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PELBART A Nau do Tempo rei

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Prévia do material em texto

Peter Pál Pelbart 
A NAU DO 
TEMPO-REI 
7 Ensaios sobre o 
Tempo da Loucura 
— Série Logoteca — 
Direção 
JAYME SALOMÃO 
Imago 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
© Peter Pál Pelbart, 1993 
Capa: Visiva Comunicação e Design 
Foto da capa: Ricardo Bhering 
CPI-Brasil. Catalogação-na-fonte 
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. 
Pelbart, Peter Pál, 1956- 
P433n A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da 
loucura/ Peter Pál Pelbart. — Rio de Janeiro: Imago 
Ed., f 993. 
132 p. (Série Logoteca) 
Apêndice 
ISBN 85-312-0281-7 
93-0172 
1. Psiquiatria - Filosofia. 2. Loucura. I. Título. II. Série. 
CDD-157 
CDU-159.972 
Todos os direitos de reprodução, divulgação e 
tradução são reservados. Nenhuma parte desta obra 
poderá ser reproduzida por fotocópia, microfilme ou 
outro processo fotomecânico: 
1993 
IMAGO EDITORA LTDA. Rua Santos 
Rodrigues, 201-A — Estácio CEP 20250-
430 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: 293-1092 
Impresso no Brasil 
Printed in Brazil 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Lulu Porto 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
PRÓLOGO 
"Um pouco de possível, senão eu sufoco" 11 
I - TEMPO DOS ANJOS 
1 — Um desejo de asas 17 
2 — A nau do Tempo-rei 29 
3 — Ecologia do invisível 47 
4 — Rapsódia húngara 63 
5 — O anjo de Swedenborg 71 
II - MANICÔMIO MENTAL 
6 — Da loucura à desrazão 89 
7 — A utopia asséptica 101 
APÊNDICE 
HOMENAGEM A FÉLIX GUATTARI: 
Um direito ao silêncio 113 
REFERÊNCIAS 
Textos desta edição (relação e especificação) 129 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PRÓLOGO 
 
 
 
 
"UM POUCO DE POSSÍVEL, 
SENÃO EU SUFOCO..."1 
Este livro fala dos anjos de Wenders, do tempo dos loucos, 
das loucuras do Tempo, dos desarrazoados, do invisível e do 
intempestivo que frequentam secretamente o belo e infame 
mercado da vida... Talvez seja enganoso qualificar de ensaios os 
textos aqui reunidos. São no máximo balões de ensaio, soltos ao 
vento com o gosto capeta (e incendiário) de ver como sobem, 
somem, caem ou explodem. Foram redigidos por ocasião de 
colóquios diversos acerca do tema da loucura, mas seu propó-
sito é pouco científico. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Estas falas, embora impregnadas por anos de (con)vivência 
clínica com pacientes ditos psicóticos, visam simplesmente rea-
cender a potência de evocação, de questionamento e de estra-
nhamento embutidas na loucura. Eis, pois, a molecagem 
filosófica que as inspira: a partir das disrupções da loucura, 
repensar algumas das clausuras nossas (temporais, políticas, 
estéticas, existenciais). 
A meio caminho entre a filosofia, a clínica, o manifesto, a 
literatura, o género híbrido corre o risco óbvio de desgostar a 
todos. Aos profissionais do conceito, pelo aspecto ligeiro, aos 
da transferência e da vida, pelo caráter aleatório ou duvidoso. 
Teriam um quê de razão, uns e outros, não fosse a circunstância 
particular de que determinadas experimentações teóricas e 
vitais têm na divagação e na digressão sua matéria-prima. Pois 
na sua textura mais íntima, mesmo quando atreladas a aparatos 
académicos rigorosos, as experimentações teóricas comportam 
um quinhão irredutível de ficção. 
Assim, ao invés de negar a dimensão ficcional do pensamen-
to, mimetizando sistemas insossos e pseudocientíficos, tratou-se 
 
l Gilles Deleuze, Conversações, trad. Peter Pál Pelbart, Ed. 34, 1992, p. 131. 
 
 
 
 
 
 
 
 
aqui de construir brinquedos, ressonâncias caleidoscópicas. O 
livro-caleidoscópio. Brincar de desfazer certas ordens cristaliza-
das no espelho do Tempo, incluindo aí novas e estranhas 
pedrinhas, a fim de criar outras ficções de vida, outras vidas. 
Não é este um dos sonhos do pensamento? O de insuflar na 
vida, a partir dela mesma, uma grande e nova leveza lúdica? 
E por que fazê-lo na vizinhança da loucura? Por ser ela o 
campo das questões limítrofes, inapagáveis. É ali que se dá o 
entroncamento impensável entre a subjetividade, a cultura, a 
ruína, certos conceitos insólitos e todas as insubordinações 
desarrazoadas. A partir do colapso psicótico, por exemplo, é 
possível repensar aspectos de nossa temporalidade, de nosso 
modo de vivenciar a história, de nossas evidências lógicas, das 
visibilidades incontestes, consensos políticos etc. Não se trata de 
"usar" o sofrimento do louco para "fazer filosofia", mas de 
infletir-nos a partir daquilo que o campo da loucura dispara e 
conturba em nós. É uma maneira entre outras, porém esquecida 
e valiosa, de "ouvir" a loucura. 
As muitas referências a Gilles Deleuze c Félix Guattari se 
devem ao fato de terem eles (re)inaugurado a trilha do pensa-
mento nas adjacências da esquizofrenia. Esta aventura, longe de 
estar esgotada, foi pouco explorada. É em parte o que se tentou 
aqui. Os conceitos de Deleuze-Guattari (e muitos outros) foram 
operados ao longo destes textos com a mesma desenvoltura que 
eles próprios sempre defenderam e exercitaram. É preciso que 
um conceito tenha ao mesmo tempo uma estranheza e uma 
necessidade, diz Deleuze. Ora, nem a estranheza nem a neces-
sidade são dadas, elas precisam ser testadas e talhadas num 
processo paciente mas intempestivo, de variação das condições, 
dos contextos, das conexões, das associações, com tudo de 
ziguezagueante que isso implica. 
Nesse sentido, não cabia ocultar as hesitações, contradições, 
perguntas em suspenso que entremearam a feitura deste traba-
lho. São parte constitutiva de uma viagem; mais, constituem seu 
estofo romanesco, aventuresco. O tom oral e por vezes dema- 
12 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
siado coloquial tampouco foi alterado; com a ilusão, talvez, de 
que se pudesse preservar uma certa hecceidade da fala. 
Este livro não é dirigido só a filósofos, psicanalistas, traba-
lhadores em saúde mental (embora a estes possa ser particular-
mente útil), mas aos que alguma vez já desconfiaram que essa 
vida morna e tola que nos é oferecida e alardeada como a única 
possível, desejável e saudável esconde outras tantas. Cuja beleza 
e tentação cabe reinventar. 
13 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
I - TEMPO DOS ANJOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
l - UM DESEJO DE ASAS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Wim Wenders mostrou pela primeira vez em circuito pla-
netário como são e o que fazem os anjos numa metrópole 
contemporânea. Com Asas do Desejo ficamos sabendo, espanta-
dos, que eles são muitos. Só em Berlim contam-se às dezenas. 
Perambulam pelas cidades meio ao acaso, invisíveis, enfiados 
em grandes casacos, com o cabelo preso em rabicho, mãos no 
bolso, observando em silêncio o sofrimento dos mortais. Quan-
do querem, ouvem os pensamentos dos homens, mulheres e 
crianças. Aproximam-se deles devagarzinho, inclinam a cabeça 
em direção ao ombro e escutam seus monólogos, suas preces, 
devaneios, anseios. O que faz uma anjo quando percebe que a 
desesperança invade a alma de um humano? Toca-lhe no ombro 
de leve, com a ponta dos dedos, e o sofredor se dá conta de algo 
a roçar-lhe o entorno, mas não sabe ao certo o quê. Intui uma 
presença estranha mas nada vê; sente como que um farfalhar de 
folhas, uma perturbação desconhecida, uma espécie de cintilân-
cia. E aí seu corpo caído retoma um vigor inesperado, o pensa-
mento de repente bifurca para longe da morte, ocorre-lhe como 
que um pequeno renascimento. 
Mas os anjos não são deuses. Eles não podem tudo. Por 
exemplo, não podem estancar a queda de um suicida do alto de 
um arranha-céu. Não podem dar trabalho a um desempregado. 
Tampouco têm o poder de agenciar parceiro para uma trape-
zista solitária. Nem sequer está ao alcance deles criar um público 
para um narrador envelhecido, num mundo que não quermais 
ouvir suas histórias, pois prefere perder a memória. Os anjos 
19 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
não podem mudar a face do Planeta nem dirigir o curso do 
Mundo. No máximo podem tornar mais leve o fardo de uma ou 
outra vida, de um ou outro momento de uma vida ou outra. Um 
pouco como um terapeuta: essa disponibilidade para ouvir, para 
tocar, essa presença discreta que pode às vezes suscitar um novo 
começo — mas também essa impotência para determinar, para 
resolver, para viver no lugar de. 
O que poucos sabem — e isto se aprende no filme — é que 
os anjos têm inveja dos homens. Eles vêem muita coisa, ouvem 
tudo, podem estar em todos os lugares, observam os humanos 
ora com espanto, ora com admiração, ora com compaixão — 
mas sempre com uma pontinha de inveja. Do que têm inveja os 
anjos? Da finitude dos mortais. Da sua fragilidade, da sua 
inscrição no tempo, do sentir frio, do sentir fome, do sentir 
doce, do esfregar as mãos uma na outra numa madrugada 
gelada, de sentir o calor de um copo de café esquentando o 
corpo, de ter saudades, incertezas, de morrer de amor e de ter 
medo da morte. A imortalidade dos anjos é para eles um cárcere 
cruel. Ela os aprisiona no tédio infernal do Mesmo, na repetiti-
vidade sem história, num eterno presente que é em si a imagem 
cinza de uma morte sem desfecho. 
Curiosa inversão: então não são os homens os infelizes do 
filme, como seria de se esperar, mas os anjos. Sua permanência 
tediosa sobre a face da Terra, seu eterno flutuar por sobre coisas 
e homens, sua desencarnação assexuada, sua ahistoricidade, 
tudo isso está muito mais próximo do sofrimento da loucura do 
que da disponibilidade dos terapeutas. Pois há na loucura um 
sofrimento que é da ordem da desencarnação, da atemporali-
dade, de uma eternidade vazia, de uma ahistoricidade, de uma 
existência sem concretude (ou com um excesso de concretude), 
sem começo nem fim, corn aquela dor terrível de não ter dor, 
a dor maior de ter expurgado o devir e estar condenado a 
testemunhar com inveja silenciosa a encarnação alheia. 
No filme de Wenders, um dia um anjo resolve encarnar. 
Vira um mortal de carne e osso, com frio, fome, sede, saudade, 
sangue e dor, tudo aquilo a que nós temos direito cotidianamen- 
20 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
te e que é o nosso quinhão precioso sobre esse planeta. O ex-
anjo-recém-encarnado apaixona-se então pela trapezista soli-
tária, e vive com ela um instante único, em que sente ter 
descoberto pela primeira vez a verdadeira eternidade. Não 
aquela eternidade vazia dos anjos, mas a eternidade cravada na 
fugacidade de um devir. Um pouco como diz o poeta: eterno 
enquanto dura. E o ex-anjo-recém-tornado-mortal, através desse 
instante diamantino, embarcou no que se poderia chamar de 
um devir-anjo. Ele não virou anjo, mas entrou num devir-anjo, 
o que é diferente. No fundo, é também o que a trapezista 
entristecida sempre buscara, um devir-anjo, fosse através de seus 
malabarismos circenses ou de sua letargia embalada em rock'n 
roll. É igualmente o que o narrador sem público buscava em sua 
nostalgia de história, ou os estudiosos da biblioteca gigante de 
Berlim. Cada qual a seu modo buscava um devir-anjo, tinha um 
desejo de asas. A religião, o amor, a literatura, o cinema, tudo 
isso oferece asas para um devir-anjo. Mas há uma condição: é 
preciso ser um mortal. Apenas os mortais têm acesso ao devir-
anjo. Os anjos mesmo estão condenados ao tédio eterno, a 
menos que eles encarnem. 
Mas nós não acreditamos mais em anjos. Os anjos não 
existem. Se existem, são infelizes. Se são infelizes, mereceriam 
ser salvos. Em linguagem moderna diríamos: se sofrem, mere-
cem ser curados. O que significa: merecem ser reconduzidos à 
condição de mortais, para aí sim poderem constituir um devir-
anjo. E alguns de nós, terapeutas de psicóticos, que nos encar-
regamos dessa tarefa insensata de ajudar a encarnar os anjos, o 
que pretendemos com isso? 
Traduzindo em miúdos, no contexto de nossas cidades 
trata-se do seguinte: um Hospital-Dia para psicóticos, ou um 
serviço público experimental podem ser muita coisa; entre 
outras coisas podem vir a ser um dispositivo institucional a mais 
de normalização do social. Parece óbvio, vago, primário, e no 
entanto nada mais perigoso. Um Hospital-Dia lembra às vezes a 
Nau dos Insensatos que Foucault descreve no início de sua 
História da Loucura, mas que ao invés de vagar à deriva das águas, 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
como na Renascença, aportou em solo urbano, com todas as 
promessas e riscos que isso implica. Uma nau atracada, um 
pouco como as barcas-casa nos canais de Amsterdã, um tantinho 
flutuantes mas já sedentárias, numa indecisão saborosa entre o 
fluxo do rio e a fixidez da cidade. Um atendimento alternativo 
pode transformar-se facilmente numa extensão burocrática do 
Hospital ou do Estado urbano, num jardim de infância pedagó-
gico, numa indústria de cura ou num depósito de estranhos 
personagens. Talvez ele efetivamente corra o risco de transfor-
mar-se num híbrido disso tudo se não conseguir refletir suficien-
temente sobre o seu lugar cultural numa sociedade que de 
algum modo tem coibido o devir-anjo de seus mortais. Eu 
ousaria dizer que às vezes vira anjo quem não consegue suportar 
ser mortal, mas isso também porque o ser mortal em nossas 
sociedades foi de algum modo expurgado do devir-anjo. Daí a 
ideia de que é preciso criar muitos modos de devir-anjo, os mais 
diversos, os mais múltiplos, os mais variados. Seria preciso 
engravidar o real com virtualidades desconhecidas de devir-
anjo, para que o tédio de ser mortal não vire uma camisa de 
força ainda pior do que o tédio de ser anjo. E isso tem tudo a 
ver com os terapeutas de psicóticos, que às vezes temos a mão 
leve e mágica dos anjos de Wim Wenders para a dor alheia, mas 
ao mesmo tempo vemos nos pacientes anjos desencarnados 
buscando imanência. Não podemos oferecer-lhes, porém, a 
encarnação seca que nós mesmos suportamos mal e que fre-
quentemente pensamos transcender com nossas histórias, dro-
gas, aventuras, com nosso esforço em multiplicar nossos 
devires-anjo, em viver várias vidas ao mesmo tempo, muitas 
dimensões, em fazer proliferar o real para além da mortalidade 
mortífera que nos é proposta e imposta por todos os lados. 
No fundo travamos uma briga encarniçada contra a pobre-
za de opções disponíveis no mercado da vida. O leque dos 
possíveis contém cada vez menos modelos de normalidade ou 
de anormalidade, cada vez menos e mais pobres formas de viver 
a familiaridade, a criação, a política, a conjugalidade, os modos 
de subjetivação, como se assistíssemos a uma homogeneização 
22 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
crescente de um social cada dia mais codificado. Nosso trabalho 
cotidiano mostra que socialmente temos pouco a oferecer como 
alternativas de vida a nossos pacientes, não porque sejamos 
estreitos ou mesquinhos, mas porque nossa configuração sócio-
histórica tem restringido e pasteurizado sua diversidade poten-
cial. Por isso, não creio que se possa desvincular a criação de 
dispositivos os mais diversos de sustentação para experimenta-
ções pluridimensionais num espaço terapêutico e a mesma 
criação num espaço extraterapêutico. Em ambos os casos trata-
se de combater uma espécie de entropia subjetiva e social. Daí 
o proveito que poderíamos tirar da ideia de Félix Guattari, de 
que a heterogeneidade precisa ser produzida. Não basta reco-
nhecer o direito às diferenças identitárias, com essa tolerância 
neoliberal tão em voga, mas caberia intensificar as diferenciações, 
incitá-las, criá-las, produzi-las. Talvez essa seja uma das coisas 
mais fascinantes e mais difíceis de fazer no trabalho com psicó-
ticos; o multiplicar as formas de conexão, de linguagens, de 
abordagens, de entendimento. Pluridimensionar o campo. Re-
cusar a homogeneização sutil mas despóticaem que incorremos 
às vezes, sem querer, nos dispositivos que montamos quando os 
subordinamos a um modelo único, ou a uma dimensão predo-
minante. Aceitar esse paradoxo de que quando um dispositivo 
está dando certo demais é que eleja não serve mais, que quando 
um grupo está demasiadamente bem sucedido alguma proces-
sualidade foi emperrada, que quando entendemos muito bem 
é porque deixamos de entender um bocado, que quando esta-
mos muito sãos é porque já estamos muito é neuróticos. 
Para retomar uma fórmula feliz de Jean Oury, um dos 
diretores da Clínica de La Borde, na França, é preciso conseguir 
o n-1. Ou seja, é preciso subtrair de um conjunto dado a unidade 
que o totaliza, sobrecodifica e homogeneiza. Se uma clínica tem 
n dimensões de funcionamento, por exemplo, espaciais, dramá-
ticas, sonoras, linguísticas, investimentos e modos de exis-
tencialização possíveis, o mais difícil é conseguir abrir esse leque 
em direção à sua pluralidade, ao invés de reconduzi-la a uma 
unidade significativa qualquer. 
23 
 
 
 
 
 
 
 
 
Mas por que será tão difícil assumir e intensificar essa 
multiplicação de dimensões? Parece haver nessa operação o 
risco de uma espécie de proliferação demoníaca, cancerígena, 
sem forma nem finalidade. Ao invés de um contorno para o 
mundo, de uma imagem de mundo reasseguradora, teríamos 
de fato um mundo sem uma imagem de mundo, monstruoso, 
sem modelo. Num dos belos livros de filosofia escritos no pós-
guerra (Diferença e repetição), Gilles Deleuze propôs substituir o 
que ele chamou de uma imagem do pensamento por um 
pensamento sem imagem. Imagem do pensamento significa 
grosseiramente uma forma à qual o pensamento está submeti-
do. Ao contrário, forjar um pensamento sem imagem de pen-
samento, isto é, sem uma imagem prévia do que seja pensar (será 
isto possível? ou trata-se apenas de outra imagem do pensar?) 
pode implicar em abrir mão de uma forma, de um modelo. Um 
pouco como fez a arte abstraia, que ao dispensar a figurativida-
de pôde liberar cores, linhas e uma série de virtualidades 
pictóricas até então aprisionadas debaixo da representação 
figurativa1. O resultado é mais caótico e enlouquecido, porém 
mais rico e pluridimensional. Isso que ocorreu na pintura 
também acontece na literatura e na filosofia. Bastaria citar 
Jackson Pollock, James Joyce, Nietzsche, para ficarmos simplifi-
cadamente num exemplo eminente para cada domínio. Mas 
também na política pode estar em curso algo semelhante: com 
o desmoronamento do modelo clássico de socialismo no Leste 
europeu, o caminho fica desimpedido para se inventar um outro 
modelo, ou, ideia todavia mais vertiginosa, uma política sem 
modelo, uma política sem uma imagem de política a aprisionar-
lhe as virtualidades. Sobre a clínica, porém, é difícil saber se ela 
precisa de uma revolução destas, se ela a deseja, se é capaz de 
provocá-la e, sobretudo, se ela a suporta. E a pergunta que 
imediatamente vem ao espírito é: Como fazer uma clínica sem 
 
l Em Deleuze não se confundem em absoluto a imagem do pensamento e o modelo. 
A extrapolação é abusiva e corre por minha conta, com o propósito exclusivo de 
introduzir a questão dos modelos teóricos através de um ângulo de abordagem 
"escancarado". 
24 
 
 
 
 
 
 
 
 
um modelo de clínica quando no fundo está todo mundo atrás 
do melhor modelo? Quando já custa um esforço tão hercúleo 
achar um modelo, por que tornar-se iconoclasta? 
Deixemos um pouco em aberto essa questão provocativa, 
mas não de todo. Mais do que abrir mão dos modelos — o que 
nos afundaria na intuição cega, que é o pior modelo — talvez na 
clínica seja preciso de algum modo repensar o estatuto do 
modelo. Por exemplo, injetando na própria ideia de modelo a 
precariedade que lhe é intrínseca, a fim de que ele possa 
constantemente derivar para longe de seu equilíbrio ordinário, 
liberando tudo aquilo que um modelo encobre ou o que lhe 
escapa, e que em geral é o essencial. Talvez também fosse útil 
submeter a noção de modelo à ideia de perspectiva no sentido 
nietzscheano; isto ao menos nos evitaria a ressonância pseudo-
científica evocada pela ideia de modelo. Assim, ao invés de 
perguntar se tal modelo "é verdadeiro", "adequado", se "corres-
ponde", se "representa" a realidade (psíquica, antropológica 
etc), perguntaríamos a que perspectiva tal modelo corresponde, 
isto é, de que tipo de vida tal modelo é sintoma, ou quais forças 
(ativas, reativas?) forjaram tal perspectiva, e com que interesses, 
no interesse de qual tipo de vida? Caso remetêssemos os mode-
los aos tipos de "saúde" que eles implicam, contornaríamos 
dilemas epistemológicos inúteis. 
Num âmbito mais geral, e não especificamente da clínica, 
porém, o que parece evidente é que a expansão e a difusão de 
um modelo hegemónico de subjetividade e de sociabilidade 
meio esvaziado emperra e murcha nossos devires-anjo. Somos 
pequeninos e às vezes impotentes; como os anjos de Wenders, 
não está ao nosso alcance mudar a face da Terra ou dirigir o 
curso do Mundo. Mas a clínica talvez seja um lugar privilegiado 
para pensar essa intersecção entre políticas da subjetividade e 
virtualidades de devir-anjo. 
Nesse contexto uma coisa parece clara. Se na nossa clínica 
formos apenas os embaixadores de uma saúde triste e asséptica, 
todo nosso esforço terá sido em vão, com poucas chances de 
vingar. E isso por uma razão óbvia: a saúde triste oferece menos 
25 
 
 
 
 
 
 
 
 
atrativos do que o tédio angelical da loucura. Resignação por 
resignação, não há porque trocar um tédio pelo outro. Essas 
coisas formuladas aqui intencionalmente de um modo simplis-
ta, sem a tecnicidade da terminologia "psi" que às vezes nos dá 
a segurança de um modelo, são questões polémicas, complexas, 
discutíveis, cheias de implicações teóricas e práticas da maior 
relevância. Não é por outra razão que seria preciso retomar o 
leitmotiv inicial: o desejo de asas, ou a facilitação de múltiplos 
devires-anjo é essencial para que a construção de um atendimen-
to alternativo não vire apenas mais uma empresa, um pouco 
mais sofisticada, com high technology, de burocratização do de-
sejo. O fato de serem pequenas não necessariamente protege 
essas experiências inovadoras deste risco. Caberia dizer: tama-
nho pequeno não é documento. Os estudos de Michel Foucault 
mostraram de sobra que o poder é capilar, que ele não só incide 
como também em parte é engendrado na mais minúscula 
dimensão. Mas, por outro lado, a história mostra que também 
grandes revoluções às vezes começam em pequenos laborató-
rios, na cabeça e na prática de alguns poucos desvairados, na 
mais microscópica das agitações. Penso que é esse um dos 
nossos mais caros alentos. 
O trabalho diário e a mão na massa são sempre mais 
maçantes do que as belas palavras, mas não se deve sob hipótese 
alguma abdicar das belas palavras, assim como não se deve 
abdicar das belas histórias, nem dos belos gestos, muito menos 
das belas intervenções — o que não dizer das belas e desvairadas 
viagens. Sobretudo delas, que num trabalho deste tipo só se 
consegue fazer quando se está devidamente acompanhado, isto 
é, ladeado por uma equipe audaciosa e tresloucada, que apesar 
da tentação crescente não aceita o papel exclusivo e perigoso 
de "operários da saúde", assumindo o risco de alçar voos 
inusitados. 
Num escrito sobre um trabalho meu, o psicanalista Gregó-
rio Baremblitt notou, de maneira graciosa: "Há infinitos modos 
de voar. Não é necessário escolher o de ícaro, nem muito menos 
o de Santos Dumont." Caberia acrescentar o seguinte. Talvez 
26 
 
 
 
 
 
 
 
nossa modernidade tenha reduzido esses infinitos modos de 
voar unicamente a esses dois. Ora estamos de um lado, quando 
enlouquecemos, ora de outro, por exemplo, quando tratamos. 
É preciso muito senso estético, político, ético, clínico, demiúr-gico até, para desmontar essa disjuntiva infernal. Necessitamos 
de muito espírito aventureiro para ir forjando asas, tanto no 
interior de uma instituição como fora dela, que nos permitam 
— a nós e a nossos pacientes — escapar a essa violência binária, 
que consiste em ter que optar sempre seja por um precipício 
abissal, seja pelo suave paraíso asséptico de uma estranha saúde, 
saúde sem desejo de asas nem um devir-anjo. 
Setembro/1990 
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2-A NAU DO TEMPO-REI 
 
 
 
 
 
 
 
Conta a tradição talmúdica que 26 tentativas malogradas 
precederam a criação deste mundo. O Génesis não teria sido 
aquele milagroso instante inaugural tão celebrado, nem a eclo-
são repentina de uma totalidade redonda saída do Nada através 
do Verbo, mas tentativa e erro, experimentação, fracasso, re-
montagens, recolagens. Saído do seio caótico dos destroços 
anteriores, nosso mundo não possuía (e não possui ainda) 
nenhuma garantia; também ele estava (e continua) exposto ao 
risco do fracasso e do retorno ao nada: a qualquer momento o 
sucesso da empreitada pode desfazer-se e a obra vir abaixo. Foi 
e é sempre por um triz, graças a um misto de engenhosidade e 
acaso que esse mundo se sustenta, levando a marca inapagável 
daquela incerteza originária, de um início que poderia não ter 
vingado. Mas que vingou, entre outras coisas porque houve, por 
parte de Deus, no momento desta tentativa, uma torcida. "Oxalá 
se sustente" (Halevay sheyaamod), exclamou Ele naquele instante, 
e sua obra respondeu afirmativamente a este voto, que não foi 
uma ordem, mas um desejo1. Deus atípico: bricoleur, desejante, 
esperançoso — súdito do Tempo. Todo o contrário da repre-
sentação que Dele se tem habitualmente: onipotente, Dono do 
Futuro e do Destino, Rei do Tempo. 
O mundo da loucura lembra às vezes, por sua precariedade, 
essa versão de um Génesis sempre inconcluso. Os loucos, na sua 
 
l André Neher, "Visão do tempo e da história na cultura judaica", in As culturas e o 
tempo, publicação da UNESCO. 
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fragilidade e inconsistência, com sua origem turva e nebulosa, 
num processo constante de reconstrução a partir dos destroços 
anteriores, também precisam, para sustentar-se, de muita enge-
nhosidade, acaso e amiúde uma boa torcida desejante. Não a 
torcida vinda da voz cavernosa de um Deus mandão, mas aquela 
que nós podemos oferecer a partir dos dispositivos os mais 
diversos que conseguimos colocar à sua disposição para favore-
cer-lhes essa consistência e sobrevivência, ainda que incertas. 
Trata-se dos dispositivos institucionais, jurídicos, sociais, clíni-
cos, expressivos, de escuta, até mesmo os medicamentosos, 
passando todos eles pelas modalidades mais diversificadas de 
encontro. Mas nunca nada está dado de antemão e o futuro 
jamais está garantido, 26 tentativas podem ser pouco para um 
louco, e frequentemente dez vezes isso ainda é insuficiente. Para 
tanto, uma coisa aí é primordial, tal como nesta versão do 
Génesis, sem o que nada seria possível: Tempo. É preciso dar 
tempo a essa gestação com que se confronta a loucura, a essas 
tentativas, a essa construção e reconstrução, a esses fracassos, a 
esses acasos. Um tempo que não é o tempo do relógio, nem o 
do sol, nem o do campanário, muito menos o do computador. 
Um tempo sem medida, amplo, generoso. 
O curioso é que no trato com a loucura precisamos dar um 
tempo que nós mesmos não temos. O lema do capitalismo foi 
outrora o do "tempo é dinheiro": era preciso fazer o máximo 
no mínimo de tempo, maximizar a produtividade, deslocar-se 
na maior velocidade possível, em suma, economizar tempo em 
todos os sentidos1. Mas nas últimas décadas assistimos a uma 
mutação a esse respeito que mal chegamos a entender. Não se 
trata mais de ganhar tempo, porém de abolir o tempo. O ideal 
tecnocientífico contemporâneo consiste em absolutizar a velo-
cidade a ponto de dispensar o próprio movimento no espaço, 
 
l Para a análise histórica deste processo, ver Jacques Lê Goff, "Na Idade Média: tempo 
da Igreja e tempo do mercador", in Para um novo conceito de Idade Média: Tempo, 
trabalho e cultura no Ocidente, Lisboa, Ed. Estampa, 1980, e de Thompson, "Tiempo, 
disciplina de trabajo y capitalismo industrial", in Tradición, revuelta y consciência de 
clase, Barcelona, Ed. Crítica, 1989. 
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anulando assim não só a geografia e o tempo de duração desse 
deslocamento, mas a própria ideia de espaço, de tempo e de 
duração. É o ideal do tempo zero e da distância zero. Não se 
trata mais, hoje, de favorecer, através das vias de comunicação 
e dos veículos automóveis, um nomadismo desenfreado, como 
na primeira metade desse século. As tecnologias do pós-guerra 
criaram um novo veículo, estático: a televisão. De propagação 
instantânea e indiferente à geografia, o audiovisual inaugurou 
um novo regime de temporalidade: a instantaneidade. O instan-
te sem duração, uma espécie de eterno presente, sem espessura, 
pura persistência da retina na fonte teleluminosa em meio a uma 
simultaneidade universal. Não mais nomadismo, mas sedenta-
riedade onipresente. Não mais partir, porém deixar chegar. Fim 
das distâncias temporais e espaciais. A ordem agora é habitar a 
velocidade absoluta no instante contínuo da emissão. Instalados 
nessa instantaneidade, e privados do tempo e do espaço, assis-
timos à verdadeira desmaterialização tecnológica. 
Mas talvez a informática seja ainda mais exemplar para 
pensar o que está em jogo neste ideal de abolição do tempo. 
Seu anseio é a informação total, a memória absoluta que pudes-
se não só prever um acontecimento, mas reagir a ele antecipan-
do-se a seu advento, neutralizando-o. É evidente: o que já é 
conhecido de antemão não pode ser experimentado como 
acontecimento. O futuro aí está completamente predetermina-
do. A tal ponto que, no limite, o que vem depois do ponto de 
vista de uma cronologia linear, já vem antes, antes mesmo do 
presente, do ponto de vista tecnológico. O futuro antecede o 
próprio presente, na medida em que está estocado na memória 
do computador. O futuro está presente e já não se apresenta 
como um desconhecido, uma abertura. Todas as companhias 
de seguro, as garantias, as previsões são modos de prevenir-se 
contra o devir, contra o advir. Até mesmo o capital é um futuro 
estocado em forma de dinheiro, que pode diluir pela sua força 
o advento do adverso. O sentido disso tudo, conforme Jean 
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François Lyotard1, de quem extraio essas observações, é sempre, 
na medida do possível, neutralizar o acontecimento abolindo a 
dimensão imprevista do futuro, presentificando-o como um já 
dado. A obsessão contemporânea, mais do que controlar o 
tempo, consiste em abolir o tempo. Paul Virilio analisou magis-
tralmente essa questão2 e concluiu: se ontem o sonho da onipo-
tência do homem era o controle do espaço, da extensão física 
da matéria, hoje o homem realiza um sonho ainda mais demiúr-
gico, um regime de temporalidade que tende a abolir a própria 
duração. Uma cronopolítica está em curso cujos desdobramen-
tos ainda são desconhecidos, mas que implica necessariamente 
no declínio de uma profundidade de campo nas nossas ativida-
des as mais cotidianas. Um achatamento temporal que propor-
ciona um presente eterno, sem história para trás nem para 
frente, sem passado nem futuro. Presente sem espessura, ilusão 
da imortalidade que ignora o começo e o fim, a morte e o 
imprevisto, que só integra o desconhecido enquanto pro-
babilidade calculável. O paradoxo é que a desmaterialização 
provocada pela velocidade absoluta equivale a uma inércia 
absoluta. Estranha equação em que coincidem velocidade má-
xima e imobilidade total. 
Por outro lado, em nossas instituições de saúde mental 
assistimos a um outro regime de temporalidade. São guetos 
lentificados.Seja um paciente que levanta os braços e de repente 
os imobiliza, suspensos no ar, seja um outro fazendo um gesto 
brusco para depois mergulhar numa lerdeza sonolenta, ou 
ainda aquelas falas entrecortadas por silêncios longos, ou os 
trajetos vagarosos em percursos cuja lógica nos escapa. Às vezes 
lembra um aquário onde cada um desliza a seu modo, no seu 
ritmo, a seu tempo. Agora em câmara lenta, desacelerada, dali 
a pouco numa rapidez inusitada. Uns estão estacionados num 
passado longínquo, outros jamais saberemos onde estão, em 
 
1 Jean François Lyotard, L 'inhumain, causeries sur k temps, Paris, Galilée, 1988. 
2 Paul Virilio, Vitesse et politique: essai de dromologie, Paris, Galilée, 1977, ou Guerra Pura, 
a militarização do cotidiano, trad. de Elza Mine e Laymert Garcia dos Santos, São Paulo, 
Brasiliense, 1984. 
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qual tempo; outros ainda, numa instantaneidade aflita, como se 
nada lhes garantisse a continuidade temporal. 
Mas talvez essa descrição externa seja enganosa e insuficien-
te para dar conta do que realmente está em jogo para os 
psicóticos na questão do tempo. Num belo artigo sobre o tempo 
e a psicose1, Jean Oury diz que estamos em contato com certas 
subestruturas do tempo nos psicóticos, como o tédio, a fadiga, 
a usura, a paciência. Mas, mais profundamente, o psicótico 
situa-se numa espécie de ponto de horror, anterior mesmo a 
uma temporalidade, um ponto de parada, de suspensão, em que 
ainda não está configurada uma imagem do corpo, num estado 
de inacabamento radical, onde não há contorno nem mesmo 
para o vazio, onde não há esquecimento nem surgimento. A 
ideia de Oury é que deveríamos poder sustentar para os psicó-
ticos um ponto que é ao mesmo tempo de um esquecimento e 
de uma espera. É um ponto que corresponde ao jorrar do 
tempo. Deveríamos poder estar ali onde começa o tempo, e com 
ele a possibilidade de alguma forma, de alguma decisão, deixar 
jorrar o tempo para que possa surgir o bom momento de se 
fazer alguma coisa. Oury usa para explicá-lo dois tipos de tempo 
existentes no grego antigo, o aion, que é esse presente que faz 
jorrar de dentro de si o tempo, e o kairos, que é o momento 
adequado, o bom momento para decidir e fazer. Como se 
devêssemos sustentar para o psicótico esse ponto de coincidên-
cia entre o aion e o kairos, numa espécie de cronogênese 
primordial, de onde pode surgir uma forma, até um projeto. 
Onde coincidissem esquecimento e espera. Curiosamente, é um 
ponto de paciência, de tédio, insípido, num certo sentido, e 
caótico. 
Isso, no entanto, é muito difícil de fazer, porque em geral 
temos muita pressa. Nós não temos tempo nem paciência para 
sustentar este ponto, o ponto do surgimento do tempo, pois 
somos amantes das formas, das ordens, dos projetos, do futuro 
 
l Jean Ouiy, "La temporalité dans Ia psychose", in La folie dans Ia psychanalyse, Armando 
Verdiglione (org.), Paris, Payot, 1977. 
 
 
 
 
 
 
 
 
já embutido no presente. Daí nossa impaciência, nosso volunta-
rismo, nossa hipervalorização do trabalho, do acabamento. 
Nosso sofrimento e angústia nesses momentos iniciais de um 
grupo expressivo com psicóticos, por exemplo, quando há uma 
espécie de suspensão caótica, que se soubermos sustentar não 
passa de um caos-germe, de uma gestação a partir do informe, 
do indecidido. 
Não é inútil lembrar que o tempo da criação artística ou do 
pensamento também exige algo dessa ordem. Do dar tempo e 
paciência para que o tempo e a forma brotem a partir do 
informe e do indecidido. O desafio é propiciar as condições 
para um tempo não controlável, não programável, que possa 
trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em 
neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como 
da criação, mas também no da loucura, guardadas as diferenças, 
de poder acolher o que não estamos preparados para acolher, 
porque este novo não pôde ser previsto nem programado, pois 
é da ordem do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação. 
É quase o esforço inimaginável, não da abolição do tempo, mas 
de sua doação. Não libertar-se do tempo, como quer a tecno-
ciência, mas libertar o tempo, devolver-lhe a potência do come-
ço, a possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente. 
Trata-se aí de um tempo que escaparia à presença, à presentifi-
cação, à continuidade, dando lugar a outras aventuras tempo-
rais. 
Num artigo intitulado "O tempo, hoje"1 Lyotard diz que 
para se pensar ou escrever hoje, é-se atirado a um gueto, um 
gueto temporal. Como o Gueto de Varsóvia, onde os alemães 
confinaram os judeus, e como todo gueto, é ambíguo: por um 
lado representa uma violência, por outro, retarda a morte, 
embora não evite a solução final. Esta é a situação dos pensado-
res e escritores: confinados a um gueto temporal, estão amea-
çados pelo reinado do tempo controlado, mas ao menos tiveram 
a morte diferida. Uma inferência apressada poderia concluir: 
 
l op. cit. 
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também os manicômios, guetos de tempo lentificado, embora 
violentos, retardam a morte dos reclusos e os protegem. Ora, 
ainda que lentificados, nós sabemos que os manicômios não 
passam de uma versão do tempo controlado em câmara lenta. 
Para articular a questão dos manicômios com a politização 
do tempo conviria relacionar e confrontar certas teses de Paul 
Virilio com análises já conhecidas de Michel Foucault. Uma 
observação meio lateral de Virilio a respeito dos estudos de 
Foucault poderia fazer-nos avançar. Virilio diz que Foucault, em 
seus estudos, debruçou-se erroneamente sobre espaços fecha-
dos (como a prisão, o hospital, o manicômio) quando hoje em 
dia a mecânica do poder incide não sobre espaços fechados, mas 
abertos. Esta crítica é de deixar perplexo. Foucault teria perdido 
o bonde da história? Teria errado de alvo? E acaso não estaría-
mos nós embarcando no mesmo erro, ao fazer pela milionésima 
vez a crítica de um modelo (o asilar) que, afinal, está fadado de 
qualquer modo à extinção? 
É bem verdade que se este modelo já estivesse completa-
mente extinto não estaríamos sequer discutindo o assunto. Mas 
nada garante que nossa atenção não esteja dirigida a um mons-
tro pré-histórico condenado pela modernidade, em vista de seu 
gigantismo, de seu custo, de seu caráter ostensivo, de sua 
inoperância. Pois parece provável que as tecnologias políticas 
que se anunciam no horizonte dispensem totalmente a reclusão. 
E nós, que crescemos respirando um certo furor libertário e 
antiautoritário, e que víamos na reclusão a quintessência da 
brutalidade institucional (cujo apogeu paradigmático é o campo 
de concentração nazista) talvez estejamos teoricamente desar-
mados em face das tecnologias emergentes. 
Não cabe discutir aqui a justeza ou não desta crítica de 
Virilio a Foucault, pois interessa o seu pressuposto. Antes de 
comentá-lo, convém lembrar que Foucault passou sua vida 
limando ferramentas teóricas que lhe permitissem identificar as 
novas formas de poder vigentes, e denunciou incansavelmente 
a inadequação entre nossa representação já caduca do poder e 
as estratégias políticas efetivamente em exercício. Para ficar no 
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exemplo mais célebre, Foucault insistiu em que o poder é 
produtivo, isto é, ele cria, incita, instiga, embora nós continue-
mos a vê-lo exclusivamente como aquele que coíbe, impede, 
castra. Enquanto nós usamos o modelo da lei, modelo jurídico 
por excelência, ele funciona segundo um outro regime, o da 
produção. Nesse sentido, Foucault foi um dos primeiros a 
entender que o modelo concentracionário, o das instituições 
totais, dos espaços fechados, no seu desaparecimento progres-
sivo, estavam dando lugar a outro dispositivo muito mais sutil, 
invisível, ágil e poderoso, cuja genealogia ele próprio traçou em 
sua História da sexualidade. 
O que está por trásdo comentário de Virilio sobre Foucault 
parece ser uma divergência mais geral. Para Virilio, o campo de 
incidência do poder já não é prioritariamente o controle dos 
corpos no espaço (com seus dispositivos, por exemplo, de 
exclusão e reclusão), mas o do controle do tempo. E aí tanto faz 
onde se está, num espaço aberto ou fechado, numa instituição 
tal ou qual, desde que se esteja submetido a um certo regime de 
temporalidade hegemónico. A hipótese-questão que caberia 
testar, a partir desta afirmação, é a seguinte: 
Caso o fim dos manicômios represente uma estratégia de 
homogeneização do social, num regime que funciona não mais 
por exclusão e reclusão, mas por inclusão, e não mais por 
manipulação prioritária do espaço, porém do tempo, o que 
pode representar hoje uma política de resistência, tanto no 
campo da saúde mental como fora dele? Não basta, evidente-
mente, trocar uma instituição fechada por uma semiaberta, com 
o que estaríamos vivendo um logro, driblados por um poder 
mais manhoso do que supõe nossa vã politologia. 
Caso a hipótese de Virilio aponte para uma tendência real, 
não bastaria uma política do espaço, mas seria preciso forjar 
uma política do tempo, uma cronopolítica que desafiasse o 
modelo dominante de controle do tempo, de neutralização do 
tempo, do ideal de abolição do tempo. Claro, este é um tema 
de conceitualização difícil, por ser também de difícil visualização 
contrariamente à questão do espaço; (por exemplo, basta entrar 
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num hospital psiquiátrico tradicional para se entender facilmente 
o quanto a própria arquitetura encarna uma certa concepção de 
loucura, com as celas fortes, as canaletas de banho, a visibi-
lidade panóptica, e todos os detalhes que uma leitura semiótica 
nos revela em estado bruto). 
Mas para além dessa dificuldade, importa o seguinte: se 
queremos acabar com o manicômio e a reclusão, não devería-
mos abrir mão daquilo que no trato com a loucura existe de 
específico em relação à temporalidade, e nós deveríamos poder 
bancá-la, mesmo que isso signifique — e necessariamente signi-
fica — um desafio à cronopolítica da tecnociência. A cronopolí-
tica hegemónica visa à aceleração máxima, absoluta, ao passo 
que a loucura não só encarna uma desaceleração (ou uma 
velocidade de outra ordem) mas também solicita uma desacele-
ração. Nesse sentido, não é inútil lembrar que antigamente o 
poder produzia freios: muralhas, fortalezas, sistemas fortifica-
dos, obstáculos, trincheiras, mas também normas, interdições 
etc. Ora, no século XIX passou-se da Idade do Freio à Idade do 
Acelerador. O poder passou a investir na velocidade, a criar 
velocidade. A tal ponto que a grande arma inventada na Revo-
lução Industrial para combater o império da velocidade foi a 
greve; e o que é a greve senão a parada, a interrupção, a 
barricada no Tempo, como diz Virilio? Aliás, nesse particular é 
perfeitamente plausível relacionar a Idade do Acelerador com 
o caráter produtivo do poder tal como Foucault o postulou, do 
mesmo modo que a revogada Idade do Freio corresponderia à 
ultrapassada (?) mecânica repressiva do poder. Aqui se reencon-
trariam Foucault e Virilio. 
Voltando à barricada no Tempo, acontece que há diversos 
modos de contrapor-se ao despotismo da máxima velocidade. 
A loucura tal como ela se apresenta hoje certamente é também 
isso: a recusa de determinado regime de temporalidade, o 
protesto em forma de colapso frente ao império da velocidade, 
e a reivindicação de um outro tempo. Essa hipótese pode 
parecer meio fantasiosa, mas não é absurda. A primeira coisa 
que chama a atenção de um visitante num hospital psiquiátrico 
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é essa lentifícação, esse ritmo específico, esse regime tempo-
ral diferenciado. Sim, às vezes isto se deve aos efeitos dos 
psicofármacos, às vezes à lentidão burocrática das grandes 
instituições, mas para além disso está a própria velocidade da 
.loucura e o outro regime temporal que os loucos vivem, 
suscitam e solicitam. 
Para aprofundar um tema tão complexo, seria preciso 
voltar àquilo que a versão talmúdica do Génesis apresentada no 
início deste trabalho aponta como essencial: a doação do tempo, 
a possibilidade de uma cronogênese. Aquilo, justamente, que 
as grandes instituições não permitem porque repousam sobre 
a imobilidade paquidérmica. Mas que tampouco a tecnociência 
hegemónica permite, na medida em que ela, através da absolu-
tização da velocidade, tende a extirpar. Nisso os manicômios 
tradicionais e a televisão, por exemplo, reverberam numa alian-
ça indireta, embora um funcione por congelamento e a outra 
por velocidade máxima. 
Frente a isto, a possibilidade de resgatar o jorrar do tempo 
é uma necessidade para o pensamento, para as artes, mas 
principalmente para a loucura. O fim dos manicômios não 
deveria representar a vitória devastadora da cronopolítica vigen-
te, assim como a derrubada do Muro de Berlim não deveria 
representar a vitória devastadora do capitalismo vigente, embo-
ra em ambos os casos este risco seja mais do que uma mera 
probabilidade. Os manicômios, ainda que da forma mais torpe 
e cruel, em certa medida constituíram uma espécie de freio 
frente à velocidade crescente. Também porque, num primeiro 
momento, eles abrigaram muitos daqueles que não se submete-
ram ao ritmo e às exigências da produção. Mas igualmente 
porque eram um instrumento de controle proveniente da Idade 
do Freio, que sobreviveu um pouco na Idade do Acelerador, 
ainda que deslocado (daí também seu aspecto tão anacrónico 
hoje em dia, mesmo do ponto de vista do poder). 
A questão seria saber como as propostas alternativas em 
saúde mental pensam preservar a possibilidade de uma tempo-
ralidade diferenciada, onde a lentidão não seja impotência, 
40 
 
 
 
 
 
 
 
onde a diferença de ritmos não seja disritmia, onde os movimen-
tos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho. Pense-se nos 
balineses, por exemplo, para quem as discussões começam e 
bruscamente se esfumam1. Os assuntos não são levados a uma 
decisão final. Espetáculos artísticos começam, continuam, pa-
ram e recomeçam. Os rituais às vezes consistem mais na prepa-
ração e limpeza do que no ato propriamente dito. Uma espécie 
de anticlímax cotidiano, que nós também sentimos no contato 
com os psicóticos. Do mesmo modo, pode-se evocar este tempo 
muito distante do tempo do relógio, um tempo não espacializa-
do, mais próximo da duração bergsoniana, com instantes que 
não são pontos numa sequência de pontos formando uma linha 
reta do tempo, porém instantes intensivos, gordos. Como no 
conto de Cortázar, em que o saxofonista Johnny Cárter, perso-
nagem baseado em Charlie Parker, diz: "Isto do tempo é com-
plicado, agarra-me por todos os lados. Começo a perceber 
pouco a pouco que o tempo não é como um saco que nós 
enchemos. Quero dizer que, mesmo que o recheio mude, na 
bolsa só cabe uma certa quantidade, e acabou-se. Vês a minha 
mala, Bruno? Cabem dois fatos e dois pares de sapato. Bom, 
agora imagina que a despejas e depois vais pôr de novo os dois 
fatos e os dois pares de sapatos, e então percebes que só cabe 
um fato e um par de sapatos. Mas o melhor não é isso. O melhor 
é quando percebes que podes meter uma loja inteira na mala, 
centos e centos de fatos, como eu meto a música no tempo, 
como às vezes quando estou a tocar"2. Eis aí um instante intenso, 
intensivo, inflado, um bolsão de tempo, que nada tem a ver com 
o tempo do relógio, nem com o instante vazio e contínuo da 
televisão, nem com o tempo imóvel do manicômio. 
Ainda não sabemos qual o melhor meio de resistir à violên-
cia da cronopolítica em que coincidem velocidade e inércia, 
instantaneidade e imobilidade, abolição do tempo e espaço em 
favor de um vetor velocidade desmaterializante. Pois isso tudo 
 
1 Clifford Gcrtz, Antropologia. 
2 Júlio Cortázar,"Blow up" in Blow up e outras histórias. 
41 
 
 
 
 
 
 
 
não é um fato, mas uma tendência, e Virílio cita Churchill para 
dizer que ao contrário das guerras antigas, onde importavam os 
fatos, não as tendências, nas guerras modernas importam as 
tendências, mais do que os fatos. É preciso guerrear ondas, 
tendências, vetores, criando outras ondas, tendências, vetores. 
Para elaborar uma estratégia deste tipo no campo da saúde 
mental, deveríamos poder articular pelo menos os quatro se-
guintes aspectos: 1) a priorização do vetor temporal do poder, 
em detrimento do espacial; 2) o significado disso no discurso 
"espacializante" da luta antimanicomial; 3) a especificidade da 
temporalidade da loucura; 4) a relação entre essa temporalidade 
e outras temporalidades em campos diversos. 
É impossível realizar tal articulação neste espaço e no 
estágio embrionário em que se encontram essas questões. Assim 
mesmo é legítimo sugerir algumas linhas de pesquisa que indi-
quem em que direção esta articulação seria viável. A começar 
por essa constatação banal de que assistimos a uma contração 
em todos os níveis: a velocidade reduz o tempo e o espaço ao 
mínimo, ao nada. Contração da Terra e do Futuro, contração 
telúrica e histórica, tirania do movimento mas fim da moção. 
Neste regime de temporalidade, com o qual o homem pensou 
que iria ganhar o Tudo, ficou com Nada: é difícil ter um espaço, 
uma história, um tempo vivido, um território, expandir-se etc. 
Sim, diz Virilio, seria preciso um outro regime de temporalidade 
que restituísse ao homem sua condição de habitante do tempo. 
Onde coubessem, acrescente-se, os bolsões de tempo intensivo, 
com suas diferentes durações, com a morte, o nascimento, os 
lençóis de passado (Deleuze) que conservariam suas virtudes de 
começo e de recomeço etc. 
Mas que sentido pode ter esta multiplicidade para os lou-
cos? Eles já não vivem isso tudo, e com maior intensidade, nos 
seus ritmos, bolsões, devires, paradas, passados, sobreposições? 
Se eles já experimentam essas temporalidades, com que objetivo 
sustentar para eles este ponto tão difícil de uma cronogênese, 
de um jorrar do tempo? Não há resposta clara para esta pergun-
ta apressada e malformulada, mas é possível que na loucura 
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esses modos de temporalização diversos sejam vividos a partir 
de um ponto de horror, como horror, e isto por serem viven-
ciados como que por detrás de uma barricada erguida contra o 
tempo. Uma cronogênese, ao desmontar esta barricada, pode 
permitir que esses modos de temporalização diversos não sejam 
mais vividos no horror. Pode também abrir o acesso a um tempo 
onde haja começo, novo, isto é, a partir do qual as possibilidades 
possam tomar um perfil temporal. 
O problema é que isso só é realizável se conseguimos dilatar 
a contração do tempo que nos é imposta, deixando de lado tanto 
o tempo congelado do manicômio quanto o tempo inerte da 
tecnociência. Só assim, movendo-nos mas desacelerando, pode-
mos nos aproximar dessa barricada no tempo levantada pela 
loucura, e permitir-lhe desconstruir-se, não para aceitar a velo-
cidade dominante, porém para desdobrar-se com mais desen-
voltura em suas virtualidades temporais. A fim de poder ver no 
devir não só uma fonte de ameaças e terror. 
Claro que há aqui inúmeras dificuldades, clínicas, ideológi-
cas, filosóficas, algumas incontornáveis até o presente momen-
to, outras inexploradas, outras alheias aos limites deste trabalho. 
Ficam aqui como questões. 
A primeira delas diz respeito ao privilégio atribuído ao 
espaço numa certa concepção psicanalítica das psicoses. Gisela 
Pankow, por exemplo, diz que para um esquizofrênico construir 
alguma história precisa estruturar minimamente uma imagem 
do corpo1. "Se conseguirmos relacionar as diversas partes do 
corpo umas com as outras", diz ela, então o corpo é "habitável", 
e "a experiência espacial leva à experiência temporal". O ho-
mem entra em sua própria história como sujeito apenas através 
dessa imagem do corpo. O tempo só é acessível via espaço. Isso 
tudo é muito interessante e na clínica parece fazer sentido, mas 
seria preciso perguntar-se se esta espacialização não pressupõe 
uma doação do tempo, aquela cronogênese de que fala Oury. 
 
l Gisela Pankow, O homem e sua psicose, Campinas, S.P. Papirus, 1989, e O homem e seu 
espaço vivido, Campinas, S.P., Papirus, 1988. 
43 
 
 
 
 
 
 
 
E mais, perguntar também se o regime de temporalidade 
baseado na velocidade absoluta desmaterializante não barra 
o acesso ao espaço, e assim à possibilidade de uma história 
do sujeito. Claro que não é fácil manejar ao mesmo tempo 
conceitos provenientes de domínios tão diversos, com escalas 
de grandeza tão distintas. Como pensar, por exemplo, a 
incidência dessa temporalidade da tecnociência e sua espacia-
lidade específica na estruturação de uma imagem do corpo, 
que é um fantasma pertencente exclusivamente à instância do 
psiquismo? Há aí vários riscos, por exemplo, o de transpor 
uma teoria regional para fora de seu campo de aplicação, 
forçando enxertos descabidos. Mas também é preciso poder 
pensar as intersecções. 
Um outro problema nesta mesma linha seria verificar a 
relação entre esta temporalidade da tecnociência, que embutiu 
o futuro no presente, mas num presente esvaziado e sem 
espessura, e a estrutura de antecipação temporal, tão fundamen-
tal na constituição imaginária do sujeito. A manipulação de 
futuro que a tecnociência propõe está longe da possibilidade do 
futuro enquanto abertura temporal. 
Eis outro risco presente em toda esta reflexão. Michel 
Foucault disse certa feita que é preferível pensar em termos de 
espaço, que é a linguagem da guerra, da estratégia, da exterio-
ridade, pois a linguagem do tempo nos tem levado à ideia de 
evolução, de continuidade, de desenvolvimento orgânico, de 
progresso da consciência. Como então pensar a questão do 
tempo sem recair no subjetivismo, no modelo da consciência 
ou mesmo no culto continuísta e progressivo da História? Como 
pensar estrategicamente o tempo, no seu vetor de exteriorida-
de? Evidentemente, extrapola os limites deste trabalho uma 
reflexão propriamente filosófica sobre o problema do tempo na 
sua extensão rigorosa e complexidade conceituai. Há um viés 
heideggeriano em Virilio (e também em Lyotard), um bergso-
nismo distorcido em Deleuze (muito distante desta visão "con-
tinuísta" criticada por Foucault), e muitas outras entradas 
possíveis que este estudo não poderia abordar de frente. Cabe 
44 
 
 
 
 
 
 
 
assinalar, entretanto, que este trabalho não se situa exclusiva-
mente no plano do "tempo vivido". 
Outra armadilha ainda seria embarcar numa romântica 
nostalgia pré-tecnológica. Alguns pensadores da pós-moderni-
dade (como Baudrillard, por exemplo) deixam transparecer, 
por trás da volúpia apocalíptica que os caracteriza, um tom 
saudosista, banhado num complacente niilismo kitsch. Seria 
preciso, junto à lucidez política de que dão testemunho os 
autores utilizados neste ensaio, conseguir flagrar a multiplicida-
de dos novos espaços-tempos constantemente criados em nosso 
universo tecnológico, apesar das tendências hegemónicas da 
tecnologia apontadas acima. 
Mas num nível mais imediato, a dificuldade maior talvez 
ainda seja nossa insistência no fator espacial, nas oposições 
aberto/fechado, muro/não-muro, reclusão/inserção. É uma 
luta importante, mas em face das novas tecnologias de poder 
(em que o lema não é mais "trancar" ou "excluir", mas "acele-
rar"), parece insuficiente. Para esta tecnologia, a loucura repre-
senta um obstáculo, e nós não deveríamos ajudá-la a remover 
esse obstáculo inserindo-a simplesmente no ritmo generalizado. 
É preciso dar à loucura (sem substancializá-la) espaços de tem-
poralidade diferenciada, lugares onde um outro regime de 
temporalidadepermita outras coisas. Deveriam existir ateliês de 
tempo, para loucos e não loucos, pouco importa, onde isso fosse 
possível. Em certa medida eles já existem, não oficialmente e 
não com este nome, em todos os movimentos ou grupos ou 
pessoas ou instituições que desafiam a homotemporalidade 
dominante, com seus devires atípicos, estrambólicos, bizarros, 
seja com suas barricadas no tempo, picnolepsias, desfalecimen-
tos1, seja nos seus saltos, êxtases abruptos, ou na coexistência 
com os lençóis de passado, ou ainda, no enfiar centenas de trajes 
e sapatos numa única bolsa, tal como o saxofonista de Cortázar 
sopra a música no balão do tempo, inchando-o ao infinito. 
 
l Foi ainda Virilio quem melhor analisou essas paradas temporais em seu livro 
Esthétique de Ia disparítion, Paris, Ed. Bailai d, 1980. 
45 
 
 
 
 
 
 
 
Para concluir, cabe acrescentar que apesar de toda a varie-
dade temporal já mencionada, num hospital às vezes é preciso 
suportar o tempo insípido como se aguenta uma chuvinha triste 
e interminável, sabendo que lá na frente a água acumulada pode 
irromper numa nascente. Aí pode jorrar um tempo, que nos 
casos felizes, e por um certo curso de rio, leva quem sabe a uma 
cascata de vida. 
Mas há também, no convívio com os loucos, a multiplicida-
de temporal que desafia a homogeneidade do relógio, e esse 
desafio nunca é pacífico, pois nunca é pacífica a insubordinação 
ao tempo societal. Para nós é difícil não só respeitar essa 
heterogeneidade temporal, como também fomentá-la (o que 
seria desejável), através da criação de diferentes temporalidades 
grupais. Não é simples fazer isso tudo e ainda estar atento para 
as diferenças de tempo individuais, criando certos ritmos, em 
que uma modalidade temporal possa conectar-se com outra, 
compor-se, combinar-se, contrapor-se, ressoar, destoar. Não 
para fazer bandinha, mas para não deixar que, por solidão, uma 
temporalidade morra estrangulada, ou que um paciente sufo-
que no seu ponto de horror. 
Nós não precisamos do manicômio para estancar o despo-
tismo da velocidade que mata o tempo, pois o manicômio já é 
o despotismo do tempo morto. Mas não deveríamos abrir mão 
de todos os diques que conseguirmos inventar, para os loucos 
e os sãos, a fim de viabilizar, mesmo contra a maré cronocida, 
aquela vagabundagem do espírito que só é possível a bordo da 
nau do Tempo-rei. 
Dezembro/1990 
46 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 - ECOLOGIA DO INVISÍVEL 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vocês hão de compreender o meu constrangimento ao lhes 
propor, no rastro da comunicação de Félix Guattari, um tema 
como o invisível. Parece disparatado falar do invisível numa 
cidade tão bela como o Rio de Janeiro e em meio à violência 
mais crua, em face da visibilidade a mais concreta, nos seus dois 
extremos de beleza e horror. O invisível, além disso, é também 
sempre um pouco indizível, e já terei conseguido muito se puder 
roçá-lo de leve para indicar a relação fundamental que creio 
haver entre ele e uma reflexão sobre as ecologias. Gostaria de 
mostrar em que medida uma politização do invisível está em 
curso e de que modo ela reverte ou pode infletir uma ou outra 
perspectiva cultural e ecológica. 
Eu diria, um pouco peremptoriamente demais, talvez, que 
uma certa corrente do pensamento contemporâneo, na qual 
decerto incluiria de modo eminente Deleuze-Guattari, alterou 
o estatuto do invisível. Penso que foi em parte mérito seu o ter 
dado ao invisível uma dimensão propriamente política, isto é, 
um lugar na polis. Mas antes de explicar em que sentido o 
entendo, arriscaria uma generalização preliminar, propondo 
uma tipologia da relação das culturas com o invisível. Embora 
esquemática e provisória, pode fazer com que esse tema tão 
invisível e indizível pareça menos inefável. 
Trata-se, grosso modo, de quatro tipos de relação cultural 
com o invisível, ou melhor, de quatro regimes de invisibilidade. 
Ainda que indissociáveis de configurações sociais e políticas 
bem determinadas, e por conseguinte inseparáveis de regimes 
49 
 
 
 
 
 
 
 
de visibilidade também definidos, esses quatro tipos não devem 
ser entendidos como fases de uma história evolutiva. 
O primeiro tipo diz respeito ao invisível imanente, tal como 
aparece nas culturas primitivas ou arcaicas. É o invisível habi-
tando a Terra, coextensivo a ela e presente no meio dos homens. 
O segundo tipo de invisível habita o Céu, acima dos homens, 
tal como se vê nas grandes religiões monoteístas ou nas forma-
ções bárbaras despóticas. É o invisível transcendente. O terceiro 
tipo, mais conhecido de nós, é o invisível enredado na inte-
rioridade da alma e, por extensão, constituindo o domínio do 
psiquismo. É o invisível habitando o Sujeito, e privatizado na 
forma do fantasma individual. A hipótese um pouco extravagan-
te que assedia este percurso grosseiro, que eu gostaria de 
postular mas também de contestar, é que estaríamos assistindo 
agora à passagem desta última configuração, a do invisível 
subjelivo, para uma outra forma, em que está em jogo o aniqui-
lamento progressivo do invisível. Não mais imanente, não mais 
transcendente, não mais subjetivo: o invisível estaria entrando 
num regime novo, com uma figura estranha que mereceria uma 
análise também estranha. Não mais presente entre os homens, 
nem planando acima deles, nem encarquilhado dentro deles, 
mas substituído ou engolido pela visibilidade imaterial da ima-
gem. 
Segue uma ilustração do que se trata. Um diário paulista 
noticiou que uma tribo indígena do baixo Xingu (os araweté) 
recebeu a visita amigável de uma equipe de cinema, e ali foram 
rodadas imagens para um filme. Um mês depois, a equipe 
retornou à tribo e mostrou seu trabalho. A tela de TV exibe aos 
índios surpresos sua própria imagem, mas no meio aparece 
íambém a figura de um ancião morto nesse intervalo de um mês. 
Pela primeira vez a tribo inteira assiste ao reaparecimento de 
um morto, função reservada exclusivamente ao pajé. A imagem 
do morto na tela é duplamente inquietante: ver a morte é 
interditado a quem não de direito, e se isso acontece, só pode 
significar um castigo. Por quê? Pois a tradição desta comunidade 
recomenda que ela se desloque a cada vez que morre um índio. 
50 
 
 
 
 
 
 
 
Ora, a demarcação de terras tem impedido essa mobilidade, e 
a tribo se viu obrigada a permanecer no mesmo lugar. Assim, a 
visão do morto, diz o jornal, para os índios só podia significar 
uma punição sobrenatural infligida por conta de uma transgres-
são ritual coletiva. 
Até aqui o noticiário veiculado pelo jornal. O antropólogo 
Eduardo Viveiros de Castro, que tem um trabalho volumoso 
sobre os araweté1, e que presenciou o episódio, tem uma inter-
pretação mais complexa. Segundo ele, ali estavam em jogo 
vários elementos, como a relação de perigo que envolve a 
evocação dos mortos para os araweté, a importância do trabalho 
de luto para se evitar a doença mortal melancolia, a teoria dos 
araweté sobre o duplo do morto, espécie de espectro a rondar 
a tribo pelo tempo suposto de descomposição do corpo, e daí 
a prescrição de deslocamento, o tipo de visão que o pajé tem da 
morte, muito mais ligada ao canto que à visão, espécie de 
peifoimance mediúnica etc. Contudo, o mais interessante é o 
seguinte: em araweté há um termo, o in, que designa ao mesmo 
tempo sombra, alma, qualquer tipo de representação ou repro-
dução visível ou vocal, e também imagem. Viveiros conta que 
no momento da apresentação do filme, houve toda uma discus-
são na tribo para esclarecer se isso que viam na tela era ou não 
um in, se o in do morto visível no meio deles poderia causar-lhes 
algum mal, se essas imagens teriam ou não o poder de capturar 
suas almas matando a todos (isso foi levantado em tom jocoso, 
tratava-se de uma brincadeira),ou se essas imagens, segundo a 
expressão de um deles, seriam apenas "nós mesmos", isto é, o 
corpo deles, e não a alma. Enfim, havia humor na discussão, e 
certa inquietação, o começo de uma reorganização do vocabu-
lário psicológico, segundo o antropólogo, mas também, é de se 
supor, a tentativa de atribuição de algum estatuto no interior da 
cultura araweté para essa imaterialidade visível que de algum 
 
l Eduardo Batalha Viveiros de Castro, Araweté: os deuses canibais, Rio de Janeiro, Jorge 
Zahar ed., 1986. 
 
 
 
 
 
 
 
 
modo poderia se confundir, "representar", ou até mesmo subs-
tituir o invisível. 
Essa historinha condensa muitos aspectos dramáticos da 
ecologia, na sua acepção mais vulgar de proteção aos índios, 
sobretudo no que diz respeito ao embate agônico entre as 
culturas primitivas e o Ocidente Tecnológico. No entanto, eu 
preferiria usá-la apenas para ilustrar de modo quase caricato o 
contraste entre esses dois regimes, o da invisibilidade imanente 
da ordem mítica, em que a comunidade coabita com o invisível 
apesar do sistema de atualizações ritualísticas ou de mediações 
xamânicas, e esse outro regime, o da visibilidade total, plena, sem 
mediação alguma, em que a imagem mostra tudo. Imagem 
obscena, dizem alguns, isto é, oô-cena, sem cena, sem a cena que 
todo espetáculo pressupõe, em que há um jogo entre um 
revelado e um oculto presenciado pelo olhar de um espectador 
situado a uma certa distância da imagem. Aqui, na visibilidade 
total, também chamada de pornográfica, estaríamos mais pró-
ximos de uma promiscuidade tátil com as coisas, como frisa 
Otília Arantes ao comentar um texto de Baudrillard e aproxi-
má-lo de Walter Benjamin1. 
No nosso regime da visibilidade total, da profusão infinita 
de imagens, dessa promiscuidade tátil com elas, o que teria 
acontecido ao nosso invisível, supondo-se que ele exista? Se 
colocamos por um instante entre parênteses essa tipologia 
simplória do invisível como imanente, transcendente, subjetivo 
ou imagético, do que se trata para nós? 
Certas experiências clínicas, estéticas, políticas, poderiam 
tornar este tema bem mais palpável. É o caso, por exemplo, de 
uma delas, comum a todos os trabalhadores "psi" que têm 
alguma intimidade com os espaços de confinamento da loucura, 
onde aparecem de forma privilegiada, por razões históricas 
complexas, resíduos de uma relação relevante com o invisível. 
Na convivência com comunidades de loucos sente-se de fato 
 
l Otília Beatriz Fiori Arantes, "Arquitetura simulada" in O olhar, Adauto Novaes (org.), 
São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988. 
52 
 
 
 
 
 
 
 
uma espécie de densa invisibilidade entrelaçada nos objetos, nas 
pessoas, nos lugares, nas palavras, nos silêncios, e não é preci-
samente o que está na cabeça de cada paciente, mas entre eles, 
entre um e outro, entre um olhar e um objeto, entre as palavras 
e as coisas, entre um som e um retalho, como se esse invisível 
fosse outra coisa que um oculto, outra coisa que um segredo, 
outra coisa que um mistério acessível a um sujeito privilegiado, 
seja ele médico ou louco. Como se esse invisível fosse essa 
camada que envolve e permeia as coisas, ou as duplica, ou que 
lhes dá espessura, ou leveza, ou peso, ou as torna relevantes, 
miraculosas, fantásticas, inéditas, mágicas, brutas, inertes... Sim, 
uma camada intensiva, que tem a ver com as imagens mas não 
deriva delas, que tem a ver com a linguagem mas não deriva 
dela. Como quando vemos um morto, paira sobre ele uma 
camada de invisível que não é o morto, e sim a morte, esse 
acontecimento imemorial que sobrevoa todos os mortos e os 
vivos, e os incrédulos e os estarrecidos da Terra. Assim como o 
relógio configura uma imagem do tempo mas não é o tempo, e 
mesmo a pintura de um relógio derretido, escoando, ainda é 
insuficiente para roçar esse invisível maior que é o Tempo, e 
que às vezes um anjo de Wenders ou um fragmento de Blanchot 
ou uma sonata em Proust evocam mais de perto. Voltando ao 
exemplo do hospital psiquiátrico, eu diria que é nessa esfera do 
invisível que se passa o essencial, que está aí a matéria-prima da 
clínica, onde as virtualidades estão presentes num estado de 
oferecimento, à espera de enganches, atualizações, proliferações, 
de onde cada um, indivíduo ou parte de um indivíduo em 
conexão com parte de um outro extrai e constrói sua terra natal, 
por mais imaterial que ela seja, a partir da qual certos processos 
de subjetivação podem desdobrar-se e ganhar consistência. 
Cuidar desse "meio ambiente" num hospital psiquiátrico, por 
exemplo, deixando-o desobstruído, é um trabalho imenso; tem 
a ver com as esferas políticas, institucionais, as transferências, o 
dinheiro, a arquitetura, os animais e os sons que o habitam, 
murmúrios, risos, ritmos, gestos, todas as forças e afetos e 
elementos em jogo, mas é no meio de tudo isso que essa massa 
53 
 
 
 
 
 
 
 
invisível se oferece como um magma grávido de expressões, 
singularizações, autopoieses etc. É esse invisível, esse entre, esse 
fora, esse meio, que pode ser promessa ou, pelo contrário, 
apenas fardo insustentável, massa pesada e inerte. 
Talvez essas poucas divagações bastem para tentar concluir 
alguma coisa sobre o estatuto do invisível que a imagem, mal-
grado a tentação pós-moderna, jamais será capaz de substituir, 
assim como outrora a linguagem, malgrado a tentação estrutu-
ralista, tampouco foi capaz de coagular. O invisível, a rigor, não 
é da ordem da linguagem, nem da imagem, e muito menos do 
imaginário. Por isso é tão falaciosa sua redução a uma inte-
rioridade psíquica, ou a um imaginário social que se sobreporia 
à realidade. O invisível é parte da realidade, ele é da ordem da 
Cidade, ou, para sermos mais espinosistas, da ordem da Natu-
reza. Uma ecologia que pretendesse preservar o ar relativamen-
te despoluído, isto é, invisível, deveria preocupar-se em manter 
arejado o invisível. Pois se o regime da visibilidade total é 
incapaz de substituir o invisível, ele é bem capaz de o poluir. 
O que experimentamos num nível mais imediato, apesar de 
todas as possibilidades alentadoras que as tecnologias inventam 
sem cessar, é justamente isso: uma espécie de poluição do 
invisível. Como diz Deleuze, estamos cercados por todos os 
lados de uma quantidade demente de palavras e imagens, e seria 
preciso formar como que vacúolos (a expressão é de Guattari, 
se não me engano), vacúolos de silêncio para que algo merecesse 
enfim ser dito; ou, por extensão, vacúolos de imagens, como de 
fato alguns cineastas e videomakers souberam cavar no interior 
de suas próprias criações, para que algo merecesse enfim ser 
visto. Técnicas de despoluição do invisível, não num sentido 
asséptico de preservação, mas de possibilitação. Como quando 
Deleuze mesmo conta que não se desloca muito para não 
espantar os devires: não é assepsia, mas possibilitação. 
Para tomar dois exemplos pictóricos, na mesma ordem de 
ideias, de como isso se dá: um filme recente de Jacques Rivette 
(A bela intrigante) mostra um pintor maltratando uma bela 
modelo, forçando-a a posições esdrúxulas, deformando-a por 
54 
 
 
 
 
 
 
 
inteiro, e em meio a uma discussão com ela diz que não a está 
retratando, já que busca nela o invisível, seu sangue, seu fogo, 
seu gelo. Para isso ele precisa virá-la do avesso, deformá-la, 
desmembrá-la. Ou ainda um outro exemplo pictórico, quase 
contrário, do recém-falecido pintor Francis Bacon, que reivin-
dicava, antes de pintar uma tela, limpá-la de todos os clichés da 
história da pintura que pairavam acima dela, assim como se 
desafia um destino. Um busca o invisível pela violência, através 
do desmembramento do corpo, extraindo dessa operação for-
ças invisíveis que comporão outra visibilidade. O outro opera 
por rarefação ou esvaziamento, a fim de desobstruir as virtuali-dades presentes, absolutamente reais, embora à espera de uma 
atualização, aí sim visível^ expressiva, existencial. Então, não 
bastaria dizer que o invisível plana sobre as coisas como uma 
espécie de incorporai, tal como o acontecimento, mas que ele 
atravessa as coisas como essa textura ou nervadura virtual que, 
uma vez atualizada, as redistribui, provocando nelas desmem-
bramentos, decomposições, recomposições, bifurcações, novas 
processualidades, derivações, universos, inéditos. 
Esta é uma operação estética, filosófica, clínica, mas tam-
bém eminentemente política, pela simples razão de que esse 
invisível é imanente às grandes máquinas técnicas e sociais. 
Claro, é sempre uma política concreta que altera situações 
concretas, mas há como que um trabalho paralelo, simultâneo, 
eu não diria prévio, pois é entrelaçado a esse, que é de desobs-
trução, de espaçamento, por rarefação como Bacon ou Becket, 
ou de violência, estiramento e esgarçamento como o pintor de 
Rivette, ou de produção, depende do caso, mas envolvendo 
sempre alguma reconexão com essa ordem do invisível virtual. 
É bem difícil, em meio às guerras mais cruentas, falar daquilo 
que não é propriamente da ordem do Ser, mas do Entre. Tanto 
pior ou tanto melhor se isso pressupõe uma outra ontologia em 
que não está em jogo o Ser do ente, mas o Entre do ser. O tema 
aqui é justamente este: o invisível, parte integrante.e constitutiva 
de realidade, de subjetividade, de sentido, atrelado que está às 
máquinas tecnológicas e sociais e seus agenciamentos, deve ser 
55 
 
 
 
 
 
 
 
pensado politicamente. Para tanto, é preciso desprivatizá-lo, 
desimaginarizá-lo, mas ao mesmo tempo restituir-lhe sua densi-
dade de acontecimento e de virtualidade, sua distribuição espar-
sa, singular, processual, de engendramento de realidade e de 
subjetivações. 
Mas o que significa um invisível que não fosse restrito aos 
alucinados, videntes, drogados, artistas, psicanalisados, profe-
tas, embora todos esses possam desenvolver uma relação privi-
legiada, momentaneamente, com o invisível1? Um invisível que 
não se limitasse a essas figuras de "iluminações profanas", 
segundo a expressão de Benjamin? Sabemos que para ele estas 
experiências representavam uma espécie de prefiguração soli-
tária de uma revolucionária experiência histórica coletiva2. 
Afinal, do que se trata quando falamos de um invisível que 
não é da ordem de um visível oculto, ou de uma imagem interna, 
ou de um imaginário coletivo, mas que tem a ver com o coletivo 
e o singular, que diz respeito ao subjetivo, que tem a ver com as 
palavras e as coisas e as máquinas sociais, que está entre elas, e 
que deveria ser desobstruído, arejado, por esgarçamento, rare-
fação, ou outros procedimentos? 
Seria precipitado arriscar uma resposta. Mas penso que esse 
invisível, se fosse possível defini-lo em poucas palavras, tem a 
ver com o espaço reservado ao intempestivo. Bacon precisa 
liberar a tela da história da pintura, para fazer brotar seu desvio 
intempestivo. O pintor de Rivette precisa livrar-se de uma 
história do corpo para extrair dele uma derivação imprevista. É 
preciso conseguir não ruminar incessantemente a própria his-
torinha pessoal para poder inventar um novo devir. Um hospital 
psiquiátrico precisa livrar-se do despotismo de um tempo ho-
mogéneo para deixar surgirem temporalizações e universos 
existenciais diferenciados. Nós precisamos constantemente nos 
 
1 José Miguel Wisnik trabalhou algumas destas figuras em seu belo ensaio "Iluminações 
profanas (poetas, profetas, drogados)" incluído na coletânea O olhar, op. cit. 
2 Walter Benjamin, "O surrealismo — o mais recente instantâneo da inteligência 
europeia", in Obras escolhidas vol l, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 
1987. 
56 
 
 
 
 
 
 
 
desgarrar desse presente sem espessura que a mídia nos oferece, 
imagem móvel de uma eternulidade, para introduzir em nossas 
vidas o inédito. Na linha dos pensadores que me inspiram, é 
preciso dizer também que não se trata de descobrir nossa 
identidade através desse visível que é a nossa história, já que a 
história não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias 
de diferir. Diferir dela não para descobrir o que se é, mas para 
experimentar o que se pode ser (desprender-se de si, dizia 
Foucault). Tarefa ética por excelência, subjetiva, ontológica, 
analítica, e que não repousa sobre o visível da história, nem 
sobre um segredo invisível que ela ocultaria, nem mesmo sobre 
uma prefiguração desse visível futuro na forma de um projeto 
acabado. É uma operação que exige a desobstrução de um 
invisível como campo virtual para um devir-intempestivo. Que 
me seja perdoado o pleonasmo: é claro que o devir já pertence 
à ordem do intempestivo, do contra-tempo, do inatual, do 
desvio na história, da contra-efetuação, mas por inflação de uso 
o termo devir acabou sendo facilmente identificado com a 
simples mudança ou progresso ou evolução, mesmo dialética, 
o que oblitera sua relação essencial com esse intempestivo. 
De qualquer modo, convém assinalar que a relação com o 
invisível sempre coloca em jogo o tempo e sua ordenação. Por 
exemplo, Détienne e Vernant mostraram como a relação com 
o invisível na Grécia arcaica, privilégio de alguns visionários, 
expressava uma relação especial com o tempo: no caso do poeta, 
com a memória e o passado, no caso do adivinho, com o futuro1. 
Mircea Eliade, por sua vez, mostrou como para as culturas 
primitivas a relação mítica não é evocação de uma origem 
remota, mas revivência dela sempre co-presente: a ritualização 
não é lembrança, mas efetiva reatualização2. Numa outra ordem 
de ideias, todas as "iluminações profanas", drogaditas, místicas, 
ou mesmo as revolucionárias, exercitam uma sabotagem na 
 
1 Mareei Déticnne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 
1988, e Jean Pierre Vernant, "Aspectos míticos da memória e do tempo", in Mito e 
pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica, São Paulo, DIFEL/Edusp, 1973. 
2 Mircea Eliade, Mito e realidade, São Paulo, Perspectiva, 1972, cap. II. 
57 
 
 
 
 
 
 
 
ordem do tempo, uma cnmoilógica. Não é acidental o fato oposto, 
o de que a onipresença da imagem televisiva e o regime da 
simultaneidade e da instantaneidade contínua que ela e a mídia 
em geral instauram, conforme mostrou Paul Virilio, impliquem 
não nessa esqui/ofrenização temporal, mas, ao contrário, numa 
espécie de crànoddio. 
A relação com o invisível, com esse invisível desatrelado da 
visão ou do visionarismo, é também, para usar uma imagem 
confusa, d espaço em que surge o tempo, em que ele brota e 
jorra e deriva e bifurca, e em que ele se intempestiva a partir de 
uma espécie de cronogênese. Então, quando a televisão (ou a 
máquina midiática da qual ela é apenas uma peça) nos oferece 
essa imagem plena, contínua, temporalmente nula, é óbvio que 
o que aí fica obstruído é uma temporalização, ou o intempestivo, 
ou os devires. Não é intrínseco à imagem televisiva, mas é 
próprio à sua forma atual de controle, que opera por saturação 
e achatamento temporal. Por outro lado, estudos recentes sobre 
a computação gráfica e a imagem numérica que ela sintetiza, 
isto é, imagem como função de equações matemáticas que lhe 
dão vida, mostram o quanto ela é diferente da televisão na 
relação que ela implica com o invisível e o tempo. Primeiro, ela 
pode tornar sensível o formal; com isso, não mostra tudo o que 
é, substituindo-se ao que pode ser, como faz a TV, mas atualiza 
visualmente aquilo que não podemos imaginar porque escapa 
a nossos hábitos sensoriais e perceptivos. A manipulação inte-
rativa abre espaço para as diversas poéticas tecnológicas, mas 
também instaura uma nova relação com o tempo. A realidade 
virtual criada pela imagem numérica, ou seja, em última instân-

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