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Remontemos de Foucault a Espinoza MICHEL PÊCHEUX

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REMONTEMOS
(1)
 DE FOUCAULT A SPINOZA
(2)
 
Michel Pêcheux (1977) 
 
 
 Língua, ideologia e discurso: nem Marx, nem Lênin, nem nenhum desses que se 
costuma chamar de “os clássicos do marxismo” produziu qualquer estudo politicamente 
organizado sobre esse assunto. De fato, os pensadores políticos do marxismo-leninismo 
detiveram-se, nessa questão, em apontamentos de ordem muito geral (por exemplo, naquilo 
que podemos encontrar em Gramsci), de sorte que, depois de Voloshnov até os nossos dias, 
pode-se dizer que essa questão foi, e permanece sendo, essencialmente, objeto dos 
universitários progressistas (poucos lingüistas, e, sobretudo, dos historiadores e dos 
filósofos). É o caso hoje, na França, onde se tem falado de uma “escola francesa de análise 
do discurso”, como um novo domínio de pesquisa universitária. 
 Para mim, toda a questão se concentra, aqui, sobre a relação entre prática política e 
prática universitária: é o momento de perceber que o termo “universidade” tem tudo a ver 
com o termo “universalidade”, no sentido de generalidade abstrata inutilizável. Eu coloco 
essa questão, sem me excluir daqueles a quem me dirijo: estamos certos de que, com a 
“análise do discurso”, nós não estamos, uma vez mais, na presença de alguma coisa que, 
sobre o terreno particular da linguagem, assemelha-se a uma dialética universal que tem a 
propriedade, particularmente universitária, de produzir sua própria matéria? 
 Portanto, as questões abordadas situam-se constantemente no nível prático: 
restringe-se a pensar no que se passa no trabalho político sobre os textos (através da sua 
redação, sua leitura, sua discussão, etc.): não se vê imediatamente aparecerem as 
interrogações sobre o sentido daquilo que é dito ou escrito, subjacente às proposições de 
retificação, clarificação, simplificação, etc., de maneira que, assenhorando-se do espaço de 
uma discussão, os militantes adotam a postura de especialistas da linguagem: eles fazem 
distinções entre a forma e o fundo, entre a palavra e a coisa, eles invocam o espírito do 
texto, eles falam de contexto, de ressonância e de conotação, de propósito da introdução ou 
da tomada de tal e tal termo ou expressão, eles se referem às intenções (aquilo que “faz 
fazer”) e de tomadas ( as massas “tomam” uma posição sobre tal problema; elas 
“compreendem” e “não compreendem” tal formulação, etc.). Isso explica que os militantes 
sejam, em geral, levados a escutar as intervenções daqueles que, sob tal ou tal bandeira, se 
apresentam como os especialistas “full-time” do discurso político. Portanto, não se trata de 
intervenções puramente técnicas: uma certa maneira de tratar os textos está 
inextricavelmente imbricada em uma certa maneira de fazer política. Não podemos 
pretender falar de discursos políticos sem tomar simultaneamente posição na luta de 
classes, já que essa tomada de posição determina, na verdade, a maneira de conceber as 
formas materiais concretas sob as quais as “idéias” entram em luta na história. 
 
(1)
 NOTA DA TRADUTORA: O verbo “remontar” tem os seguintes significados: a) ir buscar a origem; 
volver ao passado; b) reestabelecer, elevar; c) montar novamente, reequacionar, consertar. Há, ainda, o 
sentido de aquisição (de cavalos para suprir o exército). Acho que Pêcheux está brincando também com esse 
sentido, pois em certo momento diz que sua leitura dos dois filósofos (Spinoza e Foucault) é “cavalière” 
(brusca ou cavaleira). Acho que o título, irônico, tem todos esses sentidos. 
(2)
 NOTA DA TRADUTORA: Texto inédito em francês. Trata-se da comunicação de Pêcheux no Simpósio 
do México sobre “Discurso Político: teoria e análises”, realizado de 07 a 11/11/77. Há uma versão deste texto 
em espanhol em: Toledo, M. Monforte (ed.). O discurso político. México: Nueva Imagem, 1980, p. 181-200. 
 Esse ponto pode parecer evidente para os militantes marxistas-leninistas. O mesmo 
não se pode dizer, forçosamente, do ponto de vista dos especialistas da linguagem, 
habituados a pensar seu objeto nos quadros das filosofias espontâneas da lingüística. 
 Tocando, aqui, na relação velada e contraditória que as teorias da linguagem 
mantêm com a história, eu direi, simplificando muito uma análise já feita em outro 
trabalho
(3)
, que o estado atual da lingüística apresenta uma certa relação com suas origens, 
que se exprime persistentemente em várias correntes. 
 Uma primeira corrente, que podemos qualificar de lógico-formalista, tem, desde as 
origens da lingüística, como preocupação constante, representar a língua como um sistema 
em funcionamento (desde os estóicos, que foram os primeiros gramáticos, passando por 
aqueles que se chamou no séc. XVIII de “modistas”, a gramática de Port-Royal e a 
gramática clássica). A palavra de ordem teórica dessa primeira corrente poderia se resumir 
nos termos de gramática, de uma parte, e universal de outra parte, o conjunto repousando 
sobre uma concepção filosófica segundo a qual a língua é uma estrutura atemporal, 
garantida, por sua vez, pela estrutura do ser e do pensamento. 
 Uma segunda corrente é aquela da mudança social na história, da qual encontramos 
os primeiros traços nos estudos teológicos críticos dos textos sagrados (Talmud, Pais da 
Igreja, etc.) e que se funda sobre os trabalhos da filologia, os trabalhos dos neo-gramáticos 
e os da lingüística comparada: a concepção filosófica subjacente a esta segunda corrente 
coloca, contrariamente à primeira, que as línguas se formam, se diferenciam, evoluem e 
morrem historicamente, como as espécies vivas: a filologia, pesquisa das filiações, das 
derivações e desaparecimentos, parece constituir a forma clássica dessa segunda tendência. 
Os trabalhos etno e sociolingüísticos atuais são, de certa forma, seu prolongamento 
profundamente transformado. 
 Ao lado dessas duas correntes principais, pode-se discernir uma terceira tendência, 
que eu chamarei de aquela dos riscos da fala: encontram-se suas origens históricas na 
sofística e na eurística gregas; vemo-la reaparecer na disputatio da Idade Média, que se 
constituía em uma espécie de esporte verbal no qual os estudantes punham-se a discutir, 
principalmente fora do ensino (ex cathedra). Reencontramos aspectos dessa tendência, 
contemporaneamente, nos trabalhos da escola analítica anglo-saxônica. A filosofia 
subjacente a essa terceira corrente concerne o uso da fala como uma “dialogia” onde dois 
sujeitos se confrontam sobre o terreno da máscara
(4)
 e do jogo verbal: “o homem é o lobo 
do homem”, conforme o escrito na capa da revista Semantikos, que se inscreve largamente 
nesta corrente. 
 Pode-se verificar, a propósito das correntes lingüísticas que enumerei, a tese que 
avancei anteriormente, a saber, que elas tomam filosoficamente posição na luta de classes 
através da sua referência implícita ou explícita à história. Com efeito: 
- a tendência lógico-formalista coloca, filosoficamente, que a história não existe: o 
espírito humano é concebido como a-historicamente transparente a si mesmo, sob a 
forma de uma teoria universal das idéias que aparece, assim, como uma pseudo-
ciência do todo, capaz de dirigir as origens e os fins.A luta ideológica de classes, 
 
(3)
 NOTA DA TRADUTORA: M. Pêcheux refere-se ao seu livro Les Vérités de La Palice (Semântica e 
Discurso). No mesmo ano em que escreveu Remontemos... , Pêcheux volta a esta questão das correntes da 
lingüística no artigo escrito em co-autoria com F. Gadet, cujo título é “Há uma via para a lingüística fora do 
logicismo e do sociologismo?”. 
(4)
 NOTA DA TRADUTORA: Pêcheux usa aqui a palavra feinte, que tanto pode significar “esgrima” como 
“fingimento”, “máscara” 
portanto,não existe mais, no sentido forte do termo: ela é tomada, na verdade, como 
conflitos lógico-éticos e psicológicos que participam da essência humana da 
sociedade; 
- a segunda corrente contém uma tese filosófica que eu qualificarei brevemente de 
historicista: ao contrário da precedente, ela coloca a existência da história, mas sob 
a forma da diferença e das transformações sociais, sob a modalidade das 
heterogeneidades empíricas que recobrem a homogeneidade tendencial subjacente à 
sociedade humana. O filósofo Lucien Seve exprime à sua maneira essa concepção 
historicista das lutas de classes, quando afirma: “ A política passará, mas a 
psicologia não passará”. Ele acentua, com efeito, que a heterogeneidade conflitual 
que marca a divisão política é historicamente contingente, de acordo com aquilo que 
L. Sève chama de a essência social do homem
(5)
; 
- uma palavra somente sobre aquilo que eu denominei a terceira tendência, aquela do 
“risco da fala”, para dizer que ela não tem a autonomia filosófica das outras duas 
primeiras tendências, de maneira que ela faz alianças teóricas tanto com uma quanto 
com a outra, sobre a base de uma concepção filosófica do afrontamento dialógico, 
que autoriza, por sua vez, uma teoria conflitual da história como duelo-dual (duel) e 
uma dissolução da história no dueto-dual (duo)
(6)
. 
 
Eu concluirei esse breve apontamento com algumas constatações: 
1) A filosofia espontânea da tendência lógico-formalista veicula, explicita e 
implicitamente, a posição de classe da ideologia burguesa fundada sobre a 
eternidade antropológica jurídico-moral do triângulo sujeito-centro-sentido; 
2) A tendência historicista (e, acessoriamente, certos aspectos da terceira 
tendência), colocando filosoficamente a história como série de diferenças, 
deslocamentos (décalages), mudanças, etc. subordina, de fato, a divisão política 
(que “passará”) à unidade antropológica (que “não passará”): essa segunda 
posição filosófica, opondo-se diametralmente ao eternitarismo da primeira, 
entende a dominação como forma de interiorização. A posição de classe que 
resulta dessa invasão ideológica constitui a forma teórica do reformismo, que 
subordina a divisão à unidade, e pensa a contradição como resultado do 
encontro de contrários preexistentes, separando, assim, a existência das classes 
e a luta das classes
(7)
 
3) Ao analisar as filosofias espontâneas veiculadas pelas principais correntes 
lingüísticas, não pretendo condenar o conjunto dos trabalhos, os resultados 
obtidos, os conceitos e os problemas, mesmo dando-lhes o rótulo de “burguês” 
 
(5)
 “ O materialismo histórico é a base da ciência das relações sociais, essência concreta do homem.” (L. Sève, 
Marxismo e teoria da personalidade. Paris: Ed. Sociales, 1969, p. 174). 
(6)
 NOTA DA TRADUTORA: Pêcheux faz um jogo de palavras com “duel” (que significa tanto “duelo” 
quanto “dual”) e duo (que significa “dueto” ou “dual”): “ une théorie de l´histoire comme duel et une 
dissolution de l´histoire dans le duo” (1990, p. 248) 
(7)
 “Para os reformistas (mesmo que eles se declarem marxistas), não é a luta de classes que está no primeiro 
plano: são as classes... as classes existem antes da luta de classes, independentemente da luta de classes e a 
luta de classes existe somente depois.” (L. Althusser. Resposta a John Lewis. Paris: Maspero, 1973, p. 28-29). 
Althusser acrescenta: “A tese marxista-leninista, ao contrário, coloca a luta de classes no primeiro plano. 
Filosoficamente, isso significa: ela afirma o primado da contradição sobre os contrários que se afrontam, 
que se opõem.” (idem) 
ou de “reformista”: as práticas de uma ciência não coincidem jamais totalmente 
com as filosofias espontâneas que elas envolvem (enveloppent) visto que certos 
acontecimentos teóricos da lingüística (como a revolução epistemológica 
saussureana) induzem a uma configuração de forças filosóficas simultâneas 
(em presença). Trata-se de acentuar que essas posições filosóficas têm fortes 
ressonâncias concretas nos trabalhos lingüísticos de diversas correntes e de 
alertar politicamente àqueles que desejam diretamente “aplicar a lingüística” ao 
materialismo histórico a fim de estudar as ideologias e os discursos políticos: 
uma mudança de terreno se impõe, se quiser-se evitar que o universitário não se 
sobreponha (domine) ao político. 
 
É sobre esse ponto que eu gostaria de propor algumas reflexões, sem pretender que 
elas realizem a mudança de terreno em questão: já me darei por satisfeito se elas 
contribuírem para mostrar a sua possibilidade e precisar algumas de suas condições. 
Para isso, farei um novo percurso em torno do marxismo, para interrogar aquilo que 
podemos chamar o trabalho das origens a propósito da questão que nos ocupa: essa 
trajetória passa por dois filósofos não-marxistas, mas nos quais o não-marxismo é 
um pouco diferente, já que a teoria marxista estava nos limbos da história no caso 
do primeiro, desculpa que não existe no caso do segundo. Trata-se de dois espíritos 
fortes, apaixonados pela luta material entre as idéias, dois heréticos obstinados, em 
que o primeiro terminou proscrito, banido pelos dirigentes de sua comunidade que 
não haviam entendido muito bem aonde ele queria chegar; quanto ao segundo, que 
não pára de sonhar
(8)
 com seu banimento, dá prosseguimento a sua carreira no 
Collége de France em Paris. 
Entre Spinoza e Michel Foucault, há, certamente, três séculos de história política, 
marcados pelo desenvolvimento do capitalismo e os inícios teóricos e práticos do 
socialismo. Mas há também uma diferença, na maneira do fazer a política, quando 
se é aquilo que se convencionou chamar um “intelectual”. Eu pretendo mostrar, 
confrontando alguns pontos do Tratado das autoridades teológicas e políticas com 
a Arqueologia do Saber, que a relação entre Spinoza e Foucault toca diretamente no 
destino teórico daquilo que se denomina hoje como “o discurso”, pela relação 
ambígua, que se entrelaça nesse objeto, entre o político e o universitário. 
 
O primeiro ponto concerne a relação com a lingüística ou aquilo que há em seu 
lugar. No Tratado, Spinoza aborda a questão da interpretação dos textos sagrados e 
procura determinar as condições sob as quais eles foram, ou não, desviados de seu 
sentido primitivo, desviados ou não de sua função primeira pelo aparelho religioso. 
Isso o conduz a distinguir língua e discurso, na terminologia de seu tempo (capítulo 
XII, “Da interpretação das escrituras”): 
 
A pessoa não tem jamais proveito em mudar o sentido de uma palavra, ao passo 
que tem freqüentemente proveito ao mudar o sentido de um texto 
 
Spinoza expõe as razões pelas quais a primeira operação é, para ele, dificilmente 
realizável: todos os autores que empregaram tal palavra em tal sentido seguiram seu 
 
(8)
 NOTA DA TRADUTORA: Pêcheux utiliza a palavra “rêver”, que significa, também, “delirar”. 
natural e seu pensamento; ele acrescenta que, como o tesouro da língua é 
propriedade tanto do povo quanto dos eruditos, é pouco provável que os “sábios” 
mudem (isto é, corrompam) a significação das palavras; ao contrário, eles mudam o 
sentido de certos textos. Spinoza conclui: 
 
Por todas essas razões nós nos convencemos de que uma pessoa não corrompe 
uma língua, ao passo que é possível corromper o pensamento de um escritor, 
mudando o texto ou o interpretando mal. 
 
De sua parte, Michel Foucault comenta a relação entre o estudo lingüístico e o 
trabalho “arqueológico” sobre os conjuntos de textos, afirmando: 
 
Mesmo que ela tenha desaparecido há muito tempo, mesmo que ninguém fale 
mais e que tenha sido restauradaa partir de raros fragmentos, uma língua 
constitui sempre um sistema para enunciados possíveis – um conjunto finito de 
regras que autoriza um número infinito de desempenhos. O campo dos 
acontecimentos discursivos, em compensação, é o conjunto sempre finito e 
efetivamente limitado das únicas seqüências lingüísticas que tenham sido 
formuladas; elas bem podem ser inumeráveis e podem, por sua massa, ultrapassar 
toda capacidade de registro, de memória ou de leitura; elas constituem, 
entretanto, um conjunto finito. Eis a questão que a análise da língua coloca a 
propósito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi 
construído e, conseqüentemente, segundo que regras outros enunciados 
semelhantes poderiam ser construídos? A descrição de acontecimentos do 
discurso coloca uma outra questão bem diferente: como pareceu um determinado 
enunciado, e não outro em seu lugar?
(9) 
 
Segundo ponto, concernente àquilo que podemos denominar as relações entre 
enunciados. 
A propósito da fala de Moisés (“Deus é um fogo”), Spinoza interroga-se sobre o que 
exatamente quer significar Moisés, e expõe o meio que, para ele, permite sabê-lo 
(Capítulo VII): 
 
Para saber se Moisés crê verdadeiramente que Deus é um fogo, ou se ele não o 
crê, não é suficiente tirar conclusões a partir da idéia de que isto esteja de acordo 
com a razão ou que a contradiz., mas é necessário relacioná-la com outras 
palavras de Moisés. E já que Moisés, em muitas passagens, ensina muito 
claramente que Deus não tem nenhuma semelhança com as coisas visíveis que 
habitam o céu, a terra e a água, nós devemos concluir que essa fala em 
particular ou todas aquelas do mesmo gênero devem ser compreendidas como 
metáforas; e, se ele descarta, assim, a possibilidade do sentido literal, é necessário 
pesquisar se essa fala em particular - “Deus é um fogo”- admite um sentido outro 
que o sentido literal, isto é, se a palavra “fogo” significa outra coisa que o sentido 
literal.” 
 
 
(9)
 FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, pág. 30-31. 
E Spinoza chega a esta constatação (capítulo V): 
 
Como a palavra “fogo” se toma também por “cólera” e por “ciúme, inveja”, é 
fácil de conciliar entre elas as frases de Moisés e nós chegaremos legitimamente à 
conclusão de que essas duas proposições “Deus é fogo” e “Deus é invejoso” são 
uma e só enunciação.” 
 
De sua parte, Foucault, considerando as relações interiores a um conjunto de 
enunciados, destacados do espaço n-dimensional onde eles se distribuem, propõe 
como tarefa pesquisar: 
 
Uma ordem em seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade, 
posições assinaláveis em um espaço comum, funcionamento recíproco, 
transformações ligadas e hierarquizadas.” (1990, p. 43) 
 
A análise dos acontecimentos discursivos através do pululamento literal dos 
enunciados implica, assim, para Foucault, a localização do que ele chama de 
“formas de repartição” e de “sistemas de dispersão” que governam as relações entre 
os enunciados. Isso autoriza-o a propor a seguinte definição: 
 
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, 
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de 
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma 
regularidade (uma ordem, uma correlação, posições e funcionamentos, 
transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação 
discursiva. (1990, p. 43) 
 
 
 Terceiro ponto, concernente à determinação do discurso pelas relações de “lugar”. 
 Spinoza explica que, quando lemos um livro que narra acontecimentos incríveis, e 
que fala de objetos não perceptíveis ou que desenvolve narrações obscuras, não adianta 
procurarmos compreender o sentido daquilo que é dito, se nós não pudermos determinar 
quem é o autor e em quais circunstâncias o livro foi escrito. (cap. VII) 
 De sua parte, Foucault coloca as modalidades enunciativas enquanto condições da 
existência mesma dos discursos (quem fala? Com que direito aquele que fala toma 
palavra? etc.) como questões que determinam as condições de existência do enunciado em 
um conjunto de enunciados. E Foucault acrescenta: 
 
Um indivíduo, um só e mesmo indivíduo, pode ocupar, a cada vez, em uma mesma 
série de enunciados, diferentes posições e desempenhar o papel de diferentes 
sujeitos. 
 
 Pode-se comentar dizendo que os deslocamentos do sujeito em um tratado 
matemático nada tem a ver com a maneira como esses deslocamentos se efetuam em um 
romance, ou em um discurso político. 
 
Quarto e último ponto, sobre aquilo que se pode chamar de regime de 
materialidade do imaginário. Spinoza explica que narrativas muito semelhantes podem 
aparecer em livros diferentes, sob formas desfiguradas e irreconhecíveis. Sobre a questão 
do discurso profético, ele indica (cap. II, “Os profetas”): 
 
As diferenças relativas à imaginação consistem no fato de que se o profeta é 
refinado, ele perceberá o pensamento de Deus em um estilo igualmente refinado; 
se ele está confuso ele o perceberá também confusamente; da mesma forma, 
diante de revelações representadas por imagens, se o profeta é um camponês as 
imagens serão bois e vacas; se ele for um soldado elas serão chefes e armas; 
enfim, se ele é um homem da corte, ele as representará através do trono de um rei 
e de outras coisas semelhantes. 
 
Em outros termos, Deus não tem um estilo próprio: pela boca dos profetas, ele fala 
diferentemente a mesma coisa; ele pode também designar coisas diferentes por meio das 
mesmas palavras. 
De sua parte, Foucault aborda essa questão da identidade e da divisão do sentido, 
por um caminho completamente diferente: 
 
A afirmação de que a terra é redonda e de que as espécies evoluem, não 
constituem o mesmo enunciado antes e depois de Copérnico, antes e depois de Darwin, e 
não foi no interior dos enunciados que as palavras mudaram de sentido, foi a relação 
dessas proposições com outras proposições, foram suas condições de utilização e de 
investimento, foi o campo de experiência, de verificações possíveis de problemas a 
resolver ao qual podem se referir. 
 
A dupla leitura, muito brusca
(10)
, que eu venho efetuando, pode levar a pensar (e 
isso será justo) que, no fundo, Spinoza e Foucault procedem, diante dos textos, da mesma 
maneira, a despeito das diferenças terminológicas e dos meios “técnicos” evidentemente, e 
também tendo em conta aquilo que se pode chamar as aderências antropológicas de 
Spinoza (sobre o sentido literal das palavras, sobre o autor, etc) que constituem, para o 
pensamento materialista atual, espécies de “ingenuidades”. 
Mas as ”ingenuidades” de um homem como Spinoza são paradoxais: pois pode-se 
dizer que com os meios teóricos de seu tempo, Spinoza avança lá onde Foucault 
permanece, hoje em dia, um pouco bloqueado
(11)
: para além da identidade relativa dos 
procedimentos, o político provoca uma diferença de prática. 
Eu me explico, sublinhando que os procedimentos de análise spinozistas se 
inscrevem em uma prática política que se realiza através do Tratado: eu direi que o Tratado 
trabalha politicamente as condições da luta do ateísmo no interior da religião judaica; 
tomando como matéria primeira a posição teológica que interpreta a palavra de Deus e 
 
(10)
 NOTA DA TRADUTORA: Pêcheux usa a palavra “cavalière”, que tem dois sentidos: “brusca” ou 
“cavalheira”. Há ironia, tanto que D. Maldidier (Re-ler...) utiliza essa mesma expressão quando comenta essa 
leitura que Pêcheux faz de Foucault. 
(11)
 Eu assinalo sobre esse pontoo excelente estudo crítico de Dominique Lecourt sobre a Arqueologia do 
Saber, publicado em La Pensée, em agosto de 1970, nº 152, p. 69-87, republicado em Pour une critique de 
l´épistémologie, Maspero, Paris, 1972. NOTA DA TRADUTORA: tradução em português em FOUCAULT, 
M. et al. O Homem e o Discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. 
lendo Seu pensamento e Sua vontade, Spinoza transforma essa matéria primeira, a ponto de 
assinalar à religião o estatuto de materialidade imaginária determinada pelas condições 
materiais da existência dos homens. 
Assim, o trabalho de Spinoza constitui uma espécie de antecedente de uma teoria 
materialista das ideologias, sob uma forma rudimentar que contém, entretanto, o essencial, 
a saber, a tese segundo a qual quanto menos se conhecem as causas, mais se é submetido a 
elas. 
Por meio desse trabalho de transformação que parte da teologia para chegar ao 
direito e à política, Spinoza envia a todos os teólogos do mundo o mais magnífico recado 
que eles jamais haviam recebido: e o que é mais extraordinário é que ele o envia em nome 
da religião, falando de religião! 
Se não há, então, como já foi abundantemente constatado, uma teoria da contradição 
explicitamente formulada em Spinoza, há, entretanto, uma elaboração espontânea da 
contradição, que constitui uma extraordinária lição política que concerne diretamente nosso 
propósito: pois se o primeiro ataque conseqüente contra a ideologia religiosa e contra a 
religião é largamente efetuada em nome da ideologia religiosa , através dela e apesar dela, 
isso significa que a ideologia religiosa (e o discurso que a realiza) não pode de nenhuma 
maneira ser tomada como um bloco homogêneo, idêntica a si mesma, com seu núcleo, sua 
essência, sua forma típica. 
Esse ponto coloca em causa uma evidência, segundo a qual, como exprime o lógico 
John R. Searle (Os atos de fala): 
 
Se um predicado é verdadeiro para um objeto, ele é verdadeiro para tudo o que é 
idêntico a esse objeto, independentemente da expressão utilizada para referir a esse 
objeto. Chamamos a isso de ”o axioma de identidade”. 
 
No caso particular da religião, o Tratado mostra que o “axioma de identidade” não 
se aplica ao objeto ideologia; e toda a prática da luta de classes sobre o terreno da ideologia 
o confirma: uma ideologia é não-idêntica a si mesma, ela não existe a não ser sob a 
modalidade da divisão, ela não se realiza senão dentro da contradição que organiza nela a 
unidade e a luta dos contrários. 
Nessas condições, parece impossível colocar o “discurso da ideologia religiosa”, “o 
discurso da ideologia política”, etc. como tipos essenciais, ou mesmo de subdividir cada 
uma delas em uma tipologia, mesmo que seja uma tipologia das “formações discursivas”. 
Este termo, emprestado de Foucault, parece-me que pode ser de grande utilidade, mas com 
a condição expressa de reequacionar aquilo que, em Foucault, governa o seu uso, para 
tentar retificá-lo. 
No estudo de Dominique Lecourt – que eu mencionei há pouco – é mostrado que 
Foucault permanece, de uma certa maneira, bloqueado, pela impossibilidade de pensar e de 
operacionalizar a categoria da contradição. Esse recalque teórico e político não produz, 
evidentemente, em Foucault, os mesmos efeitos que a sua ausência literal (que é uma 
presença subterrânea) desta categoria em Spinoza, pois ninguém pode ter impunemente um 
discurso paralelo ao materialismo histórico sem encontrá-lo no contrafluxo. O pensamento 
de Foucault, pretendendo mantê-lo à distância, não escapa a essa regra: a ausência da 
categoria da contradição em Foucault é responsável pelo retorno de noções como aquelas 
de estatuto, norma, instituição, estratégia, poder, etc. que contornam indefinidamente a 
questão do poder do Estado como lugar da luta de classes, como o faz toda a psico-
sociologia anglo-saxônica na qual todas essas noções são largamente usadas. 
Está aí o liame político do pensamento de Foucault com o que eu chamei de 
reformismo teórico.
(12)
 
Vejamos o que significa o fato de nem todos os críticos acolherem Foucault como 
um universitário crítico. Isso não ofusca o imenso interesse de seus trabalhos, nos quais o 
marxismo-leninismo pode encontrar surpreendentes objetos de reflexão: pela sua maneira 
de fazer falarem os textos. Foucault descortina a possibilidade de uma análise desses 
“regimes de materialidade do imaginário” de que já falei anteriormente; ele está muito 
próximo dos interesses do marxismo-leninismo – e nisso constitui, justamente, a 
contradição própria de Foucault, invisível e sem dúvida insuperável para ele. 
Não se trata, portanto, de se desembaraçar de Foucault, acentuando a pecha 
reformista à qual ele parece conduzir; trata-se mais de desenvolver a categoria marxista-
leninista de contradição no sentido da apropriação, para a teoria e a prática do Movimento 
operário, daquilo que o trabalho de Foucault contém de materialista e de revolucionário. 
Eu posso apenas (nos limites do tempo que aqui possuo) avançar algumas hipóteses 
nessa perspectiva. 
O ponto decisivo me parece ser o de tornar capaz de pensar a unidade dividida das 
duas teses seguintes: 
1) Em todo modo de produção regido pela luta de classes, a ideologia 
dominante (ideologia da classe dominante) domina as duas classes 
antagonistas; 
2) A luta de classes é o motor da história, e produz a história da luta 
ideológica das classes 
 
Essas duas teses parecem se contradizerem, como, por exemplo, na 
coexistência do estado de fato em contradição com a revolução: trata-se, portanto, 
de uma “falsa-contradição”, que repousa sobre uma concepção errônea da ideologia 
dominada. 
Tomemos o exemplo das relações de produção capitalistas: a burguesia e o 
proletariado formam-se juntos dentro do modo de produção capitalista, sob a 
dominação da burguesia, e, em particular, da ideologia burguesa. O proletariado não 
pertence, então, a um outro mundo que contém como um germe independente sua 
própria ideologia, portanto uma essência ideológica de certa forma entravada, 
refutada, dominada, pronta a sair armada como Athena e a dominar, a seu tempo, o 
 
(12)
 Em um entrevista recente, Foucault desvela parcialmente essa ligação, ao propor “uma lógica que se 
libertará dos constituintes esterilizantes da dialética”: “Para pensar o liame o social, o pensamento político 
“burguês” do séc. XVIII estabelece a forma jurídica do contrato. Para pensar a luta, o pensamento 
“revolucionário” do séc. XIX estabelece a forma lógica da contradição: e aqui, sem dúvida, não se faz 
melhor do que lá. Em conseqüência, os grandes estados do séc. XIX estabelecem um pensamento estratégico, 
por isso as lutas revolucionárias pensaram sua estratégia de um maneira muito conjuntural, e ensaiam hoje 
inscreverem-se sobre o horizonte da contradição.” E Foucault prossegue um pouco mais: “ Parece-me que 
toda essa intimidação que visa ao medo da reforma está ligada à insuficiência de uma análise estratégica 
própria à luta política – à luta no campo do poder político. Este me parece ser, justamente, o papel da teoria 
hoje: não de reformular a sistematicidade global que coloca tudo em causa; mas analisar a especificidade dos 
mecanismos de poder, descobrir as ligações, as extensões, edificando, pouco a pouco, um saber estratégico.” 
(“ Poderes e estratégias”. Entrevista com Michel Foucault. Revista Revoltes Logiques, nº 4, p. 96-97, 1977, 
Paris.) 
futuro. Esta é uma falsa concepção da ideologia dominada: não se trata, em 
realidade, somente de uma dominação que se constitui do exterior, se assim 
podemos dizer, como uma tampa burguesa sobre a marmita das idéias 
revolucionárias, mas também, e sobretudo, de uma dominaçãointerna, quer dizer, 
de uma dominação que se manifesta na própria organização interna da ideologia 
dominada. Isso significa simultaneamente que o processo histórico, por meio do 
qual a ideologia dominada tende a se organizar “sobre sua própria base” enquanto 
ideologia proletária, permanece paradoxalmente em contato com a ideologia 
burguesa, precisamente na medida em que ela realiza sua destruição. 
Trata-se, então, de pensar, a propósito da ideologia, a contradição de dois 
mundos em um só já que, segundo a afirmação de Marx, “o novo nasce dentro do 
velho”, e que Lênin reformulou dizendo: “o um se divide em dois”. 
Isso nos leva a afirmar que o marxismo-leninismo concebe, necessariamente, 
a contradição como desigual (inégale)
(13)
, o que, naquilo que concerne a ideologia, 
corresponde ao fato de que os Aparelhos ideológicos do estado são por natureza 
plurais: eles não formam um bloco ou uma lista homogênea, mas existem dentro de 
relações de contradição-desigualdade-subordinação tais que suas propriedades 
regionais (sua especialização “dirigente de si” [“allant de soi”] nos domínios da 
religião, do conhecimento, da moral, do direito, da política, etc.) contribuem 
desigualmente para o desenvolvimento da luta ideológica entre as duas classes 
antagonistas, intervindo desigualmente na reprodução ou na transformação das 
relações de produção. 
Isso nos conduz a pensar que toda formação ideológica deve 
necessariamente ser analisada de um ponto de vista de classe e de um ponto de vista 
“regional”, e pode ser que isso explique que toda ideologia seja dividida (não 
idêntica a si mesma). É porque as formações ideológicas têm um caráter regional 
que elas se referem às mesmas “coisas” de modo diferente ( Liberdade, Deus, a 
Justiça, etc.), e é porque as formações ideológicas têm um caráter de classe que elas 
se referem simultaneamente às mesmas “coisas” (por exemplo, a Liberdade) sob 
modalidades contraditórias ligadas aos antagonismos de classes. 
Nessas condições, parece que é na modalidade pela qual se designam (pela 
fala ou pela escrita) essas “coisas” a cada vez “idênticas” e divididas, que se 
especifica aquilo que se pode, sem inconvenientes, chamar de “formação 
discursiva”, com a condição de se entender bem que a perspectiva “regional” das 
“formas de repartição” e dos “sistemas de dispersão” de Foucault se encontram 
assim reordenados à análise das contradições de classe. 
Se essas hipóteses têm alguma validade, elas resultam, necessariamente, 
numa transformação do conceito de “formação discursiva”, que afeta –
conseqüentemente- a prática mesma da análise do discurso: caracterizar uma 
formação discursiva classificando-a, entre outras, por qualquer tipologia que seja, é 
estritamente impossível. É necessário, ao contrário, definir a relação interna que ela 
estabelece com seu exterior discursivo específico, portanto, determinar as invasões, 
os atravessamentos constitutivos pelas quais uma pluralidade contraditória, desigual 
e interiormente subordinada de formações discursivas se organiza em função dos 
 
(13)
 Este ponto está desenvolvido em um recente texto de Althusser intitulado “Soutenance d´Amiens”, 
publicado na coletânea Positions. Paris: Editions Sociales, 1976, particularmente nas pág. 148-149. 
interesses que colocam em causa a luta ideológica de classes, em um momento dado 
de seu desenvolvimento em uma dada formação social. 
Atendido esse objetivo, será possível, verdadeiramente, remontar de 
Foucault àquilo que eu chamarei, o spinozismo de nosso tempo! 
Uma última consideração: 
Marx e Engels, como disse no início, não desenvolveram uma “teoria das 
ideologias”, nem, muito menos, uma “teoria do discurso”. O que não os impediu de 
dedicarem boa parte de suas vidas lendo e confrontando politicamente uma massa 
enorme de tratados, panfletos, livretos, declarações, programas e manifestos. É 
sobre a base desse trabalho de leitura política que eles puderam escrever o que 
escreveram, sem dispender tempo em explicitar as modalidades de sua leitura... 
Deixaram, entretanto, os vestígios dessa leitura. 
Eu mencionarei, somente, no final do Manifesto do partido comunista, essa 
extraordinária lição, breve mas fulgurante, que Marx e Engels nos deixaram a 
propósito do que eles chamam “a literatura comunista e socialista”, isto é, o 
conjunto do material de reflexão e de propaganda produzido, na época na Europa, 
sobre a questão política da revolução. 
Relendo essas páginas, pode-se ver como eles distinguem, no fusionamento 
dessa “literatura”, o jogo contraditório das “formações discursivas” que, através de 
uma série de levantamentos parciais, de importações e traduções, de retomadas, de 
deslocamentos e desfigurações, determinam as formas historicamente variáveis da 
relação entre discurso, ideologia e interesses de classes. Simultaneamente, pode-se 
ver como se deduzem as formas (do sério, da fraseologia, do pedantismo, etc.) que 
se tem a tendência de automatizar no nível do “retórico”: constata-se a que ponto 
Marx e Engels se desinteressam deliberadamente das “intenções” dos autores, e 
destacam, de uma maneira spinozista, aquilo que é dito e escrito para além das 
normas morais da sinceridade ou da hipocrisia, da veracidade, da ficção ou da 
dissimulação. 
A seu modo, eles, assim, trataram “a literatura socialista e comunista” como 
um fragmento da história da ideologia política enquanto processo sem sujeito, e não 
como um afrontamento de sujeitos, falantes e plurais: eles desmancharam, assim, as 
evidências da semântica e da pragmática (que instauram o sujeito como fonte do 
sentido). Saber determinar aquilo que falar quer dizer, sem que isso seja 
imediatamente questão de um sujeito fonte de um sentido: tal é, definitivamente, o 
legado que eles nos deixaram. 
 
(Michel Pêcheux, 1977. Tradução: Maria do Rosário Gregolin) 
 
 
 
 
COMENTÁRIOS DE MALDIDIER SOBRE ESSE TEXTO (EM: 
Re-ler Pêcheux hoje) 
 
 
1977: “REMONTÉMONOS DE FOUCAULT A SPINOZA” 
 
O tom desse texto é freqüentemente detestável e bem característico de uma posição 
de verdade que caracteriza o momento mesmo do tateamento. Ele supõe todo um pano-de-
fundo polêmico sobre o qual eu quero lançar alguma luz. Remontémonos..
(14)
 é o título da 
comunicação que MP fez em novembro de 1977, no simpósio do México intitulado “O 
discurso político: teoria e análises”(15). 
No México, a “análise do discurso francesa” estava bem representada. Além de 
MP
(16)
, lá estavam Marcellesi e Guespin, Robin e Guilhaumou. É hora de retificar aquilo 
que eu, para simplificar, avancei mais acima, e de distinguir três correntes no seio da 
análise do discurso francesa
(17)
. Vamos à história. Régine Robin e Jacques Guilhaumou 
refletindo sobre as relações entre ideologia e discurso, mas confrontados, dentro de sua 
prática de historiadores, com a materialidade complexa dos textos, acentuam os 
intrincamentos das formações discursivas. Eles falam de estratégias discursivas, de 
afrontamentos, de alianças, tentando, sempre que possível, despir esses termos de sua 
acepção psicológica. Sua pesquisa constitui uma terceira corrente na análise do discurso 
francesa. Parece que o debate no México se organiza, grandemente, em torno das três 
posições dos marxistas franceses. Dentro de uma grande violência, que o texto de MP 
reflete. 
Este último, a bem da verdade, ignora as posições dos historiadores analistas do 
discurso, para brandir contra o “inimigo principal”: o historicismo. Identificava-se, sob 
esse termo, a “filosofia espontânea” de uma das tendências que, segundo MP, trabalhavam 
na lingüística. Ele denominou de “tendência histórica” em Les Vérités... e de 
“sociologismo”no texto elaborado com Francoise Gadet. Ela é designada, aqui, como “ 
corrente da mudança social na história”. Sem dúvida, quem está sendo visado, no México, 
são os marxistas que pensam a análise do discurso dentro da sociolingüística
(18)
. A 
 
14
 Em francês, “Remontons de Foucault à Spinoza”. 
15
 É a primeira intervenção de MP na América Latina. Depois, ele foi várias vezes ao México e ao Brasil, 
onde seus trabalhos sobre o discurso são muito conhecidos. Seu modelo de análise do discurso continua a 
inspirar muitas pesquisas no Brasil, no México e na Argentina. Traduções de suas obras têm sido feitas em 
espanhol e em português. 
16
 Michel Plon, menos ligado à análise do discurso no sentido disciplinar da expressão do que à teoria da 
política, apresentou um comunicação centrada sobre a questão da contradição. Entre os franceses, o sociólogo 
Pierre Ansart estava, igualmente, presente. 
17
 Uma história da análise do discurso dita francesa sublinhará o lugar, tomado dentro do campo, pelos 
historiadores marxistas. Régine Robin (abrindo uma problemática do discurso no terreno da história) tem 
papel essencial. Ver a obra coletiva dirigida e prefaciada por Robin: Guilhaumau, Maldidier, Prost, Robin. 
Langage et idéologies: le discours comme object de l´histoire. Les éditions ouvriéres, 1974. Para uma 
descrição das configurações da análise do discurso na França, pode-se reportar ao artigo que eu escrevi com 
Guilhaumou: “Courte critique pour une longue histoire. L´analyse du discours ou les (mal) leurres de 
l´analogie”. Dialectiques, 26, 1979. 
18
 Pode-se ter uma idéia da polêmica reportando-se às atas do simpósio do México: El discurso político. 
Encontra-se lá a comunicação de Marcellesi (“ A contribuição da sociolingüistica ao estudo do discurso 
referência ao filósofo marxista Lucien Sève e a seu livro Marxismo e teoria da 
personalidade sustenta o ataque contra o “reformismo”. Ele se coloca aqui sob a 
invocação de um althusserianismo implacável. 
Mesmo estando fechado ainda dentro de uma carapaça dogmática que nada parece 
poder transpor, Rémontémonos..., do interior mesmo do marxismo, abre pistas novas para 
a teoria do discurso, por meio da reflexão sobre a categoria marxista de “contradição”. 
É ela que governa o texto, e compreende, vamos ver, a singular “retomada” de 
Foucault a Spinoza. “ Volta, dentro do marxismo, para interrogar aquilo que se pode 
denominar as origens” – diz MP que, como vimos, ama os volteios filosóficos. Althusser 
abriu a via de uma leitura marxista de Spinoza. Isto está no pano-de-fundo da teorização 
do “efeito Munchausen” e Les Verités... sublinha a dívida ao filósofo para a retomada da 
expressão spinozista “cause de soi”. A novidade, aqui, seu interesse também, é o face-a-
face textual organizado entre Spinoza e Foucault. A colocação, em paralelo, de citações do 
Tratado das autoridades teológicas e políticas e da Arqueologia do Saber se inscreve, 
para mim, na ordem do júbilo intelectual. Mas essa “leitura cavalheira” – como afirmou o 
próprio MP – só adquire sentido na sua conclusão: “Spinoza avança lá onde Foucault 
permanece hoje um pouco bloqueado”. Em seu tempo, o primeiro propôs “o esboço de 
uma teoria materialista das ideologias”; o segundo, apesar do “imenso interesse de seus 
trabalhos”, está condenado a elidir a questão da ideologia porque ignora a contradição. É 
um Foucault bem maltratado que encontramos aqui! Uma expressão utilizada por 
Dominique Lecourt em 1970, a propósito da Arqueologia do Saber
(19)
 forneceu a fórmula 
que toma o lugar de demonstração. Foucault é acusado de ter um “discurso paralelo”, 
compreendamos, um discurso paralelo àquele do materialismo histórico. Se MP sempre 
teve a sensação de trabalhar não muito longe de Foucault, em 1977 ele acentua sua 
diferença. No entanto, estava próximo o tempo de aparecer a necessidade de, enfim, ler 
Foucault. 
Ele faz vir ao presente a lição de materialismo que nos deu Spinoza. Aos olhos de 
MP, que retrabalha aqui as indicações de Althusser formuladas nos Éléments 
d´autocritique, a análise da ideologia religiosa para Spinoza constitui uma “colocação 
espontânea da contradição”. O primeiro ataque conseqüente contra a ideologia religiosa e 
a religião é efetuada em nome da ideologia religiosa, através dela e apesar dela. A 
conclusão é clara: “Isto significa que a ideologia religiosa (e o discurso que a realiza) não 
pode, de maneira nenhuma, ser compreendida como um bloco homogêneo, idêntico a si 
mesmo, com seu núcleo, sua essência, sua forma típica”. Está aí uma indicação que 
permite retomar o famoso conceito de “formação discursiva”, sempre passível de se 
desenhar em direção às tipologias. Se a expressão foi emprestada de Foucault - como o 
precisa MP - é a ocasião de marcar um uso diferente, de “retificar” a noção foucaultiana. 
No artigo publicado no número 37 de Langages e em Les Verités... aparece a idéia de que 
as formações ideológicas, assim como as formações discursivas que lhes estão ligadas, 
possuem, ao mesmo tempo, um “caráter regional” e um caráter de classe. O primeiro traço 
designa a evidência do domínio de especialização: O Direito, a Moral, O Conhecimento, 
Deus, etc. O segundo remete às posições dentro das relações de produção. Assim se 
 
político”) e seu texto de resposta a MP: “Análise do discurso na França: oposições ou contradições?”. O 
essencial das posições de Marcellesi está já definido no seu artigo “ Analyse de discours à entrée lexicale”, 
Langages, 41, 1976. 
19
 D. Lecourt. “Sur l`Archeologie du savoir. À propos de M. Foucault”. La Pensée, 152, 1970. 
explica, sob a célebre fórmula, que as palavras mudam de sentido segundo as posições 
ocupadas por aqueles que as empregam ou, dito de outra maneira, de uma formação 
discursiva a outra. A reflexão sobre a contradição, que está no centro de Remontémonos... 
opera um deslocamento em direção à questão, nova em sua formulação, de “a identidade e 
a divisão do sentido”. Comentando Spinoza, MP diz belamente: “Deus não tem nenhum 
estilo próprio: pela boca dos profetas, ele fala diferentemente das mesmas coisas; ele pode, 
assim, designar coisas diferentes por meio das mesmas palavras”. Mais ainda do que as 
formações ideológicas, as formações discursivas não podem ser pensadas como um “bloco 
homogêneo”. Elas são “divididas”, não idênticas a elas mesmas. Toda essa reflexão 
permite enxergar sob uma nova luz o problema das ideologias dominadas. Ao contrário de 
uma concepção tradicional, que coloca face a face a ideologia dominante e a ideologia 
dominada, pondo-as em uma relação de exterioridade, MP coloca o acento sobre a 
“dominação interna” da ideologia dominante sobre a ideologia dominada. Uma maneira, 
abstrata, de dizer que é possível ler no interior mesmo do discurso da ideologia dominada, 
na maneira mesmo em que ela se organiza, a dominação da ideologia dominante. 
Por meio de um percurso freqüentemente irritante, Remontemonos... 
incontestavelmente, faz brotar a teoria do discurso. Nos termos da fraseologia marxista, 
anuncia-se um tema novo, aquele da heterogeneidade. O encontro com Jacqueline Authier 
em uma outra conjuntura permitirá reformular as questões de 1977.

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