o curso do Mundo. Mas a clínica talvez seja um lugar privilegiado para pensar essa intersecção entre políticas da subjetividade e virtualidades de devir-anjo. Nesse contexto uma coisa parece clara. Se na nossa clínica formos apenas os embaixadores de uma saúde triste e asséptica, todo nosso esforço terá sido em vão, com poucas chances de vingar. E isso por uma razão óbvia: a saúde triste oferece menos 25 atrativos do que o tédio angelical da loucura. Resignação por resignação, não há porque trocar um tédio pelo outro. Essas coisas formuladas aqui intencionalmente de um modo simplis- ta, sem a tecnicidade da terminologia "psi" que às vezes nos dá a segurança de um modelo, são questões polémicas, complexas, discutíveis, cheias de implicações teóricas e práticas da maior relevância. Não é por outra razão que seria preciso retomar o leitmotiv inicial: o desejo de asas, ou a facilitação de múltiplos devires-anjo é essencial para que a construção de um atendimen- to alternativo não vire apenas mais uma empresa, um pouco mais sofisticada, com high technology, de burocratização do de- sejo. O fato de serem pequenas não necessariamente protege essas experiências inovadoras deste risco. Caberia dizer: tama- nho pequeno não é documento. Os estudos de Michel Foucault mostraram de sobra que o poder é capilar, que ele não só incide como também em parte é engendrado na mais minúscula dimensão. Mas, por outro lado, a história mostra que também grandes revoluções às vezes começam em pequenos laborató- rios, na cabeça e na prática de alguns poucos desvairados, na mais microscópica das agitações. Penso que é esse um dos nossos mais caros alentos. O trabalho diário e a mão na massa são sempre mais maçantes do que as belas palavras, mas não se deve sob hipótese alguma abdicar das belas palavras, assim como não se deve abdicar das belas histórias, nem dos belos gestos, muito menos das belas intervenções — o que não dizer das belas e desvairadas viagens. Sobretudo delas, que num trabalho deste tipo só se consegue fazer quando se está devidamente acompanhado, isto é, ladeado por uma equipe audaciosa e tresloucada, que apesar da tentação crescente não aceita o papel exclusivo e perigoso de "operários da saúde", assumindo o risco de alçar voos inusitados. Num escrito sobre um trabalho meu, o psicanalista Gregó- rio Baremblitt notou, de maneira graciosa: "Há infinitos modos de voar. Não é necessário escolher o de ícaro, nem muito menos o de Santos Dumont." Caberia acrescentar o seguinte. Talvez 26 nossa modernidade tenha reduzido esses infinitos modos de voar unicamente a esses dois. Ora estamos de um lado, quando enlouquecemos, ora de outro, por exemplo, quando tratamos. É preciso muito senso estético, político, ético, clínico, demiúr-gico até, para desmontar essa disjuntiva infernal. Necessitamos de muito espírito aventureiro para ir forjando asas, tanto no interior de uma instituição como fora dela, que nos permitam — a nós e a nossos pacientes — escapar a essa violência binária, que consiste em ter que optar sempre seja por um precipício abissal, seja pelo suave paraíso asséptico de uma estranha saúde, saúde sem desejo de asas nem um devir-anjo. Setembro/1990 27 2-A NAU DO TEMPO-REI Conta a tradição talmúdica que 26 tentativas malogradas precederam a criação deste mundo. O Génesis não teria sido aquele milagroso instante inaugural tão celebrado, nem a eclo- são repentina de uma totalidade redonda saída do Nada através do Verbo, mas tentativa e erro, experimentação, fracasso, re- montagens, recolagens. Saído do seio caótico dos destroços anteriores, nosso mundo não possuía (e não possui ainda) nenhuma garantia; também ele estava (e continua) exposto ao risco do fracasso e do retorno ao nada: a qualquer momento o sucesso da empreitada pode desfazer-se e a obra vir abaixo. Foi e é sempre por um triz, graças a um misto de engenhosidade e acaso que esse mundo se sustenta, levando a marca inapagável daquela incerteza originária, de um início que poderia não ter vingado. Mas que vingou, entre outras coisas porque houve, por parte de Deus, no momento desta tentativa, uma torcida. "Oxalá se sustente" (Halevay sheyaamod), exclamou Ele naquele instante, e sua obra respondeu afirmativamente a este voto, que não foi uma ordem, mas um desejo1. Deus atípico: bricoleur, desejante, esperançoso — súdito do Tempo. Todo o contrário da repre- sentação que Dele se tem habitualmente: onipotente, Dono do Futuro e do Destino, Rei do Tempo. O mundo da loucura lembra às vezes, por sua precariedade, essa versão de um Génesis sempre inconcluso. Os loucos, na sua l André Neher, "Visão do tempo e da história na cultura judaica", in As culturas e o tempo, publicação da UNESCO. 31 fragilidade e inconsistência, com sua origem turva e nebulosa, num processo constante de reconstrução a partir dos destroços anteriores, também precisam, para sustentar-se, de muita enge- nhosidade, acaso e amiúde uma boa torcida desejante. Não a torcida vinda da voz cavernosa de um Deus mandão, mas aquela que nós podemos oferecer a partir dos dispositivos os mais diversos que conseguimos colocar à sua disposição para favore- cer-lhes essa consistência e sobrevivência, ainda que incertas. Trata-se dos dispositivos institucionais, jurídicos, sociais, clíni- cos, expressivos, de escuta, até mesmo os medicamentosos, passando todos eles pelas modalidades mais diversificadas de encontro. Mas nunca nada está dado de antemão e o futuro jamais está garantido, 26 tentativas podem ser pouco para um louco, e frequentemente dez vezes isso ainda é insuficiente. Para tanto, uma coisa aí é primordial, tal como nesta versão do Génesis, sem o que nada seria possível: Tempo. É preciso dar tempo a essa gestação com que se confronta a loucura, a essas tentativas, a essa construção e reconstrução, a esses fracassos, a esses acasos. Um tempo que não é o tempo do relógio, nem o do sol, nem o do campanário, muito menos o do computador. Um tempo sem medida, amplo, generoso. O curioso é que no trato com a loucura precisamos dar um tempo que nós mesmos não temos. O lema do capitalismo foi outrora o do "tempo é dinheiro": era preciso fazer o máximo no mínimo de tempo, maximizar a produtividade, deslocar-se na maior velocidade possível, em suma, economizar tempo em todos os sentidos1. Mas nas últimas décadas assistimos a uma mutação a esse respeito que mal chegamos a entender. Não se trata mais de ganhar tempo, porém de abolir o tempo. O ideal tecnocientífico contemporâneo consiste em absolutizar a velo- cidade a ponto de dispensar o próprio movimento no espaço, l Para a análise histórica deste processo, ver Jacques Lê Goff, "Na Idade Média: tempo da Igreja e tempo do mercador", in Para um novo conceito de Idade Média: Tempo, trabalho e cultura no Ocidente, Lisboa, Ed. Estampa, 1980, e de Thompson, "Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industrial", in Tradición, revuelta y consciência de clase, Barcelona, Ed. Crítica, 1989. 32 anulando assim não só a geografia e o tempo de duração desse deslocamento, mas a própria ideia de espaço, de tempo e de duração. É o ideal do tempo zero e da distância zero. Não se trata mais, hoje, de favorecer, através das vias de comunicação e dos veículos automóveis, um nomadismo desenfreado, como na primeira metade desse século. As tecnologias do pós-guerra criaram um novo veículo, estático: a televisão. De propagação instantânea e indiferente à geografia, o audiovisual inaugurou um novo regime de temporalidade: a instantaneidade. O instan- te sem duração, uma espécie de eterno presente, sem espessura, pura persistência da retina na fonte teleluminosa em meio a uma simultaneidade universal. Não mais nomadismo, mas sedenta- riedade onipresente. Não mais partir, porém deixar chegar. Fim das distâncias temporais e espaciais. A ordem agora é habitar a velocidade absoluta no instante contínuo da emissão. Instalados nessa instantaneidade, e privados do tempo e do espaço, assis- timos à verdadeira desmaterialização tecnológica. Mas talvez a informática seja ainda mais exemplar para pensar o que está em jogo neste ideal de abolição do tempo. Seu anseio é a informação total, a memória absoluta que pudes- se não só prever um acontecimento, mas reagir a ele antecipan- do-se a seu advento, neutralizando-o. É evidente: o que já é conhecido de antemão não pode ser experimentado como acontecimento. O futuro aí está completamente predetermina- do. A tal ponto que, no limite, o que vem depois do ponto de vista de uma cronologia linear, já vem antes, antes mesmo do presente, do ponto de vista tecnológico. O futuro antecede o próprio presente, na medida em que está estocado na memória do computador. O futuro está presente e já não se apresenta como um desconhecido, uma abertura. Todas as companhias de seguro, as garantias, as previsões são modos de prevenir-se contra o devir, contra o advir. Até mesmo o capital é um futuro estocado em forma de dinheiro, que pode diluir pela sua força o advento do adverso. O sentido disso tudo, conforme Jean 33 François Lyotard1, de quem extraio essas observações, é sempre, na medida do possível, neutralizar o acontecimento abolindo a dimensão imprevista do futuro, presentificando-o como um já dado. A obsessão contemporânea, mais do que controlar o tempo, consiste em abolir o tempo. Paul Virilio analisou magis- tralmente essa questão2 e concluiu: se ontem o sonho da onipo- tência do homem era o controle do espaço, da extensão física da matéria, hoje o homem realiza um sonho ainda mais demiúr- gico, um regime de temporalidade que tende a abolir a própria duração. Uma cronopolítica está em curso cujos desdobramen- tos ainda são desconhecidos, mas que implica necessariamente no declínio de uma profundidade de campo nas nossas ativida- des as mais cotidianas. Um achatamento temporal que propor- ciona um presente eterno, sem história para trás nem para frente, sem passado nem futuro. Presente sem espessura, ilusão da imortalidade que ignora o começo e o fim, a morte e o imprevisto, que só integra o desconhecido enquanto pro- babilidade calculável. O paradoxo é que a desmaterialização provocada pela velocidade absoluta equivale a uma inércia absoluta. Estranha equação em que coincidem velocidade má- xima e imobilidade total. Por outro lado, em nossas instituições de saúde mental assistimos a um outro regime de temporalidade. São guetos lentificados.Seja um paciente que levanta os braços e de repente os imobiliza, suspensos no ar, seja um outro fazendo um gesto brusco para depois mergulhar numa lerdeza sonolenta, ou ainda aquelas falas entrecortadas por silêncios longos, ou os trajetos vagarosos em percursos cuja lógica nos escapa. Às vezes lembra um aquário onde cada um desliza a seu modo, no seu ritmo, a seu tempo. Agora em câmara lenta, desacelerada, dali a pouco numa rapidez inusitada. Uns estão estacionados num passado longínquo, outros jamais saberemos onde estão, em 1 Jean François Lyotard, L 'inhumain, causeries sur k temps, Paris, Galilée, 1988. 2 Paul Virilio, Vitesse et politique: essai de dromologie, Paris, Galilée, 1977, ou Guerra Pura, a militarização do cotidiano, trad. de Elza Mine e Laymert Garcia dos Santos, São Paulo, Brasiliense, 1984. 34 qual tempo; outros ainda, numa instantaneidade aflita, como se nada lhes garantisse a continuidade temporal. Mas talvez essa descrição externa seja enganosa e insuficien- te para dar conta do que realmente está em jogo para os psicóticos na questão do tempo. Num belo artigo sobre o tempo e a psicose1, Jean Oury diz que estamos em contato com certas subestruturas do tempo nos psicóticos, como o tédio, a fadiga, a usura, a paciência. Mas, mais profundamente, o psicótico situa-se numa espécie de ponto de horror, anterior mesmo a uma temporalidade, um ponto de parada, de suspensão, em que ainda não está configurada uma imagem do corpo, num estado de inacabamento radical, onde não há contorno nem mesmo para o vazio, onde não há esquecimento nem surgimento. A ideia de Oury é que deveríamos poder sustentar para os psicó- ticos um ponto que é ao mesmo tempo de um esquecimento e de uma espera. É um ponto que corresponde ao jorrar do tempo. Deveríamos poder estar ali onde começa o tempo, e com ele a possibilidade de alguma forma, de alguma decisão, deixar jorrar o tempo para que possa surgir o bom momento de se fazer alguma coisa. Oury usa para explicá-lo dois tipos de tempo existentes no grego antigo, o aion, que é esse presente que faz jorrar de dentro de si o tempo, e o kairos, que é o momento adequado, o bom momento para decidir e fazer. Como se devêssemos sustentar para o psicótico esse ponto de coincidên- cia entre o aion e o kairos, numa espécie de cronogênese primordial, de onde pode surgir uma forma, até um projeto. Onde coincidissem esquecimento e espera. Curiosamente, é um ponto de paciência, de tédio, insípido, num certo sentido, e caótico. Isso, no entanto, é muito difícil de fazer, porque em geral temos muita pressa. Nós não temos tempo nem paciência para sustentar este ponto, o ponto do surgimento do tempo, pois somos amantes das formas, das ordens, dos projetos, do futuro l Jean Ouiy, "La temporalité dans Ia psychose", in La folie dans Ia psychanalyse, Armando Verdiglione (org.), Paris, Payot, 1977. já embutido no presente. Daí nossa impaciência, nosso volunta- rismo, nossa hipervalorização do trabalho, do acabamento. Nosso sofrimento e angústia nesses momentos iniciais de um grupo expressivo com psicóticos, por exemplo, quando há uma espécie de suspensão caótica, que se soubermos sustentar não passa de um caos-germe, de uma gestação a partir do informe, do indecidido. Não é inútil lembrar que o tempo da criação artística ou do pensamento também exige algo dessa ordem. Do dar tempo e paciência para que o tempo e a forma brotem a partir do informe e do indecidido. O desafio é propiciar as condições para um tempo não controlável, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como da criação, mas também no da loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o que não estamos preparados para acolher, porque este novo não pôde ser previsto nem programado, pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação. É quase o esforço inimaginável, não da abolição do tempo, mas de sua doação. Não libertar-se do tempo, como quer a tecno- ciência, mas libertar o tempo, devolver-lhe a potência do come- ço, a possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente. Trata-se aí de um tempo que escaparia à presença, à presentifi- cação, à continuidade, dando lugar a outras aventuras tempo- rais. Num artigo intitulado "O tempo, hoje"1 Lyotard diz que para se pensar ou escrever hoje, é-se atirado a um gueto, um gueto temporal. Como o Gueto de Varsóvia, onde os alemães confinaram os judeus, e como todo gueto, é ambíguo: por um lado representa uma violência, por outro, retarda a morte, embora não evite a solução final. Esta é a situação dos pensado- res e escritores: confinados a um gueto temporal, estão amea- çados pelo reinado do tempo controlado, mas ao menos tiveram a morte diferida. Uma inferência apressada poderia concluir: l op. cit. 36 também os manicômios, guetos de tempo lentificado, embora violentos, retardam a morte dos reclusos e os protegem. Ora, ainda que lentificados, nós sabemos que os manicômios não passam de uma versão do tempo controlado em câmara lenta. Para articular a questão dos manicômios com a politização do tempo conviria relacionar e confrontar certas teses de Paul Virilio com análises já conhecidas de Michel Foucault. Uma observação meio lateral de Virilio a respeito dos estudos de Foucault poderia fazer-nos avançar. Virilio diz que Foucault, em seus estudos, debruçou-se erroneamente sobre espaços fecha- dos (como a prisão, o hospital, o manicômio) quando hoje em dia a mecânica do poder incide não sobre espaços fechados, mas abertos. Esta crítica é de deixar perplexo. Foucault teria perdido o bonde da história? Teria errado de alvo? E acaso não estaría- mos nós embarcando no mesmo erro, ao fazer pela milionésima vez a crítica de um modelo (o asilar) que, afinal, está fadado de qualquer modo à extinção? É bem verdade que se este modelo já estivesse completa- mente extinto não estaríamos sequer discutindo o assunto. Mas nada garante que nossa atenção não esteja dirigida a um mons- tro pré-histórico condenado pela modernidade, em vista de seu gigantismo, de seu custo, de seu caráter ostensivo, de sua inoperância. Pois parece provável que as tecnologias políticas que se anunciam no horizonte dispensem totalmente a reclusão. E nós, que crescemos respirando um certo furor libertário e antiautoritário, e que víamos na reclusão a quintessência da brutalidade institucional (cujo apogeu paradigmático é o campo de concentração nazista) talvez estejamos teoricamente desar- mados em face das tecnologias emergentes. Não cabe discutir aqui a justeza ou não desta crítica de Virilio a Foucault, pois interessa o seu pressuposto. Antes de comentá-lo, convém lembrar que Foucault passou sua vida limando ferramentas teóricas que lhe permitissem identificar as novas formas de poder vigentes, e denunciou incansavelmente a inadequação entre nossa representação já caduca do poder e as estratégias políticas efetivamente em exercício. Para ficar no 37 exemplo mais célebre, Foucault insistiu em que o poder é produtivo, isto é, ele cria, incita, instiga, embora nós continue- mos a vê-lo exclusivamente como aquele que coíbe, impede, castra. Enquanto nós usamos o modelo da lei, modelo jurídico por excelência, ele funciona segundo um outro regime, o da produção. Nesse sentido, Foucault foi um dos primeiros a entender que o modelo concentracionário, o das instituições totais, dos espaços fechados, no seu desaparecimento progres- sivo, estavam dando lugar a outro dispositivo muito mais sutil, invisível, ágil e poderoso, cuja genealogia ele próprio traçou em sua História da sexualidade. O que está por trásdo comentário de Virilio sobre Foucault parece ser uma divergência mais geral. Para Virilio, o campo de incidência do poder já não é prioritariamente o controle dos corpos no espaço (com seus dispositivos, por exemplo, de exclusão e reclusão), mas o do controle do tempo. E aí tanto faz onde se está, num espaço aberto ou fechado, numa instituição tal ou qual, desde que se esteja submetido a um certo regime de temporalidade hegemónico. A hipótese-questão que caberia testar, a partir desta afirmação, é a seguinte: Caso o fim dos manicômios represente uma estratégia de homogeneização do social, num regime que funciona não mais por exclusão e reclusão, mas por inclusão, e não mais por manipulação prioritária do espaço, porém do tempo, o que pode representar hoje uma política de resistência, tanto no campo da saúde mental como fora dele? Não basta, evidente- mente, trocar uma instituição fechada por uma semiaberta, com o que estaríamos vivendo um logro, driblados por um poder mais manhoso do que supõe nossa vã politologia. Caso a hipótese de Virilio aponte para uma tendência real, não bastaria uma política do espaço, mas seria preciso forjar uma política do tempo, uma cronopolítica que desafiasse o modelo dominante de controle do tempo, de neutralização do tempo, do ideal de abolição do tempo. Claro, este é um tema de conceitualização difícil, por ser também de difícil visualização contrariamente à questão do espaço; (por exemplo, basta entrar 38 num hospital psiquiátrico tradicional para se entender facilmente o quanto a própria arquitetura encarna uma certa concepção de loucura, com as celas fortes, as canaletas de banho, a visibi- lidade panóptica, e todos os detalhes que uma leitura semiótica nos revela em estado bruto). Mas para além dessa dificuldade, importa o seguinte: se queremos acabar com o manicômio e a reclusão, não devería- mos abrir mão daquilo que no trato com a loucura existe de específico em relação à temporalidade, e nós deveríamos poder bancá-la, mesmo que isso signifique — e necessariamente signi- fica — um desafio à cronopolítica da tecnociência. A cronopolí- tica hegemónica visa à aceleração máxima, absoluta, ao passo que a loucura não só encarna uma desaceleração (ou uma velocidade de outra ordem) mas também solicita uma desacele- ração. Nesse sentido, não é inútil lembrar que antigamente o poder produzia freios: muralhas, fortalezas, sistemas fortifica- dos, obstáculos, trincheiras, mas também normas, interdições etc. Ora, no século XIX passou-se da Idade do Freio à Idade do Acelerador. O poder passou a investir na velocidade, a criar velocidade. A tal ponto que a grande arma inventada na Revo- lução Industrial para combater o império da velocidade foi a greve; e o que é a greve senão a parada, a interrupção, a barricada no Tempo, como diz Virilio? Aliás, nesse particular é perfeitamente plausível relacionar a Idade do Acelerador com o caráter produtivo do poder tal como Foucault o postulou, do mesmo modo que a revogada Idade do Freio corresponderia à ultrapassada (?) mecânica repressiva do poder. Aqui se reencon- trariam Foucault e Virilio. Voltando à barricada no Tempo, acontece que há diversos modos de contrapor-se ao despotismo da máxima velocidade. A loucura tal como ela se apresenta hoje certamente é também isso: a recusa de determinado regime de temporalidade, o protesto em forma de colapso frente ao império da velocidade, e a reivindicação de um outro tempo. Essa hipótese pode parecer meio fantasiosa, mas não é absurda. A primeira coisa que chama a atenção de um visitante num hospital psiquiátrico 39 é essa lentifícação, esse ritmo específico, esse regime tempo- ral diferenciado. Sim, às vezes isto se deve aos efeitos dos psicofármacos, às vezes à lentidão burocrática das grandes instituições, mas para além disso está a própria velocidade da .loucura e o outro regime temporal que os loucos vivem, suscitam e solicitam. Para aprofundar um tema tão complexo, seria preciso voltar àquilo que a versão talmúdica do Génesis apresentada no início deste trabalho aponta como essencial: a doação do tempo, a possibilidade de uma cronogênese. Aquilo, justamente, que as grandes instituições não permitem porque repousam sobre a imobilidade paquidérmica. Mas que tampouco a tecnociência hegemónica permite, na medida em que ela, através da absolu- tização da velocidade, tende a extirpar. Nisso os manicômios tradicionais e a televisão, por exemplo, reverberam numa alian- ça indireta, embora um funcione por congelamento e a outra por velocidade máxima. Frente a isto, a possibilidade de resgatar o jorrar do tempo é uma necessidade para o pensamento, para as artes, mas principalmente para a loucura. O fim dos manicômios não deveria representar a vitória devastadora da cronopolítica vigen- te, assim como a derrubada do Muro de Berlim não deveria representar a vitória devastadora do capitalismo vigente, embo- ra em ambos os casos este risco seja mais do que uma mera probabilidade. Os manicômios, ainda que da forma mais torpe e cruel, em certa medida constituíram uma espécie de freio frente à velocidade crescente. Também porque, num primeiro momento, eles abrigaram muitos daqueles que não se submete- ram ao ritmo e às exigências da produção. Mas igualmente porque eram um instrumento de controle proveniente da Idade do Freio, que sobreviveu um pouco na Idade do Acelerador, ainda que deslocado (daí também seu aspecto tão anacrónico hoje em dia, mesmo do ponto de vista do poder). A questão seria saber como as propostas alternativas em saúde mental pensam preservar a possibilidade de uma tempo- ralidade diferenciada, onde a lentidão não seja impotência, 40 onde a diferença de ritmos não seja disritmia, onde os movimen- tos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho. Pense-se nos balineses, por exemplo, para quem as discussões começam e bruscamente se esfumam1. Os assuntos não são levados a uma decisão final. Espetáculos artísticos começam, continuam, pa- ram e recomeçam. Os rituais às vezes consistem mais na prepa- ração e limpeza do que no ato propriamente dito. Uma espécie de anticlímax cotidiano, que nós também sentimos no contato com os psicóticos. Do mesmo modo, pode-se evocar este tempo muito distante do tempo do relógio, um tempo não espacializa- do, mais próximo da duração bergsoniana, com instantes que não são pontos numa sequência de pontos formando uma linha reta do tempo, porém instantes intensivos, gordos. Como no conto de Cortázar, em que o saxofonista Johnny Cárter, perso- nagem baseado em Charlie Parker, diz: "Isto do tempo é com- plicado, agarra-me por todos os lados. Começo a perceber pouco a pouco que o tempo não é como um saco que nós enchemos. Quero dizer que, mesmo que o recheio mude, na bolsa só cabe uma certa quantidade, e acabou-se. Vês a minha mala, Bruno? Cabem dois fatos e dois pares de sapato. Bom, agora imagina que a despejas e depois vais pôr de novo os dois fatos e os dois pares de sapatos, e então percebes que só cabe um fato e um par de sapatos. Mas o melhor não é isso. O melhor é quando percebes que podes meter uma loja inteira na mala, centos e centos de fatos, como eu meto a música no tempo, como às vezes quando estou a tocar"2. Eis aí um instante intenso, intensivo, inflado, um bolsão de tempo, que nada tem a ver com o tempo do relógio, nem com o instante vazio e contínuo da televisão, nem com o tempo imóvel do manicômio. Ainda não sabemos qual o melhor meio de resistir à violên- cia da cronopolítica em que coincidem velocidade e inércia, instantaneidade e imobilidade, abolição do tempo e espaço em favor de um vetor velocidade desmaterializante. Pois isso tudo 1 Clifford Gcrtz, Antropologia. 2 Júlio Cortázar,"Blow up" in Blow up e outras histórias. 41 não é um fato, mas uma tendência, e Virílio cita Churchill para dizer que ao contrário das guerras antigas, onde importavam os fatos, não as tendências, nas guerras modernas importam as tendências, mais do que os fatos. É preciso guerrear ondas, tendências, vetores, criando outras ondas, tendências, vetores. Para elaborar uma estratégia deste tipo no campo da saúde mental, deveríamos poder articular pelo menos os quatro se- guintes aspectos: 1) a priorização do vetor temporal do poder, em detrimento do espacial; 2) o significado disso no discurso "espacializante" da luta antimanicomial; 3) a especificidade da temporalidade da loucura; 4) a relação entre essa temporalidade e outras temporalidades em campos diversos. É impossível realizar tal articulação neste espaço e no estágio embrionário em que se encontram essas questões. Assim mesmo é legítimo sugerir algumas linhas de pesquisa que indi- quem em que direção esta articulação seria viável. A começar por essa constatação banal de que assistimos a uma contração em todos os níveis: a velocidade reduz o tempo e o espaço ao mínimo, ao nada. Contração da Terra e do Futuro, contração telúrica e histórica, tirania do movimento mas fim da moção. Neste regime de temporalidade, com o qual o homem pensou que iria ganhar o Tudo, ficou com Nada: é difícil ter um espaço, uma história, um tempo vivido, um território, expandir-se etc. Sim, diz Virilio, seria preciso um outro regime de temporalidade que restituísse ao homem sua condição de habitante do tempo. Onde coubessem, acrescente-se, os bolsões de tempo intensivo, com suas diferentes durações, com a morte, o nascimento, os lençóis de passado (Deleuze) que conservariam suas virtudes de começo e de recomeço etc. Mas que sentido pode ter esta multiplicidade para os lou- cos? Eles já não vivem isso tudo, e com maior intensidade, nos seus ritmos, bolsões, devires, paradas, passados, sobreposições? Se eles já experimentam essas temporalidades, com que objetivo sustentar para eles este ponto tão difícil de uma cronogênese, de um jorrar do tempo? Não há resposta clara para esta pergun- ta apressada e malformulada, mas é possível que na loucura 42 esses modos de temporalização diversos sejam vividos a partir de um ponto de horror, como horror, e isto por serem viven- ciados como que por detrás de uma barricada erguida contra o tempo. Uma cronogênese, ao desmontar esta barricada, pode permitir que esses modos de temporalização diversos não sejam mais vividos no horror. Pode também abrir o acesso a um tempo onde haja começo, novo, isto é, a partir do qual as possibilidades possam tomar um perfil temporal. O problema é que isso só é realizável se conseguimos dilatar a contração do tempo que nos é imposta, deixando de lado tanto o tempo congelado do manicômio quanto o tempo inerte da tecnociência. Só assim, movendo-nos mas desacelerando, pode- mos nos aproximar dessa barricada no tempo levantada pela loucura, e permitir-lhe desconstruir-se, não para aceitar a velo- cidade dominante, porém para desdobrar-se com mais desen- voltura em suas virtualidades temporais. A fim de poder ver no devir não só uma fonte de ameaças e terror. Claro que há aqui inúmeras dificuldades, clínicas, ideológi- cas, filosóficas, algumas incontornáveis até o presente momen- to, outras inexploradas, outras alheias aos limites deste trabalho. Ficam aqui como questões. A primeira delas diz respeito ao privilégio atribuído ao espaço numa certa concepção psicanalítica das psicoses. Gisela Pankow, por exemplo, diz que para um esquizofrênico construir alguma história precisa estruturar minimamente uma imagem do corpo1. "Se conseguirmos relacionar as diversas partes do corpo umas com as outras", diz ela, então o corpo é "habitável", e "a experiência espacial leva à experiência temporal". O ho- mem entra em sua própria história como sujeito apenas através dessa imagem do corpo. O tempo só é acessível via espaço. Isso tudo é muito interessante e na clínica parece fazer sentido, mas seria preciso perguntar-se se esta espacialização não pressupõe uma doação do tempo, aquela cronogênese de que fala Oury. l Gisela Pankow, O homem e sua psicose, Campinas, S.P. Papirus, 1989, e O homem e seu espaço vivido, Campinas, S.P., Papirus, 1988. 43 E mais, perguntar também se o regime de temporalidade baseado na velocidade absoluta desmaterializante não barra o acesso ao espaço, e assim à possibilidade de uma história do sujeito. Claro que não é fácil manejar ao mesmo tempo conceitos provenientes de domínios tão diversos, com escalas de grandeza tão distintas. Como pensar, por exemplo, a incidência dessa temporalidade da tecnociência e sua espacia- lidade específica na estruturação de uma imagem do corpo, que é um fantasma pertencente exclusivamente à instância do psiquismo? Há aí vários riscos, por exemplo, o de transpor uma teoria regional para fora de seu campo de aplicação, forçando enxertos descabidos. Mas também é preciso poder pensar as intersecções. Um outro problema nesta mesma linha seria verificar a relação entre esta temporalidade da tecnociência, que embutiu o futuro no presente, mas num presente esvaziado e sem espessura, e a estrutura de antecipação temporal, tão fundamen- tal na constituição imaginária do sujeito. A manipulação de futuro que a tecnociência propõe está longe da possibilidade do futuro enquanto abertura temporal. Eis outro risco presente em toda esta reflexão. Michel Foucault disse certa feita que é preferível pensar em termos de espaço, que é a linguagem da guerra, da estratégia, da exterio- ridade, pois a linguagem do tempo nos tem levado à ideia de evolução, de continuidade, de desenvolvimento orgânico, de progresso da consciência. Como então pensar a questão do tempo sem recair no subjetivismo, no modelo da consciência ou mesmo no culto continuísta e progressivo da História? Como pensar estrategicamente o tempo, no seu vetor de exteriorida- de? Evidentemente, extrapola os limites deste trabalho uma reflexão propriamente filosófica sobre o problema do tempo na sua extensão rigorosa e complexidade conceituai. Há um viés heideggeriano em Virilio (e também em Lyotard), um bergso- nismo distorcido em Deleuze (muito distante desta visão "con- tinuísta" criticada por Foucault), e muitas outras entradas possíveis que este estudo não poderia abordar de frente. Cabe 44 assinalar, entretanto, que este trabalho não se situa exclusiva- mente no plano do "tempo vivido". Outra armadilha ainda seria embarcar numa romântica nostalgia pré-tecnológica. Alguns pensadores da pós-moderni- dade (como Baudrillard, por exemplo) deixam transparecer, por trás da volúpia apocalíptica que os caracteriza, um tom saudosista, banhado num complacente niilismo kitsch. Seria preciso, junto à lucidez política de que dão testemunho os autores utilizados neste ensaio, conseguir flagrar a multiplicida- de dos novos espaços-tempos constantemente criados em nosso universo tecnológico, apesar das tendências hegemónicas da tecnologia apontadas acima. Mas num nível mais imediato, a dificuldade maior talvez ainda seja nossa insistência no fator espacial, nas oposições aberto/fechado, muro/não-muro, reclusão/inserção. É uma luta importante, mas em face das novas tecnologias de poder (em que o lema não é mais "trancar" ou "excluir", mas "acele- rar"), parece insuficiente. Para esta tecnologia, a loucura repre- senta um obstáculo, e nós não deveríamos ajudá-la a remover esse obstáculo inserindo-a simplesmente no ritmo generalizado. É preciso dar à loucura (sem substancializá-la) espaços de tem- poralidade diferenciada, lugares onde um outro regime de temporalidadepermita outras coisas. Deveriam existir ateliês de tempo, para loucos e não loucos, pouco importa, onde isso fosse possível. Em certa medida eles já existem, não oficialmente e não com este nome, em todos os movimentos ou grupos ou pessoas ou instituições que desafiam a homotemporalidade dominante, com seus devires atípicos, estrambólicos, bizarros, seja com suas barricadas no tempo, picnolepsias, desfalecimen- tos1, seja nos seus saltos, êxtases abruptos, ou na coexistência com os lençóis de passado, ou ainda, no enfiar centenas de trajes e sapatos numa única bolsa, tal como o saxofonista de Cortázar sopra a música no balão do tempo, inchando-o ao infinito. l Foi ainda Virilio quem melhor analisou essas paradas temporais em seu livro Esthétique de Ia disparítion, Paris, Ed. Bailai d, 1980. 45 Para concluir, cabe acrescentar que apesar de toda a varie- dade temporal já mencionada, num hospital às vezes é preciso suportar o tempo insípido como se aguenta uma chuvinha triste e interminável, sabendo que lá na frente a água acumulada pode irromper numa nascente. Aí pode jorrar um tempo, que nos casos felizes, e por um certo curso de rio, leva quem sabe a uma cascata de vida. Mas há também, no convívio com os loucos, a multiplicida- de temporal que desafia a homogeneidade do relógio, e esse desafio nunca é pacífico, pois nunca é pacífica a insubordinação ao tempo societal. Para nós é difícil não só respeitar essa heterogeneidade temporal, como também fomentá-la (o que seria desejável), através da criação de diferentes temporalidades grupais. Não é simples fazer isso tudo e ainda estar atento para as diferenças de tempo individuais, criando certos ritmos, em que uma modalidade temporal possa conectar-se com outra, compor-se, combinar-se, contrapor-se, ressoar, destoar. Não para fazer bandinha, mas para não deixar que, por solidão, uma temporalidade morra estrangulada, ou que um paciente sufo- que no seu ponto de horror. Nós não precisamos do manicômio para estancar o despo- tismo da velocidade que mata o tempo, pois o manicômio já é o despotismo do tempo morto. Mas não deveríamos abrir mão de todos os diques que conseguirmos inventar, para os loucos e os sãos, a fim de viabilizar, mesmo contra a maré cronocida, aquela vagabundagem do espírito que só é possível a bordo da nau do Tempo-rei. Dezembro/1990 46 3 - ECOLOGIA DO INVISÍVEL Vocês hão de compreender o meu constrangimento ao lhes propor, no rastro da comunicação de Félix Guattari, um tema como o invisível. Parece disparatado falar do invisível numa cidade tão bela como o Rio de Janeiro e em meio à violência mais crua, em face da visibilidade a mais concreta, nos seus dois extremos de beleza e horror. O invisível, além disso, é também sempre um pouco indizível, e já terei conseguido muito se puder roçá-lo de leve para indicar a relação fundamental que creio haver entre ele e uma reflexão sobre as ecologias. Gostaria de mostrar em que medida uma politização do invisível está em curso e de que modo ela reverte ou pode infletir uma ou outra perspectiva cultural e ecológica. Eu diria, um pouco peremptoriamente demais, talvez, que uma certa corrente do pensamento contemporâneo, na qual decerto incluiria de modo eminente Deleuze-Guattari, alterou o estatuto do invisível. Penso que foi em parte mérito seu o ter dado ao invisível uma dimensão propriamente política, isto é, um lugar na polis. Mas antes de explicar em que sentido o entendo, arriscaria uma generalização preliminar, propondo uma tipologia da relação das culturas com o invisível. Embora esquemática e provisória, pode fazer com que esse tema tão invisível e indizível pareça menos inefável. Trata-se, grosso modo, de quatro tipos de relação cultural com o invisível, ou melhor, de quatro regimes de invisibilidade. Ainda que indissociáveis de configurações sociais e políticas bem determinadas, e por conseguinte inseparáveis de regimes 49 de visibilidade também definidos, esses quatro tipos não devem ser entendidos como fases de uma história evolutiva. O primeiro tipo diz respeito ao invisível imanente, tal como aparece nas culturas primitivas ou arcaicas. É o invisível habi- tando a Terra, coextensivo a ela e presente no meio dos homens. O segundo tipo de invisível habita o Céu, acima dos homens, tal como se vê nas grandes religiões monoteístas ou nas forma- ções bárbaras despóticas. É o invisível transcendente. O terceiro tipo, mais conhecido de nós, é o invisível enredado na inte- rioridade da alma e, por extensão, constituindo o domínio do psiquismo. É o invisível habitando o Sujeito, e privatizado na forma do fantasma individual. A hipótese um pouco extravagan- te que assedia este percurso grosseiro, que eu gostaria de postular mas também de contestar, é que estaríamos assistindo agora à passagem desta última configuração, a do invisível subjelivo, para uma outra forma, em que está em jogo o aniqui- lamento progressivo do invisível. Não mais imanente, não mais transcendente, não mais subjetivo: o invisível estaria entrando num regime novo, com uma figura estranha que mereceria uma análise também estranha. Não mais presente entre os homens, nem planando acima deles, nem encarquilhado dentro deles, mas substituído ou engolido pela visibilidade imaterial da ima- gem. Segue uma ilustração do que se trata. Um diário paulista noticiou que uma tribo indígena do baixo Xingu (os araweté) recebeu a visita amigável de uma equipe de cinema, e ali foram rodadas imagens para um filme. Um mês depois, a equipe retornou à tribo e mostrou seu trabalho. A tela de TV exibe aos índios surpresos sua própria imagem, mas no meio aparece íambém a figura de um ancião morto nesse intervalo de um mês. Pela primeira vez a tribo inteira assiste ao reaparecimento de um morto, função reservada exclusivamente ao pajé. A imagem do morto na tela é duplamente inquietante: ver a morte é interditado a quem não de direito, e se isso acontece, só pode significar um castigo. Por quê? Pois a tradição desta comunidade recomenda que ela se desloque a cada vez que morre um índio. 50 Ora, a demarcação de terras tem impedido essa mobilidade, e a tribo se viu obrigada a permanecer no mesmo lugar. Assim, a visão do morto, diz o jornal, para os índios só podia significar uma punição sobrenatural infligida por conta de uma transgres- são ritual coletiva. Até aqui o noticiário veiculado pelo jornal. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que tem um trabalho volumoso sobre os araweté1, e que presenciou o episódio, tem uma inter- pretação mais complexa. Segundo ele, ali estavam em jogo vários elementos, como a relação de perigo que envolve a evocação dos mortos para os araweté, a importância do trabalho de luto para se evitar a doença mortal melancolia, a teoria dos araweté sobre o duplo do morto, espécie de espectro a rondar a tribo pelo tempo suposto de descomposição do corpo, e daí a prescrição de deslocamento, o tipo de visão que o pajé tem da morte, muito mais ligada ao canto que à visão, espécie de peifoimance mediúnica etc. Contudo, o mais interessante é o seguinte: em araweté há um termo, o in, que designa ao mesmo tempo sombra, alma, qualquer tipo de representação ou repro- dução visível ou vocal, e também imagem. Viveiros conta que no momento da apresentação do filme, houve toda uma discus- são na tribo para esclarecer se isso que viam na tela era ou não um in, se o in do morto visível no meio deles poderia causar-lhes algum mal, se essas imagens teriam ou não o poder de capturar suas almas matando a todos (isso foi levantado em tom jocoso, tratava-se de uma brincadeira),ou se essas imagens, segundo a expressão de um deles, seriam apenas "nós mesmos", isto é, o corpo deles, e não a alma. Enfim, havia humor na discussão, e certa inquietação, o começo de uma reorganização do vocabu- lário psicológico, segundo o antropólogo, mas também, é de se supor, a tentativa de atribuição de algum estatuto no interior da cultura araweté para essa imaterialidade visível que de algum l Eduardo Batalha Viveiros de Castro, Araweté: os deuses canibais, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1986. modo poderia se confundir, "representar", ou até mesmo subs- tituir o invisível. Essa historinha condensa muitos aspectos dramáticos da ecologia, na sua acepção mais vulgar de proteção aos índios, sobretudo no que diz respeito ao embate agônico entre as culturas primitivas e o Ocidente Tecnológico. No entanto, eu preferiria usá-la apenas para ilustrar de modo quase caricato o contraste entre esses dois regimes, o da invisibilidade imanente da ordem mítica, em que a comunidade coabita com o invisível apesar do sistema de atualizações ritualísticas ou de mediações xamânicas, e esse outro regime, o da visibilidade total, plena, sem mediação alguma, em que a imagem mostra tudo. Imagem obscena, dizem alguns, isto é, oô-cena, sem cena, sem a cena que todo espetáculo pressupõe, em que há um jogo entre um revelado e um oculto presenciado pelo olhar de um espectador situado a uma certa distância da imagem. Aqui, na visibilidade total, também chamada de pornográfica, estaríamos mais pró- ximos de uma promiscuidade tátil com as coisas, como frisa Otília Arantes ao comentar um texto de Baudrillard e aproxi- má-lo de Walter Benjamin1. No nosso regime da visibilidade total, da profusão infinita de imagens, dessa promiscuidade tátil com elas, o que teria acontecido ao nosso invisível, supondo-se que ele exista? Se colocamos por um instante entre parênteses essa tipologia simplória do invisível como imanente, transcendente, subjetivo ou imagético, do que se trata para nós? Certas experiências clínicas, estéticas, políticas, poderiam tornar este tema bem mais palpável. É o caso, por exemplo, de uma delas, comum a todos os trabalhadores "psi" que têm alguma intimidade com os espaços de confinamento da loucura, onde aparecem de forma privilegiada, por razões históricas complexas, resíduos de uma relação relevante com o invisível. Na convivência com comunidades de loucos sente-se de fato l Otília Beatriz Fiori Arantes, "Arquitetura simulada" in O olhar, Adauto Novaes (org.), São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988. 52 uma espécie de densa invisibilidade entrelaçada nos objetos, nas pessoas, nos lugares, nas palavras, nos silêncios, e não é preci- samente o que está na cabeça de cada paciente, mas entre eles, entre um e outro, entre um olhar e um objeto, entre as palavras e as coisas, entre um som e um retalho, como se esse invisível fosse outra coisa que um oculto, outra coisa que um segredo, outra coisa que um mistério acessível a um sujeito privilegiado, seja ele médico ou louco. Como se esse invisível fosse essa camada que envolve e permeia as coisas, ou as duplica, ou que lhes dá espessura, ou leveza, ou peso, ou as torna relevantes, miraculosas, fantásticas, inéditas, mágicas, brutas, inertes... Sim, uma camada intensiva, que tem a ver com as imagens mas não deriva delas, que tem a ver com a linguagem mas não deriva dela. Como quando vemos um morto, paira sobre ele uma camada de invisível que não é o morto, e sim a morte, esse acontecimento imemorial que sobrevoa todos os mortos e os vivos, e os incrédulos e os estarrecidos da Terra. Assim como o relógio configura uma imagem do tempo mas não é o tempo, e mesmo a pintura de um relógio derretido, escoando, ainda é insuficiente para roçar esse invisível maior que é o Tempo, e que às vezes um anjo de Wenders ou um fragmento de Blanchot ou uma sonata em Proust evocam mais de perto. Voltando ao exemplo do hospital psiquiátrico, eu diria que é nessa esfera do invisível que se passa o essencial, que está aí a matéria-prima da clínica, onde as virtualidades estão presentes num estado de oferecimento, à espera de enganches, atualizações, proliferações, de onde cada um, indivíduo ou parte de um indivíduo em conexão com parte de um outro extrai e constrói sua terra natal, por mais imaterial que ela seja, a partir da qual certos processos de subjetivação podem desdobrar-se e ganhar consistência. Cuidar desse "meio ambiente" num hospital psiquiátrico, por exemplo, deixando-o desobstruído, é um trabalho imenso; tem a ver com as esferas políticas, institucionais, as transferências, o dinheiro, a arquitetura, os animais e os sons que o habitam, murmúrios, risos, ritmos, gestos, todas as forças e afetos e elementos em jogo, mas é no meio de tudo isso que essa massa 53 invisível se oferece como um magma grávido de expressões, singularizações, autopoieses etc. É esse invisível, esse entre, esse fora, esse meio, que pode ser promessa ou, pelo contrário, apenas fardo insustentável, massa pesada e inerte. Talvez essas poucas divagações bastem para tentar concluir alguma coisa sobre o estatuto do invisível que a imagem, mal- grado a tentação pós-moderna, jamais será capaz de substituir, assim como outrora a linguagem, malgrado a tentação estrutu- ralista, tampouco foi capaz de coagular. O invisível, a rigor, não é da ordem da linguagem, nem da imagem, e muito menos do imaginário. Por isso é tão falaciosa sua redução a uma inte- rioridade psíquica, ou a um imaginário social que se sobreporia à realidade. O invisível é parte da realidade, ele é da ordem da Cidade, ou, para sermos mais espinosistas, da ordem da Natu- reza. Uma ecologia que pretendesse preservar o ar relativamen- te despoluído, isto é, invisível, deveria preocupar-se em manter arejado o invisível. Pois se o regime da visibilidade total é incapaz de substituir o invisível, ele é bem capaz de o poluir. O que experimentamos num nível mais imediato, apesar de todas as possibilidades alentadoras que as tecnologias inventam sem cessar, é justamente isso: uma espécie de poluição do invisível. Como diz Deleuze, estamos cercados por todos os lados de uma quantidade demente de palavras e imagens, e seria preciso formar como que vacúolos (a expressão é de Guattari, se não me engano), vacúolos de silêncio para que algo merecesse enfim ser dito; ou, por extensão, vacúolos de imagens, como de fato alguns cineastas e videomakers souberam cavar no interior de suas próprias criações, para que algo merecesse enfim ser visto. Técnicas de despoluição do invisível, não num sentido asséptico de preservação, mas de possibilitação. Como quando Deleuze mesmo conta que não se desloca muito para não espantar os devires: não é assepsia, mas possibilitação. Para tomar dois exemplos pictóricos, na mesma ordem de ideias, de como isso se dá: um filme recente de Jacques Rivette (A bela intrigante) mostra um pintor maltratando uma bela modelo, forçando-a a posições esdrúxulas, deformando-a por 54 inteiro, e em meio a uma discussão com ela diz que não a está retratando, já que busca nela o invisível, seu sangue, seu fogo, seu gelo. Para isso ele precisa virá-la do avesso, deformá-la, desmembrá-la. Ou ainda um outro exemplo pictórico, quase contrário, do recém-falecido pintor Francis Bacon, que reivin- dicava, antes de pintar uma tela, limpá-la de todos os clichés da história da pintura que pairavam acima dela, assim como se desafia um destino. Um busca o invisível pela violência, através do desmembramento do corpo, extraindo dessa operação for- ças invisíveis que comporão outra visibilidade. O outro opera por rarefação ou esvaziamento, a fim de desobstruir as virtuali-dades presentes, absolutamente reais, embora à espera de uma atualização, aí sim visível^ expressiva, existencial. Então, não bastaria dizer que o invisível plana sobre as coisas como uma espécie de incorporai, tal como o acontecimento, mas que ele atravessa as coisas como essa textura ou nervadura virtual que, uma vez atualizada, as redistribui, provocando nelas desmem- bramentos, decomposições, recomposições, bifurcações, novas processualidades, derivações, universos, inéditos. Esta é uma operação estética, filosófica, clínica, mas tam- bém eminentemente política, pela simples razão de que esse invisível é imanente às grandes máquinas técnicas e sociais. Claro, é sempre uma política concreta que altera situações concretas, mas há como que um trabalho paralelo, simultâneo, eu não diria prévio, pois é entrelaçado a esse, que é de desobs- trução, de espaçamento, por rarefação como Bacon ou Becket, ou de violência, estiramento e esgarçamento como o pintor de Rivette, ou de produção, depende do caso, mas envolvendo sempre alguma reconexão com essa ordem do invisível virtual. É bem difícil, em meio às guerras mais cruentas, falar daquilo que não é propriamente da ordem do Ser, mas do Entre. Tanto pior ou tanto melhor se isso pressupõe uma outra ontologia em que não está em jogo o Ser do ente, mas o Entre do ser. O tema aqui é justamente este: o invisível, parte integrante.e constitutiva de realidade, de subjetividade, de sentido, atrelado que está às máquinas tecnológicas e sociais e seus agenciamentos, deve ser 55 pensado politicamente. Para tanto, é preciso desprivatizá-lo, desimaginarizá-lo, mas ao mesmo tempo restituir-lhe sua densi- dade de acontecimento e de virtualidade, sua distribuição espar- sa, singular, processual, de engendramento de realidade e de subjetivações. Mas o que significa um invisível que não fosse restrito aos alucinados, videntes, drogados, artistas, psicanalisados, profe- tas, embora todos esses possam desenvolver uma relação privi- legiada, momentaneamente, com o invisível1? Um invisível que não se limitasse a essas figuras de "iluminações profanas", segundo a expressão de Benjamin? Sabemos que para ele estas experiências representavam uma espécie de prefiguração soli- tária de uma revolucionária experiência histórica coletiva2. Afinal, do que se trata quando falamos de um invisível que não é da ordem de um visível oculto, ou de uma imagem interna, ou de um imaginário coletivo, mas que tem a ver com o coletivo e o singular, que diz respeito ao subjetivo, que tem a ver com as palavras e as coisas e as máquinas sociais, que está entre elas, e que deveria ser desobstruído, arejado, por esgarçamento, rare- fação, ou outros procedimentos? Seria precipitado arriscar uma resposta. Mas penso que esse invisível, se fosse possível defini-lo em poucas palavras, tem a ver com o espaço reservado ao intempestivo. Bacon precisa liberar a tela da história da pintura, para fazer brotar seu desvio intempestivo. O pintor de Rivette precisa livrar-se de uma história do corpo para extrair dele uma derivação imprevista. É preciso conseguir não ruminar incessantemente a própria his- torinha pessoal para poder inventar um novo devir. Um hospital psiquiátrico precisa livrar-se do despotismo de um tempo ho- mogéneo para deixar surgirem temporalizações e universos existenciais diferenciados. Nós precisamos constantemente nos 1 José Miguel Wisnik trabalhou algumas destas figuras em seu belo ensaio "Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados)" incluído na coletânea O olhar, op. cit. 2 Walter Benjamin, "O surrealismo — o mais recente instantâneo da inteligência europeia", in Obras escolhidas vol l, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1987. 56 desgarrar desse presente sem espessura que a mídia nos oferece, imagem móvel de uma eternulidade, para introduzir em nossas vidas o inédito. Na linha dos pensadores que me inspiram, é preciso dizer também que não se trata de descobrir nossa identidade através desse visível que é a nossa história, já que a história não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir. Diferir dela não para descobrir o que se é, mas para experimentar o que se pode ser (desprender-se de si, dizia Foucault). Tarefa ética por excelência, subjetiva, ontológica, analítica, e que não repousa sobre o visível da história, nem sobre um segredo invisível que ela ocultaria, nem mesmo sobre uma prefiguração desse visível futuro na forma de um projeto acabado. É uma operação que exige a desobstrução de um invisível como campo virtual para um devir-intempestivo. Que me seja perdoado o pleonasmo: é claro que o devir já pertence à ordem do intempestivo, do contra-tempo, do inatual, do desvio na história, da contra-efetuação, mas por inflação de uso o termo devir acabou sendo facilmente identificado com a simples mudança ou progresso ou evolução, mesmo dialética, o que oblitera sua relação essencial com esse intempestivo. De qualquer modo, convém assinalar que a relação com o invisível sempre coloca em jogo o tempo e sua ordenação. Por exemplo, Détienne e Vernant mostraram como a relação com o invisível na Grécia arcaica, privilégio de alguns visionários, expressava uma relação especial com o tempo: no caso do poeta, com a memória e o passado, no caso do adivinho, com o futuro1. Mircea Eliade, por sua vez, mostrou como para as culturas primitivas a relação mítica não é evocação de uma origem remota, mas revivência dela sempre co-presente: a ritualização não é lembrança, mas efetiva reatualização2. Numa outra ordem de ideias, todas as "iluminações profanas", drogaditas, místicas, ou mesmo as revolucionárias, exercitam uma sabotagem na 1 Mareei Déticnne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, e Jean Pierre Vernant, "Aspectos míticos da memória e do tempo", in Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica, São Paulo, DIFEL/Edusp, 1973. 2 Mircea Eliade, Mito e realidade, São Paulo, Perspectiva, 1972, cap. II. 57 ordem do tempo, uma cnmoilógica. Não é acidental o fato oposto, o de que a onipresença da imagem televisiva e o regime da simultaneidade e da instantaneidade contínua que ela e a mídia em geral instauram, conforme mostrou Paul Virilio, impliquem não nessa esqui/ofrenização temporal, mas, ao contrário, numa espécie de crànoddio. A relação com o invisível, com esse invisível desatrelado da visão ou do visionarismo, é também, para usar uma imagem confusa, d espaço em que surge o tempo, em que ele brota e jorra e deriva e bifurca, e em que ele se intempestiva a partir de uma espécie de cronogênese. Então, quando a televisão (ou a máquina midiática da qual ela é apenas uma peça) nos oferece essa imagem plena, contínua, temporalmente nula, é óbvio que o que aí fica obstruído é uma temporalização, ou o intempestivo, ou os devires. Não é intrínseco à imagem televisiva, mas é próprio à sua forma atual de controle, que opera por saturação e achatamento temporal. Por outro lado, estudos recentes sobre a computação gráfica e a imagem numérica que ela sintetiza, isto é, imagem como função de equações matemáticas que lhe dão vida, mostram o quanto ela é diferente da televisão na relação que ela implica com o invisível e o tempo. Primeiro, ela pode tornar sensível o formal; com isso, não mostra tudo o que é, substituindo-se ao que pode ser, como faz a TV, mas atualiza visualmente aquilo que não podemos imaginar porque escapa a nossos hábitos sensoriais e perceptivos. A manipulação inte- rativa abre espaço para as diversas poéticas tecnológicas, mas também instaura uma nova relação com o tempo. A realidade virtual criada pela imagem numérica, ou seja, em última instân-
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