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O Princípio Responsabilidade Hans Jonas Adaptado da obra de Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung, 1979 SUMÁRIO Cap. 1. A alteração de natureza da acção humana 1. O exemplo da antiguidade 2. Característica das éticas anteriores 3. Novas dimensões da responsabilidade 4. Tecnologia como "vocação " da humanidade 5. Velhos e novos imperativos 6. Formas anteriores de éticas "orientadas para o futuro" 7. O homem como um objecto de tecnologia 8. Dinâmica utópica do progresso técnico e exigências da responsabilidade 9. O esvaziamento da ética Cap. 2. Acerca dos princípios e método 1. Conhecimento ideal e real na ética do futuro 2. Prevalência do prognóstico mau sobre o bom 3. O elemento de aposta na acção humana 4. O dever de assegurar um futuro 5. Ser e dever-ser Cap. 3 Acerca dos fins e do seu estatuto na realidade 1. O instrumento 2. O órgão de soberania 3. O membro corpóreo 4. O órgão do corpo 5. Da realidade à validade: do problema da finalidade ao problema do valor. Cap. 4. O bem, o "dever" e o ser: uma teoria da responsabilidade 1. Ser e dever 2. Teoria da responsabilidade: primeiras distinções 3. Teoria da responsabilidade: pais e estadistas como paradigmas eminentes 4. Teoria da responsabilidade: o horizonte do futuro S. Até que ponto a responsabilidade política se estende para o futuro? 6. Por que não era a responsabilidade central nas antigas teorias éticas? 7. Relação pais-filhos: o arquétipo da responsabilidade Cap. 5 A responsabilidade hoje: o futuro em perigo e ideia de progresso 1. O futuro da humanidade e o futuro da natureza 2. O aspecto portentoso do ideal tecnocrata 3. Quem está mais preparado para contrariar o perigo? 4. Exame das oportunidades abstractas no concreto 5. A utopia do "verdadeiro homem " 6. Utopia e ideia de progresso Cap. 6 Uma critica da utopia e ética da responsabilidade 1. A terra devastada e a revolução mundial 2. Critica do utopismo 3. Da critica da utopia à ética da responsabilidade Cap. 1. A alteração na essência da acção humana As doutrinas éticas e políticas tradicionais carecem de uma séria actualização na medida em que partem de premissas sobre a condição humana que a actualidade alterou profundamente. Estará a condição humana dada de uma vez por todas e de forma inalterável? Será o bem supremo determinável nessa base? O alcance da acção e do poder humano e, por consequência da responsabilidade, foi alterado pelo desenvolvimento de vários poderes. Os novos poderes estão relacionados com o potencial tecnológico moderno e com as deformações ideológicas introduzidas na modernidade. Mudanças na acção exigem mudanças na ética. Não só há novos objectos de acção como também a natureza qualitativamente nova das nossas acções abriu dimensões de relevância sem precedentes. I. O exemplo da antiguidade 1. O aparecimento humano na ordem do cosmos acarreta a criação da sociedade. Uma vez que não dominava as criaturas da natureza, o homem criou nela um enclave e defendeu ~ com leis esse reduto Social. Fraco ao medir-se com outras criaturas, o homem deixava intactas a natureza ambiente e os respectivos poderes regenerativos da água, terra e ar. A.acção humana não alterava a balança de poder entre natureza e o homem. 2. As crises sociais não afectavam a natureza exterior. A cidade estava sujeita aos riscos da fortuna e do acaso, ascensão e queda: os governantes vêm e vão, as famílias prosperam e declinam. A natureza não era objecto da responsabilidade mas só de manipulação limitada. Só no interior da cidade, obra de arte cívica, o homem era limitado pela moralidade. 2. Características das éticas anteriores A ética tradicional movia-se num âmbito restrito por diversos factores. A relação com o domínio extra-humano era eticamente neutra. A acção sobre coisas não relevava do significado ético, atribuído apenas à relação do homem com o homem. A natureza da humanidade era considerada constante. O bom e o mau referia bens próximos. A longo prazo, tudo era considerado destino ou providência. As máximas tradicionais referiam-se sempre ao imediato, em que todos partilham um presente comum. O conhecimento requerido para a acção era o disponível para o bom senso e para a simples prudência, sem necessidade de ciência. Decerto que filósofos como Kant, Descartes e Aristóteles valorizavam o lado cognitivo da moral mas convém ter presente que o escasso poder humano não exigia demasiado dos correlatos morais. 3. Novas dimensões da responsabilidade Tudo isto mudou. O enquadramento tradicional da ética já não abrange a escala contemporânea da acção humana. Claro que as antigas prescrições de caridade, honestidade, virtude, justiça mantêm todo seu valor no dia-a-dia e na relação pessoal. Mas o predomínio crescente da acção colectiva, ou da soma de acção dos indivíduos, modificou a natureza do agente, actos e feitos cujo poderes acrescidos exigem nova responsabilidade. 1. A natureza é um novo objecto de responsabilidade como o mostram as situações sem precedentes resultantes de acções cumulativas e acções irreversíveis denunciadas pela ecologia e não abrangidas pelo enquadramento tradicional da ética. 2. Existe um novo papel do conhecimento na moral. É dever conhecer os dados e adequá-los à escala da acção. O enquadramento antigo da ética não considerava a condição da vida humana nem o futuro da humanidade. 3. Pode-se mesmo falar de direitos da natureza Da medida em que estando a biosfera, como um todo, dependente da acção humana e a ela entregue, tem direito moral a ser bem tratada. Isto significa que o bem procurado não é só humano mas também extra-humano. Este apelo (mudo) da natureza não é só um sentimento porquanto é sancionado pela maneira de ser das coisas. Dado que a tecnologia, por si só, trata a natureza como meio sem lhe atribuir a dignidade de finalidade, tem de existir um poder que a modere atendendo à "sacralidade" da natureza. 4. Tecnologia como “vocação" da humanidade 1. Se antes da revolução industrial, a técnica era um tributo prestado à necessidade, agora é a mais significativa tarefa humana. O homo faber parece ter adquirido o primado sobre o homo sapiens. Nada é mais ameaçador do que este sucesso da tecnologia. Se o predomínio da dimensão fabricante invadiu o domínio da moralidade, agora é preciso restabelecer o equilíbrio. 2. A urbanização tomou-se universal, fazendo desaparecer as fronteiras entre a cidade e o campo. A obra humana alargou-se ao mundo inteiro e a natureza cada vez mais se confina a "reservas naturais". 3. Se a presença do homem no mundo era um dado inquestionável do qual emergia a ideia de obrigação na conduta humana, agora tomou-se um objecto de obrigação. A ética tem de dar um passo atrás, recuar para as pré-condições da acção, assegurar um suporte para o universo moral no mundo físico e a existência de candidatos a uma ordem moral. 5. Velhos e novos imperativos 1. O imperativo de Kant é um caso extremo das éticas da intenção subjectiva ao pedir , que o princípio a que obedece a acção individual possa ser uma lei universal. Válido no plano individual, este imperativo dirige-se à pessoa no imediato e só requer a consistência do acto consigo mesmo. 2. Um novo imperativo seria "age de tal modo que os efeitos da acção sejam compatíveis com a permanência da humanidade genuína". O futuro da humanidade tem de ser incluído nas nossas escolhas presentes. 3. Significa isto que não temos o direito de escolher ou de arriscar a não-existência de gerações futuras, só por causa danossa existência. Temos um dever para com o que ainda não existe ou que pode não vir a existir. 4. Este novo imperativo dirige-se à dimensão pública e não à acção privada. À referência universal de qualquer princípio ético, acresce o horizonte temporal do futuro, ou mais exactamente, o futuro real previsível como dimensão em aberto de responsabilidade. 6. Formas anteriores de éticas “orientadas para o futuro" 1. As éticas originadas na religião que aconselhavam a renúncia em nome do cumprimento da vida humana no além (como o budismo) são éticas da auto- perfeição. Mas o esforço interno que conduzem a pessoa a cumes místicos, alcançando o absoluto aqui e agora, são, de algum modo, egoístas e individualistas. 2. Também sempre se falou da responsabilidade do estadista perante o futuro, mais para referir a durabilidade da sua obra do que o planeamento da mudança. 3. Com a dimensão moderna da utopia e o advento do progresso, o passado é considerado como passo para o futuro. A escatologia secularizada é um novo passo para uma ética orientada ao futuro. e a dimensão revolucionária dá-lhe ainda maior força. O marxismo tinha uma ética na qual avultavam a duração da responsabilidade, o escopo comum à humanidade e a profundidade da preocupação. Mas o seu carácter de religião secular, utópica e intra-tecnológica, tomou-o uma cura" pior que a doença" 7. O homem como objecto de tecnologia 1. A mortalidade é o outro lado da natalidade, a resposta da natureza à procriação. Os avanços médicos, contudo, permitem uma extensão da vida muito para além do que se tradicionalmente se pensou. No limite, a morte seria apenas uma disfunção orgânica. O seu significado tem, pois, de ser ponderado na esfera de decisão, como o mostram as problemáticas da gerontologia, da eutanásia, etc. 2. Controle de comportamento. As velhas categorias da ética não nos equipam para lidar com as novas possibilidades de intervenção com meios bioquímicos no comportamento humano. Do alívio do paciente é fácil passar para o alívio da sociedade. Aprendizagem mediante administração de fármacos? Pacificação electrónica dos agressivos? Estimulação de centros nervosos por psicotrópicos para obter felicidade ? As drogas correspondem ao mal moral do século. Cada vez há mais curto-circuitos da relação pessoal mediante mecanismos impessoais e irresponsáveis. O mais ambicioso sonho do homo faber é, sem dúvida, a manipulação genética, que mereceria um tratamento à parte. 8. Dinâmica utópica do progresso técnico e exigências da responsabilidade 1. A tendência utópica e o poder da tecnologia exigem escolhas no que antes eram especulações. A grandeza do poder tecnol6gico modificou totalmente a distância entre questões próximas e remotas, entre as esferas da prudência e da sabedoria. Cada escolha imediata exige conhecer as consequências remotas, situação ainda mais difícil quando a cultura dominante nega que valor e verdade sejam objectivas. Exige-se nova ética de responsabilidade, co-extensa à escala da excessiva grandeza do nosso poder. De acordo com os princípios e processos políticos da democracia actual, só os interesses presentes se fazem ouvir. Os órgãos de soberania só se sentem responsáveis perante a opinião pública presente e, nessa medida, respeitam direitos. Mas o futuro não é representado. O que ainda não existe não tem lobby e o que não nasceu é impotente. Surge a questão típica na filosofia política de qual deve ser o poder dos sábios ou da força das ideias isentas de interesses próprios. Mas antes desta questão sobre o poder que deve representar o futuro, surge a questão sobre a intuição ou valor que já o representa. 9. O esvaziamento ético Até agora desenvolvemos a premissa de que o poder tecnológico muda o carácter da acção humana, devido à natureza sem precedentes dos objectos, à grandeza dos objectivos e à propagação cumulativa dos seus efeitos. As éticas foram sempre concebidas para contrariar o poder e a inclinação humana para praticar o mal. Exige-se "Não mates" porque temos o poder de matar. Sucede que perante o acréscimo de poder contemporâneo de poder, há um vazio ético. A ciência moderna desgastou a ideia de norma. A natureza foi neutralizada no que se refere ao valor, sendo considerada como mera capacidade de meios sem noção de fins. O medo da insegurança no interior de cada sociedade é a balança de terror entre as nações poderá ser o melhor sustentáculo na situação de eclipse da sabedoria ou virtude. Mas o medo não previne as consequências remotas dos grandes poderes tecnológicos em acção. Exige-se uma ética da responsabilidade. Cap. II. Acerca dos princípios e métodos 1. Conhecimento ideal e real na ética do futuro. 1. A prioridade da questão dos princípios. Quais as bases para a renovação da ética. E até que ponto poderão os seus princípios vir a ser respeitados '! A primeira questão é de ordem moral, a segunda de teoria política aplicada. O conhecimento alcançado tem de estar livre da suspeita de arbitrariedade, pelo que tem de ser justificado racionalmente e não abandonado aos sentimentos e convicções pessoais. Não basta afirmar "temos de cuidar do futuro do homem e do planeta"; também temos de responder por que razão temos esse dever e por que razão temos obrigações e deveres. 2. Precisamos de um conhecimento aproximado do futuro previsível imediato da humanidade. Esta informação provável do domínio factual interpõe-se entre o conhecimento ideal de princípios éticos e o conhecimento prático de aplicações políticas que têm de operar a partir de projecções e extrapolações hipotéticas. 3. Esta ligação é heuristicamente necessária mesmo no domínio dos princípios. Não consideraríamos a vida sagrada, se não houvesse assassinatos e por igual motivo não teríamos o mandamento "Não matarás!". O valor de uma realidade só se afirma em oposição à sua perda, omissão ou destruição. Na ética da responsabilidade precisamos de distorcer hipoteticamente a condição humana futura, de modo a vermos melhor o que é desejável. É ~ nisto que consiste a heurística das ameaças. Precisamos de reflectir nas ameaças para nos assegurarmos das normas. A percepção do mal a evitar é mais evidente e directa do que a do bem a escolher, sempre discutível. O mal apresenta-se de modo directo, o bem exige reflexão. A heurística do medo não é a última palavra na ética, mas sim um primeiro passo indispensável. 4. O primeiro dever. Visualizar as consequências da sociedade industrial e tecnológica. Numa ética do futuro temos de antecipar as condições desastrosas. 5. O segundo dever. O mal distante imaginado não suscita o mesmo receio que o mal presente. Também precisamos de nos sensibilizar para este tipo de reflexão e imaginação. O futuro humano não influencia tanto a minha sensibilidade. E contudo "deveria influenciar", deveríamos sentir as consequências. A ameaça invocada não é o medo da morte violenta, o sumumn malum que Hobbes que converteu em apoio da teoria política; a ameaça não deve ser de tipo patológico (termo de Kant). Temos de atender às consequências e aos frutos da acção humana, que é uma disposição espiritual. É este o segundo dever da ética que, tal com o primeiro, precisa ser firmado num princípio ético mais amplo. 6. Incerteza dos prognósticos. Informar-se sobre o futuro exige dados científicos até porque é da ciência e da tecnologia que cada vez mais dependemos. Mas a previsão de factores múltiplos combinados e a longo prazo é difícil. A complexidade de efeitos naturais e sociais, a surpreendente capacidade e vulnerabilidade humanas, a impossibilidade de prever invenções futuras, excede qualquer previsão completa. 7. Conhecimento do possível.Temos de nos dispor a realizar uma experiência mental: "Se se fizer isto... então acontece aquilo". Temos de criar uma casuística da imaginação cujos - pronunciamentos sejam probabilísticos mas em que, ao contrário das casuísticas conhecidas da lei e da moralidade, nos ajude a encontrar princípios antes desconhecidos. A ficção científica de autores como Orwell e Huxley, etc. é muito útil. 8. Prognósticos a partir de tendências do processo tecnológico e industrial. A doutrina dos princípios não precisa mais do que projecções. Mas a incerteza das projecções é uma fraqueza no que toca às aplicações ético-políticas dos princípios apreendidos. Quando se trata de decidir no concreto, não se podem correr estes riscos. E embora nas questões capitais a grandeza do que está em jogo prevaleça sobre a incerteza, a qualificação "possível" das projecções significa que são possíveis outras consequências, no que há vários riscos. As éticas da convicção escolhem o que convém às crenças subjectivas; outras atitudes omitem o desagradável; ou argumentam que há tempo para correcções pelo caminho: ou confiam na sorte ou no destino. 2. Prevalência do mau prognóstico sobre o bom. Nas projecções incertas a longo prazo, devemos dar maior relevo aos prognósticos de catástrofe que aos de paraíso. 1. A nossa relação com o futuro é semelhante à experiência de acertar no centro de um alvo, uma excepção no meio de múltiplas possibilidades de falhar. Ora se a evolução natural -joga pelo seguro e trabalha com muitas tentativas e pode dar-se ao luxo de muitos erros, a tecnologia comprime esses pequenos passos num processo colossal, muito mais inseguro e muito rápido, sujeito a alternativas absolutas ou/ou. Dados este aspectos, uma ética da precaução e da prevenção tem que ponderar muito mais as ameaças do que as benesses. 2. Dinâmica cumulativa. O desenvolvimento tecnológico tende a adquirir uma dinâmica própria irreversível, "atirada para a frente" e que ultrapassa o planeamento. Se somos livres no primeiro passo, passamos a ser escravos nos seguintes. 3. Existe um património a preservar que pode desaparecer. Se se considera que nada é sancionado pela natureza e tudo é permitido, poderíamos fazer o que nos aprouver. E com a "alquimia" genética, está ameaçada a própria capacidade humana para a verdade, avaliação e liberdade, um infinito a manter. A parada deste "jogo" é entre a perda infinita de humanidade contraposta a ganhos finitos de bem-estar. 3. O elemento de aposta na acção humana 1. Não podemos apostar o que não temos. Mas se as minhas acções afectam os outros, apostar numa acção envolve algo que lhes pertence. A diferença moral é entre arriscar ou violar os interesses dos outros nos nossos projectos, o que depende da casuística da responsabilidade. 2. Na heurística moral nunca devemos pôr em jogo a totalidade dos interesses dos outros ou a sua vida. Nas decisões acerca da guerra e da paz, que surgem quando está em jogo o futuro de uma nação, o estadista tem o direito de arriscar a existência dos cidadãos em nome da resistência ao mal supremo. É da condição humana podermos viver sem o bem supremo mas não conseguimos viver com o mal supremo. 3. Utopismo. Arriscar a sorte dos outros para o nosso própria. bem só é justificado pela prevenção do mal supremo e não pela procura utópica do bem supremo. 4. A possibilidade de arriscar a existência humana tem de ser erradicada, dado o dever incondicional de a humanidade existir. 5. É princípio ético que a existência e a essência do ser humano não devem ser postas em risco pelos acasos da acção humana. Não se trata aqui de um cálculo utilitário de vantagens mas duma ordem baseada no dever primário de optar pelo ser contra o nada. 4. O dever de assegurar um futuro 1. A não-reciprocidade de deveres para com o futuro. Há que ter em conta que a concepção tradicional de direitos e deveres -assente na reciprocidade em que o meu dever é a contrapartida do direito de outrem, semelhante ao meu próprio dever -não fornece o que se exige do princípio de responsabilidade. O estabelecimento de direitos e deveres correspondentes torna-se insuficiente quando está em jogo o que ainda não existe. A ética da responsabilidade está relacionada com este ainda não-existente; e o princípio de responsabilidade deve ser independente da ideia de direito. O futuro nada fará por mim. 2. Dever para com a posteridade. Conhecemos perfeitamente uma responsabilidade elementar que é o dever natural para com os filhos. É desta relação unilateral resultante da procriação e não da relação mútua entre adultos independentes que nasce a ideia de responsabilidade em geral. Sem a relação familiar, e a relação sexual amorosa concomitante, não poderíamos compreender a origem da previdência nem o altruísmo nos seres racionais, por muito sociais que sejam. Temos aqui o arquétipo de toda a acção responsável, implantado em boa parte da humanidade. O dever para com os filhos não é idêntico ao dever para com as gerações futuras, Os pais são causa dos filhos, originaram-nos, e têm direito a cuidar deles. A obrigação poderá firmar-se no princípio clássico de direitos e deveres embora não inteiramente recíprocos, Mas não se pode falar no direito do não-nascido a nascer. 3. Dever para com gerações futuras. Temos de assegurar primeiro que existirá uma humanidade futura e, segundo, com deveres a cumprir para com a sua condição, O primeiro dever contém dentro de si o dever de procriação. Poderíamos apenas assumir que a humanidade vai continuar e preocuparmo-nos directamente com o modo como vai existir? E bastaria afirmar que do direito dos seres futuros resultaria, hoje, como resposta, o dever que nos torna responsáveis pelos nossos actos" Isto é insuficiente para a teoria ética. O pessimista consciencioso poderia afirmar que só irresponsáveis continuam a procriar, Para quê, diz-se por vezes, trazer crianças a um mundo miserável como o nosso" Em segundo lugar, não consultamos os desejos dos nossos sucessores mas sim o dever que está acima de nós. Temos de vigiar mais o dever dos futuros homens do que os seus direitos, em particular o dever que terão em preservar a humanidade de ameaças contra a humanidade. Estes vários deveres concretos podem ser subsumidos nas éticas da solidariedade, simpatia, equidade e compaixão, pelas quais transferimos para os outros os nossos sentimentos. Aqui o nosso dever responde a um direito já existente, Mas o dever básico é o que nos dá o direito de procriar sem consultar. Que haja humanidade no homem é o primeiro dever numa era ameaçada pela tecnologia, A este primeiro imperativo "Que exista uma humanidade!" submetem-se todas as regras éticas posteriores. Não devemos deixar que surja uma situação futura que contradiga a razão de ser da humanidade. 4. Responsabilidade ontológica pela ideia de homem. Ao apontar por que razão deve haver seres humanos, a ideia de homem pode dizer-nos como devem eles ser. 5, "Que haja seres humanos!". O primeiro princípio da ética da responsabilidade recai no domínio do ser de que o homem faz parte. 6. Que a ideia ontológica gere um imperativo categórico, contraria a opinião dominante que, do ser, não se pode derivar um dever. Mas esta opinião que se reclama das ciências humanas, assenta num preconceito metafísico de que não há verdades demonstradas. Qualquer ética recorre a princípios fundamentais metafísicos implícitos. Aqui temos a vantagem de nos obrigar a narrar o fundamento metafísico da obrigação. Carecemos senão de provas, pelo menos de um argumento razoável. 7, Não temos aqui o recurso da verdade revelada que invoca a vontade de Deus para que homens sejam à sua semelhança. A fénão está disponível por encomenda; mas a metafísica sempre foi uma tarefa da razão cabendo a uma ética renovada não se deixar reter nos duros limites antropomórficos. 5. Ser e dever-ser 1. As perguntas sobre a existência do homem pertencem à questão mais geral sobre se deveria haver algo. De um ponto de vista estritamente lógico, a não-existência pode ser preterida a menos que haja uma preeminência do ser sobre o nada. O interesse prático desta questão é que ela confina com a disponibilidade individual para dar a vida por uma causa, pessoal, nacional ou humanitária. 2. O reconhecimento da preeminência do ser sobre o nada, e a obrigação correspondente, não implica que o indivíduo deva preferir a vida à morte em qualquer circunstância. Dar a vida pelos outros, pelo país, pela humanidade é uma decisão a favor do ser e contra o não-ser, O suicídio estóico para evitar a degradação é um acto público discutível mas não condenável. A vida não é o maior dos bens. As opções relacionadas com a eutanásia poderiam ser uma concessão à fraqueza individual, uma excepção à regra universal. Mas causar, permitir ou colaborar no desaparecimento da humanidade é inadmissível. 3. Por que deve haver algo de preferência a nada? Que significado tem este dever? É uma questão a ser respondida por juízo independente ou seja, pela filosofia. O valor ou bem é o que impele à existência a partir da sua possibilidade. O facto de o valor ser predicável é suficiente para decidir da superioridade de ser. A capacidade para ter valia é por si um valor. A possibilidade abstracta do valor em geral reclama ser e dá-o à realidade que tem tal potencial. 5. Tudo converge para a questão dos valores enquanto possíveis no seu conceito. De pouco adianta o tacto incontestável de que há avaliação humana, coisas desejadas e odiadas. A ética precisa de uma teoria da obrigação e dos valores de cuja realidade se pode derivar um dever-ser objectivo. Cap. 3. Acerca dos fins e do seu estatuto na realidade Temos de esclarecer a relação entre valores e finalidade. Uma finalidade é o que responde à questão "para quê?" e os fins que definem as acções e coisas a que se reportam fazem-no sem ter em conta o respectivo estatuto ou valor. Afirmar que "x é finalidade de y" não implica um juízo de valor. Situando-me no ponto de vista dos instrumentos, posso reconhecer a maior ou menor adequação dos meios utilizados aos fins desejados. Para tanto preciso de juízos de valor de ordem objectiva. Deste modo se forma o conceito de um bem específico e do seu oposto e de graus intermediários. De quem são os fins apercebidos e qual é o seu valor '? Poderiam ser melhores '? 1. O instrumento 1. Ter uma finalidade tem dois sentidos principais. Num primeiro pode afirmar-se que o fim de um instrumento é levar a cabo uma acção. Um relógio serve para medir o tempo. O conceito de medir o tempo é a razão de ser do relógio. 2. Num segundo sentido, o relógio não tem uma finalidade. A finalidade de todo o instrumento, produto ou técnica pertence ao fabricante, ao homo faber. 2. O órgão de poder 1. A prática é uma outra forma da acção humana. Um tribunal criado para ministrar? justiça é um artifício em que o conceito precede a coisa. Mas aqui o conceito penetrou de modo permanente na acção do instrumento 1. A ausência de distinção entre agente e acto é o que caracteriza a prática. Se o tribunal, estado, etc. se desviar do propósito original, a culpa é do tribunal, estado, etc., não de quem o concebeu. A vontade dos instituidores pode ser preservada, modificada, restrita, alargada etc. 2. É a ideia da instituição determinada do seu interior que identifica um instrumento social. A intenção invisível dos fundadores é revelada pela composição objectiva da instituição. 3. Nas instituições o "instrumento" é definido não só pelo "para quê" como pela utilização acompanhada de valor. Passados milhares de anos, é evidente para que serve um coup-de poing mas a finalidade das inscrições simbólicas rupestres já não é evidente. 4. As instituições recorrem a instrumentos materiais, aparelhos e suportes físicos. Mas é o propósito conceptual subjacente ao todo e às partes que permitirá conhecer os meios sociais. 5. Instrumentos de produção e instituições foram criados para servir finalidades. No primeiro caso, o fim é exterior no outro interno à acção humana. Significa que a finalidade é um fenómeno exclusivamente humano? 3. O membro corpóreo 1. A locomoção pertence ao grupo de actos voluntários. 2. Andamos para chegar a um local. O para indica a finalidade. As pernas indicam os meios. Quem anda não são as pernas mas o homem. As funções sensoriais já são menos "voluntárias" sendo desde sempre compreendidas como uma recepção de dados que se pode tornar voluntária. Ver é mais que olhar, escutar é mais do que ouvir, etc. Temos liberdade de andar ou não andar. O propósito do instrumento corpóreo não especifica a sua função que depende também da vontade humana. 3. ' A semelhança dos órgãos com instrumentos de acção explica o nome comum de aquilo que realiza um trabalho (de erg vem organon). O corpo sempre foi considerado orgânico (soma. organikon) ou seja, composto por instrumentos, sendo a mão humana o instrumento dos instrumentos. 4. A acção de andar para chegar a um local é intencional no sentido subjectivo, ou seja, governada por finalidades concebidas. 5. A relação meios/fins no comportamento animal é complexa. O termo instinto encobre a mistura de intencionalidade (interesse) e hereditariedade (pulsão) presente no comportamento voluntário dos animais superiores. Mas em" comparação com o humano. as antecipações objectivas dos animais parecem limitar-se aos objectivos imediatos sem planeamento nem cuidado pelo futuro. Será que é apenas uma deficiência física no metabolismo animal que desencadeia a acção ou existem nele propósitos psíquicos ? Em termos de cibernética, uma acção é compreendida como o resultado de uma estimulação nervosa que despoleta uma série de adaptações comportamentais e de um mecanismo sensorio-motor de feedback que põe termo à acção. A sequência da acção decorre de acordo com a lei do equilíbrio terminal, o mecanismo da entropia. Cada esforço animal seria apenas alívio do Stress fisiológico inicial (correspondente a um gradiente homeostático descrito quânticamente). A finalidade procurada seria apenas a representação subjectiva do estado de indiferença correspondente ao termo dos esforços. A presença do sujeito humano é inegável. Mas com que significado? Será que as finalidades existem apenas no mundo psíquico? Que influência na acção tem a finalidade sentida subjectivamente? A utilização de órgãos está dependente de centros nervosos em maior ou menor grau de controle ou automatismo. A questão central que aqui interessa levantar é se a explicação da acção como fenómeno neurofisiológico e comportamento físico dispensa a experiência de consciência de que somos causa das nossas acções. 6. Ladeando o chamado problema psicofísico, vamos assumir a credibilidade do testemunho do sujeito contra as objecções materialistas. A natureza física deve ter espaço para a intervenção de um factor não-físico. A física já abandonou a posição determinista de que a natureza não comporta tal possibilidade. Apenas basta que haja compatibilidade de interacção psicofísica com as leis da física, ou seja: a vida da consciência, subjectividade e vontade é um dos princípios da natureza. Os movimentos corpóreos voluntários no homem e no animal são relativamente determinados por finalidades executadas pelos agentes que as vivem subjectivamente. Mas abaixo deste níveltambém haverá uma finalidade em acção '? E que ~ grau de certeza poderemos ter no que se refere a finalidades extra-humano'? Trata- se de uma questão fundamental para fundar os valores e, portanto, a obrigação ética. 4. O órgão do corpo 1. Cada órgão serve uma função no organismo. 2. Haverá diferença radical entre seres conscientes e inconscientes? Segundo a evidência disponível pode haver matéria sem espírito mas nada prova que haja espírito sem matéria, objecção decisiva contra dualismos de corpo e alma que nada resolvem. A ciência utiliza, e bem, a proibição do antropomorfismo, o princípio da parcimónia e restringe-se a finalidades quantificáveis. Ao investigar um organismo inferior, desinteressa-se do que passa ao nível do superior e mais ainda da subjectividade. Esta ficção metodológica da ciência é indispensável e não está aqui em questão. Mas estas vantagens metodológicas não dispensam uma avaliação ontológica por parte da epistemologia. Para se aperceber da ciência que faz. basta que o cientista pense na pessoa que é, e na autonomia do seu pensamento. Tomando-se a sério no seu método, o cientista reconhece a subjectividade e interesse em geral como princípio eficaz no interior da natureza. E o conceito de natureza é aqui indispensável para verificar se há ocorrências da finalidade em todos os estratos da natureza. A subjectividade é um iceberg que assinala um interior silencioso. Tal como sucedia na compreensão aristotélica, fará sentido falar de uma finalidade que não seja subjectiva, ou seja, mental '? A objecção correcta contra a compreensão aristotélica visava o redundante de causas finais numa explicação em que importavam as causas eficientes quantificáveis; a teleologia era o "asilo da ignorância". De facto, bastam as causas eficientes -quantidade de força operadas sob leis constantes - para explicar os fenómenos. Mas a existência de finalidades não é contraditória com a explicação moderna causal nem é, menos ainda, refutada por ela. Explicar e compreender a natureza é diferente. Aqui só interessa comprovar que nela ocorrem finalidades. Só interessa provar que a ciência física não nos diz tudo sobre a natureza. Basta que se lembre que está excluída do que explica. Descendo do humano para o animal, desaparece por graus a subjectividade representativa consciente, mantendo-se a Sensibilidade e o apetite. E descendo do animal para as camadas de ser, deixando de parte especulações sobre a natureza, as evidências disponíveis sobre a vida dizem que há uma finalidade intrínseca. Ao fazer surgir a vida, a natureza afirma que a vida é uma finalidade da natureza. Em conclusão, a finalidade está presente na natureza e na totalidade do corpo vivo que tem a vida como finalidade. A natureza esforça-se por apresentar a finalidade que se estende a todos os domínios do ser. 5. Da realidade à validade: da finalidade ao valor. Será que esta ocorrência universal da finalidade lhe confere validade acima da subjectividade " Assim se ganharia algo para a ética, para a qual os valores deveriam ser finalidades desde que tenham uma base objectiva. Esta velha questão de saber se o ser pode fundar e firmar a obrigação tem de ser tratada a propósito do estatuto dos valores. 1. Universalidade e legitimidade. Quando se afirma que "o homem deseja ser feliz" estamos perante uma finalidade que é apenas um facto, mesmo que universal. Poderemos não o aprovar; é o preço da nossa liberdade. Mas o facto de que está implantado na natureza cria a noção de que vale a pena procurar a felicidade; pode ser senão um dever, pelo menos um direito a essa finalidade. O direito individual cria o dever de respeitar esse direito nos outros, não os prejudicar e talvez mesmo, promovê-los. E deste direito dos outros ao meu respeito, poder-se-ia seguir o dever de promover a minha felicidade e a geral. A universalidade de facto do desejo de felicidade transforma-se em estatuto de direito, criando uma base natural importante para a ética. 2. Contudo, somos livres de rejeitar o voto da natureza. É prerrogativa da liberdade humana dizer não ao mundo. Sou livre de partilhar ou não os valores inscritos na natureza. 3. Para surgir uma obrigação, é necessário o conceito de bem, distinto do de valor, ou seja a distinção entre estatuto subjectivo e objectivo de valor, ou ainda entre valor em si e avaliação humana. A relação entre bem e ser tem de ser pensada. A natureza comporta valores porque comporta finalidades em que eles se inscrevem. Questão distinta é saber se devemos ou não acompanhar as suas decisões; se os valores são valiosos. A teoria das finalidades mostrou que há valores na natureza como objecto de finalidades internas. Agora precisamos de uma teoria dos valores. Cap. 4. O bem, o "dever" e o ser: uma teoria da responsabilidade 1. Ser e dever. Fundar ou firmar o bem ou valor no ser é ultrapassar o abismo entre facto e dever. O bem valioso é por definição o que requer um contributo para existir; toma-se um dever quando existe uma vontade que lhe escuta o pedido e o transforma em acção. Logo o bem pode originar um mandato. Fundar o bom ou valor no ser é pensar a tensão entre ser e dever. O que é bom ou válido é algo cuja possibilidade implica a exigência de se tomar concreto: é um dever quando uma vontade estiver presente para escutar a exigência e traduzi-la em acção. 1. Bom ou mau relativos a fins. As finalidades presentes na natureza colocam valores que por si só não suscitam juízos morais. Atingi-los é um bem e frustrá-los um mal. Como nos ensinam os comportamentos animais (delineados na etologia) o tigre ao comer uma gazela ou a defender o seu território não pratica um mal nem um bem moral; apenas exerce um poder que, do ponto de vista ôntico é um bem. Através de sua finalidade interna a natureza cuida de si e não requer qualquer dever. 2. Haverá bens em si, além dos fins que integram a ordem da natureza " Poderemos encarar a simples capacidade de ter fins como um bem em si, superior à arbitrariedade de não ter fins de qualquer tipo? Se o apelo de ser for colhido pela vontade de outrem cria um dever para a vontade. Há superioridade em haver fins. 3. Cada ser declara-se por si mesmo e pelo seu interesse contra o nada. O facto de que o ser não é indiferente a si, toma a sua diferença de ser, em valor de todos os valores. A distinção entre ter fins e a indiferença culmina em nada. E se cada ser está interessado em si próprio, há que optimizar essa finalidade. 4. Na vida orgânica a natureza satisfaz os seus interesses pela biodiversidade. Tal variedade de formas de vida tem um preço evidente. A preservação da variedade é um bem se comparado com a alternativa de aniquilação. A realização dos interesses torna-se cada vez mais subjectiva à medida que na escala dos seres está entregue à vontade, processo que culmina na liberdade humana. A auto-afirmação do ser é a oposição da vida à morte. A preservação da identidade através do fazer é o sim de todos os seres que existem. 5. Este sim cego ganha força na liberdade humana que o acolhe. A pessoa não é um agente automático da natureza; por isso mesmo tem o poder de a destruir. A sua vontade tem de adoptar o sim e impor o não ao não-ser submetido. Esta passagem do querer à obrigação é o ponto crítico da teoria ética. Por que razão o homem converte em dever uma finalidade que tomava conta de si própria? Como consegue a excepção humana criar normas? 6. A finalidade é um bem básico e com uma pretensão a realizar-se e que implica o querer-se a si como um fim básico. A auto-preservação não precisa de ser imposta: o prazer de a atingir dispensa a persuasão; é natural. Contudo, onde existirescolha entre uma preservação melhor e uma pior, pode haver dever como a melhor via, ou via da prudência, o imperativo hipotético que se refere aos meios escolhidos. Mas isso não é imperativo ético. 7. Comparado com o termo "valor", bem tem mais dignidade. Valor vem do quanto vale", da esfera de trocas e apreciação e designa uma medida do querer. Cada fim que se possui é um valor, vale o esforço de o buscar. O valor do esforço, a recompensa, é o prazer. Contudo, o que o meu esforço vale não coincide com o que apeia como válido. A diferença entre o desejo e a obrigação constitui o fenómeno da exigência. Se o bem fosse apenas uma criação da vontade, não teria o poder de me compelir nem autoridade para obrigar a minha vontade. Culpa é quando achamos que não estivemos à altura dos acontecimentos ou não fizemos o que devíamos. 8. Mas fazer o bem beneficia o agente de um modo especial. O paradoxo da moralidade é de que o eu se esquece a si na procura de"uma finalidade, de modo a que possa surgir um eu mais rico. É o conteúdo da acção que tem prioridade. O que motiva a acção é o apelo de um possível bem que pede para ser ouvido. A lei mais não é do que a lembrança geral de que há objectos que me motivam e do seu direito à minha acção. Para que essa máxima abstracta. me afecte tenho de estar receptivo. O nosso lado emocional deve ser cuidado. É da essência da nossa natureza moral que o apelo encontre correspondência num sentimento. A teoria da responsabilidade deve lidar tanto com o fundamento racional da obrigação enquanto princípio validador por detrás do dever, como com o firmamento psíquico que move a vontade e que determina o curso da acção. Ética tem lado objectivo de razão e lado subjectivo de emoção; são aspectos complementares. As demonstrações de direitos teoricamente impecáveis não me movem a agir se não tiver responsabilidade. Mas sem credenciais do seu direito, a nossa receptividade a apelos ficaria à mercê das predilecções pessoais e sujeita. a mudanças culturais e falta. de justificação. Poderemos ser bem intencionados, ter boa vontade ou bom coração em uníssono com os apelos da lei. Mas os imperativos da razão só movem se accionados por sensibilidade. A normatividade só age em espíritos sensíveis às normas. O sentimento moral pede autorização ao que lhe é superior. A separação entre validação abstracta e motivação concreta. tem de ser preenchida pelo sentimento que move a vontade 9. A filosofia sempre reconheceu que a moral idade exige uma emoção própria, através do amor do bem supremo. Só Kant achou que se tratava de uma concessão, necessária ainda assim, à nossa natureza sensível. O judaico temor de Deus, o eros de Platão, a eudaimonia de Aristóteles, a caridade do cristianismo, a benevolência, a reverência pela lei, o interesse de Kierkegaard, são modos de definir este elemento afectivo na ética. O bem supremo era algo de intemporal e eterno. A moral deveria emular esse objecto nas condições possíveis e procurar a participação no imperecível Ora a responsabilidade tem por objecto o perecível. O outro não surge como o perfeito mas como o em si; a sua alteridade não é para ser destruída ou assimilada. É contingente, perecível, inseguro mas tem o poder de me mover por existir. Esse poder que é dado na experiência a par do apetite do bem supremo determina a responsabilidade. Em contraste estão as éticas existencialistas em que só conta o como da acção. Existencialistas como Nietzsche, Heidegger, Sartre são o caso extremo de ética da convicção (subjectiva) onde o que mais conta é a liberdade de decidir do sujeito. Nega-se qualquer ordem ou direito anterior à decisão e a ideia da obrigação válida. Um caso muito particular de ética surge em Kant ( e nas derivações neo-kantianas em que se inspiram boa parte da doutrinas dos direitos do homem) para quem o sentimento de reverência é dirigido não a um objecto mas à lei. Para a lei moral ganhar força, o sentimento tem de ser desperto não pelo objecto (moralidade heterónoma) mas pela ideia de dever (Ehrfurcht). Esta auto-limitação da vontade pela consistência da vontade consigo mesma é muito formal e é tautológica. Kant evita o formalismo ao enunciar como princípio material de conduta o respeito da dignidade das pessoas como sendo fim em si mesmo. As doutrinas dos direitos do homem apelam ao respeito pela humanidade mas como não têm uma teoria da essência humana são ameaçadas pelo esfacelamento individualista dos direitos. Afinal o que conta são as coisas mesmas e não as inclinações da minha vontade. Deixar-se mover pelo justo apelo do outro, humano ou pré-condicionante do humano.Heteronomia clara. Mas não basta a afirmação emocional dá dignidade. Só a responsabilidade nos fará agir como se depreende da relação familiar que é o caso primordial de coincidência da experiência objectiva de dever e do sentimento subjectivo. 2. Teoria da responsabilidade: primeiras distinções Para investigar as condições de responsabilidade há que atender a: a) poder de agir; b) Controle da acção; c) Sentido das consequências: d) responsabilidade por nossos actos; e) responsabilidade por objectos que exigem acção 1. Responsabilidade formal. Diz-se de alguém que é responsável porque praticou um acto. Esse é o significado jurídico. O dano infligido deve ser reparado mesmo se não houve má intenção nem a consequência foi prevista. Já o significado moral origina o castigo que qualifica o agente como merecedor de culpa. Assim, o Direito Civil dá compensação pelo dano enquanto o Direito Criminal inflige pena pela culpa. Na ausência de deveres positivos, o evitar a acção é o conselho da prudência. Quem não chama a atenção da lei. é porque a cumpre. Neste primeiro sentido. a responsabilidade não põe nem tira fins de acção. Reconhecer que somos responsáveis pelos nossos actos é pré-condição de moral idade mas não é ainda moral idade. Este elemento formal não fornece o elemento afectivo requerido para apresentar, creditar e motivar fins positivos dirigidos ao bem humano. Sem tal inspiração, sem influxo do bem nos sentimentos, sem valores que apelam, não existe responsabilidade no sentido pleno do termo embora exista acatamento da legalidade. 2. Responsabilidade substantiva: o dever positivo do poder. Posso por outro lado, sentir-me responsável não pelo que fiz mas pelo objecto da minha acção. A responsabilidade pelo bem-estar alheio obriga a acções que dependem da minha liberdade. A vontade moral converte o direito a ser em acção e só depende de mim ter acção causativa sobre a coisa em questão. Neste sentido substantivo de responsabilidade, o ser dependente é que comanda o meu poder. Sou responsável pelo que me é confiado e sou responsável porque emocionalmente empenhado. Na pessoa responsável, o sentimento não nasce da ideia em geral do direito mas da necessidade pressentida no objecto que envergonha o egoísmo. Após o dever-ser instável do objecto, surge o dever-ser do sujeito com consciência de poder agir. Se estiver presente o amor, então a responsabilidade é inspirada para além do dever pela devoção da pessoa que estremece a coisa digna de ser amada. 3. Que significa agir de modo irresponsável? O condutor que conduz mal a sua viatura age imprudentemente; se for propriedade de outrem. Age criminosamente e se puser a vida de alguém em jogo, age irresponsavelmente. Só quem tem responsabilidade pode agir irresponsavelmente. 4. A relação não recíproca. Há relações de reciprocidade tais como o espírito de equipa, camaradagem de guerra, a irmandade de propósitos, cuja responsabilidade horizontal difere muito da responsabilidade vertical que é sempre global e contínua. 5. Responsabilidade naturale contratual. A relação familiar é responsabilidade irreformável. Diga o que disser a vontade empenha a nossa vontade. É muito diferente da aceitação de cargo ou tarefa circunscrita no tempo e espaço e de que alguém se desliga por termo da tarefa, prazo, demissão ou resignação. Este outro tipo de responsabilidade ganha o seu valor do ofício e não do mérito da causa. Neste sentido limitado de responsabilidade, o dever-ser da causa são as relações de lealdade em que assenta a: sociedade. Quem violar directamente o dever, viola indirectamente a responsabilidade. A distinção mantém-se entre responsabilidade natural em que o dever-ser imanente" do objecto age a priori e de modo unilateral e a responsabilidade contratual que é condicional e a posteriori conforme os termos da relação acordada. A responsabilidade natural é mais forte e menos definida mas é a forma original de que as outras derivam. Se não existisse responsabilidade por natureza, menos ainda existiria por contrato ou camaradagem. 6. Responsabilidade do estadista. Pode suceder que um bem com validade natural, mas fora do alcance do nosso poder, se tome objecto da nossa responsabilidade livre por nossa escolha. Pode-se procurar o poder para agir e depois aceitar os deveres correspondentes, um caso de opus supererogationis. Contudo, o caso vulgar do político é a busca do poder pelo poder. O estadista procura o poder para ter responsabilidade e poder supremo para ter responsabilidade suprema. O poder tem os seus atractivos, prestígio, fama, autoridade para não falar de recompensas e benesses materiais. O homem de estado procura a trama do bem decorrente do seu poder. Isto é da essência da responsabilidade. É privilégio da liberdade humana que alguém, sem mandato ou contrato, aspire por responsabilidades. O objecto é a res publica, a causa comum a todos. E embora os deveres cívicos geralmente não incluam a liderança, existe o direito de a pedir. O cargo público é um grande incentivo e um grande risco. E como a aposta na verdade da convicção moral não é um dever moral positivo, quem aceita responsabilidades, aceita também que pode estar errado. Não existe lei geral para tal acto livre; na incerteza da sua justificação e da sua presunção, é subjectivo. A liberdade de escolha torna-se serva da responsabilidade. Pais e estadistas representam a responsabilidade nos dois extremos da natureza e da liberdade. A responsabilidade de ser pai é de quase todos, dirigida a alguns particulares, causada directamente pela procriação, em relação íntima e directa e o objecto presente na carne. A responsabilidade dos estadistas é só para alguns, dirigida ao público, sem acepção de pessoa, depende da iniciativa espontânea, é realizada à distância e por meios institucionais e o objecto está presente em abstracto. 3. Teoria da responsabilidade: pais e estadistas como paradigmas eminentes. 1. Os objectos básicos da responsabilidade. O que é comum a pais, estadistas, família e cidadania são os caracteres de totalidade, continuidade, futuro. A existência precária carece de cuidados. Os fins dos outros podem tornar-se os nossos fins. A relação de responsabilidade é unilateral e reversível inclui reciprocidade. A dependência significa que todos fomos já objecto de responsabilidade. Viver é a condição necessária de responsabilidade. A condição suficiente é sermos efectivamente humanos. Neste sentido, existe um dever dado com a natureza do homem. O facto de sermos agentes implica uma obrigação objectiva na forma de responsabilidade externa. Pertencemos à esfera da possibilidade moral. 2. Balanço da humanidade. Nas estimativas se a história humana "valeu a pena '?" o pessimista tem sempre razões para o preço elevado que apresenta. Contudo, nem elas nem a balança hedonista de prazer afectam o aspecto ontológico. O que conta é a possibilidade transcendente, o dever de a humanidade existir. O primeiro objecto da responsabilidade é essa possibilidade Que viva bem é o segundo mandato. O primeiro é um imperativo tácito. Não foi preciso falar do direito à vida enquanto o instinto de procriação satisfazia as exigências da espécie. Mas circunstâncias excepcionais tais como a baixa taxa de fecundidade actual, o aborto maciço. a infertilidade dos casais, tornam-no temático. 3. A responsabilidade dos criativos. Um dos sentidos da experiência que o Ser empreende com o Homem cumpre-se na criatividade. Mas para criar é preciso ter um público. Apesar de o criativo poder estar para além da moral, concentrado no trabalho, as suas obras só existem para humanos. O referente último da responsabilidade é a vida humana. O dilema moral, algo perverso, se deveria salvar uma criança ou uma obra-prima (num incêndio), resolve-se de modo evidente em favor da criança mas não por comparação do "valor" de ambos. Por isso, alguém se pode sacrificar para salvar a obra de arte. 4. Totalidade. A responsabilidade refere-se ao ser em todos os aspectos. A dos pais encara os filhos como um todo; corpo e educação, faculdades, conduta, relação, carácter, conhecimento e felicidade. Independentemente do modo de aquisição e exercício do poder, os estadistas são designados "pais da pátria" quando, além de interpretar a vontade da maioria, permitem que ela exista. 5. Interpenetração A educação da criança inclui socialização pela linguagem e normas em que as esferas privada e pública se interpenetram. Fazer cidadãos é fim imanente da educação e responsabilidade familiar, não só da decisão estatal. Os pais educam para a cidadania, e o estado assume a educação dos jovens. Donde que nas orientações da política educativa, a endoutrinação seja inseparável da transmissão de conhecimentos. A educação mostra como se interpenetram as duas esferas familiares e políticas de responsabilidade devido à totalidade dos seus objectivos. As ideologias colectivistas põem a tónica no estado e abolem o familiar, em contraste com o que existia em estados patriarcais da sociedade. A abolição da famt1ia significaria a diminuição da esfera privada e o político teria de tomar conta de tudo. Os senhores do estado tomariam o lugar dos donos da casa. É de ter em conta que a história mostra a tendência do estado moderno, capitalista ou socialista, liberal ou autoritário para usurpar funções patriarcais. 6. Condições subjectivas da paternidade. A total dependência das crianças, os cuidados que exigem traduzidos em amor espontâneo pelo recém-nascido e depois pelo ser pessoal por parte dos pais, tem a sua analogia na existência precária da res publica, exposta a vulnerabilidades e ameaças que os estadistas têm de cuidar. A diferença decisiva é de que o estadista é sempre criado pela comunidade, por muito que a tenha "fundado". Está sempre em dívida para quem o elevou, sendo, quando muito, o guardião. 7. Continuidade. A responsabilidade procede de modo histórico. A comunidade é mais abrangente que a família. Reclama tradição e futuro, pergunta pelo que vai suceder e pelo que se passou. A sua identidade tem de ser preservada como parte integrante da responsabilidade colectiva. Nos pais, há um redobrado horizonte de responsabilidade. A criança ganha identidade através de história individual e cada educador tem de lhe comunicar a tradjção. A responsabilidade educativa é ao mesmo tempo política. 8. Pais e estadistas. Dada a dinâmica de futuro da nossa sociedade, poderemos incluir o desconhecido no dever? Não podemos prever o futuro porque ele inclui a espontaneidade. Temos de ser guardiões da liberdade, espontaneidade e imprevisibilidade. O dever máximo é não fazer o homem à nossa imagem. Em termos práticos, a incalculabilidade do futuro poderia paralisar a acção ou justificar a ignorância.Mas o conhecimento parcial do futuro imediato permite razoabilidade nas nossas acções. À luz disto se vê que a responsabilidade é o complemento moral da construção ontológica da nossa temporalidade. 4. Teoria da responsabilidade: o horizonte do futuro 1. Maturidade. Toda a educação tem por alvo a independência futura do adulto que toma as suas decisões. O objecto de responsabilidade transformar-se-á um dia em seu sujeito. 2. O histórico é diferente de orgânico. Gostamos de falar de juventude e maturidade e velhice das sociedades. Tais metáforas têm a sua verdade mas é melhor resistir à enganosa noção de comunidade destas comparações orgânicas. Destacam-se alguns mitos. A história não tem um objectivo determinável a priori. O primitivismo de culturas não significa jovem nem velho. Não existe infância da humanidade. Os pré-históricos deram extraordinárias respostas culturais; os mitos antigos são tudo menos infantis; os rituais não eram jocosos; a magia não era ingénua; o medo do desconhecido não era imaturidade; os tabus de parentesco e exogamia eram sofisticados e a tecnologia foi sempre engenhosa e talvez superior à do urbano contemporâneo. A antropologia liquidou a ideia de bom selvagem, o homem é sempre livre. A mesma desmistificação deve ser utilizada face aos que presumem saber o futuro da sociedade, o "fim da história" que o passado teria preparado, a escatologia política da crença no progresso. Na existência humana, o futuro não é mais nem menos do que o passado. Enquanto os indivíduos passam do provisório ao definitivo, do inacabado ao acabado, a humanidade esteve sempre presente. 3. Juventude e velhice como metáforas. Embora o controle causal e a previsão sejam condições essenciais da responsabilidade, as consequências remotas não entram no seu horizonte. Biologicamente todas as sociedades têm a mesma idade. Historicamente, há sociedades em que predomina a frescura de impulso, ousadia e inexperiência. 4. Oportunidade histórica, previsão por intuição. O sentido da oportunidade da intervenção histórica pode manifestar-se por intuição pessoal ajudados pelo acaso e boa fortuna. 5. Previsão doutrinária. A doutrina marxista assegurava Lenine do objectivo mas não do momento de acção. A ideia reguladora da revolução era tão longínqua que permitia adaptações. Lenine ajustou a doutrina à possibilidade do acto de modo não ortodoxo. Só o êxito comprovou a verdade da sua avaliação. O seu acto mudou o mundo. Os Descobrimentos criaram uma visão de futuro distante e assim tomaram responsabilidades por ele. 6. Extrapolações para o futuro próximo. Além das previsões sem analogias com o passado, há agora a dedução do nunca visto através da construção de futuríveis. Calcular o futuro é muito diferente de adivinhar ou invocar precedentes. A capacidade crescente de intervenção do poder político também reforça a capacidade de prever, criando um sistema de "engenharia histórica". Em contrapartida, numa sociedade cada vez mais complexa, o número de incógnita é cada vez maior e os factores de conhecimento do tecido da decisão pública são crescentes. 7. Previsão da especulação. A escatologia secularizada traz o princípio da total imanência na história. O marxismo e o positivismo tecnocrata criam uma mistura típica de sentimento colossal de responsabilidade com uma irresponsabilidade causada pelo determinismo. Preocupam-se com o futuro da humanidade mas já presumem conhecer as forças históricas que o movem. A vontade política identifica-se com a necessidade histórica. A coincidência do interesse de classe (marxismo) ou dos esclarecidos (tecnocracia) com o interesse universal toma o lugar do dever; desaparece a tensão criadora entre ser e dever e recusam-se os imperativos dos princípios abstractos éticos. 8. O marxismo exige fé num alvo desejável cuja necessidade foi demonstrada. Mas nenhum tribunal pode aceitar a auto-absolvição de um agente que se diz executor de uma necessidade histórica. O agente é responsável pelos seus actos e pelas convicções que o levaram a agir. É aliás isto que o defende contra a sua auto-diminuição. Os primeiros socialistas tinham grandeza moral e paixão pelo bem; eram seres morais empenhados em fins supra-pessoais. Tal espontaneidade converteu alguns em estadistas capazes. O lado não antecipável da acção humana toma o estadista indispensável em qualquer sociedade. 5. Até que ponto a responsabilidade política se estende para o futuro 1 .A responsabilidade do político é ameaçada actualmente pelo excesso de poder em relação à capacidade de previsão, risco agravado pela tecnologia. 2. Sabemos mais sobre o futuro do que anteriormente devido à previsibilidade. Sabemos menos devido ao ritmo acelerado de mudança. A função das previsões sobre o futuro é permitir modificações de política. A responsabilidade moveu-se para o centro da moral idade política. 6. Por que razão a "responsabilidade" não era central nas antigas teorias éticas. 1. A responsabilidade é função do poder e do conhecimento, tradicionalmente limitados. A filosofia clássica, à qual devemos a ciência do estado, tinha por critério decisivo a duração e estabilidade dos governos. A acção justa era assegurada pela atitude justa; a ética concentrava-se na virtude pessoal e no reforço das instituições. A melhor constituição era a que mais durasse e promovesse a ciência e virtude dos cidadãos. Bem individual e bem comum coincidiam; o estado era instituição moral e não só utilitária. O cidadão virtuoso cultiva as suas virtudes (coragem, ambição, justiça, prudência) como forma de excelência pessoal e como bem para cidade. 2. A ausência de dinamismo cumulativo não exigia pensar nos vindouros., 3. Na ética culminante da filosofia clássica Platão apresentava no eros um incentivo emocional para o bem em si. Tal impulso para o alto não é responsável pelo seu objecto que é a perfeição mesma. Só somos responsáveis pelo que é perecível e contingente. 4. A ideia de progresso criada pelo Iluminismo foi a tradução temporal da perfeição do ideal do bem supremo. Atribuiu-se ao decurso da história o que Platão atribuía à ascensão do indivíduo. Kant empreende uma semi-secularização porquanto ao considerar o tempo como fen6meno, admitia uma causalidade transcendente moral. Já em Hegel há uma imanentização radical; a ideia reguladora torna-se constitutiva na história como razão absoluta. A esperança kantiana toma-se necessidade hegeliana. Marx faz a inversão da dialéctica. A responsabilidade pelo futuro é abusada pelo pretenso conhecimento. 5. A responsabilidade é correlata do poder. Os factos do poder geram o conteúdo do dever. O que se deve ser e fazer já não tem a primazia sobre o que se pode, depois, fazer ou não. O que o ideal lhe ordena deve ser examinado. Devemos porque agimos e porque a nossa capacidade exorbitante já está em acção. As éticas da convicção querem subordinar as inclinações ao dever que se dirige ao indivíduo. A ética da responsabilidade parte dos efeitos que estão à solta no mundo para depois confrontar o "dever" com a nossa responsabilidade. Primeiro está o dever mais humilde: a responsabilidade pelas transformações que accionámos. 6. Nesta jornada, o ponto crítico é a passagem do querer à obrigação. Pode-se transitar do querer que actualiza os intentos da natureza e que assim é um bem. Ao dever que ordena e proíbe actos " O poder assegura a possibilidade dessa transição. O poder animal é cego e limitado pelo das outras espécies. No homem, o poder emancipa-se da natureza mediante o conhecimento e a vontade livre. Como a finalidade da natureza atinge o máximo no homem. Então o primeiro objecto da obrigação é não destruir o quea natureza fez pelo seu poder. A pessoa é guardiã de todos os fins em si da natureza que caem sob o seu poder. Ao ligar vontade e obrigação, o poder move a responsabilidade para o centro da ética. 7. Relação familiar: o arquétipo da responsabilidade 1. O conceito de responsabilidade implica o de dever-ser de algo e dever-fazer de alguém. O direito intrínseco do objecto é prévio ao dever do sujeito. As provas de validade das prescrições morais consistem em obter evidência de um dever ontológico. Para ligar o facto e o dever, a autoridade divina é hipotética, a autoridade humana insuficiente. Falta- nos um paradigma ôntico em que o facto coincida com um dever. Tal paradigma existe no começo de cada um de nós. No recém-nascido, ser e dever coincidem indiscutivelmente embora não irresistivelmente. Não é só simpatia e piedade; o ser contém um dever para outrem. 2. Singular nesta situação é a tensão no ser. A natureza toma conta de si; mas o estado deve planear a sociedade futura desde que não interfira com a liberdade dos futuros membros. As pré-condições são a possibilidade formal do futuro, não a realidade substantiva. Só nos momentos dramáticos de decisão quando o ser ou não ser da comunidade está em jogo, "a I pátria em perigo", pode o estadista tornar o dever prático. 3. É análoga a situação do recém-nascido, interino e suspenso entre ser e não-ser. A debilidade traz o mandato de o cuidarmos e evitar que caia no nada; tem direito a cumprir a promessa de ser que traz consigo. Os pais são responsáveis totalmente, o que é mais do que uma obrigação de solidariedade. A sua responsabilidade resulta de serem fonte de existência. O estado tem aqui alguma responsabilidade, distinta da do bem-estar, porque se o infanticídio é um crime, deixar morrer de fome é um atentado contra a humanidade que recomeça em cada criança. O dever nela manifesto é urgente e evidente porque ela está rodeada de ameaças sub specie temporis. Esta responsabilidade alarga-se depois às dimensões social e histórica a serem debatidas. Cap. 5 A responsabilidade hoje: o futuro em perigo e ideia de progresso 1. O futuro da humanidade e da natureza 1. Interesse humano e vida coincidem pois que o mundo é a casa comum. 2. Na escolha entre homem e natureza, o homem vem primeiro mas com dever para com a natureza. As trocas metabólicas com matéria inorgânica são específicas do mundo pré-animal; o mundo animal é sempre predador e de equilíbrio entre espécies. A soma das interferências mútuas é simbiótica e não estática. 3. A intervenção humana perturbou a balança interna da natureza. A noção de uma teleologia determinista da natureza é refutada pela intervenção tecnológica. A revolução industrial atingiu no final do séc. XX um ponto crítico atingindo agora a expansão para a biosfera e a exigir novas responsabilidades. 4. Numa ética de prevenção e de preservação, o que é e o que não é permitido tem prioridade sobre o dever. Antes de escolher o tipo de existência é preciso atender às condições de existência da humanidade em que os meios podem destruir os fins. 2. O aspecto portentoso do ideal tecnocrata 1. Vivemos em situação apocalíptica. A manipulação irracional e injusta da natureza provoca extravagâncias de produção e consumo. 2. Sucesso económico e biológico. A produção crescente de bens e redução de trabalho humano aumenta consumos e metabolismos da sociedade com a natureza cujos recursos materiais são finitos. O crescimento exponencial da população rouba os benefícios da ~ expansão. A explosão populacional pode compelir homem a explorar ainda mais o planeta, criando uma situação de "salve-se quem puder". 3. A tendência histórica. O poder do conhecimento permite a utilização intensificada da natureza mas cria uma subjugação. Perante este paradoxo do tecnocrata, requer-se poder sobre o poder. Para ultrapassar o primeiro poder de transformar, e o segundo poder que arrasta, há que moderar esse abuso e impor auto-limitação pela lei. 4. Esse poder sobre o poder deve emanar da sociedade, de disciplina social e cidadania que originam a responsabilidade. 3. Quem está mais preparado para contrariar o perigo? 1. Estão mal equipadas para enfrentar a industrialização as doutrinas tecnocrata e totalitária. A moral idade ascética, a dedicação ao todo e a frugalidade são comuns ao início do capitalismo e do socialismo. Na guerra de classes entre as nações, a prática dos estados nacionais marxistas é idêntica à dos não-marxistas. Mas a sociedade sem classes fará o homem livre, mais cultural, mais moral? 4. Exame das oportunidades abstractas no concreto 5. A utopia do "verdadeiro homem" 6. Utopia e ideia de progresso 1. Para ajudar as nações menos desenvolvidas, a redistribuição não é suficiente, é preciso deslocação de capacidades. A prosperidade das nações mais ricas tem de contar com o crescimento zero, preconizado pelo Clube de Roma. O valor psicológico da promessa moral da utopia é grande. Fará sentido dizer que o homem como espécie se está tomar melhor e mais sábio? 2. O progresso é imputado ao domínio público. Como tendo descritivo e prescritivo, lei e ideal, facto objectivo e adoptado como subjectivo, é específico do Ocidente. Os programas de forças e partidos "progressistas" apontam um surto e prescrevem essa escolha. Na noção de "progresso" nota-se que a par do juízo de que o passado caminha para um futuro melhor, está a crença de que tal orientação é inerente ao processo e que há empenhamento em mantê-la. 3. Apesar de o progresso implicar melhoria material, não se esgota num sonho de consumidor. Para lá do materialismo, há a crença numa humanidade melhor, crença que arregimenta a tecnologia como seu veículo. Mas haverá progresso moral ? 4. Estará o progresso moral para trás do cultural? Ou o conhecimento de pessoa, sociedade e história atrás do conhecimento da natureza " Existe aqui um equívoco ético. O facto de ainda não termos tal conhecimento deve-se a que tais objectos não são cognoscíveis do mesmo modo que a natureza. Na verdade, cada geração tem de recriar o conhecimento das coisas humanas de acordo com a auto-interpretação mutável do sujeito histórico. Cada geração tem a ciência que herda e as humanidades que merece. A ideia de progresso nasceu na esfera privada. O indivíduo é capaz de progresso e tem de adquirir o que ainda não possui. A lei do desenvolvimento pessoal, a educação toma-se auto-educação após a maturidade. Mas haverá educação moral do género humano O progresso na civilização é indubitável. Mas difere nas esferas da ciência, da tecnologia e da ordem político-social; o progresso tem um preço, Os custos humanos da civilização são grandes. 5. Na ciência, o preço é a especialização que dita a qualidade pessoal do próprio conhecimento. A fragmentação do saber obriga o indivíduo a renunciar ao que ultrapassa a sua competência. Tanto os especialistas como o público leigo deixam de ser testemunhas participativas no saber. Os especialistas refugiam-se num saber esotérico, os leigos na pseudo-ciência e nas superstições do tipo da astrologia. A tecnologia justifica-se pelos efeitos. A história de sucesso fundada na dinâmica interna fê-la passar de meio para fim civilizacional de conquista da natureza. O homo faber julga-se superior ao homo sapiens quando o poder exterior assume o papel de bem supremo da espécie. O papel moralizador da ciência não resulta do progresso mas da disciplina científica. Quanto à tecnologia, é difícil provar se tem um papel desmoralizador ou moralizador. Só a ambivalência é indiscutível. 6. Na ordem socio-política, é pacífico aceitar que bondade do sistema e do indivíduonão coincidem. Os melhores regimes colocam condições para a qualidade moral - a virtude - dos seus cidadãos. Temos de procurar instituições para a pessoa mediana em que o sacrifício excepcional não tenha de ocorrer. Exploração económica e despotismo são imorais em si e desmoralizadores da acção. Mas será que uma boa ordem económica e social cria gente boa? Como sempre sucede na ética, o positivo é menos claro que o negativo, velha questão da relação entre o bom estado e os bons cidadãos. Escreveu Kant que o melhor estado seria o que funcionaria bem mesmo que composto por diabos; ou seja, de acordo com a lei da liberdade; ou seja, eticamente neutro. Isto opõe-se à teoria clássica (tipo Hannah Arendt) de que a boa cidade é uma escola de cidadania para os seus membros. O estado tem de dar o exemplo e espera-se mais dele do que o mero cumprimento da lei. Os gritos de batalha pelas virtudes dos cidadãos e do estado como instituição moral diminuíram desde Maquiavel na modernidade. Tomou-se dominante no Ocidente a visão de que o estado é uma instituição utilitária para proteger a segurança dos indivíduos e que deve interferir o menos possível na vida privada. Os direitos a assegurar excedem em muito os deveres pedidos até ao extremo de o indivíduo que se permite fazer tudo o que não é proibido. No estádio permissivo do liberalismo, cumprir as leis é só não as transgredir, e o melhor estado o que menos se nota. Comparado com isto, o socialismo é um regresso à Antiguidade. Uma sociedade, contudo, não escolhe entre abstracções mas sim entre situações históricas. O que nos preocupa são os efeitos produzidos pelos sistemas públicos. Os regimes de liberdade são superiores aos despóticos mas é evidente que a liberdade não é só usada para o bem. Cada acréscimo de liberdade aumenta o risco de abuso. Mas a liberdade é um valor ético em si que vale um preço alto. O risco de independência em seguir o juízo próprio e já é virtude em si. Governo da lei é preferível à arbitrariedade, igualdade perante a lei melhor que a desigualdade, direito de mérito melhor que lei de nascimento, acesso aberto a cargos melhor que privilégio, auto-controle melhor que censura, variedade melhor que colectivismo, tolerância preferível a pressões de conformidade, aceitação de etnias melhor que xenofobia. O primeiro elemento de cada par é eticamente superior aos opostos. Os governos melhores são fruto de longos esforços. Mas a sua superioridade traz germes de contradição e pode haver retrocessos. Os melhores sistemas são os mais precários. A natureza de compromisso qualifica a liberdade. No plano de lei e ordem, a segurança é melhor que insegurança, estabilidade é melhor que instabilidade, cumprimento das leis melhor que contravenção, policiamento público melhor que anarquia. No plano da segurança, a provisão de necessidades é melhor que deixar caprichos do mercado instaurarem carências. Das duas séries -liberdade e estabilidade -em que se afirma X é melhor que Y, nem tudo pode ser possuído no mesmo grau. Os bens da liberdade são obtidos a expensas de bens do tipo segurança. Um compromisso é necessário. Que é preferível? O compromisso é instável por natureza porque a premissa da liberdade obriga a readaptações sucessivas. A estabilidade não é o forte dos sistemas democráticos e a mentalidade utópica impacienta-se com compromissos. 7. É muito diferente o melhor estado como ideia em si independente de realização e o melhor estado possível em condições realistas limitado pelo homem e pela natureza. Há modelos de ambos os géneros, utópicos e paradigmáticos, modelos irrealizáveis e modelos implementáveis em condições históricas especiais. Cap. VI. Uma crítica da utopia e a ética da responsabilidade 1. A terra devastada e a revolução mundial "Os danados da terra que nada têm a perder senão as suas cadeias" não precisam de utopias para desejar a libertação. A questão é: quem são eles hoje e qual a resposta a dar- lhes! Ao sofrimento que é motor do desejo de libertação pode acrescentar-se um alvo utópico ou de compromisso realista ou revolucionário. I. Os réprobos da terra não são hoje uma classe como pretendia o marxismo, mas povos inteiros. As nações industriais alcançaram a pacificação mediante o contrato e concertação sociais. Este desenvolvimento reformista, conseguido por força e negociação, e persuasão moral é hoje reconhecido pela lei. A previdência social e cuidados de saúde eliminaram parte da insegurança da existência humana no Ocidente. A socialização crescente do estado-providência vive paredes meias com as tendências liberais. O subdesenvolvimento de certas nações é tão grande que nada adiantaria limar a crosta do poder que as governa. Na balança de poder internacional estas nações são a classe oprimida. Mas é mais fácil mobilizar as consciências para a responsabilidade no interior de uma sociedade que no exterior. A caridade começa em casa; o problema é que habitualmente também aí termina. Para um grupo, o interesse próprio esclarecido toma o lugar da ética e é esse interesse que aconselha a diminuição dos males do grupo. O que falta nas nações ricas não é só comiseração e simpatia mas discernimento para ver que mesmo o seu interesse deveria torná-las mais responsáveis pela miséria dos povos. Há vários tipos de interesses lúcidos. Um deles são as compensações e subsídios a longo prazo e o medo de que a acumulação de carências degenere em violência e guerra. Esta poderá surgir como guerra entre estados, coligação de povos pobres armados e dirigidos por um terceiro poder ou terrorismo internacional para extorquir benefícios por chantagem armada, eventualmente nuclear, A guerra de classes entre as nações poderia depois degenerar em guerra nacional tradicional ou racial. 2. Neste quadro, a prevenção construtiva de conflitos parece ser uma evidência do interesse. Poderia substanciar-se pela repetição da revolução industrial nos povos atrasados. Ou pela deslocação de capacidades das regiões de "alta pressão" económica para as regiões de "baixa pressão", Ou pela diminuição dos gastos de consumo supérfluos e prejudiciais à comunidade e ao indivíduo. Por outro lado, os males infligidos ao ambiente exigem novas tecnologias. A dialéctica de um progresso que tem de encontrar soluções para os problemas que criou é o problema central da ética da responsabilidade pelo futuro. Talvez seja preciso passar de alvos expansionistas para alvos homeostáticos na relação com o ambiente. O apelo à torça em nome da utopia revelar-se-ia como a mais contraproducente das soluções porquanto as primeiras vítimas seriam os revoltados. É intolerável que alguém se arrogue o direito de ser vanguarda esclarecida da humanidade. E os que sofreram como vítimas da balança de poder não moderada pela responsabilidade deveriam ser os últimos a exigir para si o arbítrio do poder. 2. Crítica do utopismo 1. Alimentação, matérias-primas e energia são os três factores implicados numa reconstrução do planeta que não resultará da tecnologia selvagem, A tecnologia tem preço e efeitos perversos. A irrigação traz salinização dos solos; o cultivo de planuras traz erosão; a desflorestação diminui a respiração de oxigénio. O problema das matérias-primas não é tanto o da sua existência ou não, como da sua extracção que exige doses colossais de energia. Concentremo-nos neste problema. A ascensão do nível de vida nos países desenvolvidos exigiu multiplicação do consumo de energia. E o problema não é apenas o das quantidades disponíveis, a obtenção, mas os efeitos do seu emprego na biosfera. Tais efeitos são descritos pelas leis da termodinâmica. Refira-se de passagem o célebre "efeito de estufa",
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