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Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 35 Louise C. Ivers e Edward T. Ryan Introdução Plasmódios da Malária Casos 1 e 2 Fisiologia dos Plasmódios da Malária Ciclo de Vida Metabolismo do Heme Cadeia de Transporte de Elétrons Farmacologia dos Agentes Antimaláricos Inibidores do Metabolismo do Heme Inibidores do Transporte de Elétrons Inibidores da Tradução Inibidores do Metabolismo do Folato Resistência a Agentes Antimaláricos Outros Protozoários Caso 3 Fisiologia dos Protozoários Intestinais Ciclo de Vida da Entamoeba histolytica Vias de Fermentação Farmacologia dos Agentes Antiprotozoários Metronidazol Tinidazol Nitazoxanida Outros Agentes Antiprotozoários Helmintos Caso 4 Fisiologia dos Helmintos Ciclo de Vida do Onchocerca volvulus Atividade Neuromuscular Farmacologia dos Agentes Anti-Helmínticos Agentes que Interrompem a Atividade Neuromuscular Outros Agentes Anti-Helmínticos Conclusão e Perspectivas Futuras Leituras Sugeridas INTRODUÇÃO Mais de um bilhão de pessoas no mundo inteiro são infectadas e infestadas por parasitas. Os parasitas de importância médica incluem os protozoários (como os microrganismos que causam malária, toxoplasmose, giardíase, amebíase, leishmaniose e tripanossomíase) e os helmintos (“vermes”). Os vermes que infestam os seres humanos incluem os cestódeos (“vermes cha- tos” ou “tênias”, como os helmintos causadores da teníase), os nematódeos (“vermes cilíndricos” que causam filaríase, estron- giloidíase e ascaridíase) e os trematódeos (“fascíolas”, como o verme que causa a esquistossomose). Idealmente, os agentes antiparasitários devem ser dirigidos para alvos constituídos por estruturas ou vias bioquímicas pre- sentes ou acessíveis apenas nos parasitas. Entretanto, muitos dos fármacos antiparasitários atuam através de mecanismos desco- nhecidos ou pouco definidos. Este capítulo trata de vários dos fármacos mais bem definidos, incluindo aqueles ativos contra espécies de Plasmodium (que causam a malária), Entamoeba histolytica (que provoca amebíase) e Onchocerca volvulus (res- ponsável pela oncocercíase, uma infecção causada por filária, conhecida como “cegueira do rio”). Em cada um desses casos, os agentes antiparasitários interferem nas necessidades metabó- licas do parasita: a dependência dos plasmódios causadores da malária em relação ao metabolismo do heme, a dependência dos parasitas intestinais em relação a vias específicas de fermenta- ção e a dependência dos helmintos na atividade neuromuscular. Esses três exemplos não proporcionam uma abrangência dos antiparasitários, porém ressaltam a oportunidade de utilizar ou planejar agentes farmacológicos para interromper exigências metabólicas dos parasitas. PLASMÓDIOS DA MALÁRIA A cada ano, 300 a 500 milhões de indivíduos em mais de 90 países desenvolvem a malária, e 1,3 a 2,7 milhões morrem dessa infecção. A malária representa a doença parasitária mais importante e uma das infecções mais importantes dos seres humanos. A malária humana é causada por quatro espécies de plasmódios parasitas: Plasmodium falciparum, P. vivax, P. malariae e P. ovale. O tipo mais grave de malária é provocado por P. falciparum. Caso 1 Binata, uma menina de 3 anos de idade que vive no Senegal, goza de boa saúde quando, um belo dia, começa a sentir calor, Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 591 tem sudorese e calafrios com tremores, pára de alimentar-se e torna-se intermitentemente apática e letárgica. Vários dias depois, esses sintomas alcançam o seu auge com uma convulsão e estado de coma. Os pais de Binata a levam imediatamente à clínica local, onde a criança inconsciente é examinada: o pescoço não apresenta rigidez, porém registra-se uma temperatura de 39,4ºC. Os pulmões são claros à ausculta, e não há exantema aparente. O esfregaço de sangue periférico revela trofozoítos em anel de P. falciparum em cerca de 10% dos eritrócitos. Binata recebe os únicos agentes antimaláricos disponíveis na clínica: cloroquina e pirimetamina–sul- fadoxina; todavia, não se observa nenhuma melhora, e a criança falece em 24 horas. QUESTÕES 1. Por que Binata morreu? 2. Por que Binata não melhorou após a administração dos agentes antimaláricos? 3. Com que freqüência uma criança morre de malária? Caso 2 O Sr. G é um engenheiro de software de 36 anos de idade, casa- do, nascido e criado na Índia. Muda-se para os Estados Unidos e goza de boa saúde durante os primeiros seis meses. Começa então a apresentar episódios de febre, cefaléia e dores no corpo. Uma semana depois procura o seu médico, que, ao examinar um esfregaço de sangue do Sr. G, estabelece o diagnóstico de malária e prescreve cloroquina para o tratamento. A terapia com cloroqui- na produz resolução completa dos sintomas. Entretanto, o Sr. G observa uma recorrência da febre e dos outros sintomas três meses depois e retorna ao consultório do médico. QUESTÕES 1. Qual a provável explicação para a recorrência da febre do Sr. G? 2. De que maneira o tratamento do Sr. G pode ser modificado para que não haja recidiva de sua doença? FISIOLOGIA DOS PLASMÓDIOS DA MALÁRIA Ciclo de Vida O ciclo de vida da malária envolve um parasita, um mosqui- to vetor e um hospedeiro humano (Fig. 35.1). Um mosquito Anopheles spp. pode ingerir as formas sexuadas dos parasitas da malária (gametócitos) ao alimentar-se do sangue de um ser humano infectado. Após fusão dos gametócitos masculino e feminino e maturação do zigoto no mosquito, os esporozoítos são liberados do oocisto. Os esporozoítos, que migram para as glândulas salivares do mosquito, podem ser inoculados na corrente sangüínea de outro hospedeiro humano durante uma refeição subseqüente do vetor. Nos seres humanos, os esporozoí- tos abandonam o sangue e multiplicam-se no fígado, formando esquizontes teciduais. Esse estágio hepático exo-eritrocitário é assintomático. Numa infecção típica por P. falciparum, as células hepáticas liberam parasitas na corrente sangüínea, sob a forma de merozoítos, dentro de 1 a 12 semanas após a picada infecciosa do mosquito. Um único esporozoíto pode produzir mais de 30.000 merozoítos. Os merozoítos invadem os eritróci- tos, multiplicam-se de modo assexuado e formam esquizontes sangüíneos. Trata-se do estágio eritrocitário. Os eritrócitos infectados acabam sofrendo ruptura, liberando outra geração de merozoítos, que continua, assim, o ciclo eritrocitário. Um pequeno número de merozoítos também sofre maturação, dife- renciando-se em gametócitos. A ingestão desses gametócitos circulantes por um mosquito apropriado completa o ciclo de vida. Os sintomas clínicos da malária, mais tipicamente febre, são causados pela lise intravascular dos eritrócitos e liberação subseqüente dos merozoítos no sangue. A febre de Binata e a do Sr. G estavam associadas a esses episódios hemolíticos. Infelizmente, Binata desenvolveu malária cerebral por P. fal- ciparum. Os eritrócitos infectados pelo P. falciparum expressam “pro- tuberâncias” sobre a sua superfície, que são constituídas por proteínas do hospedeiro e do parasita. As proteínas do parasita incluem a PfEMP-1, uma família de proteínas constituída por aproximadamente 100 a 150 produtos gênicos, que medeiam a fixação dos eritrócitos infectados a receptores celulares — incluindo CD36, ICAM-1, ELAM-1 e sulfato de condroitina — sobre a superfície endotelial no hospedeiro humano. Essa ligação intravascular durante um episódio de malária só ocor- re na infecção causada pelo P. falciparum e contribui para a “deposição” intravascular dos eritrócitos. A fixação ao endo- télio diminui o tempo durante o qual os eritrócitos infectados Fígado Esporozoítos Infecção Merozoítos Circulação Gametócitos Transmissão para o mosquito Ciclo assexuadoFig. 35.1 Ciclo de vida da malária. Os plasmódios da malária possuem um complexo ciclo de vida, que depende do ser humano e do mosquito Anopheles spp. Os gametócitos presentes no ser humano infectado são transferidos para o mosquito durante uma picada. No estômago do mosquito, forma-se o zigoto, que amadurece, transformando-se em oocisto na parede externa do estômago (não ilustrado). Os esporozoítos liberados do oocisto migram para as glândulas salivares. Durante a sua próxima refeição de sangue, o mosquito transfere os esporozoítos do Plasmodium spp. de sua saliva para outro ser humano. Os esporozoítos penetram na corrente sangüínea do hospedeiro e migram para o fígado. Os esporozoítos multiplicam-se no fígado e, a seguir, lisam os hepatócitos infectados, liberando merozoítos na circulação. Os merozoítos infectam os eritrócitos, sofrendo ciclos assexuados de infecção e lise eritrocitárias. Alguns merozoítos diferenciam-se em gametócitos, que podem ser então ingeridos por outro mosquito, continuando, assim, o ciclo de infecção. O P. vivax e o P. ovale também formam hipnozoítos dormentes, que podem permanecer nos hepatócitos infectos por meses a anos antes de sua liberação na circulação (não ilustrados). 592 Capítulo Trinta e Cinco circulam sistemicamente, reduzindo, assim, a probabilidade de depuração dessas células infectadas por seqüestro esplênico. Essa “deposição” também é responsável, em grande parte, pela fisiologia da malária causada por P. falciparum. A deposição pode afetar qualquer órgão, incluindo o cérebro, os pulmões e os rins; a lesão desses órgãos resulta em hipóxia tecidual, necro- se focal e hemorragia. No caso de Binata, houve acometimento do cérebro (a denominada malária cerebral). A malária cerebral, quando não tratada, é quase sempre fatal, e mesmo com tratamento ótimo a taxa de mortalidade da malária cerebral ultrapassa 20%. Binata foi tratada com dois fármacos que, historicamente, foram muito importantes no tratamento de pacientes com malária mas que, infelizmente, não são mais efetivos no momento atual em muitas regiões do mundo, devido à presença disseminada de P. falciparum resistente a fármacos. Esses fármacos (cloroquina e uma asso- ciação fixa de pirimetamina e sulfadoxina), devido em grande parte a seu baixo custo e disponibilidade, têm sido amplamente utilizados em muitas áreas em desenvolvimento do mundo para tratamento de crianças de mais idade e adultos com imunidade parcial à malária. Todavia, esses fármacos têm pouca utilidade clínica no tratamento de indivíduos não-imunes, como Binata. Devido à crescente ineficiência desses fármacos mais antigos, recomenda-se, na atualidade, que os indivíduos na África sub- saariana sejam tratados com um derivado da artemisinina, em associação com um segundo fármaco (ver adiante). Infelizmente, a história de Binata é muito comum. No mun- do inteiro, uma criança, em média, morre de malária a cada 20 segundos; dessas mortes, mais de 90% ocorrem na África subsaariana, mais de 90% acometem crianças com menos de 5 anos de idade e mais de 95% são causados pelo P. falcipa- rum. Ainda não foi desenvolvido nenhum agente farmacológico capaz de interferir no papel recentemente elucidado da PfEMP- 1 no processo de fixação dos eritrócitos infectados por parasitas da malária ao endotélio. No caso do Sr. G, o esfregaço de sangue periférico revelou a presença de parasitas P. vivax no interior dos eritrócitos. Como as infecções causadas por P. falciparum e P. malariae envolvem apenas um ciclo de invasão das células hepáticas, os fármacos que eliminam essas espécies dos eritrócitos são habitualmente suficientes para vencer a infecção. Infelizmente, P. vivax e P. ovale também possuem formas hepáticas latentes (hipnozoítos) que liberam merozoítos durante meses até 1 ou 2 anos. Por conseguinte, os indivíduos infectados por P. vivax ou P. ovale devem ser tratados com agentes efetivos não apenas contra os plasmódios do estágio eritrocitário, mas também contra os parasitas do estágio hepático (ver adiante). Como a cloroquina não elimina as formas hepáticas de P. vivax e P. ovale, houve recidiva da infecção do Sr. G. Metabolismo do Heme Os plasmódios possuem capacidade limitada de síntese de ami- noácidos de novo; por conseguinte, dependem dos aminoáci- dos liberados das moléculas de hemoglobina do hospedeiro ingeridas. Dentro dos eritrócitos, os plasmódios degradam a hemoglobina no interior de um vacúolo digestivo, que consiste em um lisossomo especializado com pH ácido (Fig. 35.2). A hemoglobina sofre degradação seqüencial em seus aminoácidos componentes por proteases aspárticas do plasmódio (plasmep- sinas), cisteína protease (falcipaína) e metaloproteases (falcili- sina). A degradação da hemoglobina libera aminoácidos básicos protonados e um metabólito do heme tóxico, a ferriprotopor- firina IX. A ferriprotoporfirina IX é destoxificada através de polimerização a hemozoína cristalina. Se não sofrer polime- rização, a ferriprotoporfirina IX provoca lesão da membrana lisossomal e toxicidade para o parasita da malária. Acredita-se que os antimaláricos da quinolina (ver adiante) atuam através da inibição da polimerização do heme, criando, dessa maneira, um ambiente tóxico para os plasmódios intra-eritrocitários. Cadeia de Transporte de Elétrons Os plasmódios da malária também possuem mitocôndrias com um minúsculo genoma (de aproximadamente 6 kb) que codifica apenas três citocromos (grandes complexos de pro- Vacúolo alimentar do plasmódio Hemoglobina Próton ATPase Enzimas proteolíticas Plasmepsinas Falcipaína Falcilisina Cloroquina Cloroquina protonada Aminoácidos Ferriprotoporfirina IX (heme) + Hemozoína (heme polimerizado) H+ ATP ADP PfCRT Fig. 35.2 Mecanismos propostos de metabolismo do heme no vacúolo alimentar do plasmódio. Os plasmódios causadores de malária possuem um vacúolo alimentar especializado, que mantém um ambiente intravacuolar ácido pela ação de uma próton ATPase na membrana vacuolar. No interior do vacúolo, a hemoglobina humana é utilizada como fonte de alimento. A hemoglobina sofre proteólise a aminoácidos através da ação de várias enzimas proteolíticas derivadas do plasmódio, incluindo plasmepsinas, falcipaína e falcilisina. A seguir, os aminoácidos protonados são removidos do vacúolo alimentar através do transportador PfCRT. A degradação da hemoglobina também libera heme (ferriprotoporfirina IX). A ferriprotoporfirina IX livre pode reagir com oxigênio, produzindo superóxido (O2 –); as enzimas de defesa oxidantes, que podem incluir a superóxido dismutase e a catalase derivadas do plasmódio, convertem o superóxido potencialmente citotóxico em H2O (não indicado). Os plasmódios polimerizam a ferriprotoporfirina IX no derivado atóxico, hemozoína; as evidências sugerem que a polimerização exige a atividade de proteínas ricas em histidina de carga positiva (não indicadas). O ferro da ferriprotoporfirina IX também pode ser oxidado do estado ferroso (Fe2+) ao estado férrico (Fe3+), com produção concomitante de peróxido de hidrogênio (H2O2). Acredita-se que muitos agentes antimaláricos interrompem o processo do metabolismo do heme da malária; os mecanismos propostos de ação desses fármacos incluem inibição da polimerização do heme, aumento na produção de oxidantes e reação com o heme, formando metabólitos citotóxicos. A figura mostra a inibição da polimerização da ferriprotoporfirina IX pela cloroquina protonada. Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 593 teína envolvidos no transporte de elétrons e na fosforilação oxidativa). Esses citocromos, juntamente com diversas pro- teínas mitocondriais específicas derivadas do genoma nuclear do plasmódio, formam uma cadeia de transporte de elétrons rudimentar, cuja organizaçãoassemelha-se àquela encontrada nos mamíferos (Fig. 35.3). Nessa cadeia de transporte de elé- trons, as proteínas integrais da membrana interna mitocondrial são reduzidas e, em seguida, oxidadas durante o transporte de elétrons de uma proteína intermediária para outra. A energia liberada pelo transporte de elétrons é utilizada para impulsionar uma bomba de prótons através da membrana mitocondrial, e a energia armazenada no gradiente de prótons impulsiona a sín- tese de ATP. Nessa cadeia de transporte de elétrons, o oxigênio constitui o aceptor final de elétrons, resultando em redução do oxigênio a água. Os plasmódios obtêm a maior parte de seu ATP diretamente da glicólise e, provavelmente, não utilizam o transporte de elé- trons mitocondrial como importante fonte de energia. Todavia, os plasmódios dependem desse transporte de elétrons para a oxidação de enzimas-chave envolvidas na síntese de nucleotí- dios. Por exemplo, a diidro-orotato desidrogenase (DHOD), a enzima que medeia uma etapa inicial no processo de síntese das pirimidinas (ver Cap. 37), catalisa a oxidação do diidro-orotato a orotato. Como parte dessa reação, a DHOD é reduzida, e a enzima precisa ser então reoxidada para efetuar outro ciclo de catálise. A ubiquinona, uma proteína integral de membrana localizada próximo ao início da cadeia de transporte de elétrons, aceita elétrons da DHOD reduzida, regenerando, assim, a forma oxidada da DHOD, necessária para a síntese de pirimidinas. Como os plasmódios dependem da síntese de pirimidinas de novo para a replicação de seu DNA, a interrupção da capaci- dade da ubiquinona de oxidar a DHOD pode interromper a replicação do DNA dos plasmódios (ver adiante). FARMACOLOGIA DOS AGENTES ANTIMALÁRICOS Os agentes antimaláricos atualmente disponíveis atuam con- tra alvos constituídos por quatro vias fisiológicas nos plasmó- dios: metabolismo do heme (cloroquina, quinina, mefloquina e artemisinina), transporte de elétrons (primaquina e ato- vaquona), tradução de proteínas (doxiciclina, tetraciclina e clindamicina) e metabolismo do folato (sulfadoxina–pirime- tamina e proguanil). A seção que se segue discute os agentes farmacológicos dirigidos contra essas vias. Do ponto de vista clínico, os antimaláricos podem ser classificados em agentes utilizados para profilaxia (preven- ção da malária em indivíduos que residem em uma região de malária ou que estão viajando por essa área), agentes empregados no tratamento de indivíduos com malária agu- da na fase eritrocitária e agentes utilizados para eliminar a infecção no estágio hepático de hipnozoíto. Em geral, os fármacos utilizados para profilaxia devem ser bem tolerados e de fácil administração. Inibidores do Metabolismo do Heme Durante muitos séculos, os agentes que atuam sobre os parasitas da malária intra-eritrocitários constituíram a base dos esquemas de tratamento antimalárico. Esses compostos são, em sua maio- ria, congêneres da quinolina, e, por conseguinte, acredita-se que todos tenham mecanismos de ação semelhantes. Acredita-se também que a artemisinina, discutida no final desta seção, atua ao inibir o metabolismo do heme, embora a sua estrutura seja diferente daquela das quinolinas. Cloroquina Nesses últimos 2.000 anos, o homem vem utilizando as raízes de Dichroa febrifuga ou as folhas da hidrângea no tratamento de indivíduos com malária. Mais recentemente foi constatado ser a casca da árvore cinchona um remédio mais efetivo. Em todas essas plantas, um composto da quinolina é um agente antiplasmódio farmacologicamente ativo. A cloroquina, uma 4-aminoquinolina, foi introduzida em 1935 para uso no trata- mento da malária. A cloroquina é uma base fraca que, em sua forma neutra, difunde-se livremente através da membrana do vacúolo alimentar do parasita. Uma vez no interior do ambi- ente ácido do vacúolo, a cloroquina é rapidamente protonada, tornando-a incapaz de difundir-se para fora do vacúolo. Em conseqüência, a cloroquina protonada acumula-se em altas con- centrações no vacúolo alimentar do parasita, onde se liga à fer- riprotoporfirina IX e inibe a polimerização desse metabólito do heme. O acúmulo da ferriprotoporfirina IX não-polime rizada leva à lesão oxidativa da membrana, sendo tóxica para o para- sita. Por conseguinte, a cloroquina envenena o parasita ao impedir a destoxificação de um produto tóxico do metabolismo da hemoglobina (Fig. 35.2). A cloroquina torna-se concentrada em até 100 vezes nos eri- trócitos parasitados em comparação com os eritrócitos não-in- fectados. Além disso, a concentração de cloroquina necessária para alcalinizar os lisossomos das células de mamíferos é muito maior que a necessária para elevar o pH nos vacúolos alimen- tares dos parasitas da malária. Por conseguinte, a cloroquina é relativamente atóxica para os seres humanos, apesar de o fárma- co provocar comumente prurido em indivíduos de pele escura, Fig. 35.3 A cadeia de transporte de elétrons mitocondrial nos plasmódios. A cadeia de transporte de elétrons consiste em uma série de etapas de oxidação- redução, que culminam na doação de elétrons ao oxigênio, com formação de água. Nos plasmódios, a cadeia de transporte de elétrons atua como aceptor de elétrons para a diidro-orotato desidrogenase (DHOD) reduzida, uma enzima que é essencial para a síntese de pirimidinas do plasmódio. Nessa cascata, a ubiquinona reduzida (Q) transfere elétrons ao complexo do citocromo bc1 (Cit bc1), o qual então transfere elétrons para o citocromo c (Cit c) e, por fim, para a citocromo c oxidase (Cit c oxidase). Numa redução de 4 elétrons do oxigênio molecular (mostrado aqui como metade da reação), a citocromo c oxidase doa elétrons ao oxigênio para formar água. Essa cadeia de transferência de elétrons também envolve o bombeamento de prótons através da membrana mitocondrial pela Cit bc1 e Cit c oxidase. O gradiente eletroquímico resultante de prótons é utilizado para a reação de ATP (não indicado). A atovaquona antagoniza a interação entre a ubiquinona e o complexo do citocromo bc1 do plasmódio, interrompendo, assim, a síntese de pirimidinas ao impedir a regeneração da DHOD. Q Atovaquona H+ Diidro-orotato Orotato H+ H+ H+ Cit c e- e- e- e- Cit bc1 Cit c oxidase H2O2e-+ 2H+ + 1/2O2 DHOD (oxidada) DHOD (reduzida) Exterior Membrana mitocondrial Interior 594 Capítulo Trinta e Cinco podendo exacerbar também a psoríase e a porfiria. Entretanto, quando administrada em doses supraterapêuticas, a cloroquina pode causar vômitos, retinopatia, hipotensão, confusão e mor- te. Com efeito, a cloroquina é utilizada no mundo inteiro em suicidas a cada ano (em grande parte por ser de baixo custo, disponível e tóxica em altas doses), e a ingestão acidental por crianças pode ser fatal. Quando inicialmente introduzida, a cloroquina passou a constituir um fármaco de primeira linha contra todos os tipos de malária; todavia, hoje em dia é ineficaz contra a maioria das cepas de P. falciparum na África, na Ásia e na América do Sul (Fig. 35.4). As hipóteses formuladas a respeito dos mecanismos responsáveis pela resistência à cloroquina baseiam-se no acha- do de que os plasmódios resistentes à cloroquina acumulam uma menor quantidade do fármaco no interior dos vacúolos alimentares do que os plasmódios sensíveis à cloroquina. No vacúolo alimentar, o parasita produz aminoácidos protona- dos à medida que degrada a hemoglobina. Esses aminoácidos protonados abandonam o lisossomo através de uma proteína transmembrana, denominada PfCRT, codificada por pfcrt no cromossomo 7 do P. falciparum. Várias mutações da PfCRT foram associadas à resistência à cloroquina; por exemplo, uma substituição da lisina por treonina na posição 76 (K76T) está altamente correlacionada com o aparecimento de resistência à cloroquina.Essa PfCRT mutante provavelmente bombeia a cloroquina protonada para fora do vacúolo alimentar. Essa ação alterada da bomba também pode ser prejudicial para o parasita, talvez devido a uma exportação alterada de aminoácidos e/ou alterações do pH do vacúolo. Muitas cepas de P. falciparum com mutações do pfcrt apresentam uma segunda mutação no gene pfmdr1 que codifica Pgh1, uma proteína de membrana do vacúolo alimentar envolvida na regulação do pH. Foi sugerido que essa segunda mutação proporciona uma ação “corretiva”, permitindo que prossiga o crescimento do P. falciparum resis- tente à cloroquina na presença de uma mutação do pfcrt. Na atualidade, cepas de P. vivax com sensibilidade dimi- nuída à cloroquina estão sendo identificadas com freqüência crescente em áreas da Papua–Nova Guiné, Indonésia e outras áreas focais da Oceania e América do Sul, embora ainda não se tenha estabelecido o mecanismo exato dessa diminuição de sensibilidade à cloroquina nessas cepas. A despeito da preocu- pação relativa a uma resistência crescente, a cloroquina conti- nua sendo o fármaco de escolha para o tratamento da maioria dos indivíduos com malária causada por P. ovale, P. malariae e por cepas de P. falciparum sensíveis à cloroquina. Além disso, pode ser utilizada de modo profilático para prevenir a malária causada por cepas sensíveis de plasmódios. Quinina e Quinidina A quinina é um alcalóide constituído por um anel quinoli- na ligado a um anel de quinuclidina através de um carbinol secundário. O seu isômero óptico, a quinidina, possui ações farmacológicas idênticas. Devido à semelhança estrutural da quinina com outras quinolinas antimaláricas, acredita-se que a quinina ataca os plasmódios pelo mecanismo anteriormente descrito. Foi também constatado que a quinina intercala-se no DNA através de uma ligação de hidrogênio, com conseqüente inibição da separação das fitas, transcrição e tradução do DNA. O efeito global consiste em diminuição no crescimento e na replicação dos plasmódios da fase eritrocitária. A quinina e a quinidina são utilizadas no tratamento de indivíduos com malária no estágio eritrocitário agudo, porém não são usadas de modo profilático. A administração de quinina pode causar cin- chonismo, uma síndrome caracterizada por zumbido, surdez, cefaléias, náusea, vômitos e distúrbios visuais. A quinina e a quinidina também podem prolongar o intervalo QT cardíaco (ver Cap. 18). Mefloquina A mefloquina é um composto de quinolina estruturalmente relacionado com outros agentes antimaláricos. Ao contrário da quinina, a mefloquina não se liga ao DNA. O mecanismo exato de ação da mefloquina não é conhecido, embora pareça interromper a polimerização da hemozoína nos parasitas da malária intra-eritrocitários. A mefloquina possui diversos efei- tos adversos, que não são freqüentes o suficiente para anular o Fig. 35.4 Distribuição geográfica do Plasmodium falciparum resistente a fármacos. Historicamente, a cloroquina tem sido o fármaco de escolha para profilaxia e tratamento de indivíduos com malária por P. falciparum. Infelizmente, hoje em dia, o P. falciparum tornou-se resistente à cloroquina na maioria das áreas do mundo (na cor azul). Em muitas áreas, o P. falciparum também é resistente a outros agentes antimaláricos, incluindo sulfadoxina–pirimetamina, mefloquina e halofantrina. (A halofantrina está associada a cardiotoxicidade potencialmente letal e, portanto, é raramente utilizada.) Resistência à sulfadoxina/ pirimetamina Resistência à cloroquina Resistência à sulfadoxina/ pirimetamina Resistência à sulfadoxina/ pirimetamina, mefloquina e halofantrina Resistência à sulfadoxina/ pirimetamina Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 595 seu uso benéfico. Esses efeitos adversos consistem em náusea, anormalidades da condução cardíaca (incluindo bradicardia, prolongamento do intervalo QT e arritmias) e efeitos neu- ropsiquiátricos, incluindo sonhos vívidos/pesadelos, insônia, ansiedade, depressão, alucinações, convulsões e, raramente, psicose. Os mecanismos responsáveis por esses efeitos adver- sos não são conhecidos. A mefloquina pode ser utilizada tanto terapêutica quanto profilaticamente. Foram relatadas cepas de P. falciparum resistentes tanto à cloroquina quanto à meflo- quina em áreas do sudeste da Ásia. Artemisinina A artemisinina tem sido utilizada na China (onde é conhecida como qinghao) durante séculos para o tratamento de indivíduos com febre. Trata-se de um endoperóxido cíclico que, quando ativado pelo ferro livre ou ligado ao heme, forma um composto de radical livre com carbono no centro (Fig. 35.5). Esse radical livre tem a capacidade de alquilar muitas proteínas, bem como o heme. O mecanismo de especificidade do fármaco para os eritrócitos infectados por plasmódios permanece desconhecido — duas fontes potenciais de especificidade incluem a neces- sidade de heme da artemisinina para formação de radical livre e o acúmulo preferencial do fármaco nos plasmódios. A adminis- tração da artemisinina e seus derivados (artesunato, artemeter, artemotil, diidroartemisinina) está associada a uma rápida diminuição dos níveis de parasitas da malária no sangue dos indivíduo infectados, com rápida resolução dos sintomas em pacientes com malária no estágio eritrocitário. A artemisinina não é tão efetiva como agente profilático contra malária. Devido à resistência disseminada dos parasitas a outros agentes antimaláricos, a terapia de primeira linha para a malá- ria não-complicada e complicada na África subsaariana envol- ve uma combinação de artemisinina com um segundo agente antimalárico. Embora haja evidências de resistência in vitro à artemisinina em cepas isoladas de P. falciparum em campo, não foram relatados casos clínicos de infecção resistente. Devido a uma preocupação relativa ao desenvolvimento de resistência e à meia-vida curta dos derivados da artemisinina (de 1 a 11 horas), recomenda-se que os compostos de artemisinina sejam co-administrados com um segundo agente com mecanismo de ação diferente e meia-vida mais longa. Espera-se que a adi- ção do segundo agente possa retardar o desenvolvimento de resistência à artemisinina e prolongar o efeito terapêutico da combinação (ver seção sobre resistência aos fármacos antima- láricos, adiante). Em geral, a artemisinina e seus derivados são bem tolerados, mas podem ter efeitos adversos neurotóxicos e cardiotóxicos. Em animais de laboratório, foi constatado que a artemisinina provoca neuropatia do tronco encefálico; embora esse efeito potencialmente letal não tenha sido observado em seres huma- nos, evidências cumulativas sugerem que as artemisininas podem, de fato, estar associadas a comprometimento auditivo e a outros efeitos neurotóxicos. A hipoglicemia ocorre menos freqüentemente do que com a terapia à base de quinina. Não se dispõe de dados de segurança durante a gravidez. Inibidores do Transporte de Elétrons Apesar de a cadeia de transporte de elétrons constituir uma ca racterística ubíqua das células eucarióticas, foram desen- volvidos dois agentes que parecem interromper a cadeia de transporte de elétrons dos plasmódios. Essa seletividade deve- se a estruturas moleculares diferentes do mesmo alvo bioquími- co, mais do que à presença de uma via enzimática singular nos plasmódios (ver Cap. 31). Primaquina A primaquina foi aprovada em 1952 para o tratamento de indivíduos com malária. Como a primaquina ataca as formas Fig. 35.5 Mecanismo proposto de ação da artemisinina. A artemisinina é um endoperóxido cíclico que forma um radical livre após ativação pelo ferro (Fe). Esse radical livre tem capacidade de alquilar macromoléculas, como o heme e proteínas, resultando na formação de complexos artemisinina-heme e complexos de artemisinina-proteína, que são tóxicos para osplasmódios. O O O H H H OO Fe Fe Artemisinina Artemisinina (radical livre ou intermediário eletrofílico) Ativação Fe (livre ou ligado ao heme) Alquilação Heme Proteína Complexo fármaco-heme Complexo fármaco-proteína 596 Capítulo Trinta e Cinco hepáticas da malária causada por P. vivax e P. ovale, é uti- lizada para impedir a recrudescência dessas infecções e no momento atual constitui o único fármaco padrão disponível para esse uso. A primaquina interrompe acentuadamente os processos metabólicos das mitocôndrias dos plasmódios. A atividade antimalárica é provavelmente atribuível à quinona, um metabólito da primaquina que interfere na função da ubi- quinona como transportador de elétrons na cadeia respiratória. Outro mecanismo potencial de ação envolve a capacidade de certos metabólitos da primaquina de provocar lesão oxidativa inespecífica das mitocôndrias dos plasmódios. A primaquina é utilizada predominantemente para eliminar os hipnozoítos hepáticos de indivíduos com malária causada por P. vivax ou P. ovale. As cepas de P. vivax exibem varia- bilidade intrínseca em sua sensibilidade à primaquina. Por exemplo, a cepa Chesson isolada pela primeira vez de um soldado norte-americano em Papua–Nova Guiné, na década de 1940, é menos sensível à primaquina do que outras cepas. Em virtude dessa variabilidade, recomenda-se, hoje em dia, uma dose aumentada de primaquina (em comparação com a dose mais comum tipicamente administrada) como tratamento padrão. A primaquina também pode ser utilizada como agente profilático. Os indivíduos com deficiência de glicose-6-fosfato desi- drogenase (G6PD) possuem uma capacidade limitada de pro- teger seus eritrócitos da lesão oxidativa. A G6PD é necessária para reduzir o NADP+ a NADPH, que converte a glutationa oxidada em glutationa reduzida. A glutationa reduzida protege os eritrócitos ao catalisar a degradação de compostos oxidan- tes tóxicos. A administração de primaquina provoca estresse oxidativo significativo, devido à formação de numerosos com- postos oxidados. Em conseqüência, a primaquina pode induzir hemólise maciça e potencialmente fatal em indivíduos com deficiência de G6PD. Por conseguinte, a primaquina nunca deve ser administrada a um indivíduo sem antes confirmar a presença de atividade adequada da G6PD em seus eritrócitos. A primaquina nunca deve ser administrada a mulheres grávidas, visto que o fármaco atravessa a placenta e pode induzir hemó- lise fatal nos eritrócitos fetais, independentemente do estado da G6PD materna. A primaquina também pode causar distúrbios gastrintestinais, metemoglobinemia, neutropenia, hipertensão, arritmias e sintomas neurológicos. Atovaquona A atovaquona é um análogo estrutural da ubiquinona, a pro- teína móvel na cadeia de transporte de elétrons. Em condições fisiológicas, a transferência de dois elétrons da ubiquinona reduzida para o complexo do citocromo bc1 oxida a ubiquinona (Fig. 35.3). A atovaquona inibe a interação entre a ibiquinona reduzida e o complexo do citocromo bc1 e, portanto, interrompe o transporte de elétrons. Como os plasmódios dependem da cadeia de transporte de elétrons para a regeneração da diidro- orotato redutase oxidada, o tratamento com atovaquona inter- rompe a síntese de pirimidinas e, portanto, impede a replicação do DNA dos plasmódios. É provável que a inibição da cadeia de transporte de elétrons também comprometa outras etapas no metabolismo intermediário que dependem do ciclo de oxida- ção/redução de proteínas. O complexo do citocromo bc1 é uma característica ubíqua dos organismos eucarióticos. A seletividade da atovaquona para os plasmódios baseia-se, provavelmente, em diferenças das seqüências de aminoácidos entre regiões de ligação da ubi- quinona-citocromo bc1 dos seres humanos e dos plasmódios. A atovaquona inibe a atividade do citocromo bc1 dos plasmó- dios com seletividade aproximadamente 100 vezes maior em comparação com a forma humana da proteína. Todavia, essa seletividade é facilmente perdida; uma única mutação pontu- al no complexo do citocromo bc1 pode tornar os plasmódios resistentes à atovaquona. Por esse motivo, a atovaquona não é utilizada como única medicação. A atovaquona pode ser co-administrada com doxiciclina, um inibidor da síntese pro- téica ou como combinação fixa com proguanil, um inibidor da diidrofolato redutase (ver discussão adiante). O proguanil e a atovaquona são sinérgicos na sua atividade antimalárica. É interessante assinalar que esse sinergismo pode não estar relacionado com a ação do proguanil como antifolato, visto que outros inibidores da diidrofolato redutase não apresentam efeitos sinérgicos com a atovaquona. Na verdade, quando admi- nistrado com atovaquona, o proguanil pode atuar como agente de desacoplamento nas membranas mitocondriais, aumentando, assim, a despolarização mitocondrial mediada pela atovaquona. Em geral, a atovaquona é bem tolerada; seu uso está associa- do a uma baixa incidência de efeitos adversos gastrintestinais e ocorrência ocasional de exantema. Em associação com um segundo agente antimalárico, a atovaquona pode ser utilizada terapêutica e profilaticamente. Inibidores da Tradução Doxiciclina, Tetraciclina e Clindamicina Os agentes que interrompem a síntese de proteínas dos parasi- tas incluem a doxiciclina, a tetraciclina e a clindamicina. A doxiciclina é um isômero estrutural da tetraciclina e é produzida de modo semi-sintético a partir da oxitetraciclina ou metaci- clina. A doxiciclina inibe a síntese de proteínas do parasita através de sua ligação à subunidade ribossomal 30S, bloque- ando, assim, a ligação do amino-acil tRNA ao mRNA (ver Cap. 32). Em virtude de sua elevada lipofilicidade, a doxiciclina penetra bem nos tecidos corporais, apresenta um grande volume de distribuição e sofre reabsorção dos túbulos renais e trato gastrintestinal, resultando em meia-vida longa. Em virtude de sua biodisponibilidade oral e meia-vida longa, a doxiciclina é um fármaco útil (em combinação com a quinina) para o trata- mento de indivíduos infectados por P. falciparum resistente à cloroquina. A doxiciclina não deve ser utilizada como agente antimalárico isolado. Os efeitos adversos consistem em fotos- sensibilidade cutânea, pigmentação dos dentes em crianças e candidíase vaginal. Os efeitos gastrintestinais (incluindo náu- sea, diarréia e dispepsia) são tipicamente leves, embora rara- mente possa ocorrer ulceração esofágica. A tetraciclina e a doxiciclina possuem perfis farmacológi- cos semelhantes; todavia, a tetraciclina pode ser tomada quatro vezes ao dia. A tetraciclina pode ser utilizada em associação com a quinina para o tratamento de indivíduos com malária resistente à cloroquina; entretanto, seu uso não é recomendado como quimioprofilático da malária. A clindamicina inibe a síntese de proteínas através de sua ligação à subunidade ribossomal 50S. A clindamicina é utiliza- da em combinação com a quinina no tratamento de indivíduos com malária, quando o uso de tetraciclina ou de doxiciclina está contra-indicado (p. ex., em mulheres grávidas ou em crianças com menos de 8 anos de idade). Em geral, a clindamicina é bem tolerada, particularmente em crianças; seu principal efeito adverso consiste em risco aumentado de diarréia associada a antibióticos e colite causada por Clostridium difficile. A clinda- micina não é utilizada como quimioprofilático da malária. Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 597 Inibidores do Metabolismo do Folato O ácido fólico é uma vitamina envolvida na transferência de unidades de um carbono em uma variedade de vias de bios- síntese, incluindo a dos precursores do DNA e RNA e certos aminoácidos (ver Cap. 31). Nos seres humanos, o folato é uma vitamina essencial, que precisa ser ingeridana dieta. Nos para- sitas e nas bactérias, o folato é sintetizado de novo, proporcio- nando assim um alvo útil para a ação farmacológica seletiva. A inibição do metabolismo do folato pode resultar em trata- mento bem-sucedido das infecções parasitárias. No contexto da malária, os antifolatos atuam contra isoformas da diidropteroato sintetase e diidrofolato redutase específicas dos parasitas. São utilizadas terapia de combinação que incluem uma sulfonamida e pirimetamina. Dispõe-se de duas formulações antimaláricas, a sulfadoxina–pirimetamina e o sulfaleno–pirimetamina. Sulfadoxina–Pirimetamina A sulfadoxina é um análogo do ácido para-aminobenzóico (PABA), que inibe competitivamente a diidropteroato sintetase dos parasitas, uma enzima essencial na via de síntese do ácido fólico. A pirimetamina é um análogo do folato que inibe com- petitivamente a diidrofolato redutase dos parasitas, a enzima que converte o diidrofolato em tetraidrofolato (Figs. 31.6 e 31.7). A sulfadoxina e a pirimetamina, quando utilizadas em combinação, atuam de modo sinérgico, inibindo o crescimento dos parasitas da malária. As combinações de sulfadoxina–pirimetamina são altamente efetivas contra os estágios esquizontes sangüíneos do P. falci- parum, mas não contra os gametócitos, sendo menos efetivas contra outras espécies de malária. Ambos os fármacos ligam-se altamente às proteínas, resultando em meias-vidas de elimi- nação prolongadas. A meia-vida longa da combinação exerce uma pressão seletiva para o desenvolvimento de resistência a fármacos em áreas com elevado nível de transmissão da malá- ria, de modo que a resistência crescente a essa combinação a tornou menos efetiva para tratamento e profilaxia em muitas partes do mundo (Fig. 35.4). A sulfadoxina–pirimetamina pode ser administrada em dose única conveniente. Infelizmente, a resistência disseminada dos parasitas da malária a essa combinação limitou acentuadamente a sua utilidade. As reações medicamentosas mais graves envol- vem hipersensibilidade ao componente sulfadoxina da combi- nação. Foi relatada a ocorrência de reações cutâneas graves, como síndrome de Stevens-Johnson ou eritema multiforme, porém a incidência desses efeitos adversos é rara após terapia de dose única para a malária. Os efeitos hematológicos adversos consistem em anemia megaloblástica, leucopenia e trombocito- penia. A sulfadoxina–pirimetamina não é utilizada como agente quimioprofilático contra malária. Proguanil O proguanil é um derivado da pirimidina e, a exemplo da pir- imetamina, é um inibidor da diidrofolato redutase. O proguanil atua contra as formas hepáticas pré-eritrocitárias de P. falci- parum e P. vivax. O proguanil tem sido usado para profilaxia em associação com a cloroquina em áreas do mundo onde a resistência à cloroquina não é disseminada. Todavia, ou tros agentes profiláticos são significativamente mais efetivos, e essa combinação raramente ou nunca deveria ser utilizada. O proguanil também pode ser utilizado em uma combinação sinérgica com a atovaquona no tratamento e na prevenção da malária (discutido anteriormente). Em geral, o proguanil é bem tolerado, porém tem sido associado à ocorrência de ulcerações orais, pancitopenia, trombocitopenia e granulocitopenia. RESISTÊNCIA A AGENTES ANTIMALÁRICOS A resistência a agentes antimaláricos representa um sério pro- blema de saúde pública e uma barreira significativa ao trata- mento efetivo de indivíduos com malária. Em associação com o colapso dos esforços de prevenção efetivos, ausência de poder político e fatores sócio-econômicos, o declínio da eficácia dos fármacos antimaláricos tem contribuído significativamente para a crescente carga de morbidade e mortalidade da malária no mundo inteiro. Após a sua introdução em 1946, a cloroquina passou a cons- tituir a terapia padrão para o tratamento de indivíduos com malária durante muitos anos. O aparecimento de resistência à cloroquina foi relatado pela primeira vez na década de 1950, e, desde então, observou-se um constante aumento dessa resis- tência. Na atualidade, a resistência à cloroquina é relatada em todas as partes do mundo, exceto na ilha de Hispaniola e em partes focais da América Central, América do Sul e Ásia. O risco de fracasso terapêutico com cloroquina alcança 64% em algumas áreas da África subsaariana e até 85% no Sudeste da Ásia. A mortalidade infantil duplicou na África oriental e África do Sul nas décadas de 1980 e 1990, quando houve aumento da resistência à cloroquina e à sulfadoxina–pirimetamina. A resistência à cloroquina foi associada a uma duplicação global da mortalidade infantil por malária, com aumentos de até 11 vezes em certas áreas. A resistência do P. vivax à cloroquina era desconhecida até 1989, porém tornou-se atualmente endêmica na Indonésia e Papua–Nova Guiné. Surgiram também relatos de P. vivax resistente à cloroquina na América do Sul, Brasil, Myanmar e Índia. Foi relatada a ocorrência de resistência à sulfadoxina–piri- metamina após a introdução dessa combinação em 1971, como terapia de segunda linha para tratamento de indivíduos infec- tados por P. falciparum resistente à cloroquina. A resistência à sulfadoxina–pirimetamina foi inicialmente relatada no sudeste da Ásia; todavia, na atualidade, tornou-se relativamente dis- seminada na América do Sul e está cada vez mais prevalente na África. Foram observadas cepas de P. falciparum resistentes à mefloquina no sudeste da Ásia após a introdução disseminada desse fármaco na década de 1980. A resistência à mefloqui- na ainda não está mais amplamente disseminada devido, em grande parte, ao fato de que esse fármaco não é, hoje em dia, utilizado de modo rotineiro no tratamento de indivíduos com malária. Muitos fatores contribuem para o desenvolvimento de resis- tência a fármacos nos parasitas da malária, incluindo uso inapro- priado e/ou não supervisionado dos fármacos, disponibilidade inconsistente dos fármacos, pouca aderência dos pacientes aos esquemas de tratamento, devido a efeitos adversos e outros fatores, qualidade inconsistente na fabricação dos fármacos, presença de medicamentos falsificados e custos proibitivos. A terapia de combinação para reduzir o desenvolvimento de resistência constitui uma estratégia que vem sendo empregada há muito tempo no tratamento de pacientes com tuberculose, hanseníase e infecção pelo HIV, e essa abordagem também é fortemente recomendada para o tratamento de indivíduos com malária. Por exemplo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) exigiu a interrupção da produção de todos os produtos contendo apenas artemisinina e solicitou a produção apenas de combinações fixas de dois fármacos, contendo artemisinina. 598 Capítulo Trinta e Cinco Embora as artemisininas de rápida ação possam reduzir a carga de parasitas por um fator de 104 a cada ciclo de tratamento, resultando em rápida eliminação dos parasitas da corrente san- güínea, a meia-vida curta desses fármacos favorece a possibili- dade de recrudescência da infecção e o risco de pressão seletiva para resistência ao fármaco. Para superar esses riscos, a OMS recomenda a combinação de uma artemisinina com um agente esquizonticida sangüíneo de eliminação lenta. OUTROS PROTOZOÁRIOS Além do plasmódio, outros protozoários de importância médica incluem a Entamoeba histolytica, o microrganismo responsável pela amebíase; a Giardia lamblia, o microrganismo que provoca giardíase; o Cryptosporidium parvum, que causa criptosporidio- se; o Trypanosoma brucei rhodesiense e T. b. gambiense, os agentes etiológicos da doença do sono africana; o Trypanosoma cruzi, o agente causador da doença de Chagas; e Leishmania spp., os agentes que causam leishmaniose. Como a E. histo- lytica é mais bem conhecida, a seção de fisiologia adiante irá enfocar esse parasita; entretanto, a seçãode farmacologia inclui não apenas agentes efetivos contra a amebíase, mas também fármacos efetivos contra a doença do sono africana, a doença de Chagas e a leishmaniose. Caso 3 O Sr. S, um jornalista norte-americano de 29 anos de idade, volta de uma viagem ao sudeste da Ásia. Sente-se bem disposto nas pri- meiras 5 semanas de seu retorno, mas começa então a apresentar diarréia leve, dor abdominal e mal-estar. Não atribui os sintomas à viagem, visto que surgiram bem depois. Além disso, a sua esposa consumiu os mesmos alimentos e a mesma água durante a viagem, e ela encontra-se bem. Por esse motivo, o Sr. S ignora os sintomas durante uma semana, mas acaba procurando o seu médico ao perceber que eles não estão cedendo espontaneamente. O exame físico revela hipersensibilidade no quadrante superior direito do abdome. O exame de sangue é notável pelos níveis elevados de enzimas hepáticas, e a tomografia computadorizada (TC) revela um abscesso hepático. O exame de fezes é positivo para heme e para cistos de E. histolytica. QUESTÕES 1. Por que a esposa do Sr. S é assintomática? 2. Quais as complicações potenciais da doença do Sr. S se esta não for tratada? FISIOLOGIA DOS PROTOZOÁRIOS INTESTINAIS Os protozoários entéricos Entamoeba dispar e E. histolytica são morfologicamente indistinguíveis, embora essas duas espécies possam ser diferenciadas com o uso de anticorpos monoclonais específicos. A E. dispar não provoca doença invasiva (i. é, não compromete o epitélio intestinal), enquanto a E. histolytica pode produzir um estado de portador assintomático, colite inva- siva ou as denominadas infecções metastáticas (habitualmente abscessos hepáticos). Cerca de 5 a 10% dos indivíduos que vivem na pobreza em países em desenvolvimento apresentam evidências soroló- gicas de infecção anterior por E. histolytica. Estima-se que 50 milhões de casos de disenteria sejam causados por E. histolytica anualmente, resultando em 40.000 a 100.000 mortes. Como a esposa do Sr. S consumiu os mesmos alimentos e a mesma água do marido, é também provável que esteja infectada por E. histolytica. Por razões incertas, ela excretou a E. histolytica de modo assintomático, enquanto o seu esposo desenvolveu doença invasiva. Ciclo de Vida da Entamoeba histolytica Ocorre infecção colônica pela E. histolytica em conseqüên- cia da ingestão de cistos através da via fecal-oral, como, por exemplo, com a ingestão de água contaminada. A ocorrência ou não de invasão intestinal pode ser uma função do núme- ro de cistos ingeridos, da cepa do parasita, da motilidade do trato gastrintestinal do hospedeiro e da presença de bactérias entéricas apropriadas que servem de nutrição para as ame- bas. Ocorre doença quando os trofozoítos ativos invadem o epitélio intestinal, podendo ocorrer disseminação secundária para o fígado através da circulação porta (Fig. 35.6). Como o Fig. 35.6 Manifestações da amebíase. A ingestão de cistos de Entamoeba histolytica pode resultar em vários desfechos clínicos diferentes, incluindo desde a excreção assintomática dos cistos até o desenvolvimento de doença invasiva. Ocorre infecção assintomática quando os cistos ingeridos sofrem desencistamento (amadurecimento) no intestino delgado, porém não invadem a mucosa intestinal. A seguir, esses trofozoítos sofrem encistamento no cólon e são eliminados nas fezes. Ocorre doença invasiva quando os trofozoítos ativos invadem o epitélio intestinal. Essa invasão pode resultar em colonização assintomática, amebíase intestinal (disenteria amebiana) — que se caracteriza por diarréia e cólicas abdominais — ou perfuração intestinal. A disseminação da infecção pela veia porta pode causar abscessos hepáticos. Excreção nas fezes Ingestão, por seres humanos, de água ou alimentos contaminados Desencistamento no intestino delgado Trofozoíto Núcleo Pseudópode Colonização assintomática Amebíase intestinal Perfuração intestinal e/ou abscesso hepático Cisto Encistamento no cólon Núcleo Cariossomo Vacúolo Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 599 próprio nome indica, a E. histolytica provoca lise e destruição do tecido humano. Tipicamente, os trofozoítos multiplicam-se superficialmente à muscular da mucosa do intestino e sofrem disseminação lateral. Além disso, podem penetrar mais profun- damente, perfurando, em certas ocasiões, a parede intestinal, com disseminação local. A disseminação para o fígado também é comum. No caso do Sr. S, a TC revelou comprometimento do fígado, com formação de abscesso. A E. histolytica é encontrada em duas formas: o cisto inati- vo, porém infeccioso, e o trofozoíto ativo. Os cistos são ingeri- dos na água ou nos alimentos contaminados. O desencistamento ocorre no intestino delgado, onde os trofozoítos amadurecem. O trofozoíto é capaz de invadir os tecidos do hospedeiro. No corpo humano, os trofozoítos movem-se com o uso de pseudó- podes e ingerem bactérias, outros protozoários e eritrócitos do hospedeiro. O trofozoíto pode transformar-se em uma forma de cisto binucleado, que amadurece, produzindo um cisto tetranu- cleado que migra pelo cólon, mas que não tem capacidade de invadir a mucosa (Fig. 35.6). Os sintomas produzidos pela amebíase variam desde diarréia e cólica abdominal até disenteria fulminante e formação de abs- cesso hepático. Menos de 40% dos indivíduos com disenteria amebiana desenvolvem febre e, tipicamente, o exame micros- cópico das fezes revela poucos neutrófilos. O aparecimento dos sintomas pode variar desde poucos dias até 1 ano após a exposição, ou pode nunca haver sintomas. Os sintomas do Sr. S só apareceram dentro de pelo menos um mês após a exposição, razão pela qual não atribuiu esses sintomas à sua viagem. Vias de Fermentação A E. histolytica e outros parasitas intestinais constituem um gru- po distinto de eucariotas, com novas adaptações para seu nicho anaeróbico. Por exemplo, a E. histolytica carece de enzimas de fermentação (lactato desidrogenase e piruvato descarboxilase) que são encontradas nas leveduras e em outros eucariotas. As amebas também carecem de enzimas da fosforilação oxidativa, ciclo de Krebs e piruvato desidrogenase. Com efeito, as amebas (e muitos microrganismos anaeróbicos) utilizam novas enzimas para proporcionar uma fonte para a transferência de elétrons que impulsionam o metabolismo. As amebas são fermentadores obrigatórios da glicose em etanol (Fig. 35.7). Muitas dessas enzimas de fermentação, que estão ausentes nos seres humanos, nas leveduras e na maioria das eubactérias, contêm um conjunto de complexos de ferro- enxofre, denominadas ferredoxinas, que transferem elétrons em condições acentuadamente redutoras (anaeróbicas). Essa situa- ção contrasta com o heme e com os citocromos, que utilizam centros de ferro para a transferência de elétrons em condições oxidantes (aeróbicas). A piruvato-ferredoxina oxidorredutase (PFOR), que contém um único domínio de ferredoxina, cata- lisa descarboxilação do piruvato a acetil CoA, com produção de CO2. A atividade da PFOR também produz ferredoxina redu- zida, que pode reduzir prótons para formar gás hidrogênio, ou reduzir o NADP+ a NADPH. A acetil CoA é reduzida a etanol através da álcool desidrogenase E (ADHE), com recuperação de dois co-fatores de NAD+. As bactérias anaeróbicas (p. ex., Helicobacter spp. e Clostridium spp.) expressam PFOR, ferre- doxinas e ADHE semelhantes àquelas dos protozoários intes- tinais. Com efeito, a análise filogenética sugere que a maioria dos genes que codificam enzimas de fermentação dos parasitas e muitos dos genes que codificam enzimas de parasitas envolvi- das no metabolismo energético foram lateralmente transferidos a partir das bactérias anaeróbicas. Embora a transferência lateral de genes seja extraordinariamente freqüente entreas bactérias, ela é extremamente rara entre bactérias e eucariotas superiores, que mantêm seus gametas em um ambiente estéril. FARMACOLOGIA DOS AGENTES ANTIPROTOZOÁRIOS Metronidazol O metronidazol é inativo até ser reduzido no hospedeiro ou nas células microbianas que possuem um grande potencial redox negativo; esses potenciais redox são encontrados em muitos parasitas intestinais anaeróbicos ou microaerofílicos. Pode ocorrer ativação através de interação com ferredoxina reduzida ou com nitrorredutases específicas (Fig. 35.7). O metronidazol ativado forma compostos citotóxicos reduzidos, que se ligam a proteínas, membranas e DNA nas células-alvo, causando lesão grave. Piruvato Ativação dependente da PFOR Ativação dependente da nitrorredutase Acetil CoA PFOR Ferredoxina Metronidazol reduzido (ativo) Metronidazol (inativo) NADP+ Nitrorredutase NADPH Ferredoxina reduzida ADHE Etanol Acetato Fig. 35.7 Enzimas de fermentação nos microrganismos anaeróbicos e mecanismos de ativação do metronidazol. Os microrganismos anaeróbicos metabolizam o piruvato a acetil CoA; essa conversão é catalisada pela enzima piruvato-ferredoxina oxidorredutase (PFOR). A seguir, a acetil CoA é hidrolisada a acetato ou oxidada a etanol pela álcool desidrogenase E (ADHE). O metronidazol é um pró-fármaco; contém um grupo nitro que deve ser reduzido para que o fármaco se torne ativo. O metronidazol reduzido mostra-se altamente efetivo contra microrganismos anaeróbicos, provavelmente devido à formação de intermediários citotóxicos, que provocam lesão do DNA, das proteínas e das membranas. Dois aspectos do metabolismo anaeróbico proporcionam uma oportunidade para a redução seletiva do grupo nitro. Em primeiro lugar, a reação catalisada PFOR resulta em redução da ferredoxina; a seguir, a ferredoxina reduzida pode transferir seus elétrons ao metronidazol, resultando em metronidazol reduzido (ativo) e ferredoxina reoxidada. Em segundo lugar, muitos microrganismos anaeróbicos expressam enzimas nitrorredutases, que reduzem seletivamente o metronidazol e, nesse processo, oxidam o NADPH a NADP+. 600 Capítulo Trinta e Cinco A sensibilidade ao metronidazol está diretamente relaciona- da com a presença de atividade da PFOR. A maioria dos euca- riotas e as eubactérias carecem de PFOR e, por conseguinte, são incapazes de ativar o metronidazol. Todavia, nos tecidos pouco oxigenados, como os abscessos, o metronidazol pode ser ativado. Como a PFOR é expressa nos protozoários, porém não tem nenhum equivalente no sistema de mamíferos, o fármaco é seletivamente tóxico para as amebas e os microrganismos anaeróbicos. O uso disseminado de metronidazol levou ao desenvolvi- mento de resistência do Helicobacter pylori, uma causa bac- teriana comum de gastrite e úlceras pépticas (ver Cap. 45). Essa resistência deve-se a uma mutação nula no gene rdxA, que codifica uma NADPH redutase insensível ao oxigênio. Foi também observada uma resistência de baixo nível ao metroni- dazol em vários protozoários anaeróbicos, incluindo tricomo- nas (em decorrência da expressão diminuída de ferrodoxina), giárdias (causada por uma diminuição da atividade da PFOR e da permeabilidade ao fármaco) e amebas (devido à expressão aumentada da superóxido dismutase). Entretanto, a resistên- cia ao metronidazol entre os parasitas intestinais ainda não se tornou clinicamente importante. Existem três explicações para o desenvolvimento lento de resistência ao metronidazol entre os parasitas entéricos. Em primeiro lugar, os parasitas luminais são, em geral, diplóides, de modo que a ocorrência de uma única mutação tipicamente não confere resistência. Isso contrasta com o caso das bactérias haplóides e de certos estágios haplóides do P. falciparum nos quais a resistência desenvolve-se mais rapidamente. Em segun- do, os parasitas intestinais têm poucas alternativas metabólicas para a atividade da PFOR. Em terceiro lugar, o metronidazol é hidrofílico, de modo que a hiperexpressão ou a modificação da glicoproteína P, que confere resistência a fármacos hidrofó- bicos, não aumenta o efluxo do metronidazol. Os efeitos adversos do metronidazol consistem em des- conforto gastrintestinal, cefaléias, neuropatia ocasional, gosto metálico e náusea. O metronidazol também provoca náusea e rubor quando tomado concomitantemente com álcool (pro- duzindo um denominado efeito semelhante ao dissulfiram, causado pela inibição do metabolismo do etanol). O metro- nidazol mostra-se ativo contra os trofozoítos da E. histolytica nos tecidos, porém exibe muito menos atividade contra ame- bas intraluminais (provavelmente, em grande parte, devido à extensa absorção do fármaco no trato gastrintestinal superior, resultando em sua baixa concentração na luz do cólon, onde residem as amebas). Por conseguinte, os indivíduos com ame- bíase invasiva são tipicamente tratados em primeiro lugar com metronidazol (para erradicar os trofozoítos que estão invadindo ativamente os tecidos do hospedeiro) e, a seguir, com um segun- do fármaco apresentando maior atividade intraluminal, como iodoquinol ou paromomicina. Esses últimos dois fármacos matam as amebas através de mecanismos desconhecidos; toda- via, são pouco absorvidos pelo trato gastrintestinal e, portanto, alcançam altas concentrações na luz do cólon. Tinidazol O tinidazol, um nitroimidazol de segunda geração relacionado com o metronidazol, foi recentemente aprovado para uso nos Estados Unidos, embora esteja disponível há muitos anos em outros países. Mostra-se efetivo contra diversos protozoários e é licenciado para o tratamento da giardíase, amebíase e trico- moníase vaginal. Seu mecanismo de ação não está bem esclare- cido, porém acredita-se que seja semelhante ao do metronidazol e relacionado com a geração de radicais livres citotóxicos. Um benefício particular do timidazol é que a duração de um ciclo terapêutico do fármaco é mais curta do que a do metronidazol. O tinidazol também é mais bem tolerado do que o metronida- zol, porém é também ineficaz como agente luminicida para o tratamento de infecções por amebas. Os efeitos adversos são raros e discretos e consistem em desconforto gastrintestinal e desenvolvimento ocasional de gosto metálico na boca. O tinidazol não é recomendado durante o primeiro trimestre de gravidez, durante o aleitamento e para crianças com menos de 3 anos de idade. Nitazoxanida A nitazoxanida é um derivado nitrotiazolil-salicilamida estru- turalmente relacionado com o metronidazol. A nitazoxanida possui amplo espectro de ação, incluindo atividade contra protozoários, bactérias anaeróbicas e helmintos. Nos Estados Unidos, foi aprovada para uso em crianças com giardíase e em adultos e crianças com criptosporidiose. Como análogo estru- tural do pirofosfato de tiamina, a nitazoxanida inibe a PFOR, que converte o piruvato em acetil CoA nos protozoários e nas bactérias anaeróbicas. Seu mecanismo de ação contra os hel- mintos não está bem esclarecido. Após administração oral, a nitazoxanida é rapidamente hidrolisada ao metabólito ativo, a tizoxanida. O metabólito ativo é excretado na urina, na bile e nas fezes. Em geral, a nitazoxanida é bem tolerada, com poucos efeitos adversos relatados. Outros Agentes Antiprotozoários A pentamidina pode ser utilizada no tratamento de indivíduos com tripanossomíase africana (doença do sono africana) de estágio inicial, causada por Trypanosoma brucei gambiense e por certas cepas de T. b. rhodesiense. A tripanossomíase de estágio inicial é definida como uma doença que não acomete o sistema nervoso central (SNC). A pentamidina inibe a síntese de DNA, RNA, proteína e fosfolipídios. O fármaco possui alta afinidade pelo DNA nos cinetoplastos (uma organela que con- tém DNA em certos protozoários) e suprime a replicação e a função dos cinetoplastos.Os protozoários que possuem cineto- plastos incluem Trypanosoma e Leishmania spp. A pentamidina também pode inibir a diidrofolato redutase. Algumas cepas de Trypanosoma apresentam um sistema de captação de alta afinidade para o fármaco, contribuindo para sua seletividade. A pentamidina pode provocar fadiga, tonteira, hipotensão, pancre- atite e lesão renal. Na atualidade, a pentamidina é utilizada mais comumente como tratamento de segunda linha de indivíduos com pneumonia por Pneumocystis jiroveci (P. carinii) (PPC), uma infecção comum que acomete pacientes com AIDS. A suramina é outro fármaco utilizado no tratamento de indi- víduos com tripanossomíase africana de estágio inicial. A sura- mina interage com muitas macromoléculas e inibe numerosas enzimas, incluindo aquelas envolvidas no metabolismo ener- gético (p. ex., glicerol fosfato desidrogenase). Inibe também a RNA polimerase e, por conseguinte, interfere na replicação dos parasitas. A suramina pode causar prurido, parestesias, vômitos e náusea. A base bioquímica da seletividade relativa da surami- na para a tripanossomíase africana não está bem elucidada. O melarsoprol é utilizado como fármaco de primeira linha no tratamento de indivíduos com tripanossomíase africana de estágio avançado (i. é, doença que compromete o SNC). O melarsoprol foi desenvolvido pela conjugação do quelante de metais pesados, dimercaptopropanol, com arsênio trivalente do Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 601 óxido de melarseno. O fármaco é insolúvel em água e deve ser dissolvido em propilenoglicol. Os tripanossomos sangüí- neos carecem de um ciclo funcional do ácido tricarboxílico e dependem totalmente da glicólise para a produção de ATP. O melarsoprol inibe a piruvato cinase dos tripanossomos, com conseqüente inibição da glicólise e diminuição da produção de ATP. Os tripanossomos afetados perdem rapidamente a sua motilidade e sofrem lise. O melarsoprol também inibe a cap- tação de adenina e adenosina por transportadores dos tripanos- somos. As células dos mamíferos são menos permeáveis ao fármaco do que os tripanossomos, e parte da seletividade do melarsoprol baseia-se nessa menor permeabilidade. Infelizmen- te, o melarsoprol é muito tóxico para os seres humanos (taxa de mortalidade de 4 a 6%). O melarsoprol é administrado por via intravenosa e pode causar flebite grave. É também corrosivo para plásticos, o que limita o seu armazenamento e as opções de administração. Além disso, 5 a 10% dos pacientes com tri- panossomíase africana de estágio avançado desenvolvem infla- mação intensa do cérebro após administração de melarsoprol (“encefalopatia reativa”). Essa complicação está associada a uma taxa de mortalidade de mais de 50%. A administração concomitante de corticosteróides diminui a probabilidade de encefalopatia reativa. A polineuropatia após a administração de melarsoprol também é comum (10%) e pode ser reduzida pela administração concomitante de tiamina. A eflornitina (�-difluorometilornitina) constitui uma alter- nativa muito menos tóxica ao melarsoprol no tratamento de pacientes com tripanossomíase africana causada por T. b. gam- biense (doença do sono da África ocidental). A eflornitina mos- tra-se altamente efetiva contra o estágio tanto inicial quanto avançado da doença do sono africana ocidental, mas não contra a tripanossomíase africana oriental (causada por T. b. rhode- siense). A eflornitina é um inibidor seletivo e irreversível da ornitina descarboxilase e, portanto, da síntese de poliaminas. A ornitina descarboxilase converte a ornitina em putrescina; trata-se de uma etapa limitante de velocidade na síntese de putrescinas e poliaminas, espermina e espermidina. As polia- minas estão envolvidas na síntese de ácidos nucléicos e na regulação da síntese de proteínas. O T. b. gambiense mostra-se sensível à ornitina, possivelmente devido à renovação lenta da ornitina descarboxilase nesses parasitas; por outro lado, o T. b. rhodesiense apresenta uma maior taxa de renovação (como as células humanas) e é menos sensível. O nifurtimox é utilizado no tratamento de indivíduos com tripanossomíase do Novo Mundo (doença de Chagas) causa- da pelo Trypanosoma cruzi. O fármaco sofre redução e gera radicais de oxigênio tóxicos intracelulares no parasita. For- ma inicialmente intermediários reduzidos, como radicais nitro aril. Esses radicais podem ser então oxidados para gerar ânions superóxido que reagem com água para produzir peróxido de hidrogênio citotóxico. Alguns parasitas, como os tripanossomos, carecem de catalase e outras enzimas capazes de degradar o peróxido de hidrogênio. Por conseguinte, esses parasitas são sen- síveis à toxicidade dos fármacos nitro aromáticos. As células dos mamíferos são protegidas, devido a seu complemento de enzimas antioxidantes, como catalase, glutationa peroxidase e superóxido dismutase. O nifurtimox pode provocar anorexia, vômitos, perda da memória, transtornos do sono e convulsões. Estibogliconato de sódio e antimoniato de meglumina são utilizados no tratamento de indivíduos com leishmaniose, que é causada por parasitas do gênero Leishmania. Esses fármacos contêm antimônio pentavalente e atuam através de um meca- nismo desconhecido. Acredita-se que esses agentes inibem a via glicolítica e a oxidação de ácidos graxos, dois processos que são cruciais para o metabolismo intermediário. O antimô- nio pentavalente também pode ter muitos efeitos inespecíficos, como modificação de grupos sulfidrila. Esses fármacos podem causar supressão da medula óssea, prolongamento do intervalo QT, pancreatite e exantema cutâneo. A resistência das leishmânias aos agentes antimoniais está sendo reconhecida com freqüência crescente, particularmente no sul da Ásia. Os agentes alternativos incluem a anfotericina e a miltefosina. O mecanismo de ação da miltefosina não é conhecido. Trata-se de um análogo sintético de éter fosfoli- pídio que é quimicamente semelhante aos fosfolipídios natu- rais existentes nas membranas celulares. Foi constatado que a miltefosina possui atividade antineoplásica, imunomoduladora e antiprotozoária. Acredita-se que os efeitos citostáticos e cito- tóxicos da miltefosina sejam produzidos pela inibição de siste- mas enzimáticos associados às membranas plasmáticas (como a proteinocinase C) e inibição da biossíntese de fosfatidilco- lina. A miltefosina também pode inibir as respostas induzidas pelo fator de ativação das plaquetas e a formação de fosfato de inositol. Os efeitos imunomoduladores da miltefosina incluem ativação das células T, produção de interferon-gama nas células mononucleares periféricas e aumento da expressão do receptor de interleucina-2 e HLA-DR. O fármaco pode ser administrado por via oral e utilizado no tratamento de pacientes com leish- maniose visceral. HELMINTOS Os helmintos são vermes multicelulares com sistemas digestório, excretor, nervoso e reprodutor. Os helmintos parasitas podem infestar o fígado, o sangue, o intestino e outros tecidos do hos- pedeiro humano. Os helmintos clinicamente importantes podem ser divididos, do ponto de vista filogenético, em três classes: nematódeos (vermes cilíndricos), trematódeos (fascíolas) e cestódeos (tênias). A presença de um sistema nervoso rudimen- tar proporciona diversos alvos possíveis para os agentes anti- helmínticos. A fisiologia do Onchocerca volvulus, que provoca a oncocercíase (“cegueira do rio”), fornece um exemplo de alvos potenciais para os fármacos anti-helmínticos. Embora a maior parte da discussão que se segue trate da fisiologia e da farmacologia da oncocercíase, são também apresentados vários outros agentes anti-helmínticos. Caso 4 Thumbi é um menino que gosta de pescar no rio próximo à sua aldeia, na República Democrática do Congo. Aos 13 anos de idade, emigra com a família paraos Estados Unidos. Pouco tempo depois, começa a coçar vigorosamente os braços e as pernas. Seis meses mais tarde, a mãe o leva a um dermatologista. O exame físico revela um exantema macular e papular, com escoriações nos braços e nas pernas, além de alguns nódulos subcutâneos. O exame do sangue periférico mostra a presença de eosinofilia de alto grau. Efetua-se excisão de um nódulo, que é examinado por um patologista, com estabelecimento do diagnóstico. Thumbi começa o tratamento com ivermectina, porém retorna no dia seguinte em estado febril e sentindo mais coceira do que antes. QUESTÕES 1. O que o patologista observou no nódulo subcutâneo? 602 Capítulo Trinta e Cinco 2. Por que Thumbi sentiu-se pior imediatamente após o trata- mento com ivermectina? FISIOLOGIA DOS HELMINTOS Os seres humanos podem ser infestados por helmintos quando ingerem água ou consomem alimentos contaminados com ovos ou larvas. Além disso, as larvas presentes no solo podem pene- trar na pele dos seres humanos, e os insetos também podem transmitir outras larvas através de picadas. Se os seres huma- nos forem o hospedeiro definitivo, os ovos ou as larvas desen- volvem-se em vermes adultos, que podem migrar pelos tecidos e entrar no estágio sexual. Durante o estágio sexual, os vermes adultos liberam ovos ou larvas, que podem ser então elimina- dos do hospedeiro através do trato gastrintestinal ou do trato urinário. As larvas presentes nos seres humanos também podem ser ingeridas por insetos durante uma refeição de sangue. No ambiente ou no interior de vetores hospedeiros, os ovos ou as larvas tornam-se infestantes para os seres humanos, com reinício do ciclo. Ciclo de Vida do Onchocerca volvulus A oncocercíase é uma das oito infestações humanas por filárias (um tipo específico de infestação por nematódeos). No caso de Thumbi, uma mosca negra Simulium spp. infestada picou e inoculou larvas de O. volvulus em sua pele, na África. A seguir, os vermes adultos desenvolveram-se nos tecidos sub- cutâneos de Thumbi. Os machos e as fêmeas adultos dessas filárias estabeleceram-se em nódulos subcutâneos, onde se acasalaram (Fig. 35.8). Os vermes adultos são grandes (3 a 80 cm de comprimento), assemelham-se a espaguete e podem viver por 10 a 15 anos. Os nódulos possuem aspecto carac- terístico, que foi reconhecido pelo patologista. A partir desses nódulos (“oncocercomas”), as fêmeas grávidas liberam milhões de microfilárias, que migram livremente através da pele e da córnea. Se forem ingeridas por uma mosca Simulium, pode ocorrer maturação adicional, podendo dar prosseguimento ao ciclo. O diagnóstico de oncocercíase baseia-se habitualmente na detecção microscópica das microfilárias em retalhos de pele, e não no exame patológico de oncocercomas excisados. As microfilárias são pequenas (200 a 400 µm); quando degeneram e morrem, provocam reações inflamatórias locais, causando prurido, dermatite e, por fim, cicatrizes. Quando as microfi- lárias morrem na córnea, induzem ceratite pontilhada que, no decorrer dos anos, leva a cicatrizes e cegueira. Esse compro- metimento ocular tornou a oncocercíase a segunda causa prin- cipal de cegueira infecciosa no mundo (depois do tracoma) e constitui a razão pela qual é também conhecida como “cegueira do rio” (refletindo também o fato de que as moscas negras que transportam as larvas residem em áreas de rios, como o rio onde Thumbi gostava de pescar). Na ausência de tratamento, Thumbi poderia tornar-se mais um dos 500.000 indivíduos no mundo que estão atualmente cegos ou com comprometimento visual em decorrência da oncocercíase. Atividade Neuromuscular A camada subcuticular do músculo longitudinal dos nematódeos é inibida por transmissores GABAérgicos e excitada por trans- missores colinérgicos. Os neurônios motores dos invertebrados não são mielinizados, tornando-os mais vulneráveis à neuro- toxina do que os neurônios motores somáticos mielinizados dos seres humanos. (Ver Cap. 7, para informações mais detalhadas sobre o sistema nervoso humano.) Muitos agentes anti-helmín- ticos modulam a atividade neuromuscular dos parasitas através de aumento da sinalização inibitória, antagonismo da sinaliza- ção excitatória (bloqueio não-despolarizante) ou estimulação tônica da sinalização excitatória (bloqueio despolarizante). Nódulo subcutâneo Células adiposas Espaço subcutâneo Derme Epiderme Estrato córneo Filárias adultas Microfilárias (nos tecidos) Ivermectina Inflamação da córnea com ceratite esclerosante Dermatite Fig. 35.8 Ciclo de vida do Onchocerca volvulus. As filárias adultas acasalam- se em nódulos subcutâneos nos seres humanos, liberando microfilárias que provocam dermatite e prurido quando migram através da pele e dos tecidos subcutâneos. As microfilárias que migram através do olho induzem inflamação ocular, que pode levar à cicatriz da córnea e cegueira (“cegueira do rio”). A ivermectina, o agente de escolha no tratamento de indivíduos com oncocercíase, mostra-se efetiva apenas contra as microfilárias; o fármaco não mata as filárias adultas. Farmacologia das Infecções e Infestações Parasitárias 603 FARMACOLOGIA DOS AGENTES ANTI-HELMÍNTICOS Agentes que Interrompem a Atividade Neuromuscular Ivermectina A ivermectina é uma lactona macrocíclica semi-sintética que atua contra uma ampla gama de helmintos e artrópodes e que tem sido utilizada mais extensamente no tratamento e no con- trole da oncocercíase. O mecanismo exato de ação da ivermecti- na ainda não está bem esclarecido, porém os estudos realizados com Caenorhabditis elegans (um helminto do solo extensamen- te estudado na biologia dos eucariotas como modelo simples de organismo) sugerem que o mecanismo de ação do fármaco envolve uma potencialização e/ou ativação direta dos canais de cloreto regulados pelo glutamato nas membranas plasmáti- cas dos nematódeos. Essa ação resulta em hiperpolarização das células neuromusculares e paralisia da faringe. Acredita-se tam- bém que a ivermectina afeta a transmissão inibitória do ácido gama-aminobutírico (GABA), potencializando a liberação de GABA das terminações pré-sinápticas, ativando diretamente os receptores de GABA e potencializando a ligação do GABA a seu receptor. Todos esses efeitos aumentam a transmissão de sinais mediada pelo GABA nos nervos periféricos, resultando em hiperpolarização. O efeito final é variável, dependendo do sistema modelo do nematódeo em estudo, porém o resultado final consiste em bloqueio da transmissão neuromuscular e paralisia do verme. A paralisia da faringe do O. volvulus inibe a captação de nutrientes e mata as larvas em desenvolvimento (microfilárias). Infelizmente, a ivermectina não mata as filárias adultas. Entre- tanto, destrói as microfilárias in utero, impedindo assim a pro- dução e a liberação de novas microfilárias das fêmeas adultas durante pelo menos seis meses. Por conseguinte, a ivermectina é utilizada para prevenir a lesão ocular mediada pelas microfi- lárias e diminuir a transmissão entre seres humanos e vetores (visto que as microfilárias são infestantes para as moscas do gênero Simulium); entretanto, não tem a capacidade de curar o hospedeiro humano com infestação por O. volvulus. Como a ivermectina não é curativa, é tipicamente administrada a indi- víduos infestados a cada 6 a 12 meses para a expectativa de vida dos vermes adultos (5 a 10 anos). A ivermectina não interage com os receptores de GABA nos vertebrados, porém a sua afinidade pelos receptores de GABA dos invertebrados é cerca de 100 vezes maior. Os cestódeos e os trematódeos carecem de receptores de ivermectina de alta afinidade, o que pode explicar a resistência desses organismos ao fármaco. Nos seres humanos, os receptores de GABA são encontrados principalmente no SNC; entretanto, como a iver-
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