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1 INSTRUMENTOS LEGAIS DE GESTÃO URBANA: Referências ao Estatuto da Cidade e ao Zoneamento1 Pompeu Figueiredo de Carvalho2 Introdução O presente trabalho expõe as dificuldades de se implantar instrumentos jurídicos para a gestão adequada das cidades nos países periféricos, principalmente nos seus aspectos territoriais, tomando como tema o zoneamento e a contribuição do Estatuto da Cidade3. A legislação urbana, como quaisquer outros instrumentos jurídicos, está sempre defasada em relação à realidade que se quer regular. Assim, é imprescindível uma cultura de contínuo aperfeiçoamento dos instrumentos jurídicos, sendo inclusive, as vezes, necessário, não apenas inovações quantitativas, mas também momentos de superação qualitativa. O Estatuto da Cidade foi aprovado inicialmente pelo Senado em 1990 e retomado na Câmara Federal pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior, por esforço do Deputado Inácio Arruda em dezembro de 1999. Deste modo, tomando-se como referência a Lei Federal 6.766/79 que trata do parcelamento do solo, há um interregno de 20 anos desde a última legislação urbana inovativa, em termos qualitativos. No entanto, verifica-se, quão pouco o Estatuto vai ao encontro das lacunas a serem regulamentadas para a boa gestão urbana, levando-se em conta os problemas urbanos atuais, principalmente no que concerne à questão ambiental e os espaços públicos. O mesmo pode-se dizer de outras contribuições minoritárias na Lei de Crimes Ambientais e na Lei Federal 9.785/99 que modifica a Lei 6.766/79. Na verdade, amplia-se o leque de instrumentos de gestão sem se importar para a regulamentação (direta ou indireta) e para o aperfeiçoamento dos dispositivos existentes que superasse os impasses para sua eficaz aplicação. O trabalho tentará contribuir apontando os impasses e caminhos para a sua superação na realidade brasileira, colocados pela Agenda 21 e o Estatuto da Cidade. 1 Artigo originalmente publicado em: BRAGA, R; CARVALHO, P. F. (orgs.) Estatuto da Cidade: política urbana e cidadania. Ro Claro: LPM-IGCE-UNESP, 2000. pp. 41-59. 2 Prof Dr. do Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento do IGCE/UNESP – Campus de Rio Claro – e-mail: pompeufc@rc.unesp.br 3 Entende-se aqui neste trabalho como Estatuto da Cidade o Projeto de Lei 5.788 de 1990 – substitutivo aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados em Dezembro de 1999 (http://www.solar.com.br/~cdui/). 2 O Zoneamento como Instrumento de Ordenação Territorial Urbana A partir principalmente do início deste século no mundo ocidental, e mais tardiamente no Brasil, a regulação urbana evoluiu num corpo básico de leis, no qual inclui-se o zoneamento como um dos mais importantes, que podem ser arrolados como se segue abaixo: · Lei do Perímetro Urbano (incluindo área de expansão) · Legislação sobre Parcelamento do Solo (Federal, Estadual e Municipal) · Legislação sobre Patrimônio Cultural (Áreas e Prédios): Federal, Estadual e Municipal (complementar) · Lei de Zoneamento (ou de uso e ocupação do solo) Municipal · Legislação sobre o Meio Ambiente, Federal, Estadual e Municipal (complementar) · Código de Posturas – Municipal · Código Sanitário – Estadual, recentemente municipalizado Este instrumental e seu escopo exposto abaixo a partir de uma síntese baseada principalmente em Villa (1997) e Costa (1978), mas ampliada e atualizada, serve para ilustrar o escopo da operacionalização legal da gestão e do planejamento urbano que tem como objetivos: Objetivos Gerais - promoção e melhoria das condições de habitat viabilizando uma vida saudável, social, material e espiritualmente (cultura, lazer, educação e trabalho) para todos os munícipes. - proteção e progradação das condições geoambientais na cidade e no seu entorno, na perspectiva do desenvolvimento sustentável. - maior eficácia social e maior eficiência econômica do capital social, ou seja, do ambiente construído que é a cidade, distribuindo-se igualitariamente ou eqüitativamente os benefícios e ônus dos investimentos urbanos, na perspectiva da busca da sociedade sustentável. Para realizar tais objetivos usam-se várias estratégias depois operacionalizadas pelos instrumentos jurídicos e pela administração municipal. Estratégias - Orientar a expansão urbana, horizontal e vertical, buscando a eficácia social e eficiência econômica do sistema urbano, tanto nas atividades públicas como privadas. - Proteger os recursos naturais, através da preservação, da conservação e do uso racional segundo a sua vocação e capacidade de suporte de atividades como condição 3 material básica para realização de um habitat saudável sustentável. - Instrumentalizar a administração municipal com dispositivos reguladores, normativos e indutores dos investimentos públicos e privados. Implementação instrumental - Adotar o zoneamento em conjunto com um sistema de circulação orgânico como instrumento de direcionar a expansão urbana na configuração espacial desejada. - Adotar incentivos fiscais para priorizar áreas de urbanização, inclusive, e, especialmente, a habitação de interesse social, evitando-se a especulação imobiliária. - Usar os investimentos públicos como vetores de ocupação do espaço e de implementação da estrutura urbana projetada, dando prioridade aos espaços públicos e a habitação de interesse social. - Desenvolver ações integradas de urbanização adotando políticas igualitárias ou eqüitativas conforme o caso, administrando a mais-valia relativa urbana. - Estruturar o sistema viário, hierarquizando funções, priorizando a circulação local, as ciclovias, o pedestre e o transporte coletivo. - Adotar práticas que viabilizem a ecologia e o metabolismo do sistema urbano. O Zoneamento como instrumento primordial na gestão urbana – breves notas históricas e conceituais Ao longo da história das cidades, a agregação de populações segundo diversas afinidades foi uma prática quase orgânica na formação dos assentamentos humanos. De fato, senhores, servos, escravos e estrangeiros, homens, e mulheres não dividiam o mesmo espaço. Esta distinção que antes dava-se nas casas passa a ser feita mais intensamente nas sociedades mais adiantadas no tecido urbano. Como qualquer sistema que cresce , suas funções ficam especializadas em partes diferenciadas do sistema. A primeira distinção zonal estaria na clássica divisão entre as atividades urbanas e rurais. Nos assentamentos urbanos, a formação de zonas por etnias, religiões ou interesses profissionais também estão presentes ao longo do processo civilizatório da humanidade. No século XX, os processos de urbanização, industrialização e divisão do trabalho fazem as cidades cada vez maiores, mais especializadas e diferenciadas internamente. Um dos traços mais característicos das cidades modernas é o seu alto nível de diferenciação interna. Os conjuntos de zonas, comunidades ou bairros são freqüentemente distinguíveis em termos de aparência física, composição da população e aspectos relacionados com as características e problemas sociais, que se repetem de uma cidade para outra. A existência de padrões sociais e residenciais similares sugere que a estrutura urbana está determinada por um número de princípios gerais de 4 uso do solo e de localização. Isso indica o funcionamento do poder social subjacente e das forças econômicas que propiciam usos semelhantes, se não idênticos, de parcelas adjacentes na cidade. (...) (CLARK, 1985:181) O modelo de von Thunen desenvolvido em 1876, mais tarde adaptado por Alonso, evidencia o zoneamento em anéis radio-concêntricos de assentamentos mononucleares, do rural ao centro da aldeia, em função da distância com fundamento econômico. A divisão de classestambém em uma sociedade define acessos diferenciados aos vários setores urbanos. As soluções para a moradia do proletariado na industrialização capitalista primeiramente se deu em volta das próprias unidades fabris e em seguida em bairros operários, ainda no século XIX. No século XX, intensificam-se os estudos urbanos para entender a estrutura sócio-espacial das cidades Tabela 1), destacando-se a contribuição da chamada “Escola de Chicago”, base da “Ecologia Humana” que, segundo Pierson (1945) “(...) constitui campo preliminar ou introdutório que fundamenta tanto a Sociologia quanto todas as ouras ciências sociais.” As explicações sobre a diferenciação social focalizando principalmente as áreas problemáticas, instabilidade social e higiene pública foram formuladas segundo várias ideologias e fomentaram idéias de intervenção. Surgiram como conquistas sociais de lutas radicais que forçaram intervenções menos radicais assim como o socialismo fabiano, base do Labour Party na Inglaterra. Após o auge da acumulação primitiva e mesmo de sua maturação, surge na Inglaterra, em 1910, a primeira tentativa de prover instrumentos legais para a gestão urbana, além da perspectiva do projeto urbanístico. Esta é a fase de amadurecimento da idéia de planejamento urbano (e regional), baseada em um diagnóstico sócio econômico e ambiental, formulada pelo botânico escocês Patrick Geddes (1994), cujos preceitos estão no seu livro “Cidades em Evolução”. 5 Tabela 1 –Estrutura interna da cidade: as abordagens alternativas segundo Basset, Short e (1980) e Clark (1985) Abordagem Fundamento Teórico Área de Pesquisa Principais contribuidores Ecológica Livre-comércio Análise da área social Ecologia fatorial Conflito/admini stração Marxista Ecologia humana Economia clássica Urbanização Análise fatorial Sociologia weberiana Materialismo histórico Luta pelo espaço ente os grupos humanos Maximização da utilização; licitação de renda Conseqüências do desenvolvimento societário Padrões sociais e espaciais na cidade Arranjos de poder: “guardiões” Teoria do uso do solo urbano; mecanismos de alocação de moradores. Park (1916); McKenzie (1925) Thünen (1826) Shevky e Bell (1955) Berry (1971) Cox (1976); Pahl (1975) Harvey (1973) Fonte: CLARK, 1985:182. No entanto, enquanto as cidades européias pouco se atualizavam, surgindo então o movimento modernista encabeçado por Le Corbusier, nos Estados Unidos, as cidades expressavam setorizações bastantes peculiares, segundo o seu tamanho, como bem demonstrou a chamada Escola de Chicago. A segunda Grande Guerra levou os governos europeus a grandes reformas sociais nas quais incluíam a gestão urbana e regional do seu território por várias razões. Clark (1985, Tabela 2) resume esses marcos na Inglaterra e País de Gales: Tabela 2 – As origens do sistema de planejamento de 1947, na Inglaterra e no País de Gales: principais relatórios e legislação, 1940/1947 1940 Relatório da Comissão Real sobre a Distribuição da População Industrial (Relatório Barlow, Cmd. 61533) 1942 Relatório do Comitê Especializado sobre Compensação e Melhoria (Relatório Uthwatt, Cmd. 6386) 1942 Relatório do Comitê sobre o uso da Terra nas Áreas Rurais (Relatório Scott, Cmd. 6378 1943 Lei do Ministério do Planejamento Urbano e Rural 1943 Lei de Planejamento Urbano e Rural (Desenvolvimento Interino) 1944 Lei de Planejamento Urbano e Rural 1945 Lei da Distribuição da Indústria 1945 Plano Abercrombie de Desenvolvimento de grande Londres 1946 Lei das Cidades Novas 1947 Lei de Planejamento Urbano e Rural Fonte: CLARK, 1985:237 6 Idéias como “cidade-jardim”, “unidade de vizinhança”, “distrito industrial”, “cinturão verde” fomentaram a necessidade de consolidar uma idéia de cidade que não tivesse a conotação romântica de Ebenezer Howard, que superasse as limitações do “Movimento de Embelezamento Urbano” 4 e mesmo as propostas radicais e utópicas que rompiam com o passado como as de Marinetti e Le Corbusier. No fundo todos tinham visões utópicas, nas quais privilegia-se o design e os problemas sociais urbanos eram reduzidos ao caos físico das cidades: Apesar das aparências muito diferentes, a crença de que as condições sociais fossem um produto do meio ambiente físico foi comum a vários desses movimentos sociais e intelectuais. Foi porque as pessoas estavam forçadas a viver em condições de pobreza e superlotação que as cidades se caracterizaram pelas doenças, criminalidades e carências. A resposta foi acabar com as cidades do passado e substituí-las por novas comunidades planejadas. Este argumento levou, por sua vez, a visualizar uma sociedade utópica caracterizada pela estabilidade, saúde e abundância que existiram na sociedade planejada. Inspirada por essa filosofia, as proposições de planejamento que surgiram nos anos imediatos ao pós-guerra estavam fortemente inclinadas para o design físico. A ênfase principal foi dada ao controle do uso do solo como um meio para se conseguir, indiretamente, um conjunto livremente definido e objetivos sociais altamente idealistas. (Grifo meu.) (CLARK, 1985:235) De certo modo, o planejamento físico teve um desempenho importante nas sociedades capitalistas que alcançaram o desenvolvimento capitalista, ganhadores na distribuição desigual dos excedentes do sistema-mundo capitalista, tornando-o mais eficiente e alcançando uma certa eficácia social. Por sua vez, a própria legislação evoluiu no sentido de dar o verdadeiro papel ao planejamento físico no desenvolvimento capitalista, sendo complementado com outras políticas econômicas e socais na lógica do estado social democrata, em outra escalas espaciais. O zoneamento como expressão da organização territorial tenta maximizar as localizações das atividades urbanas, reduzindo desvantagens e otimizando vantagens de vizinhança, reconhecendo que o mercado é incapaz de fazê-lo, principalmente do ponto de vista da eficácia social, tendo em vista as desigualdades sociais em vários graus. Neste sentido, o grau de sucesso é diferenciado nos países centrais e periféricos. Os países periféricos, ou como a ideologia das classes dominantes preferem, “em desenvolvimento”, perdedores na distribuição desigual dos excedentes do sistema-mundo capitalista, também aplicaram o mesmo receituário ordenador do planejamento das cidades com resultados muito menos eficazes. Suas cidades sofreram um impacto da urbanização/industrialização muito mais 4 Villaça (1999:192) nos lembra: “Surpreendentemente, a mais notável obra brasileira do urbanismo embelezador não está no Rio de Janeiro, mas em São Paulo. Trata-se do monumental conjunto representado pelo Museu Paulista (ou do Ipiranga, projeto do arquiteto Tommaso G. Bezzi, concluído em 1890), seus jardins (projeto do belga Arsênio Puttermans, executado entre 1906 e 1909) e o monumento à Independência, construído em 1922 (Paiva, 1984, p.7). A essas obras veio a se acrescentar a avenida Dom Pedro I, que oferece perspectiva àquele conjunto.” 7 dramática e acelerada. Deste modo, nunca conseguiram implantar o planejamento urbano moderno de modo eficiente e muito menos, de modo eficaz, devido a dimensão dos problemas sociais, nos quais a população marginalizada não é o menor segmento, mas o maior segmento, ou ainda de grande peso, em um nível de desigualdade também fortemente exacerbado. Assim, surgiram em todas as cidades periféricas, duas cidades, a legal e a ilegal (muitas vezes inadequadamente chamada de clandestina). A legislação urbana que colocava parâmetros de habitabilidade para uma vida sadia mostrava-se inalcançável para uma grande parte da população. Absurdamente, alguns não criticam as condições desiguais de acesso a dignidade de moradia, mas culpama própria legislação, chamando-a de elitista, procurando legalizar as péssimas condições de vida, tendo uma visão niilista quanto aos instrumentos legais de gestão urbana. Trata- se, na verdade, de uma visão ingênua, paternalista, mas fortemente conservadora pois preserva o status quo da exploração do homem, na medida que nega como direito básico, condições mínimas de habitabilidade. O desrespeito à lei, na verdade, tem sido um ato de permissão e não um ato de omissão, coerente com as relações necessárias para viabilizar a acumulação nas sociedades periféricas em benefício de uma lumpen-burguesia local submissa aos interesse do capital mundial, isto é, uma acumulação baseada na superexploração do trabalho suportada também pela superexploração do meio ambiente. Os jornais freqüentemente denunciam estas omissões do poder público, em todas as suas esferas e em todos os níveis (Quadros 1 e 2). O insucesso da organização territorial das cidades em fazer face aos problemas sociais fomenta uma atitude niilista aos instrumentos de gestão urbana. Deste modo, esta atitude favorece inclusive a onda neoliberal dominante cada vez mais forte a partir da década de 90. Contraditoriamente, em pequena escala, surgem algumas ações de encontro a esta vertente, evidenciando um frágil debate sobre a necessidade de regulação ou não do estatal sobre a produção do espaço urbano. A primeira se expressa pela defesa de menor exigência dos parâmetros urbanos legais e pela regularização dos loteamentos clandestinos mesmo implantados de forma precária, como aconteceu nas áreas de mananciais na Grande São Paulo. A segunda é caracterizada por programas de reestruturação urbana procurando implantar parâmetros urbanos nos assentamentos precários como o Programa Favela-Bairro no Rio de Janeiro. Entendemos que a regularização de assentamentos urbanos precários pela implantação ou localização, devido a insustentabilidade de certos geossistemas, não melhora a qualidade de vidas pessoas que os habitam, mas se omitem na necessidade imperiosa de resgatar-lhe a vida urbana digna, ou seja, a cidadania. É o nivelamento por baixo que sempre viabiliza maiores pressões para baixar o nível de vida destas pessoas que se procura proteger e, na verdade, viabiliza a aceleração da acumulação excludente. Dada esta evolução histórica, convém relembrar um pouco dos fundamentos conceituais do zoneamento, nosso tema específico, no qual pode se evidenciar a sua validade como instrumento de gestão urbana, tanto do ponto de vista do interesse coletivo bem como do individual: 8 ARTHUR B. GALLION em seu livro The Urban Pattern diz que o “zoneamento (zoning) é o instrumento legal que regula o uso do solo no interesse do bem estar coletivo, protegendo o investimento de cada indivíduo no desenvolvimento da comunidade urbana” . A Suprema Corte de Justiça da Califórnia, segundo o autor acima citado, teria assim se pronunciado: “Zoneamento, em seu melhor sentido, não protege somente os distritos já estabelecidos, mas auxilia no desenvolvimento de novos distritos, de conformidade com um plano, tendo por base o bem-estar da cidade como um todo” . O professor HELY LOPES MEIRELLES assim se expressou sobre o assunto: “ O Zoneamento consiste na repartição do solo segundo a sua precípua destinação urbanística. Na conceituação da Carta de Andes (Bogotá, 1958) o zoneamento é o instrumento legal de que dispõe o Poder Público para controlar o uso da terra, as densidades de população, a localização, a dimensão, o volume dos edifícios e seus usos específicos, em prol do bem-estar social” . (...) No zoneamento o bem-estar social está acima dos direitos individuais e em nome e defesa desse bem-estar social o poder Público pode restringir o direito de construir e o de usar o solo, em desacordo com as normas de zoneamento. (Grifamos.) (FERRARI, 1977:323-4) Em termos pragmáticos e sintéticos, o zoneamento, segundo Campos Filho (1979:7) ao falar do caso de São Paulo, tem funções bastante definidas: Tradicionalmente se busca, através da política de uso do solo, atingir dois objetivos básicos: tornar coerente a densidade de ocupação com a capacidade de infra-estrutura de serviços urbanos e eliminar os usos cuja localização contígua seja considerada indesejável. O instrumento para atingir esses objetivos é a Lei de Zoneamento. (...) Um objetivo adicional buscado pela Política de Controle do Uso e Ocupação do Solo foi o de direcionar o desenvolvimento para áreas consideradas mais adequadas a receber maior contingente populacional e de atividades urbanas. A idéia de zoneamento teve uma evolução em sua prática que não transparece na literatura urbanística. É útil, muito provavelmente, recorrer a um manual clássico publicado em 1948 nos EUA e traduzido no Brasil em 1965, se se quiser dar um corte mais profundo no assunto: Natureza do Zoneamento Zoneamento é a divisão de uma comunidade em zonas para o fim de regular o uso da terra e dos edifícios, a altura e o gabarito das construções, a proporção que estas podem ocupar e a densidade da sua população. Chegou-se à conclusão de que as comunidades devem ser 9 divididas em zonas, cada uma com seu regime especial, porque um regulamento único, aplicável à comunidade inteira, não seria adequado às várias partes da cidade, que diferem bastante em caráter e função. A esse respeito, as posturas referentes ao zoneamento não se assemelham aos códigos de construções e códigos sanitários, os quais, em geral, se aplicam uniformemente a todos os terrenos ou edifícios de uso e caráter equivalentes, estejam onde estiverem dentro da área urbana. (...) As posturas de zoneamento regem, normalmente, o uso, a altura e a área. As normas impostas devem ser idênticas em zonas da mesma espécie ou dentro da mesma zona. (...) (McLEAN, 1965:306-12) Rigotti (1967:364-5), em obra clássica, resume a necessidade e a função e a caracterização do zoneamento no tempos atuais, resgatando o zoneamento instaurado em alguma das cidades antigas: (...) hemos señalado muchas veces que em ellas (células urbanas) convenía agrupar actividades parecidas o, por lo menos, no discordes y contrarias entre sí. Sobre este principio tan vago y tan genérico descansa toda la teoria de la zonificación, es decir, de la subdivisión de uma superficie, ya sea urbana o regional, em partes bien defiidas, y zonas teniendo cada uma caracteres propios derivados de la masa de las actividades allí concentradas. Tenemos, por conseguiente, uma limitación de superficie y al mismo tiempo uma especialización de tales superficies. (...) La zonificacioón, por el contrario, hoy casi em todas partes impuesta, aunque sea com caracteres distintos, es por sí misma um potente factor de orden, pero es al mismo tiempo um factor de índole social no despreciable. A través de la diferenciada regulación del uso de la propiedad privada (em el fondo, las limitaciones impuestas por la zonificación son limitaciones a la absoluta libertad privada) se tiende a obtener um mejoramiento del bienestarr general y al mismo tiempo se consigue uma equiparación de valores, pues los terrenos situados em posiociones parecidas asumen valores semejantes, em tanto sean más o menos equivalntes sus posibilidades de aprovechamiento. Además, el reagrupar importantes núcleos de actividades afines conduce también al máximo aprovechameiento de las instalaciones colectivas necesarias, dando origen a uma mejor organización y, además, a uma no despreciable ventaja económica que se refleja em toda la colectividad. 10 Y es precisamente esta función social de pública utilidad que confiere um fundamento legal a la institución, ya abiertamente demostrado em muchas legislaciones que admiten y prevén la zonificación, a veces forzada y a veces,lo que es mejor, com resarcimiento a los particulares dos eventuales prejuicios. A experiência brasileira de zoneamento teve uma história peculiar, formulada pela realidade também tão peculiar: um país que se urbanizava a partir de uma cultura rural baseada na escravidão, cujo assentamento base estava firmada na forte segregação “casa grande – senzala”. A influência estrangeira vem mais tarde com os conceitos de “urbanismo”, “planejamento urbano”, “development”, “integrado” etc.. Para finalizar este item, vale recorrer a Villaça (1999), um estudioso do tema, que faz uma síntese exemplar na qual apreende-se o movimento aleatório e contraditório desta evolução: Entende-se por zoneamento a legislação urbanística que varia no espaço urbano. No Brasil, o zoneamento tem início no Rio de Janeiro e em São Paulo nas últimas décadas do século passado. O projeto apresentado à Câmara do Rio de Janeiro em 1866 por José Pereira Rego (Benchimol, 1992, p. 131) era sem dúvida de zoneamento, mas foi arquivado. Contudo, em junho de 1878 a “[...] Câmara deliberou não conceder mais licença para a construção ou reconstrução de cortiços no centro do Rio de Janeiro [...)”, embora nunca tenha sido capaz de executar essa determinação (Benchimol, 1992, p.133). No final do século passado, eram freqüentes as leis que proibiam cortiços ou vilas operárias apenas em algumas partes da cidade, mas não em outras (Villaça, 1986, p.41; Queiroz & Pechman, 1983, p.61). Tais dispositivos já representavam os rudimentos de um zoneamento. Este tem uma história bastante destacada da dos planos diretores, inclusive com muito menos influência estrangeira – se é que esta tenha existido -, como mostra o projeto de 1866 acima mencionado. Assim, um plano de zoneamento não é aqui considerado plano diretor, embora todo plano diretor – no discurso convencional – deva incluir um plano de zoneamento (o que na verdade quase nunca ocorreu) e embora não seja raro chamar-se um plano de zoneamento de “plano diretor”. O zoneamento – ao contrário do planejamento urbano strictu sensu – surge no Brasil sem qualquer elaboração teórica, sem participação de intelectuais estudiosos da cidade e sem a influência do pensamento estrangeiro. Recorde-se que o final do século XIX, quando se inicia no Brasil, o zoneamento mal ensaiava os primeiros passos na Alemanha e nos Estados Unidos. O que se inicia no Brasil corresponde (e continuará correspondendo) a interesses e soluções específicos das elites brasileiras. Mesmo recentemente, na maioria dos planos diretores brasileiros o zoneamento aparece apenas como princípios vagos e não- operacionais. Ao contrário, as leis específicas de zoneamento, separadas dos planos diretores são operacionais, aprovados nas Câmaras Municipais e executadas (evidentemente com os percalços da execução de tantas leis no Brasil). 11 A história do zoneamento é totalmente distinta do planejamento urbano stricto sensu, e até hoje predomina o zoneamento separado do plano diretor (embora no discurso, se afirme que o zoneamento é parte integrante de um plano diretor). Esta é a razão pela qual o zoneamento é a prática de planejamento urbano lato sensu mais difundida n Brasil. Nos seus quase cem anos de existência entre nós, quase que exclusivamente serviu para atender a interesses claros e específicos, particularmente os bairros da população de mais alta renda. (VILLAÇA, 1999:177-78) A falta de um zoneamento, ou de sua inadequação, ou da falta de sua implantação, criam e agravam problemas sociais urbanos de várias ordens e dimensão. Os inconvenientes de não ter uma boa prática do instrumento do zoneamento, por várias razões, desde a sua formulação e principalmente pelo desrespeito, vem sendo mostrado freqüentemente na imprensa. Primeiramente, como fatos absurdos, mas sem um adequado equacionamento do problema, portanto, das suas causas e das suas soluções. Mas já começa-se associar à falta de espaços públicos e de lazer a grande incidência de violência. É também já incipiente as associações entre inundações e deslizamentos de terra à ocupação de áreas de mananciais e impróprias para às atividades urbanas (CARVALHO, 2000). Algumas constatações na experiência de menos de um ano que tivemos na Secretaria de Desenvolvimento e Meio Ambiente e Planejamento no Município de Rio Claro – SP, por exemplo, endossam a tese do quanto faz falta uma legislação urbana bem consistente para a gestão das cidades na solução de criação de condições para o desenvolvimento de atividades e da convivialidade social. Por exemplo, a) nenhum “ferro velho” estava bem situado no tecido urbano e bem instalado no lote, apesar da necessidade social, econômica e ecológica desta atividade. b) a legislação permitia a instalação de pequena indústria em certas zonas residenciais (na verdade, cerca de 85% do total), mas a caracterização do seu porte e da sua atividade não estava regulamentada ficando a sua permissão a mercê do poder discricionário do servidor público de plantão; c) havia uma grande pressão para a instalação de serviços e comércio nas áreas estritamente residenciais; d) havia uma grande pressão para a instalação de edifícios além do coeficiente de aproveitamento permitido; e) havia uma grande pressão para instalação de postos de vendas de gás (doméstico) e combustíveis tendo em vista a desregulamentação do setor pela área federal, mas sem regulamentação estadual ou municpal; f) eram inúmeras as reclamações por poluição sonora g) a instalação do comércio ambulante, tendo em vista o seu caráter social, tinha o seu licenciamento bastante “politizado” instalando-se o consenso que a lei podia ser 12 flexível na medida do poder político dos interessados, prejudicando também o princípio da isonomia da lei; e assim por diante. h) muitas áreas públicas foram cedidas para outras instituições de direito privado como clube e igrejas. i) as áreas públicas também são alvo das administrações públicas como pode se observar recentemente quando a administração municipal (1997-2000) colocou à disposição ou utilizou áreas públicas para obras regionais e de caráter excepcional como presídio, reformatórios infantis, estações de tratamento de esgoto em bairros residenciais, sempre de baixa renda. j) o próprio poder executivo tentou despoticamente modificar o Plano Diretor ao arrepio das leis federais, a legislação urbana, ao tentar liberar todas as áreas de preservação permanente – particularmente as áreas marginais dos sistemas fluviais caracterizados como várzeas e matas ciliares previstas pelo Código Florestal, antecipando assim o lobby rural no bojo das modificações que também atacavam a Amazônia e as áreas de mangues. Pergunta-se, então, até que ponto o novo Estatuto da Cidade, vem ajudar as administrações municipais e as comunidades urbanas na gestão e prevenção destes problemas. Este apenas reafirma o Plano Diretor como instrumento básico da Política Urbana de competência municipal (alínea a) do inciso III do artigo 4º e parágrafo 1º do artigo 40. As inovações sobre as disposições na questão ambiental e do desenvolvimento sustentável fica na generalidade dos objetivos. Novos instrumetnos são colocados mas não são regulamentados. A eficácia destes instrumentos fica na generalidade uma vez que sua especificação fica sujeita às normas que deverão demorar para vir, competência da união: inciso IV do artigo 3º, Enquanto isto, o instituto das áreas de preservação permanente foi modificado por medida provisória e o das áreas públicas foi modificada pela lei 9.785/99, ambos na perspectiva do descentralização municipal, ficando sujeita aos interesses políticos locais, arena na qual o “lobby” imobiliário é bastante forte. Teoricamente , o critério de densidade urbana substituindo os 35% da Lei 6.766/79seria mais técnico e racional, mas na prática é frágil devido a quase total ausência de aparelhos técnico-administrativos de planejamento com a autonomia compatível às suas atribuições nas administrações municipais. Observa-se também que em relação às áreas de preservação permanente há um ignorância quanto ao papel das mesmas na ecologia urbana, na qual sua função é de dar equilíbrio (diminuindo os impactos da mesma) às ocupações ditas tradicionalmente urbanas. As áreas de preservação permanente nas cidades tem uma função urbana, portanto; não se trata de um uso não urbano. Por sua vez as áreas públicas, aparentemente, estariam mais protegidas adotando-se o critério de densidade ocupacional, mas frente à ausência de parâmetros urbanos, os mesmo ficam sujeitos ao poder discricionário do servidor público, fácil presa do lobby imobiliário. Basta lembrar que as ocupações ilegais da Serra da Cantareira na Região Metropolitana de São Paulo, passaram a se verificar principalmente quando foi criada a administração regional. 13 Deste modo, fica evidente tanto a necessidade de fortalecer um estrutura administrativa preparada eticamente e tecnicamente e valorizada como curadora do patrimônio público e do bem- estar social bem como o fortalecimento da opinião pública esclarecida e com eficazes e eficientes canais de expressão e atuação. Neste caso, o Estatuto da Cidade reforça a questão da gestão democrática da cidade no Capítulo V, do artigo 48 ao 50. A Necessidade de Instrumentos de Gestão Urbana e seu Aperfeiçoamento: os objetivos, a elaboração, a implantação e o controle do zoneamento Desenvolveu-se a idéia dominante de que os problemas urbanos derivavam da falta de planejamento de nossas cidades. A idéia de “caos urbanos” tornou-se um lugar-comum, e sua causa era a falta de planejamento. Dezenas e dezenas d e planos foram elaborados, como vimos, mas eles podem ter conseguido tudo, menos reduzir o caos e os problemas urbanos. Os planos passam a valer por si sós, e não pelos seus resultados, (...) Cada vez que um tipo de plano fracassa, outro é inventado para tomar seu lugar. A expressão “urbanismo”, por exemplo, cai em desgraça, é considerada obsoleta, sendo substituída por “planejamento urbano”, que passa a ser uma conotação “moderna”. Vários novos nomes surgem para salvar os planos do fracasso. Surgem assim não só os Planos Integrados, mas o Plano Programático, o Plano Indicativo etc. etc.. (...) (...) Uma das mais notáveis criações do planejamento urbano que está profundamente arraigada na consciência social dominante n Brasil é aquilo que podemos chamar de idéia do “plano-mito”. O planejamento é encarnado numa idéia – hoje nada claro – de plano diretor e passa a ser admitido a priori como algo bom, correto e necessário em si. Adquire no plano da ideologia – uma incrível credibilidade e autonomia, principalmente se lembrarmos que, a rigor, nas décadas de 1980 e 1990, os urbanistas mais atuantes já não sabem o que é um plano diretor, tamanhas são as controvérsias entre eles. A ideologia, entretanto, encarregou-se de fazer com que os leigos não só saibam o que é plano diretor como lhe atribuam poderes verdadeiramente mágicos. (...) (VILLAÇA, 1999:227, 229-30) Constata-se que a tradição do bacharelado e da retórica é ainda grande no Brasil. Tenta-se resolver os graves problemas sociais do país mais com palavras do que com ações. O Estatuto da Cidade renomeia o projeto de lei de desenvolvimento urbano tão discutido no país em 1983, mas incorpora pouco o avanço das ciências sociais e ambientais na compreensão da produção do espaço urbano. Do mesmo modo, foi pensado isolado de outras ações reivindicadas pelos movimentos de reforma urbana mais amplamente detalhada. Como conseqüência, seus objetivos são amplos, mas genéricos. 14 Uma lei deve complementar uma lacuna na legislação vigente, quantitativa ou qualitativa. A presente discussão do Estatuto da Cidade carece de um diagnostico, ou mesmo de uma exposição de motivos, consolidada e atualizada Desconsidera-se uma avaliação da aplicação, ou da sua falta, dos instrumentos de gestão urbana vigente e suas implicações na qualidade de vida urbana, bem com a sua a quase total ausência na quase totalidade dos municípios brasileiros. Ampliam-se os instrumentos de gestão urbana, mas não aperfeiçoam-se os atuais, através de regulamentação, complementação e suplementação. Prefere-se trazer coisas ainda mais gerais. Deste modo, o Estatuto da Cidade atua como uma listagem de possibilidades de gestão e intervenções urbanas, uma vez que sua redação não dá teor imperativo na sua aplicação, coisa que quase que é impossível devido a sua generalidade e total falta de mínima regulamentação. Outra coisa grave é a falta de sanção para o descumprimento das leis. Por exemplo, o município que não se dispuser a colocar nenhum instrumento de da política urbana (Capítulo II, dos instrumentos da política urbana – Seção I), por exemplo, o zoneamento ambiental [inciso c)] estaria inadimplente com a lei mas o que isto implica? Os administradores estariam sujeitos a crime de responsabilidade pela incúria do meio ambiente? As respostas, infelizmente, são claras e evidenciam a pouca eficácia da lei. Quem se dispuser a cumprí-la não precisa dela, quem não quiser cumprí-la estará a salvo de qualquer sanção. O Estatuto, portanto, funciona como uma agenda para debate, um pequeno complemento do artigo 182 da Constituição Federal, cujas disposições tem pouca eficácia como mostra a realidade. O Estatuto também serviria, mas pouco acrescentaria, para as decisões discricionárias e para as lides judiciais e de movimentos sociais (cidadania, meio ambiente, qualidade de vida etc.). Como deveria ser implantado os instrumentos de gestões urbana e as novas questões? Fica tudo a mercê da boa vontade dos Estados e Municípios, mais ou menos pressionados pela opinião pública. No nível federal, a implantação é obliterada pela pouca importância da Secretaria de Política Urbana no âmbito do Ministério de Planejamento, tendo em vista as suas competências e atribuições, apesar de estar na pauta a criação do Ministério de Desenvolvimento Urbano. O Estatuto da Cidade também está dissociado do debate, muito mais avançado e amais amplo, da Agenda 21 no que concerne às cidades sustentáveis. Há a necessidade da conjunção de esforços. A participação pública, no entanto, apresenta as suas contradições. Enquanto o Estado de São Paulo, está promovendo o debate da Agenda 21 para a sua crítica e detalhamento, com a distribuição de publicação com avaliações, premissas e princípios gerais (Revista Ligação, 2000), o Ministério do Meio Ambiente já publicou 6 volumes com profícuo e qualificado detalhamento. (BEZERRA & FERNANDES, 2000). O controle da implantação da legislação urbana e sua eficácia, não deverá resumir-se à panacéia da descentralização máxima, o seja da municipalização geral e irrestrita sem nenhuma obrigação do Estado e da União. Ora, se a União acha importante o controle, por exemplo, da merenda escolar, apesar da sua execução local, por que não cuidar também com o mesmo zelo do patrimônio público que o bem estar coletivo realizado nos ambientes construídos, ou seja, as cidades. As cidades não são isoladas, elas formam regiões, inclusive interestaduais. As regiões formam outras regiões, inclusive interestaduais, logo, federais. As cidades impactam as bacias hidrográficas que no 15 nível macro, são todas federais. Cuidar da cidade é também cuidar da cidadania além da eficiência econômica da base técnica que é a cidade. É necessário pensar no todo para encontrar os limites e as potencialidades das ações setoriais e de cada instrumento de gestão urbana. É mister desvelar as diferenças para combater a desigualdades perversas. Os planosde uso e ocupação do solo – zoneamento -, os planos diretores aceitam uma sociedade desigual tendo como base um mínimo de dignidade humana e assim estabelecem parâmetros e ações diferenciadas, alguns até com objetivos redistributivos. Mas a realidade mostra que há largos setores que não se enquadram no parâmetros mínimos. São as zonas onde “moram” apartados os excluídos do crescimento econômico (Quadro 1 e 2)Estes atualmente são identificados e pelo menos tornados mais reais, embora o discurso da clandestinidade, que mascara a omissão do Estado. De fato, o Estado sabe que o modelo econômico produz e se reproduz estes territórios marginais à vida digna. Sem ignorar a cidade ilegal, o zoneamento é necessário com padrões mínimos de habitabilidade definidas pelos princípios arquitetônicos, urbanísticos e de saúde pública que considerem igualmente os corpos e mentes de todos os homens, bem como a sua inexorável sociabilidade. As cidades ilegais devem ser objetos de intervenção do estado com o intuito de promover a melhoria progressiva, mas determinada, destes habitats como direito das pessoas que ali vivem. Em muitos casos críticos deve-se fazer a remoção. Não se pode simplesmente legalizar estes assentamentos subnormais e institucionalizar a miséria. Não se pode nivelar por baixo, porque isto é uma opção para o subdesenvolvimento, para a barbárie. Para se libertar das armadilhas das soluções imediatistas de curto prazo, que a longo prazo anula-se, é necessário uma compreensão econômico-política da produção do espaço urbano (CARVALHO, 1996). Alguns exemplos, podem ilustrar esta hipótese. Até que ponto pode-se melhorar um assentamento subnormal construído sobre uma canalização de gás ou sob um rede de transmissão de alta tensão, ou de mananciais. A questão é que muitos deste assentamentos são comprovadamente de risco e têm causado mortes em várias cidades brasileiras, passando então a ser casos de polícia (CARVALHO, 2000). E a omissão do Estrado continua, em duas mãos, primeiramente em permitir estes assentamentos irregulares e de risco, e em segundo lugar, em não prover as necessidades básicas de uma população marginalizada pelo modelo econômico adotado pela própria sociedade e pelo Estado. Deste modo, o zoneamento, é ainda um importante instrumento de gestão urbana com objetivos claros, mas que precisam cada vez mais ser assenhorados pela população em geral. Os vários graus de sucesso e as experiências nas cidades brasileiras podem ser importantes lições para os que lidam com o assunto (NERY Jr. et alii, 1996). A Agenda 21 Brasileira para as cidades sustentáveis (BEZERRA & FERNANDES, 2000) insere-o no conjunto de políticas e mostram a sua atualidade. Das 4 estratégias, a primeira é a que trata da regulamentação do uso do solo urbano e do ordenamento do território, na qual foram arroladas 15 propostas em quatro temáticas, a saber: 16 Fortalecimento da dimensão territorial no planejamento governamental , nos três níveis de governo, destacando a importância da articulação entre as políticas, os programa e as ações de cooperação entre os diferentes órgãos e setores de governo. (...) Produção, revisão, consolidação e implementação de instrumentos legais federais, estaduais e municipais de maneira a ajustá-los às necessidades surgidas em decorrência dos processos de urbanização acelerada do país, bem como às novas pautas de desenvolvimento endossadas pelo Estado e pela sociedade, em particular quanto ao direito ambiental e à função social da propriedade. Políticas e ações de acesso à terra, regularização e redução do déficit habitacional mediante o combate à produção irregular e ilegal de lotes, parcerias com o setor empresarial privado e com a população, linhas de financiamento para a locação social, aproveitamento dos estoques de terras e habitações existentes e recuperação de áreas centrais para ampliar o acesso à moradia. Melhoria da qualidade ambiental das cidades por meio de ações preventivas e normativas de controle dos impactos territoriais dos investimentos públicos e privados, do combate às deseconomias da urbanização, da elaboração de planos e projetos urbanísticos integrados com as ações de transporte e trânsito, da adoção de parâmetros e de normas voltadas para a eficiência energética, o conforto ambiental e a acessibilidade, da ampliação das áreas verdes e das áreas públicas das cidades, da conservação do patrimônio ambiental urbano, tanto o natural como o natural e paisagístico. Deste modo evidencia-se a contribuição da retomada do Estatuto da Cidade. As instâncias sociais se interagem e são muitas vezes recortes virtuais,. Deste modo, o Estatuto da Cidade tanto está incluído na temática 2 da Estratégia 1 como está inserida na Estratégia 2 que é voltada para o desenvolvimento institucional e para o fortalecimento da capacidade de planejamento e gestão ambiental urbana. Confunde-se implementação com implantação, processos administrativos com a ação substantiva. Como contribuição para aperfeiçoar o Estatuto da Cidade recomendar-se-ia: 1. Prover parâmetros nacionais diferenciados para densidade ocupacional para definir as áreas públicas dos loteamentos até que os municípios se enquadrem na alínea b) do Artigo 4º do Estatuto da Cidade, condição a priori e necessária para a implantação de projetos de requisição urbanística; 2. Instituir como obrigação o zoneamento ambiental [alínea c) do Inciso I do artigo 4º do Projeto de lei do Estatuto da Cidade], com prazo de carência de 5 anos, sob pena de suspender novas licenças de parcelamento do solo urbano, obrigando neste interregno, a obrigação de Estudo de Impacto de Vizinhança [inciso VI do artigo 4º] por parte dos loteadores na falta deste; 17 3. Instituir em termos pragmáticos a responsabilidade civil por danos estruturais (no loteamento) e ambientais incluindo a vizinhança, aos empreendedores dos loteamentos, à semelhança dos edifícios; 4. Privar os municípios que não cumpram a obrigação do zoneamento ambiental dos programas federais e estaduais de desenvolvimento urbano, habitação e saneamento, com exceção dos projetos de recuperação de áreas degradadas e da “agenda marrom”. 5. Instituir instrumentos de controle, com sanções administrativas, em nível federal e estadual, para o controle da gestão ambiental pelos municípios. Tais disposições legais deverão ser acompanhadas por várias ações na área executiva para a sua efetiva implantação e eficácia. A “máquina” de planejamento está enferrujada e o Estatuto e Agenda 21 nos fazem retornar a fazer planejamento, sendo necessário retomar velhas lições. Por fim, retoma-se uma vontade de pensar os nossos lugares e renasce nossos desejos por lugares e dias melhores. Bibliografia ABRAMS, Charles. O Uso da Terra nas Cidades. In DAVIS et alii. Cidades: a urbanização da humanidade. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1970. ARANTES, Otília; VAINER, Carlos e MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único. Petrópolis, Editora Vozes. BEZERRA, Maria do Carmo de Lima & FERNANDES, Marlene Allan (organizadoras). Cidades sustentáveis: subsídios à elaboração da Agenda 21. Brasília, MMA/Ibama, 2000. CAMPOS FILHO, Cândido de Malta. Introdução In COGEP/PMSP. Política de controle de uso e ocupação do solo/Política de preservação de bens culturais e paisagísticos. São Paulo, Cogep/PMSP, 1979 CARVALHO, Pompeu Figueiredo de. Por uma compreensão econômico-política da habitação e da produção do espaço urbano. In Anais do Encontro Nacional da VI ANPUR, Brasília, 1996, páginas 606-20. _______________________________. Impactos Ambientais em Paisagens Urbanas: subsídios à uma na urbanização. 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Fonte: Folha de São Paulo, 2000A:A-1: Elaboração: CARVALHO, P. F. de – 2000. QUADRO 2 – A ECOLOGIA URBANA E A FUNÇÃO DA NÃO USO DO SOLO Área cuja função na ecologia urbana só pode ser exercida se não for ocupada e preservada. 143 loteamentos clandestinos nos anos 90 transformam a Serra da Cantareira em área de risco com impactos em outra áreas, como o assoreamento do rio Tietê. Fonte: Folha de São Paulo, 2000B:A-1; Elaboração: CARVALHO, P. F. de – 2000.
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