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REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso A LEITURA HEIDEGGERIANA DO ETERNO RETORNO DE NIETZSCHE A Heideggerian’s interpretation of the eternal recurrence in Nietzsche EDUARDO NASSER RESUMO O objetivo do texto é apresentar a interpretação de Heidegger sobre o eterno retorno de Nietzsche, procurando problematizar as deduções encontradas por essa leitura. Palavras Chave: Eterno Retorno- Metafísica- Diferença. ABSTRACT The aim of the text is to present Heidegger´s interpretation of the eternal recurrence in Nietzsche, trying to bring forward the conclusions raised by this specific reading. Key Words: Eternal Recurrence- Metaphysics- Difference EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 1 REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso Introdução: Não há consenso algum sobre a interpretação heideggeriana. Se por um lado o belo texto de Monica Cragnolini suspeita que Nietzsche, que queria ser perdido, é segurado por tempo demais por Heidegger1, por outro, o não menos precioso texto de Vattimo considera a importância da leitura heideggeriana, uma vez que corresponde ao efeito ultrapassante que Nietzsche atribuía a si mesmo2. Ambos partem dessa carta de Nietzsche: Após você ter me descoberto, não é mais complicado me encontrar: a dificuldade agora é me perder3. Portanto, a primeira pergunta feita diante do “obeso” trabalho de Heidegger sobre Nietzsche (Nietzsche I/ II), sempre deve ser: foi um encontro ou uma perda? O livro de Heidegger marca o período póstumo à Ser e Tempo (1927), assim como o distanciamento do filósofo do Nacional Socialismo (após o período como reitor na Universidade de Freiburg). Desse modo a obra Nietzsche I/II, coincide com a recusa por uma responsabilidade política por parte de Heidegger (como nos lembra Habermas), e um período de crucial transformação no pensamento heideggeriano4. Logo, ao tentarmos responder nossa pergunta, temos de desenvolver outras: Será que, ao invés de interpretar Nietzsche, Heidegger não lança sobre a filosofia nietzschiana somente sua preocupação da história da filosofia como história do Ser? Heidegger lendo o eterno retorno do mesmo e a vontade de poder encontra um eco de sua diferença ontológica de Ser e ente que, no entanto, não se livra da oposição metafísica de devir (Werden) e ser. Mas até onde Heidegger, ao valorizar a vontade de poder em Nietzsche, considerou todas as conseqüências possíveis do eterno retorno? Nosso trabalho procura introduzir a polêmica interpretação de Nietzsche feita por Heidegger, a partir da doutrina do eterno retorno do mesmo afim de considerar as possíveis consonâncias e dissonâncias. II- O Nietzsche de Heidegger (1937). O livro de Heidegger, bastante anacrônico uma vez que é composto por aulas e artigos, dedica duas exposições sobre a doutrina nietzschiana do eterno retorno do mesmo. Uma de 1937 (O Eterno Retorno do Mesmo), e outra, menos espaçosa, em 1940 (A Metafísica de Nietzsche)5. Se acompanharmos a organização cronológica feita por Cragnolini, o primeiro texto corresponde à fase de Nietzsche como 1 Cragnolini, M.- Nietzsche por Heidegger: Contrafiguras por uma Perda in: Cadernos Nietzsche 10- pg. 13 2 Vattimo, G.- As Aventuras da Diferença- pg. 85 3 Nietzsche, F.- Derniéres Lettres- pg. 45 4 Smith, D.- Transvaluations: Nietzsche in France 1872- 1972- pg. 188 EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 2 REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso inversor do platonismo, e o outro à um Nietzsche que não somente inverte o platonismo, mas aprofunda a metafísica6. Nos mantemos, portanto, nesse primeiro período. O longo texto de 1937 tem nas suas primeiras linhas a afirmação da doutrina do eterno retorno do mesmo como posição metafísica fundamental de Nietzsche. Heidegger expõe a crença nessa tese, hostil aos domínios nietzschianos, ao experimentar todas as possibilidades para a compreensão dessa doutrina. Logo, procura atravessar suas anunciações, desde o jovem Nietzsche até o chamado “último” período, sugerindo a obsessão pelo retorno como presente em todo o percurso nietzschiano. É com Nietzsche, aos 19 anos, que a pergunta fundamental pelo retorno é exposta: Onde está o anel que finalmente abraça (o homem)? É o mundo? É Deus?7. A apresentação da doutrina, ainda imatura, tomaria seus caracteres definitivos posteriormente, a partir de três comunicações. A primeira com a Gaia Ciência; a segunda em Assim Falou Zaratustra ; e a terceira em Além do Bem e do Mal. A comunicação do retorno no aforismo 341 da Gaia Ciência (O Mais Pesado dos Pesos), conclui o programa filosófico da obra na medida que inicia a “gaia ciência”. É só conhecendo em primeiro e último lugar o eterno retorno do mesmo que “gaia ciência” se torna o nome que ensina essa doutrina. Essa posição compreende o obstáculo que demanda um enfrentamento e superação, pois para o ente em sua totalidade compreender o eterno retorno em si, ele deve ser o “peso mais pesado”. E desse terrível perfil do retorno que floresce a exigência trágica, pois este “peso mais pesado” deve ser afirmado. O pensamento abarca não só um aspecto cotidiano, mas, pelo contrário, a maior solidão. Se Heidegger coloca, nesse ponto, a diferença entre a singularização da experiência do retorno daquela de um simples isolamento, é para encontrar a si mesmo em Nietzsche, uma vez que não se trata mais aqui de um problema do “eu”, mas sim desse ser- aí que funda as relações com os outros e o mundo. Heidegger se apresenta pela primeira vez no texto. Não só como intérprete do retorno, ou um espectador distante, mas como quem admite seriamente as conseqüências da doutrina nietzschiana. E assim aparece os primeiros problemas. Quando Nietzsche, para Heidegger, fala em mundo e existência (Dasein), estaria se referindo fundamentalmente com o que ele, Heidegger, chama de ente em sua totalidade. Em 5 Esse segundo período de interpretações heideggerianas de Nietzsche alcançam uma dimensão de problematizações ainda mais desconfortáveis. Lá a interpretação do retorno, diretamente relacionada com a questão da vontade de poder e o valor, expressa o que não tem valor algum, sempre sujeito às imposições de sentido da vontade de poder. Ou seja, o constante voltar a ser consistente do que carece de consistência. Valor aqui diz respeito à metafísica da vontade de poder enquanto “pontuação”, “numeração”, “cálculo”. Pontos de vistas só possíveis individualmente, para o homem que ganha o centro. Nesse aspecto Heidegger equivale Nietzsche, Protágoras e Descartes, de modo que Nietzsche realize o processos destes últimos. O ratio serve a animalidade, de um pensar que maquiniza o mundo.- ver pgs. 84- 235- Nietzsche II. Contra essa interpretação heideggeriana que Karl Lowith opõe o devir do eterno retorno como o movimento que libera os valores e finalidades.- Lowith, K. – Discussion: Heidegger et Nietzsche: Le Concept de Valeur in: Cahiers de Royaumont, Nietzsche- pg. 270 6 Cragnolini, M.- Nietzsche por Heidegger: Contrafiguras por uma Perda in: Cadernos Nietzsche 10 – pg. 12 7 Nietzsche, F.- in: Nietzsche I- pg. 217 EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 3 REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso seguida o filósofo da floresta negra deixa claro que o que ele entende por Dasein nada tem de familiaridade com o pensamento nietzschiano. Como veremos adiante, Heidegger está antecipando as principais características que deixam a filosofia de Nietzscheainda submetidas à categorias metafísicas. Ao desenvolver a apresentação da doutrina em Assim Falou Zaratustra, Heidegger entende um alargamento das conseqüências apontadas na Gaia Ciência, uma vez que Zaratustra é a figura que expressa a transformação do homem em super homem ao compreender o eterno retorno. Se concentrando no capítulo Da Visão e do Enigma, Heidegger descreve uma certa posição “negativa” de Nietzsche diante da anunciação. O problema da linguagem estaria conectado àquele do pensar. Se o anão, ao lado de Zaratustra diante do portal “instante”, tenta intelectualizar o enigma dentro de um mecanicismo do círculo, e confia esse reducionismo à linguagem, em seguida é eliminado dos domínios da doutrina por sua incapacidade de pensar. Pensar aqui é um outro pensar. Não um pensar de anões, mas um pensar o enigma esperando que ele se torne maior e mais sombrio. O mesmo problema reaparece para o Zaratustra convalescente quando os animais (que querem se comportar como homens) tentam significar o retorno em arranjos do entendimento e linguagem: Não foram as coisas presenteadas com nomes e sons, para que o homem se recreie com elas8? Essa condição leva Heidegger a creditar uma estrutura simbólica desenvolvida por Nietzsche, procurando projetar o devir que escapa do inteligível (daí a serpente e a águia se enroscando iluminarem uma visão mais apropriada do enigma). Afinal há uma diferença do “círculo” do anão e o círculo, já que o anão, mesmo que representando uma variação pessimista do último homem, ainda está envolvido pelo “falatório”9 da cotidianeidade, da mediania. A experiência do instante (a decisão) do retorno viria, logo, recuperar o sofrimento e o “grito” necessário para superar a tentação de intelecção da doutrina, e alcançar o “divino”. Em referência ao aforismo 56 de Além do Bem e do Mal, Heidegger considera que a experiência do instante acaba por afastar Nietzsche de um ateísmo gratuito, já que deus, e não o Deus moral, se encontraria na culminação do retorno. O que Heidegger insinua, ao afastar Nietzsche do materialismo e do agnosticismo, (além do que, essa doutrina não teria parentesco com algum pressuposto científico), é que seu pensamento foi muito além de uma mera laicização, e em certa medida, se aproximando da questão do Ser. Ora, Nietzsche visto por Heidegger, procurou desenvolver um panorama que não compreenda só um indivíduo no instante criador, mas uma decisão histórica, uma crise. E o nome dessa crise foi o niilismo. Ao elaborar o eterno retorno, Nietzsche teria como projeto o de experimentar todas as formas de niilismo, que seria superado pela vontade de criar. Quando Heidegger recupera a última passagem Da Visão e do Enigma, onde o pastor está sendo engasgado pela gorda serpente negra (o niilismo), Nietzsche sabia que não poderia eliminar o 8 Idem- Assim Falou Zaratustra- pg. 224 9 Termo do léxico heideggeriano empregado na pg. 252, colocando mais um problema de recuperação do sentido do Ser (fartamente desenvolvido em Ser e Tempo), que propriamente o paradoxo da linguagem para Nietzsche. EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 4 REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso niilismo com tentativas exteriores, mas mudando o próprio homem, confrontando o mesmo, o igual e a indiferença. O instante é a integração de quem confronta a mesmice do niilismo através de sua decisão, através do amor fati. Em outras palavras, a vontade (amor) de transfiguração, ampliação, sobre a necessidade (fatum), essencializa e transforma o devir em ser. A vontade de poder imprime ao eterno retorno o ser. Vejamos as conseqüências dessa afirmação. De acordo com boa parte da dissertação de Heidegger, o problema de Nietzsche foi o de se manter ainda regulado pela ordenação do humanismo na experiência do retorno. Quer dizer, quando Nietzsche coloca o caos como caráter totalizante do mundo, procura se livrar da humanização do mundo que, necessariamente, compreende uma moralização deste mesmo, do mesmo modo que quis se opor a todo materialismo decorrente do ateísmo. Mas, uma vez que se trata de uma produção humana, guardada nos limites da representação, ainda é uma construção humana10. Ou seja, a desumanização seria só outra forma de humanização do ente. Essa estranha propriedade de um suposto antropomorfismo nietzschiano (que tomaria contornos mais expressivos em Nietzsche II), será decorrente de, segundo Heidegger, uma supervalorização da vontade de poder no final da vida de Nietzsche. Em 1888, quando a vontade de poder alcança seu ponto mais alto, diz Heidegger: O pensamento do eterno retorno é agora pensado desde a vontade de poder. Por tanto, o pensamento do eterno retorno se torna reduzido à vontade de poder11. Na medida que a vontade de poder aparece como o que fundamenta a essência, fundamenta o modo de ser. Logo, imprimir ao devir cara de ser, promove uma operação de consistência do devir, que o devir seja. Este transformar em ente o que devem é a suprema vontade de poder. Ao que parece, para Heidegger, mesmo que Nietzsche tenha se utilizado de recursos que suspendam a metafísica (a sua “teologia negativa”; o discurso simbólico), ele ainda continua envolvido nela. Pois, ao considerar o é do ente em sua totalidade sendo vontade de poder e o ente em sua totalidade sendo eterno retorno, ele não realiza o seu projeto inicial de inversão do platonismo. Não só não elimina, como solidifica o platonismo, uma vez que se pense ter se livrado dele. Se no capítulo A Vontade de Poder como Arte, existia ainda alguma dúvida se Nietzsche havia de fato superado o platonismo, a resposta nos chega agora sem nenhum constrangimento. Nietzsche, ao não alcançar o início inicial (o Ser), se mantém ainda coberto pela malha da história metafísica. III- Os Problemas da Leitura Heideggeriana. Podemos localizar inúmeros efeitos póstumos causados pela leitura de Heidegger. Alguns destes efeitos, como em Sartre, tomam proporções, em certos casos, até hostis a Nietzsche. Sartre vê no eterno retorno como necessidade (fatum), uma 10 Se para Nietzsche existência é o eterno retorno ele não conseguiu, como Holderlin, pensar o homem fora do humanismo- ver Heidegger, M.- Carta Sobre o Humanismo- pg. 7 11 Idem- Nietzsche I- pg. 342 EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 5 REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso fuga da contingência, da liberdade, um mito que entra em contradição com a vontade de poder que, como ele diz claramente na Náusea, só os imbecis podem dar alguma importância12. Outras interpretações, como as de Eugen Fink, preferem deixar em aberto se Nietzsche superou ou não a metafísica13. No entanto, a partir de Klossowski, Deleuze, Derrida, Lowith, etc; a leitura de Heidegger é totalmente descaracterizada. Como acabo com o fatalismo: 1. Pelo eterno retorno e pela preexistência. 2. Pela liquidação do conceito de vontade14. Klossowski, partindo dessa proposição em sua obra Nietzsche e o Círculo Vicioso, propõe uma tensão entre vontade de poder e eterno retorno, uma contradição fundamental entre um querer doador de sentido, e o círculo vicioso que ceifa os mesmos. Como lembra Smith, Klossowski procura escapar da leitura existencial do momento, para a desintegração do único momento15, ou seja, a desintegração do eu que, ao querer o retorno sofre uma mudança e já não é mais o mesmo. Mas, se Heidegger não é citado na obra de Klossowski, é por este considerar o problema em questão como problema do próprio Nietzsche. Ora, ou o super homemse torna sujeito da vontade de poder, e assim, sentido e objetivo do retorno, ou, a vontade de potência é apenas uma denominação humanizada da alma do Círculo Vicioso, enquanto esta é pura intensidade sem intenção16. Vontade é significância mas a potência é total insignificância. Quanto menos insignificância, mais significância. Logo, as forças não querem o objetivo, pois a potência não pode ser interpretada como intenção. Não é a consciência querendo a modificação, mas os processos inconscientes da energia17. Deleuze, levando adiante uma considerável presença de Klossowski em Diferença e Repetição, dedica uma nota à questão da diferença ontológica heideggeriana se perguntando, inúmeras vezes, se Heidegger de fato pensou o Ser como unicamente da diferença, e ainda, se ele considerou o ente como substrato de toda identidade e representação. A resposta, bem econômica, vem em seguida: Não me parece, em vistas de sua crítica do eterno retorno nietzschiano18. Segundo Smith, enquanto Heidegger propõe o eterno retorno como eterno retorno do mesmo (uma metafísica do tempo), Deleuze encontraria aí uma limitação decorrente dos limites da diferença ontológica, pois Heidegger ainda pensaria em termos de identidades19. 12 Sartre, J.P- A Náusea- pg. 196/ Não só Nietzsche foi o alvo desses ataques, mas no artigo Un Nouveau Mystique, Sartre distingue duas linhas filosóficas: a da contingência irredutível, e a que compreende uma espécie de misticismo, composta por Kierkegaard, Nietzsche e Bataille- Louette, J.F- Sartre Contra Nietzsche- pg. 39 13 Fink, E.- A Filosofia de Nietzsche- pg. 203 14 Nietzsche, F.- Fragments Posthumes 1884 / 25(214)- pg. 84 15 Smith, D.- Transvaluations: Nietzsche in France 1872- 1972- pg. 151 16 Klossowski, P.- Nietzsche e o Círculo Vicioso- pg. 90 17 Idem- pgs. 63- 94; 115- 142 18 Deleuze, G.- Difference et Repetition- pg. 91 19 Smith, D.- Transvaluations: Nietzsche in France , 1872- 1972- pg. 146 EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 6 REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso Parece, no entanto, que a pá de cal lançada sobre a interpretação heideggeriana veio com Derrida no artigo A Questão do Estilo20. Como vimos, para Heidegger, Nietzsche não completa a destruição do platonismo com sua doutrina do eterno retorno e a vontade de poder, ou seja, de fluxo e fixidez, exatamente por manter essa relação de oposição, própria à metafísica. Se isso parece claro no texto de 1937 sobre o eterno retorno, por outro lado, no texto do mesmo ano, A Vontade de Poder Como Arte, levanta algumas contradições. Ao estudar detalhadamente a passagem do Crepúsculo dos Ídolos , nomeada A História de um Erro, Heidegger entende que não se trata somente de uma simples inversão, mas um procedimento que coloca em suspensão a “má” interpretação do sensível, alterando o esquema da ordem21. Colocando esta consideração, Heidegger se vê diante de um impasse que só será aparentemente resolvido na pg. 376 do mesmo livro, quando definitivamente Nietzsche não supera a metafísica ao não recuperar o Ser. Para Derrida esse “equívoco” é resultado de Heidegger não ter dado a atenção necessária à questão da “mulher” presente na História de um Erro. Entende-se aqui que “mulher” designa um fundo sem fundo, um nome para o não verdadeiro, a não identidade, o simulacro. Esse “estilo” de Nietzsche é empregado sobre sua própria escritura22, sobre um pensar que se torna pensar de simulacros. Contra Heidegger e a favor de Nietzsche, o que se torna “mulher” é a idéia. Não que a verdade sempre tenha sido “mulher” pois, segundo Derrida, ela possue uma história. Quando a verdade se confunde com a idéia platônica a “mulher” não se revela. Só quando Platão não pode mais falar “eu sou a verdade”, que o devir “mulher” entra em ação. Não A Mulher, mas as várias “mulheres” que povoam os textos nietzschianos (mães, esposas, governantas, prostitutas, virgens, etc.), erguendo o histrionismo à um grau máximo, impedindo o encontro de qualquer verdade sobre Nietzsche, assim como, a oposição fundante da metafísica entre verdadeiro e falso (oposição que Heidegger ainda encontra em Nietzsche)23. Após todas essas contribuições desses intérpretes, nos resta perguntar novamente: Nietzsche um pensador da diferença? Ou, Nietzsche o último metafísico? Ou ambos? No texto de Heidegger nomeado Identidade e Diferença, o filósofo alemão procura se abastecer de uma argumentação que abandone o pensamento representativo, o fundo, em favor do “salto” para que o homem apreenda o ser como diferença pura com o ente. Esse pensar do salto não teria hereditariedade alguma com o tempo do cálculo24 (que, como vimos, estaria presente no processo de valoração em Nietzsche). Será possível ter Nietzsche simplesmente prorrogando a metafísica no tecnicismo? Não há muito mais de Nietzsche quando Heidegger fala da queda de um pensamento representativo, da diferença? 20 Posteriormente presente no livro Eperons: Les Styles de Nietzsche. Em outra oportunidade, Derrida na Gramatologia ,dedica igualmente uma breve passagem ao problema da leitura de Heidegger, onde procura salvar Nietzsche dessa interpretação, compreendendo este como o libertador do significante e de uma escritura sem verdade original- pg. 23 21 Heidegger, M.- Nietzsche I- pg. 197/ 198 22 Klossowski, em uma nota sobre a semiótica de Nietzsche na obra Nietzsche e o Círculo Vicioso, alerta igualmente para o engajamento nietzschiano em uma escrita que não esteja em conformidade com a coerência do intelecto, mas em coerência com os processos pulsionais. Daí os aforismos serem a forma mais evidente desse projeto.- ver pg. 283 23 Derrida, J.- La Question du Style in: Nietzsche Ajourd´hui? - pgs. 235- 270 24 Heidegger, M.- Identité et Différence in: Questions I- pg. 275 EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 7 REVISTA PHILOSOPHICA Nº 26 (2003) Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso Referências Bibliográficas: CRAGNOLINI, M.- Nietzsche por Heidegger: Contrafiguras para uma Perda in: Cadernos Nietzsche 10- Discurso Edit.- 2001 DELEUZE, G.- Différence et Repetition- PUF- 2000 - Nietzsche (org.-Cahiers de Royaumont)- Édit. De Minuit- 2000 DERRIDA, J.- La Question du Style in: Nietzsche Ajourd´hui- 10/18- 1973 - Gramatologia- Perspectiva- 1999 KLOSSOWSKI, P.- Nietzsche e o Círculo Vicioso- Pazulin- 2000 FINK, E.- A Filosofia de Nietzsche- Presença- HEIDEGGER, M.- Nietzsche I/ II- Destino- 2000 - Cartas Sobre o Humanismo- Moraes- 1991 - Questions I- Gallimard- LOUETTE, J.F- Sartre Contra Nietzsche- PUG- 1996 NIETZSCHE, F.- Assim Falou Zaratustra- Circulo doLivro – 1974 - Além do Bem e do Mal- Companhia das Letras- 2000 - Fragments Posthumes X/ 1884- Gallimard- 1982 SARTRE, J.P- A Náusea- Nova Fronteira- 2000 SMITH, D.- Transvaluations: Nietzsche in France 1872-1972- Clarendon Press- 1996 VATTIMO, G.- As Aventuras da Diferença- Edições 70- 1988 EDUARDO NASSER / A Leitura Heideggeriana Do Eterno Retorno De Nietzsche 8
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