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1 Direito – UFOP Introdução ao Estudo do Direito II Material de estudos da 1a Unidade da Disciplina Introdução ao Estudo do Direito II Prof. Júlio Aguiar de Oliveira 1a Unidade Positivismo Jurídico: A Teoria Pura do Direito (Hans Kelsen) Introdução Nesta primeira aula, estudaremos o primeiro capítulo da Teoria Pura do Direito (TPD): “Direito e Natureza”. Antes de iniciarmos o estudo desse capítulo, proponho a realização de duas tarefas: 1) uma breve exposição da biografia de Kelsen e 2) a leitura e análise dos dois prefácios da TPD (o prefácio da primeira edição, de 1934, e o prefácio da a segunda edição, de 1960). O objetivo dessas tarefas preliminares é um só: situar a TPD – e seu autor – no tempo e no espaço (algo fundamental para uma compreensão adequada da TPD). Hans Kelsen (1881 – 1973) Hans Kelsen nasceu na cidade de Praga, pertencente então ao Império Austro-‐Húngaro, no dia 11 de outubro de 1881. Seus pais foram Adolf Kelsen e Auguste Löwy, ambos judeus. Quando Hans Kelsen tinha quatro anos de idade, sua família mudou-‐se para Viena. Em Viena, Kelsen completou os estudos primários e, em seguida, estudou no Ginásio Acadêmico (Akademische Gymnasium Wien). Após a conclusão do ginásio, em 1900, cumpriu um ano de serviço militar como voluntário. Mais tarde, durante a 1a Guerra Mundial, trabalhou como auditor jurídico no Exército, tendo alcançado o posto de Capitão-‐Auditor. Entre 1901 e 1906, estudou Direito na Universidade de Viena. Em 1906, recebeu o título de Doutor em Direito, tendo defendido uma tese sobre a teoria do Estado de Dante Alighieri. Antes disso, em 1905, converteu-‐se ao catolicismo. Em 1911, Kelsen concluiu sua habilitação para Direito do Estado e Filosofia do Direito na Universidade de Viena com a tese “Problemas Centrais da Teoria do Direito Público” (Hauptprobleme der Staatsrechtslehre). Em 1912, casou-‐se com Margarete Bondi, que foi sua companheira por toda a vida e com quem teve duas filhas, Renata, nascida em 1914 , e Maria Beatrice, nascida em 1915. Entre 1911 e 1917 lecionou na Academia de Exportação. Em 1917, tornou-‐se professor extraordinário da Faculdade de Direito de Viena e, em 1919, foi nomeado professor efetivo dessa mesma Universidade. 2 Em 1918 colaborou com Karl Renner na redação da Constituição Austríaca. Tornou-‐se, em 1920, juiz do Tribunal Constitucional, cargo que ocupou até 1930, quando rejeitou ser reconduzido para um novo exercício. Em 1930 tem início um longo período de peregrinações. Nesse mesmo ano, deixou Viena e assumiu o cargo de professor na Universidade de Colônia (Alemanha). Em 1933, como a chegada ao poder dos Nazistas, foi afastado da Universidade em virtude da famigerada Gesetzes zur Wiederherstellung des Berufsbeamtentums, de 7 de abril de 1933 (Lei para a restauração do serviço público – que estabeleceu o afastamento do Serviço Público Alemão todos os funcionários de ascendência não-‐ariana e também aqueles considerados oponentes do regime nazista). Conseguiu, no entanto, sair da Alemanha e estabelecer-‐se em Genebra, onde lecionou no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais. Em 1934, publicou a primeira edição da Teoria Pura do Direito. Em 1936, assumiu uma cátedra da Universidade Alemã de Praga, mas, já em 1938, por conta de movimentos políticos hostis a professores de ascendência judaica, foi obrigado a abandonar a Universidade. Em 1940, considerando o avanço das forças alemãs na 2a Guerra, Kelsen e sua mulher resolveram emigrar para os Estados Unidos, onde desembarcam, na cidade de Nova York, no dia 21 de junho daquele mesmo ano. Nos Estados Unidos, Kelsen proferiu conferências em Harvard, porém, não obstante a fama de sua Teoria Pura do Direito, somente em 1942 conseguiu uma posição permanente de professor. Em 1942, foi contratado pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, na qual trabalhou até a aposentadoria, em 1952. Após a aposentadoria, Kelsen continuou ativo, publicando trabalhos em diversas áreas, proferindo conferências e recebendo homenagens em várias Universidades em diversos países. No dia 5 de janeiro de 1973, morreu Margarete, poucos dias depois, em 19 de abril, aos 91 anos de idade, Kelsen morreu. Em 1979, foi publicada a obra “Teoria Geral das Normas” (Allgemeine Theorie der Normen). Ao longo de sua carreira acadêmica, Kelsen recebeu 12 doutorados honoris causa (Utrecht, Harvard, Chicago, México, Berkeley, Salamanca, Berlin, Viena, Nova York, Paris, Salzburgo, Strasburgo) e 3 títulos de professor honorário (Viena, Rio de Janeiro, México). -‐ 1881. 11 de outubro: nasce na cidade de Praga. Filho de Adolf Kelsen (1850 -‐1907) e de Auguste Löwy (1859-‐1950). -‐ 1884. A famíliase muda para Viena. -‐ 1900. 9 de julho: Conclusão do Ginásio (Matura am Akademischem Gymnasium Wien). -‐ 1900. Inicia o período de um ano de serviço militar. -‐ 1901. Inicia o estudo de Direito na Universidade de Viena. -‐ 1905. Converte-‐se ao catolicismo. -‐ 1906. Alcança o título de “Doutor em Direito” na Universidade de Viena com a tese “A Teoria do Estado de Dante Alighieri” (Die Staatslehre des Dante Alighieri). -‐ 1907. 12 de julho. Morre seu pai, Adolf Kelsen. -‐ 1911. 9 de março. É aprovado em seu exame de habilitação para Direito do Estado e Filosofia do Direito na Universidade de Viena com a tese “Problemas Centrais da Teoria de Direito Público” (Hauptprobleme der Staatsrechtslehre) . -‐ 1911. Leciona na Acadêmia de Exportação de Viena. -‐ 1912. 20 de maio. Hans Kelsen e Margarete Bondi convertem-‐se à fé protestante. 3 -‐ 1912. 25 de maio. Casamento de Hans Kelsen com Margarete Bondi, do qual nascem duas filhas (Anna Renate – Viena 1914-‐Nova Yorque 2001 e Maria Beatrice – Viena 1915 – Kensington/USA 1994). -‐ 1919. 30 de março. Tribunal Constitucional Provisório Nomeado juiz da Corte Constitucional Austríaca. -‐ 1919. 1o de Agosto. Professor de Direito do Estado e Direito Administrativo da Universidade de Viena. -‐ 1920. Nomeado juiz do Tribunal Constitucional Austríaco. -‐ 1930. Encerra sua participação como juiz do Tribunal Constitucional Austríaco. -‐ 1930. Professor na Universidade de Colônia (Alemanha). -‐ 1933. Perde seu posto de professor na Universidade de Colônia em virtude da -‐ 1934. Leciona no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais em Genebra (Suíça). -‐ 1934. Publicação da primeira edição da Teoria Pura do Direito (Reise Rechtslehre). -‐ 1936. Professor na Universidade Alemã de Praga. -‐ 1938. Abandona a Universidade Alemã de Praga em virtude da escalada da hostilidade sofrida em virtude de sua ascendência judaica. -‐ 1940. Emigra com sua mulher para os Estados Unidos. -‐ 1942. Professor na Universidade de Berkeley, Califórnia. -‐ 1945. Livre docente na Universidade de Berkeley. -‐ 1952. Aposentadoria. -‐ 1973. 19 de abril: Morre aos 91 anos de idade A Teoria Pura do Direito – Prefácios de 1934 (1a edição) e 1960 (2a edição) No primeiro parágrafo do prefácio da primeira edição da TPD, Kelsen escreve: “Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão”. (p. XI) É interessante observar nesse primeiro parágrafo: a) A primeira edição da TPD já se apresenta como a síntese de um trabalho de mais de vinte anos. Kelsen tem, por essa ocasião, 52 anos. b) Pureza significa a eliminação de toda ideologia política e dos elementos de ciência natural da teoria do Direito. c) A teoria pura do Direito é uma teoria que objetiva limitar-‐se à descrição do seu objeto (isto é, do direito positivo). O que é a Teoria Pura do Direito e de onde vêm seus opositores? “Ela pode ser entendida como um desenvolvimento, uma desimplicação de pontos de vista que já se anunciavam na ciência jurídica positivista do séc. XIX. Ora, desta 4 mesma ciência procedem também os meus opositores. Não foi, pois, por em propor uma completa mudança de orientação à Jurisprudência [ciência do Direito], mas por eu a fixar a uma das orientações entre as quais ela oscila insegura, não foi tanto a novidade, mas antes as consequências da minha doutrina que provocaram este tumulto na literatura”. (p. XII) “O postulado metodológico que ela visa não pode ser seriamente posto em dúvida, se é que deve haver algo como uma ciência do Direito. Duvidoso apenas pode ser até que ponto tal postulado é realizável. A este respeito não pode seguramente perder-‐se de vista a distinção muito importante que existe, precisamente neste ponto, entre a ciência natural e as ciências sociais. Não que a primeira não corra qualquer risco de os interesses políticos a procurarem influenciar. A história prova o contrário e mostra com bastante clareza que até pela verdade sobre o curso das estrelas uma potencia terrena se sentiu ameaçada. Se é lícito dizer-‐se quea ciência natural pôde ir até ao ponto de levar a cabo a sua independência da política, isso sucedeu porque existia nesta vitória um interesse social ainda mais poderoso: o interesse no progresso da técnica que só uma investigação livre pode garantir. Porém, da teoria social, nenhum caminho tão direito, tão imediatamente visível, conduz a um progresso da técnica social produtora de vantagens indiscutíveis, como o que da física e da química conduz às aquisições que representam a construção de máquinas e a terapêutica médica. Relativamente às ciências sociais falta ainda – e o se estado pouco evoluído não é das razões que menos concorrem para tal – uma força social que possa contrabalançar os interesses poderosos que, tanto aqueles que detêm o poder como também aqueles que ainda aspiram ao poder, têm numa teoria à medida dos seus desejos, que dizer, numa ideologia social. E isto sucede particularmente na nossa época que a guerra mundial e as suas consequências fizeram saltar dos eixos, em que as bases da vida social foram profundamente abaladas e, por isso, as oposições dentro dos Estados se aguçaram até ao extremo limite. O ideal de uma ciência objetiva do Direito e do Estado só num período de equilíbrio social pode aspirar a um reconhecimento generalizado. Assim, pois, nada parece hoje mais extemporâneo que uma teoria do Direito que quer manter a sua pureza, enquanto para outras não há poder, seja qual for, a que elas não estejam prontas a oferecer-‐se, quando já se não tem pejo de alto, bom som e publicamente reclamar uma ciência do Direito política e de exigir para esta o nome de ciência ‘pura’, louvando assim como virtude o que, quando muito, só a mais dura necessidade pessoal poderia ainda desculpar”. (p. XIV) No prefácio da segunda edição, Kelsen apresenta, já no primeiro parágrafo, o sentido da novidade da segunda edição em relação à primeira. Ele escreve: “A segunda edição da minha Teoria Pura do Direito, aparecida pela primeira vez há mais de um quarto de século, representa uma completa reelaboração dos assuntos versados na primeira edição e um substancial alargamento das matérias tratadas. Ao passo que, então, me contentei com formular os resultados particularmente característicos de uma teoria pura do Direito, agora procuro resolver os problemas mais importantes de uma teoria geral do Direito de acordo com os princípios da pureza metodológica do conhecimento científico-‐jurídico e, ao mesmo tempo, precisar, ainda melhor do que antes havia feito, a posição da ciência jurídica no sistema das ciências. Antepus a esta segunda edição o prefácio da primeira. Com efeito, ele mostra a situação científica e política em a que Teoria Pura do Direito, no período da primeira 5 Guerra Mundial e dos abalos sociais por ela provocados, apareceu, e o eco que ela então encontrou na literatura. Sob este aspecto, as coisas não se modificaram muito depois da segunda Guerra Mundial e das convulsões políticas que dela resultaram. Agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer, crêem poder definir um Direito justo e, consequentemente, um critério de valor para o Direito positivo. É especialmente a renascida metafísica do Direito natural que, com esta pretensão, sai a opor-‐se ao positivismo jurídico”. (XVII-‐XVIII) I. Direito e Natureza 1. A “pureza” -‐ Objeto da Teoria Pura do Direito: o Direito positivo em geral. -‐ Objetivo da Teoria Pura do Direito: conhecer o seu objeto. -‐ Princípio metodológico fundamental: “garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito”. (p. 1) -‐ A pureza da ciência, para Kelsen, depende de uma definição estrita do objeto da ciência (Direito positivo em geral) e de um compromisso com a neutralidade (relativismo axiológico). Esse relativismo axiológico é – na sua visão – uma condição necessária para reivindicação, por parte de uma teoria, do status de científica. 2. O ato e o seu significado jurídico – 3. O sentido subjetivo e o sentido objetivo do ato. A sua auto-‐explicação -‐ O sentido jurídico de um ato não pode ser percebido diretamente pelos sentidos. -‐ O sentido subjetivo que o indivíduo liga ao seu ato não necessariamente corresponde ao sentido objetivo desse mesmo ato, pelo qual lhe é conferido caráter jurídico. 4. A norma a) A norma como esquema de interpretação -‐ “Oque transforma um fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua faticidade, não é o seu ser natural, mas o sentido objetivo que está ligado a esse fato”. (p. 4) -‐ “O sentido jurídico específico é recebido pelo fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo: a norma funciona como esquema de interpretação. (p. 4) 6 -‐ “A norma que empresta ao ato o significado de ato jurídico é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por sua vez, recebe a sua significação jurídica de outra norma”. (p. 4). (Esse procedimento este que só se encerra na Norma Fundamental). b) Norma e produção normativa -‐ O conhecimento jurídico dirige-‐se a normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). -‐ Direito é um sistema de normas que regulam o comportamento humano. -‐ Norma significa que algo “deve-‐ser”. -‐ Normas comandam, permitem ou conferem poder para algo (competência). -‐ “Norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém”. (p. 6) -‐ A TPD se afasta do imperativismo (Austin): “Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui”. (p. 6) -‐ A norma é um dever-‐ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. -‐ “A distinção entre ser e dever-‐ser não pode ser mais aprofunda. É um dado imediato na nossa consciência”. (p. 6). Notar que, neste momento, Kelsen insere uma nota de pé de página na qual aproxima sua compreensão do conceito de dever-‐ser da compreensão do conceito de “bom” proposta por George Edward Moore, na obra Princia Ethica (1922). -‐ “No entanto, este dualismo de ser e dever-‐ser não significa que ser e dever-‐ser se coloquem um ao lado do outro sem qualquer relação. Diz-‐se: um ser pode corresponder a um dever-‐ser. Afirma-‐se, por outro lado, que o dever-‐ser é ‘dirigido’ a um ‘ser’. A expressão: ‘um ser corresponde a um dever-‐ser’ não é inteiramente correta, pois não é o ser que corresponde ao dever-‐ser, mas é aquele ‘algo’, que por um lado ‘é’, que corresponde àquele ‘algo’, que, por outro lado, ‘deve-‐ser’ e que, figurativamente, pode ser designado como conteúdo do ser ou como conteúdo do dever-‐ser”. (p. 6-‐7) -‐ “O processo legiferante é constituído por uma série de atos, que, na sua totalidade, possuem o sentido de normas. Quando dizemos que, por meio de um dos atos acima referidos ou através dos atos do procedimento legiferante, se ‘produz’ ou ‘põe’ uma norma, isto é apenas uma expressão figurada para traduzir que o sentido ou o significado do ato ou dos atos que constituem o procedimento legiferante é uma norma. No entanto, é preciso distinguir o sentido subjetivo do sentido objetivo. ‘Dever-‐ser’ é o sentido subjetivo de todo o ato de vontade de um indivíduo que intencionalmente visa a conduta de outro. Porém, nem sempre um tal ato tal ato tem também objetivamente este sentido. Ora, somente quando este ato tem também objetivamente o sentido do dever-‐ser é que designamos o dever-‐ser como ‘norma’”. (p. 8) 7 -‐ O famoso exemplo da ordem do gangster e a primeira menção à norma fundamental (Grundnorm). Neste parágrafo, Kelsen já apresenta um esboço completo da teoria do ordenamento normativo como uma estrutura escalonada de normas, que, mais tarde, no capítulo “Dinâmica Jurídica”, será apresentada em detalhes: -‐ “A ordem de um ganster para que lhe seja entregue uma determinada soma de dinheiro tem o mesmo sentido subjetivo que a ordem de um funcionário de finanças, a saber, que o indivíduo a quem a ordem é dirigida deve entregar uma determinada soma de dinheiro. No entanto, só a ordem do funcionário de finanças, e não a ordem do gangster, tem o sentido de uma norma válida, vinculante para o destinatário; apenas o ato do primeiro, e não o do segundo, é um ato produtor de uma norma, pois o ato do funcionário de finanças é fundamentado numa lei fiscal, enquanto o ato do gangster se não apoia em qualquer norma que para tal lhe atribua competência. Se o ato legislativo, que subjetivamente tem o sentido de dever-‐ser, tem também objetivamente este sentido, que dizer, tem o sentido de uma norma válida, é porque a Constituição empresta ao ato legislativo este sentido objetivo O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponhaque nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua. (...). Um tal pressuposto, fundante da validade objetiva, será designado aqui por norma fundamental (Grundnorm). Portanto, não é do ser fático de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem, mas é ainda e apenas de uma norma de dever-‐ser que deflui a validade – em sentido objetivo – da norma segundo a qual esse outrem se deve conduzir de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade”. (p. 9) -‐ Exclusivamente a fim de assegurar um espaço para a norma fundamental (Grundnorm) no âmbito do conceito de norma, Kelsen, no último parágrafo deste tópico, registra: -‐ “Finalmente deve notar-‐se que uma norma pode ser não só o sentido de um ato de vontade mas também – como conteúdo de sentido – o conteúdo de um ato de pensamento. Uma norma pode não só ser querida, como também pode ser simplesmente pensada sem ser querida. Nese caso, ela não é uma norma posta, uma norma positiva. Quer isto dizer que uma norma não tem de ser efetivamente posta – pode estar simplesmente pressuposta no pensamento”. (p. 10) d) Vigência e domínio de vigência da norma -‐ “Com a palavra ‘vigência’ designamos a existência específica de uma norma”. (p. 11) -‐ “A ‘existência’ de uma norma positiva, a sua vigência [validade], é diferente da existência do ato de vontade de que ela é o sentido objetivo”. (p. 11) -‐ “É errôneo caracterizar a norma em geral e a norma jurídica em particular como ‘vontade’ ou ‘comando’ – do legislador ou do Estado -‐, quando por ‘vontade’ ou ‘comando’ se entenda o ato de vontade psíquica”. (p. 11) -‐ Vigência e eficácia 8 -‐ “Como a vigência da norma pertence à ordem do dever-‐ser, e não à ordem do ser, deve também distinguir-‐se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir uma certa conexão. Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos em certa medida. Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-‐se – não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia, como sói dizer-‐se é a condição da sua vigência”. (p. 11-‐12) -‐ Neste último parágrafo, Kelsen aborda uma das questões mais difíceis da TPD: a relação entre validade e eficácia. Embora a norma seja um dever-‐ser, esse dever-‐ser tem como condição de existência um ser (isto é, um mínimo de eficácia). Mais tarde, no capítulo “Dinâmica Jurídica”, Kelsen voltará a enfrentar essa questão. -‐ “No entanto, deve existir a possibilidade de uma conduta em desarmonia com a norma. Uma norma que preceituasse um certo evento que de antemão se sabe que necessariamente se tem de verificar, sempre e em toda parte, por força de uma lei natural, seria tão absurda como uma norma que preceituasse um certo fato que de antemão se sabe que de forma alguma se poderá verificar, igualmente por força de uma lei natural”. (p. 12) -‐ “Vigência e eficácia de uma norma jurídica também não coincidem cronologicamente”. (p. 12) -‐ “... uma norma jurídica deixará de ser considerada válida quando permanece duradouramente ineficaz”. (p. 12) -‐ A eficácia é condição vigência (validade). -‐ “E de notar, no entanto, que, por eficácia de uma norma jurídica (...) se deve entender não só o fato de esta norma ser aplicada pelos órgãos jurídicos, (...), mas também o fato de esta norma ser respeitada pelos indivíduos subordinados à ordem jurídica (...). Na medida em que a estatuição de sanções tem por fim impedir (prevenção) a conduta condicionante da sanção – a prática de delitos -‐ , encontramo-‐nos perante a hipótese ideal da vigência de uma norma jurídica quando esta nem sequer chega a ser aplicada, pelo fato de a representação da sanção a executar em caso de delito se ter tornado, relativamente aos indivíduos submetidos à ordem jurídica, em motivo para deixarem de praticar o delito”. (p. 12) -‐ “A referencia da norma ao espaço e ao tempo é o domínio de vigência espacial e temporal da norma. Este domínio de vigência pode ser limitado, mas pode também sem ilimitado”. (p. 13) -‐ “Além dos domínios de validade espacial e temporalpode ainda distinguir-‐se um domínio de validade pessoal e um domínio de validade material das normas”. (p. 15) 9 -‐ “O domínio material de validade de uma norma jurídica global, porém, é sempre ilimitado, na medida em que uma tal ordem jurídica, por sua própria essência, pode regular sob qualquer aspecto a conduta dos indivíduos que lhe estão subordinados”. (p. 16) -‐ Em última instância, e aqui estamos diante de uma importante questão demarcadora do positivismo kelseniano, a norma jurídica pode ter qualquer conteúdo. Os limites, aqui, são limites de natureza exclusivamente lógica. Isto é, não faz sentido uma norma jurídica que proíba ou obrigue alguém a realizar ou não realizar uma conduta impossível ou uma conduta necessária (exemplos: Levitar, pena de um a dois anos de detenção./Recusar-‐se a levitar quando devidamente solicitado, pena de um a dois anos de detenção/ Respirar, pena de um a dois anos de detenção./ Recusar-‐se a respirar quando devidamente solicitado, pena de um a dois anos de detenção). d) Regulamentação positiva e negativa; ordenar, conferir poder ou competência, permitir -‐ “A regulamentação da conduta humana por um ordenamento normativo processa-‐se por uma forma positiva e por uma forma negativa. A conduta humana é regulada positivamente (...) quando a um indivíduo é prescrita a realização ou a omissão de um determinado ato”. (p. 16-‐17) -‐ “A conduta humana é ainda regulada num sentido positivo quando a um indivíduo é conferido, pelo ordenamento normativo, o poder ou competência para produzir, através de uma determinada atuação, determinadas consequências pelo mesmo ordenamento normadas, especialmente – se o ordenamento regula a sua própria criação – para produzir normas ou para intervir na produção de normas”. (p. 17) -‐ “Negativamente regulada por um ordenamento normativo é a conduta humana quando, não sendo proibida por aquele ordenamento, também não é positivamente permitida por uma norma delimitadora do domínio de validade de uma outra norma proibitiva – sendo, assim, permitida num sentido meramente negativo”. (p. 18) e) Norma e valor -‐ “O juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso, um juízo de valor positivo. Significa que a conduta real é ‘boa’. O juízo, segundo o qual uma conduta real não é tal como, de acordo com uma norma válida, deveria ser, (...), é um juízo de valor negativo. Significa que a conduta real é ‘má’. Uma norma objetivamente válida, que fixa uma conduta como devida, constitui um valor positivo ou negativo”. (p. 19) -‐ Há aqui uma nota de pé de página na qual Kelsen se contrapõe a Schlick (filósofo vienense fundador da escola filosófica do positivismo lógico), pelo fato de que, para Schlick, uma norma é uma simples tradução de um fato da realidade. No início do próximo capítulo (“Direito e Moral”), Kelsen volta a se contrapor a Schlick, deixarei – deste modo – para registrar essa questão com um pouco mais de detalhe no próximo capítulo. 10 -‐ “Apenas um fato da ordem do ser pode, quando comparado com uma norma, ser julgado valioso ou desvalioso (...). É a realidade que se avalia”. (p. 19) Aqui, Kelsen insere uma nota de rodapé, na qual remete para o apêndice (que consta da 2a edição da TPD, mas que infelizmente não foi publicado na edição austríaca e, por conta disso, não aparece também na edição brasileira) a discussão acerca da possibilidade de as normas serem objeto de valoração de outras normas, isto é, “a questão de saber como é que o direito positivo pode ser valorado como justo ou injusto”. -‐ “Na medida em que as normas que constituem o fundamento dos juízos de valor são estabelecidas por atos de uma vontade humana, e não de uma vontade supra-‐humana, os valores através delas constituídos são arbitrários”. (p. 19) 5. A ordem social a) Ordens sociais que estatuem sanções “Uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida em que ela está em relação com outras pessoas, é uma ordem social. A Moral e o Direito são ordens sociais deste tipo”. (p. 25-‐26) -‐ O princípio, que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-‐se no conceito de sanção. (p. 26) -‐ Finalmente, uma ordem social pode – e é este o caso da ordem jurídica – prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem, como a privação dos bens acima referidos, ou seja, uma pena no sentido mais amplo da palavra”.(p. 26) -‐ “A conduta prescrita não é a conduta devida; devida é a sanção. O ser-‐prescrita uma conduta significa que o contrário desta conduta é pressuposto do ser-‐devida da sanção. A execução da sanção e prescrita, é conteúdo de um dever jurídico, se a sua omissão é tornada pressuposto de uma sanção. Se não for esse o caso, ela apenas pode valer como autorizada, e não também como prescrita. Visto não podermos admitir um regressum ad infinitum , a última sanção nesta séria apenas pode ser autorizada, e não prescrita”. (p. 27) -‐ “Na medida em que o mal que funciona como sanção – a pena no sentido mais amplo da palavra – deve ser aplicada contra a vontade do atingido e, em caso de resistência, através do recurso à força física, a sanção tem o caráter de um ato de coação. Uma ordem normativa que estatui atos de coerção como reação contra uma determinada conduta humana é uma ordem coercitiva. Mas os atos de coerção podem ser estatuídos – e é este o caso da ordem jurídica, como veremos – não só como sanção, (...), mas também como reação contra situações de fato socialmente indesejáveis que não representam conduta humana é, por isso, não podem ser consideradas como proibidas”. (p. 28) b) Haverá ordens sociais desprovidas de sanção? 11 -‐ “É por isso duvidoso que seja sequer possível uma distinção entre ordens sociais sancionadas. A única distinção de ordens sociais a ter em conta não reside em que umas estatuem sanções e outras não, mas nas diferentes espécies de sanções que estatuem”. (p. 30) c) Sanções transcendentes e sanções socialmente imanentes -‐ “Sanções transcendentes são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-‐humana”. (p. 30) -‐ “Completamente distintas das sanções transcendentes são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade, e que, por isso, podem ser designadas como sanções socialmente imanentes”. (p. 31) 6. A ordem jurídica a) O Direito: Ordem de conduta humana -‐ “Uma teoria do Direito deve, antes de tudo, determinar conceitualmente o seu objeto. Para alcançar uma definição do Direito, é aconselhável primeiramente partir do uso da linguagem, quer dizer, determinar o significado que tem a palavra ‘Recht’ (‘Direito’) na língua alemã e as suas equivalentes nas outras línguas (law, droit, diritto, etc.)”. (p. 33) -‐ “Com efeito, quando confrontamos uns com os outros os objetos que, em diferentes povos e em diferentes épocas, são designados como ‘Direito’, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de conduta humana. Uma ‘ordem’ é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamenta dessa ordem”. (p. 33) -‐ “As normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana”. (p. 33) -‐ Kelsen, na passagem citada, coloca definitivamente no centro da sua teoria o conceito de “ordem” ou “sistema”. O foco da TPD, portanto, não se encontra na norma jurídica tomada isoladamente, mas no sistema normativo. b) O Direito: uma ordem coativa -‐ “Uma outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas, no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas – particularmente contra condutas humanas indesejáveis – com um ato de coação, isto é com um mal – como a privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros -‐, um mal que é aplicado ao destinatário mesmo contra a sua vontade, se necessário empregando até a força física – 12 coativamente, portanto. Dizer-‐se que, com o ato coativo que funciona como sanção, se aplica um mal ao destinatário, significa que este ato é normalmente recebido pelo destinatário como um mal”. (p. 36-‐37( -‐ O direito é uma ordem coativa da conduta humana. -‐ “Mas uma ordem jurídica pode, através dos atos de coação por ela estatuídos, reagir não só contra uma determinada conduta humana mas ainda, (...), contra outros fatos socialmente nocivos. Por outras palavras, enquanto o ato de coação normado pela ordem jurídica é sempre a conduta de um determinado indivíduo, a condição de que aquele depende não tem de ser necessariamente determinada conduta de um indivíduo, mas podetambém sê-‐lo uma outra situação de fato considerada, por qualquer motivo, como socialmente perniciosa”. (p. 36) -‐ “Como ordem coativa, o Direito distingue-‐se de outras ordens sociais. O momento coação (...) é o critério decisivo”. (p. 37) α) Os atos de coação estatuídos pela ordem jurídica como sanções -‐ “O Direito é uma ordem coativa, não no sentido de que ele – ou, mais rigorosamente, a sua representação – produz coação psíquica; mas no sentido de que estatui atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como consequência dos pressupostos por ele estabelecidos”. (p. 38) β) O Monopólio de coação da comunidade jurídica -‐ “Gradualmente, porém, estabelece-‐se o princípio de que todo o emprego da força física é proibido quando não seja – e temos aqui uma limitação ao princípio – especialmente autorizado como reação, da competência da comunidade jurídica, contra uma situação de fato considerada socialmente perniciosa. (...). Neste sentido, pois, estamos perante um monopólico da coação por parte da comunidade jurídica”. (p. 40) γ) Ordem jurídica e segurança coletiva -‐ “A segurança coletiva visa à paz, pois a paz é ausência do emprego de força física. (...). O Direito é uma ordem de coerção e, como ordem de coerção, é – conforme o seu grau de evolução – um ordem de segurança, que dizer, uma ordem de paz”. (p. 41) δ) Atos coercitivos que não têm o caráter de sanções -‐ “Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-‐las como situando-‐se fora da ordem jurídica desses Estados”. (p. 44) -‐ Na minha opinião, Kelsen, tendo testemunhado a ascensão do nazismo e tendo sofrido diretamente as consequências da aplicação de leis extremamente injustas (como vimos na sua biografia), expressa extraordinárias coragem e retidão intelectual ao escrever 13 esse parágrafo. Ele encerra um desdobramento necessário dos pressupostos juspositivistas defendidos por Kelsen. Desdobramento potencialmente trágico, porém necessário do ponto de vista da coerência interna da teoria. A corrente não-‐positivista que se desenrola de Radbruch, do final da 2a Guerra, até Alexy, nos dias de hoje, surge da necessidade de confrontar a validade dessa tese. A compreensão da “Tese da Injustiça Extrema”, defendida por Alexy, e que compreende a famosa “Fórmula de Radbruch” (uma injustiça extrema não é Direito), busca refutar a tese defendida pela TPD de que o Direito pode ter qualquer conteúdo. -‐ “Se o conceito de sanção é alargado nestes termos, já não coincidirá com o de consequência do ilícito. A sanção, neste sentido, não tem necessariamente de seguir-‐se ao ato ilícito: pode precedê-‐lo”. (p. 45) ε) O Mínimo de liberdade -‐ “A ordem jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige prescrições mais ou menos numerosas. Fica sempre garantido, porém, um mínimo de liberdade, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfera de existência humana na qual não penetra qualquer comando ou proibição. Mesmo sob a ordem jurídica mais totalitária existe algo como uma liberdade inalienável – não enquanto direito inato do homem, enquanto direito natural, mas como uma consequência da limitação técnica que afeta a disciplina positiva da conduta humana”. (p. 47-‐48) -‐ Repare que esse “mínimo de liberdade” não é – como Kelsen mesmo faz questão de sublinhar – uma consequência necessária da dignidade da pessoa humana ou da lei natural. Esse mínimo de liberdade é simplesmente a consequência da impossibilidade fática de uma regulação total da conduta humana. c) O Direito como ordem normativa de coação. Comunidade jurídica e “bando de salteadores -‐ “Agora podemos dar resposta à questão de saber por que é que não conferimos ao comando de um salteador de estradas, proferido sob ameaça de morte, o sentido objetivo de uma norma vinculadora do destinatário, isto é, de uma norma válida, por que é que não interpretamos este ato como um ato jurídico, por que interpretamos a realização da ameaça como um delito e não como a execução de uma sanção”. (p. 52) -‐ Agora então vem a resposta: -‐ “Se se trata do ato isolado de um só indivíduo, tal ato não pode ser considerado como um ato jurídico e o seu sentido não pode ser considerado como uma norma jurídica, já mesmo pelo fato de o Direito – conforme já acentuamos – não ser uma norma isolada, mas um sistema de normas, um ordenamento social, e umanorma particular apenas pode ser considerada como norma jurídica na medida em que pertença a um tal ordenamento. O confronto com uma ordem jurídica penas seria de considerar se se tratasse da atividade sistemática de um bando organizado que tornasse inseguro um determinado território pelo fato de coagir os indivíduos que aí vivessem, sob a ameaça de certos males, à entrega do seu dinheiro e valores patrimoniais. Nesse caso, a ordem que regula a conduta recíproca dos membros do grupo, qualificado como ‘bando de 14 salteadores’, deve ser distinguida da ordem externa, isto é, dos comandos que os membros ou os órgãos do bando dirigem, sob a cominação de certos males, àqueles que não pertencem ao grupo. Com efeito, somente em relação aos estranhos é que o grupo se comporta como bando de ‘salteadores’. Se a rapina e o assassinato não fosse proibidos nas relações entre os salteadores, não estaríamos sequem em face de qualquer comunidade, não existiria um ‘bando’ de salteadores. Por isso, pode ainda a ordem interna do bando entra muitas vezes em conflito com uma ordem de coerção, considerada como ordem jurídica, em cujo domínio territorial de validade se exerça a atividade do mesmo bando. Se a ordem de coerção que constitui esta comunidade e abrange a sua ordenação interna e externa não é considerada como ordem jurídica, se o seu sentido subjetivo, segundo o qual as pessoas se devem conduzir de conformidade com ela, não é havido como sendo o seu sentido objetivo, é porque se não pressupõe qualquer norma fundamental por virtude da qual as pessoas se devam conduzir de harmonia com tal ordenamento – isto é, por força da qual a coação deva ser exercida sob os pressupostos e pela forma que esse ordenamento determina. Mas – e esta é a questão decisiva – por que é que se não pressupõe essa norma fundamental? Ela não é pressuposta porque, ou melhor, se esse ordenamento não tem aquela eficácia duradoura sem a qual não é pressuposta qualquer norma fundamental que se lhe refira e fundamente a sua validade objetiva. Ele não tem claramente esta eficácia se as normas estatuidoras de sanções da ordem jurídica em cujo domínio territorial de validade se exerce a atividade do bando são aplicadas de fato a esta atividade enquanto ela constitui uma conduta contrária ao Direito e os componentes do bando são compulsoriamente privados da liberdade, ou mesmo da vida, por meio de atos que são interpretados como pena de privação de liberdade e pena de morte e, assim, se põe um termo à atividade do bando – ou seja: quando a ordem de coação reconhecida como ordem jurídica é mais eficaz do que a ordem de coação constitutiva do bando de salteadores”. (p. 52-‐53) -‐ Esse trecho é, com razão, um dos trechos mais famosos da TPD. Aqui aparece a conexão entre a norma fundamental e a eficácia global do sistema normativo, que, aqui, aparece qualificada como “eficácia duradoura”. Essa é, de fato, a questão central. No entanto, chamo a atenção para uma interessante questão periférica. Kelsen afirma que se a “rapina e o assassinato não fossem proibidos nas relações entre os salteadores, não estaríamos seque em face de qualquer comunidade”. Essa é uma afirmação que, em qualquer outro lugar, soaria trivial. No entanto, me parece que ao afirmar que a proibição da rapina e do assassinato são condições de existência de uma comunidade, Kelsen entra em contradição com sua afirmação – central para a TPD – de que o Direito pode ter qualquer conteúdo. Sugiro que você leia, mais tarde, e compare com o trecho destacado, o que Alexy, em “O Conceito e Validade do Direito”, escreve sobre o “argumento da correção”. Cito algumas poucas linhas: “O argumento da correção constitui a base dos outros dois argumentos, ou seja, o da injustiça e o dos princípios. Ele afirma que tanto as normas e decisões jurídicas individuais quanto os sistemas jurídicos como um todo formulam necessariamente a pretensão à correção. Sistemas normativos que não formulam explícita ou implicitamente essa pretensão não são sistemas jurídicos”. (ALEXY, 2011: 43) -‐ Não vou transcrever, mas, neste tópico, merece ainda ser lida com atenção a passagem na qual Kelsen cita Santo Agostinho e, contra Santo Agostinho, defende a tese de que a Justiça não pode ser nem uma característica que distinga o Direito de outras ordens coercitivas, como tampouco pode ser o fundamento de validade do sistema normativo, 15 pelo fato de que, a tese de Santo Agostinho, na concepção de Kelsen, ignora a necessária relatividade dos juízos de valor. Kelsen conclui: -‐ “Se a Justiça é tomada como critério da ordem normativa adesignar como Direito, então as ordens coercitivas capitalistas do mundo ocidental não são de forma alguma Direito do ponto de vista do ideal comunista do Direito, e a ordem coercitiva comunista da União Soviética não é também de forma alguma Direito do ponto de vista do ideal de Justiça capitalista. Um conceito de Direito que conduz a uma tal consequência não pode ser aceito por uma ciência jurídica positiva”. (p. 55) d) Deveres jurídicos sem sanção? -‐ A resposta é não. E um não com radicais consequências: -‐ “Nas ordens jurídicas modernas só muito excepcionalmente se encontram normas que são o sentido subjetivo de atos de legislação e que prescrevem uma determinada conduta sem que a conduta oposta seja tomada como pressuposto de um ato coercitivo que funcione como sanção. Se, no entanto, as ordens sociais a que chamamos Direito contivessem de fato em quantidade apreciável normas prescritivas que não estivessem essencialmente ligadas a normas que estatuem atos coercitivos como sanção – o que não é, porém, o caso -‐, então a admissibilidade de uma definição do Direito como ordem de coerção seria posta em causa. E se das ordens sociais a que chamamos Direito viesse a desaparecer – como profetiza o socialismo marxista – o elemento coação (como consequência do desaparecimento da propriedade privada dos meios de produção), estas ordens sociais mudariam radicalmente de caráter: perderiam – no sentido da definição do Direito aqui admitida – o seu caráter jurídico, do mesmo passo que as comunidades por elas construídas perderiam o seu caráter estatal; ou seja, na terminologia de Marx, o Estado – e com o Estado também o Direito – ‘morreria’”. (p. 60) e) Normas jurídicas não autônomas -‐ “Se uma ordem jurídica ou uma lei feita pelo parlamento contém uma norma que prescreve determinada conduta e uma outra norma que liga à não observância da primeira uma sanção, aquela primeira norma não é uma norma autônoma, mas está essencialmente ligada à segunda; ela apenas estabelece – negativamente – o pressuposto a que a segunda liga a sanção”. (p. 61) -‐ “Do que fica dito resulta que uma ordem jurídica, se bem que nem todas as suas normas estatuam atos de coação, pode, no entanto, ser caracterizada como ordem de coação, na medida em que todas as suas normas que não estatuam elas próprias um ato coercitivo e, por isso, não contenham uma prescrição mas antes confiram competência para a produção de normas ou contenham uma permissão positiva, são normas não autônomas, pois apenas têm validade em ligação com uma norma estatuidora de um ato de coerção”. (p. 64) -‐ “Visto que uma ordem jurídica é uma ordem de coação no sentido que acaba de ser definido, pode ela ser descrita em proposições enunciando que, sob pressupostos determinados (determinados pela ordem jurídica), devem ser aplicados certos atos de coerção (determinados igualmente pela ordem jurídica). Todo material dado nas 16 normas de uma ordem jurídica se enquadra neste esquema de proposição jurídica formulada pela ciência do Direito, proposição esta que se deverá distinguir da norma jurídica posta pela autoridade estadual”. (p. 65) -‐ Com este parágrafo, Kelsen encerra o primeiro capítulo da TPD. O Direito é uma ordem de coação. Proposições podem descrever essa ordem. Os enunciados dessas proposições descrevem o Direito da seguinte maneira: dados certos pressupostos (determinados pela ordem jurídica), devem ser aplicados certos atos de coerção (também determinados pela ordem jurídica). Observe que, para TPD, todo material dado no Direito se enquadra nesse esquema de proposição jurídica. Outra coisa – só uma observação em relação à tradução do termo “estadual”. Estadual aqui, e não devemos nos esquecer que a tradução da “Teoria Pura do Direito” foi feita para o Português de Portugal, se refere ao que, no Português do Brasil, nós chamamos de estatal. II. Direito e Moral 1. As Normas morais como normas sociais - “Ao definir o Direito como norma, na medida em que ele constitui o objeto de uma específica ciência jurídica, delimitâmo-lo em face da natureza e, ao mesmo tempo, delimitamos a ciência jurídica em face da ciência natural. Ao lado das normas jurídicas, porém, há outras normas que regulam a conduta dos homens entre si, isto é, normas sociais, e a ciência jurídica não é, portanto, a única disciplina dirigida ao conhecimento e à descrição de normas sociais. Essas outras normas sociais podem ser abrangidas sob a designação de Moral e a disciplina dirigia ao seu conhecimento pode ser designada como Ética”. (p. 67) - “A tentativa do positivismo lógico de representar a Ética como ciência empírica de fatos provém claramente do legítimo empenho de a subtrair ao domínio da especulação metafísica. Mas tal empenho já é bastante respeitado quando as normas que formam o objeto da Ética são conhecidas como conteúdos de sentido de fatos empíricos postos pelos homens no mundo da realidade, e não como comandos de entidades transcendentes. Se as normas da Moral, assim como as normas do Direito positivo, são o sentido de fatos empíricos, tanto a Ética como a ciência jurídica podem ser designadas como ciências empíricas – em contraposição
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