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1 Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano” Karl Marx1 1- O no 60 do Vorwärts! contém um artigo intitulado: “O rei da Prússia e a reforma social, assinado: Um prussiano”. 2- Em um primeiro momento, o dito Prussiano faz referência ao conteúdo das ordens do gabinete do rei da Prússia sobre a revolta dos trabalhadores da Silésia e à opinião do jornal francês La Réforme acerca dessas ordens do gabinete prussiano. O La Réforme entende que a ordem do gabinete foi motivada pelo "susto (Schrecken) e pelo sentimento religioso" do rei. E até descobre nesse documento a previsão das grandes reformas que se apresentam à sociedade civil. O "prussiano" ensina ao Réforme nestes termos: 3- "O rei e a sociedade alemã não chegaram ainda a pressentir a sua reforma 2 e menos ainda as insurreições silesiana e boêmia deram origem a tal sentimento. É impossível, para um país não-político como a Alemanha, compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral, e muito menos que representa um problema para o conjunto da sociedade. Para os alemães, esse acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso o rei o considera como um defeito de administração ou de falta de caridade. Por esse motivo e também porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões, a demolição das fábricas e das máquinas não incute nenhum "susto", nem ao rei, nem às autoridades. Além do mais, a ordem do gabinete nem sequer foi ditada pelo sentimento religioso: trata-se de uma sóbria expressão da arte política (Staatskunst) cristã e de uma doutrina que não deixa subsistir nenhuma dificuldade diante do seu único remédio, "os bons sentimentos dos corações cristãos". Miséria e crime são duas grandes calamidades: quem poderá repará- las? O Estado e as autoridades? Não, mas a união de todos os corações cristãos". 1 Razões especiais me levam a esclarecer que este artigo é o primeiro que autorizo publicar no Vorwärts! (N. do A.). Escrito por Marx em Paris, em 3l de julho de l844, e publicado no Vorwärts!, no 63, em 7 de agosto de 1844. A segunda parte foi publicada em 10 de agosto de 1844, no 64. Ambos são uma réplica ao O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um Prussiano, que havia sido editado no mesmo jornal, no 60. 2 Verifica-se a falta de sentido gramatical e estilístico: "O rei da Prússia e a sociedade alemã não chegaram ainda a pressentir a sua (a quem se refere este "sua"?) reforma" (N. do A.). 4- O dito prussiano nega o "susto" do rei, entre outras coisas, porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões. 5- Ora, em um país onde banquetes com brindes liberais e espuma liberal de champanhe – lembre-se a festa de Düsseldorf – provocam uma ordem do gabinete real, pela qual não houve necessidade de um só soldado para acabar com os anseios de toda a burguesia liberal à liberdade de imprensa e de uma constituição; em um país em que a obediência passiva está à l’ordre du jour (na ordem do dia); em um tal país não seria um acontecimento aterrorizante ter que recorrer à força armada contra frágeis tecelões? Considere-se ainda o fato de que os frágeis tecelões saíram vencedores no primeiro choque. Apenas mediante consideráveis reforços de tropas é que foram massacrados. A revolta de uma massa de trabalhadores é por acaso menos perigosa pelo fato de não ser necessário um exército para sufocá-la? Que o inteligente prussiano compare a revolta dos tecelões silesianos com as revoltas dos operários ingleses e os tecelões silesianos lhe parecerão tecelões fortes. 6- A partir da relação geral da política com os males sociais, poderemos esclarecer porque a revolta dos tecelões não provocou nenhum medo particular ao rei. No momento diremos apenas o seguinte: a revolta não era dirigida diretamente contra o rei da Prússia, mas contra a burguesia. Como aristocrata e monarca absoluto, o rei da Prússia não pode amar a burguesia; menos ainda pode se assustar se a submissão e a impotência da burguesia forem acrescidas de relações tensas e difíceis com o proletariado. E ainda: o católico ortodoxo é mais hostil ao protestante ortodoxo do que ao ateu, assim como o legitimista é mais hostil ao liberal do que aos comunistas. Não porque o ateu e o comunista tenham mais afinidade com o católico e o legitimista, mas porque eles são mais estranhos do que o protestante e o liberal, uma vez que se situam do lado de fora do seu círculo. Enquanto homem político, o rei da Prússia tem, na política, o seu antagonista direto no liberalismo. Para o rei, o antagonismo com o proletariado existe tão pouco quão pouco o rei existe para o proletariado. O proletariado já deveria ter alcançado uma força decisiva para sufocar as antipatias, os antagonismos e atrair sobre si a total hostilidade da política. Por último: para o bem conhecido caráter do rei, desejoso de coisas interessantes e significativas, devia constituir de fato uma surpresa agradavelmente excitante o fato de encontrar no seu território aquele "interessante" e "tão falado" pauperismo, e com isso uma ocasião para fazer com que falassem novamente de si. Como deve ter-lhe sido agradável a notícia de 2 que ele já possuía o seu "próprio" pauperismo, um pauperismo prussiano. 7- O nosso "prussiano" é ainda mais infeliz quando nega que o "sentimento religioso" seja a fonte das ordens do gabinete real. Por que o sentimento religioso não é a fonte das ordens? Porque estas são "uma muito sóbria expressão da arte política cristã", uma "sóbria" expressão da doutrina que elimina qualquer dificuldade "mediante o seu único remédio, os bons sentimentos dos corações cristãos". 8- O sentimento religioso não é a fonte da arte política cristã (christlicher Staatskunst)? Uma doutrina que possui sua panacéia no bom sentimento cristão não se baseia no sentimento religioso? Uma expressão mais sóbria do sentimento religioso deixa de ser uma expressão do sentimento religioso? Mais ainda: eu afirmo que é um sentimento religioso muito cheio de si, muito apaixonado, aquele que procura o "remédio para os grandes males" na "união dos corações cristãos", e não no "Estado e nas autoridades". É um sentimento religioso muito apaixonado aquele que – segundo admite o "prussiano" – particulariza todos os males na falta do sentimento cristão, remetendo as autoridades ao único meio para reforçar este sentimento, à "exortação" (Ermahnung: advertência, admoestação). A disposição cristã é, segundo o "prussiano", a razão das ordens do gabinete. O sentimento religioso, quando está bêbado e não sóbrio, se considera o único bem. Lá onde descobre males, ele os atribui à sua ausência, uma vez que, se é o único bem, também é somente ele que pode produzir o bem. A ordem do gabinete, ditada pelo sentimento religioso, dita por sua vez, como conseqüência, o sentimento religioso. Um político com sentimentos religiosos sóbrios, na sua “perplexidade”, não procurará sua “salvação” na “exortação (Ermahnung) do orador religioso às convicções cristãs”. 9- Como o dito prussiano demonstra, então, ao Réforme, que a ordem do gabinete não emana do sentimento religioso? Já que apresenta sempre a ordem do gabinete como uma emanação do sentimento religioso. Pode-se esperar que uma mente tão ilógica seja capaz compreender os acontecimentos sociais? Ouçamos um pouco o que ele diz sobre a relação entre a sociedade alemã, o movimentodos trabalhadores e a reforma social. 10- Distingamos aquilo que o "prussiano" negligencia, distingamos as diferentes categorias que são compreendidas na expressão "sociedade alemã": governo, burguesia, imprensa, e enfim os próprios trabalhadores. Essas são as diferentes massas de que se trata aqui. O "prussiano" agrupa essas massas todas e, do alto do seu elevado ponto de vista, condena-as todas em massa. Para ele, a sociedade alemã nem sequer “chegou ainda a pressentir a sua reforma”. 11- Por que lhe 3 falta esse instinto? 12- "Em um país não-político como a Alemanha", responde o prussiano, "é impossível compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral e menos ainda que é um dano para o conjunto da sociedade. Para os alemães, o acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso, o rei o considera como um 'defeito de administração e de assistência'." 13- O "prussiano" explica então essa compreensão errada (verkehrte: às avessas) da miséria dos trabalhadores como própria de um país não-político. 14- Admite-se que a Inglaterra é um país político. Admitir-se-á, ainda: a Inglaterra é o país do pauperismo; a própria palavra é de origem inglesa. Portanto, o exame da Inglaterra é o experimento mais seguro para conhecer-se a relação de um país político com o pauperismo. Na Inglaterra, a miséria dos trabalhadores não é parcial, mas universal; não se limita aos distritos industriais, mas se estende aos agrícolas. Os movimentos não estão numa fase inicial, mas reaparecem periodicamente há quase um século. 15- Como entendem o pauperismo, então, a burguesia inglesa e o governo e a imprensa àquela ligados? 16- Na medida em que a burguesia inglesa acredita que o pauperismo é uma responsabilidade da política, os Whig consideram os Tory – e os Tory os Whig4 – a causa do pauperismo. Segundo os Whig, a causa principal do pauperismo está no monopólio das grandes propriedades fundiárias e na legislação que proíbe a importação de cereais. Segundo os Tory, todo o mal reside no liberalismo, na concorrência, no exagerado desenvolvimento industrial. Nenhum dos partidos encontra a origem na política em geral e sim na política do partido adversário; porém, ambos os partidos sequer sonham com uma reforma da sociedade. 17- A expressão mais rigorosa da compreensão inglesa acerca do pauperismo – referimo-nos sempre à compreensão da burguesia inglesa e do governo – é 3 A sociedade alemã (N. do T.). 4 Partidos ingleses (N. do T.). 3 a Economia Política inglesa, isto é, o reflexo científico da situação econômica inglesa. 18- Um dos melhores e mais famosos economistas ingleses, que reconhece a situação atual e a necessidade de se ter uma visão de conjunto do movimento da sociedade burguesa, um discípulo do cínico Ricardo, MacCulloch, ousa ainda aplicar à economia política, numa preleção pública, em meio a manifestações de aplauso, aquilo que Bacon diz da filosofia: "O homem que, com verdadeira e infatigável sabedoria, suspenda o seu julgamento, progrida pouco a pouco e supere um a um os obstáculos que se interpõem como montanhas ao curso dos estudos, atingirá com o tempo o cume da ciência, onde se goza a paz e o ar puro, onde a natureza se expõe ao olhar em toda a sua beleza e onde, por meio de uma senda em cômodo declive, pode-se descer até os últimos detalhes da prática". 19- Bom ar puro a atmosfera pestilenta das habitações nos porões ingleses! Grande beleza natural os fantásticos trapos com que se vestem os miseráveis ingleses e o corpo flácido e encarquilhado das mulheres roídas pelo trabalho e pela miséria; as crianças que dormem no esterco; os abortos provocados pelo excesso de trabalho na monótona atividade mecânica das fábricas! E os graciosos últimos detalhes da prática: a prostituição, o crime e a fôrca! 20- Até mesmo aquela parte da burguesia inglesa que está consciente do perigo do pauperismo concebe este perigo, como também os meios para repará-lo, não apenas de forma particular, mas, para dizê-lo sem rodeios, de forma infantil e sem graça. 21- Assim, por exemplo, o doutor Kay, no seu opúsculo “Recent meausures for the promotion of education in England”, reduz tudo a uma educação descuidada. Adivinhe-se por que motivo! Por falta de educação o operário não entende "as leis naturais do comércio", leis que o levam necessariamente ao pauperismo. E daí ele se rebela. Isto pode "perturbar a prosperidade das manufaturas inglesas e do comércio inglês, abalar a confiança recíproca dos homens de negócios, diminuir a estabilidade política e social das instituições". 22- De tal monta é a falta de inteligência da burguesia inglesa e de sua imprensa sobre o pauperismo, esta epidemia nacional da Inglaterra. 23- Suponhamos, porém, que tenham fundamento as críticas que o nosso "prussiano" faz à sociedade alemã. Será que a raiz reside na situação não-política da Alemanha? Mas, se a burguesia da não-política Alemanha é incapaz de perceber o significado geral de uma miséria parcial, a burguesia da política Inglaterra tampouco reconhece o significado geral de uma miséria universal, uma miséria que evidenciou o seu significado universal tanto através do seu retorno periódico no tempo quanto através da sua extensa disseminação no espaço e também através do fracasso de todas as tentativas de remediá-la. 24- O "prussiano" atribui ainda à situação não- política da Alemanha o fato de que o rei da Prússia encontre a causa do pauperismo na falha de administração e de caridade e procure, desse modo, em medidas de administração e de assistência, os meios contra o pauperismo. 25- Por acaso, será exclusivo do rei da Prússia este modo de ver? Dê-se uma rápida olhada à Inglaterra, o único país no qual se pode falar de uma grande ação política contra o pauperismo. 26- A atual legislação inglesa sobre a pobreza data da lei contida no Ato 43 do reinado de Elisabeth 5 . Em que consistem os meios propostos nesta legislação? Na obrigação imposta às paróquias de socorrer os seus trabalhadores pobres, no imposto para os pobres, na caridade legalizada. Essa legislação – a assistência por via administrativa – durou dois (Zwei) séculos. Depois de longas e dolorosas experiências, quais são as posições do parlamento no seu Amendment Bill de l834? 27- Antes de mais nada, atribui o assustador aumento do pauperismo a uma "falha de administração". 28- Por isso, a administração do imposto para os pobres, gerenciada por empregados das respectivas paróquias, é reformulada. São constituídas uniões de cerca de vinte paróquias, unidas em uma única administração. Um comitê de funcionários – Board of Guardians – eleitos pelos contribuintes, reúne-se em um determinado dia na sede da União e avalia os pedidos de subsídio. Esses comitês são dirigidos e supervisionados por delegados do governo, a Comissão Central da Somerset House, o ministério do pauperismo, segundo a precisa definição de um francês 6 . O capital de que essa administração cuida quase equivale à soma que a administração militar custa na França. O número de administrações locais que dependem dela chega a quinhentas e cada uma dessas administrações locais, por sua vez, ocupa, pelo menos, doze funcionários. 5 Para o nosso objetivo, não é necessário remontar ao estatuto dos trabalhadores sob Eduardo III (N. do A.). 6 Eugène Buret (N. do T.).4 29- O parlamento inglês não se limitou à reforma formal da administração. 30- Segundo ele, a causa principal da grave situação do pauperismo inglês está na própria lei relativa aos pobres. A assistência, o meio legal contra o mal social, acaba favorecendo-o. E quanto ao pauperismo em geral, seria, de acordo com a lei de Malthus, uma eterna lei da natureza: "Uma vez que a população tende a superar incessantemente os meios de subsistência, a assistência é uma loucura, um estímulo público à miséria. Por isso, o Estado nada mais pode fazer do que abandonar a miséria ao seu destino e, no máximo, tornar mais fácil a morte dos pobres". 31- A essa teoria filantrópica, o parlamento inglês agrega a idéia de que o pauperismo é a miséria da qual os próprios trabalhadores são culpados, e ao qual portanto não se deve prevenir como uma desgraça, mas antes reprimir e punir como um crime. 32- Surgiu, assim, o regime das workhouses, isto é, das casas dos pobres, cuja organização interna desencoraja os miseráveis de buscar nelas a fuga contra a morte pela fome. Nas workhouses, a assistência é engenhosamente entrelaçada com a vingança da burguesia contra o pobre que apela à sua caridade. 33- Como se vê, a Inglaterra tentou acabar com o pauperismo primeiramente através da assistência e das medidas administrativas. Em seguida, ela descobriu, no progressivo aumento do pauperismo, não a necessária conseqüência da indústria moderna, mas antes o resultado do imposto inglês para os pobres. Ela entendeu a miséria universal unicamente como uma particularidade da legislação inglesa. Aquilo que, no começo, fazia-se derivar de uma falta de assistência, agora se faz derivar de um excesso de assistência. Finalmente, a miséria é considerada como culpa dos pobres e, deste modo, neles punida. 34- A lição geral que a política Inglaterra tirou do pauperismo se limita ao fato de que, no curso do desenvolvimento, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi configurando-se como uma instituição nacional e chegou por isso, inevitavelmente, a ser objeto de uma administração ramificada e bastante extensa, uma administração que não tem mais a tarefa de eliminá-lo, mas, ao contrário, de discipliná-lo, perpetuá-lo. Essa administração renunciou a estancar a fonte do pauperismo através de meios positivos; ela se contenta em abrir-lhe, com ternura policial, um buraco toda vez que ele transborda para a superfície do país oficial. Bem longe de ultrapassar as medidas de administração e de assistência, o Estado inglês desceu muito abaixo delas. Ele já não administra mais do que aquele pauperismo que, em desespero, deixa agarrar-se e prender-se. 35- Até agora, portanto, o "prussiano" não mostrou nada de particular nos métodos do rei da Prússia. Mas, por que, exclama o grande homem com rara ingenuidade: "Por que o rei da Prússia não determina imediatamente a educação de todas as crianças abandonadas? Por que se dirige antes às autoridades, esperando seus planos e projetos?” 36- O inteligentíssimo prussiano se tranqüilizará quando souber que o rei da Prússia é, nisso, tão pouco original quanto o é no resto das suas ações e que, pelo contrário, trilhou o único caminho que um chefe de Estado pode trilhar. 37- Napoleão queria acabar de um golpe com a mendicância. Encarregou as suas autoridades de preparar planos para a erradicação da mendicância em toda a França. O projeto demorava: Napoleão perdeu a paciência, escreveu ao seu ministro do interior, Crétet, e lhe ordenou que destruísse a mendicância dentro de um mês, dizendo: "Não se pode passar sobre essa terra sem deixar traços que relembrem à posteridade a nossa memória. Não me peçam mais três ou quatro meses para receber informações; vocês têm funcionários jovens, prefeitos inteligentes, engenheiros civis bem preparados, ponham ao trabalho todos eles; não fiquem modorrando no costumeiro trabalho de escritório". 38- Em poucos meses tudo estava terminado. No dia cinco de julho de 1808 foi promulgada a lei de supressão da mendicância. Como? Por meio dos depósitos (Depôts: albergues), que se transformaram em penitenciárias com tanta rapidez que logo o pobre só chegava aí através do tribunal da polícia correcional. E, no entanto, naquele tempo, o senhor Noailles du Gard, membro do corpo legislativo, exclamava: "Reconhecimento eterno ao herói que assegura à necessidade um lugar de refúgio e à miséria os meios de subsistência. A infância não será mais abandonada, as famílias pobres não serão mais privadas de recursos, nem os operários de estímulo e ocupação. Não tropeçaremos mais no quadro repugnante das enfermidades e da vergonhosa miséria”. O último período é a única verdade desse panegírico. 39- Se Napoleão apela ao discernimento dos seus funcionários, prefeitos e engenheiros, por que não o rei da Prússia às suas autoridades? 5 40- Por que Napoleão não ordenou a imediata supressão da mendicância? O mesmo valor tem a pergunta do "prussiano": “Por que o rei da Prússia não determina a imediata educação de todas as crianças abandonadas?” Sabe o "prussiano" o que o rei da Prússia deveria determinar? Nada menos que a extinção (Vernichtung) do proletariado. Para educar as crianças, é preciso alimentá-las e liberá-las da necessidade de trabalhar para viver. Alimentar e educar as crianças abandonadas, isto é, alimentar e educar todo o proletariado que está crescendo, significaria eliminar o proletariado e o pauperismo. 41- A Convenção teve, por um momento, a coragem de ordenar a eliminação do pauperismo, não certamente "de modo imediato", como o "prussiano" exigiria do seu rei, mas depois de haver encarregado o seu Comitê de Saúde Pública de elaborar os planos e as propostas necessários, e depois que este utilizou os amplos levantamentos da Assembléia Constituinte sobre as condições da miséria na França e propôs, através de Barrère, a criação do Livro de Caridade Nacional, etc.. Qual foi a conseqüência das ordens da Convenção? Que houvesse uma ordem a mais no mundo e que, um ano depois, mulheres esfomeadas invadissem a Convenção. 42- E, no entanto, a Convenção era o máximo da energia política, do poder político e da compreensão política. 43- De modo imediato, sem um acordo com as autoridades, nenhum governo do mundo conseguiu ditar medidas a respeito do pauperismo. O parlamento inglês chegou até a mandar, a todos os países da Europa, comissários para conhecer os diferentes remédios administrativos contra o pauperismo. Porém, por mais que os Estados tivessem se ocupado do pauperismo, sempre se ativeram a medidas de administração e de assistência, ou, ainda mais, desceram abaixo da administração e da assistência. 44- Pode o Estado agir de outra forma? 45- O Estado jamais encontrará no "Estado e na organização da sociedade" o fundamento dos males sociais, como o "prussiano" exige do seu rei. Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado. 46- O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, quenenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele. Assim, a Inglaterra acha que a miséria tem o seu fundamento na lei da natureza, segundo a qual a população supera necessariamente os meios de subsistência. Por outro lado, o pauperismo é explicado como derivando da má vontade dos pobres, ou, de acordo com o rei da Prússia, do sentimento não cristão dos ricos, e, segundo a Convenção, das intenções suspeitas e contra-revolucionárias dos proprietários. Por isso, a Inglaterra pune os pobres, o rei da Prússia intima os ricos e a Convenção guilhotina os proprietários. 47- Finalmente, todos os Estados procuram a causa em deficiências acidentais ou intencionais da administração e, por isso, o remédio para os seus males em medidas administrativas. Por que? Exatamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado. 48- O Estado não pode eliminar a contradição entre a disposição e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre a vida privada e a vida pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente às conseqüências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas conseqüências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se apóia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. O Estado antigo e a escravidão antiga – francos antagonismos clássicos – não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o Estado moderno e o moderno mundo das negociatas, hipócritas antagonistas cristãos. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, 6 deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como oposição a ela. Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los. Se tais modificações são infrutíferas, então o mal social é uma imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou então a vontade dos indivíduos particulares é por demais corrupta para corresponder aos bons objetivos da administração. E quem são esses pervertidos indivíduos particulares? São os que resmungam contra o governo sempre que ele lhes limita a liberdade e pretendem que o governo impeça as conseqüências necessárias dessa liberdade. 49- Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, pretensiosa e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O entendimento político é precisamente político na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. O período clássico do entendimento político é a Revolução Francesa. Bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais, os heróis da Revolução Francesa descobriram antes nas misérias sociais a fonte dos males políticos. Deste modo, Robespierre vê na imensa pobreza e na imensa riqueza somente um obstáculo à democracia pura. Por isso, ele quer estabelecer uma frugalidade espartana geral. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o entendimento político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, conseqüentemente, incapaz de descobrir a raiz dos males sociais. Não é preciso argumentar mais contra a insensata esperança do "prussiano", segundo a qual o "entendimento político" é chamado a descobrir as raízes da miséria social na Alemanha. 50- Foi insensato não somente exigir do rei da Prússia um poder que nem a Convenção e Napoleão juntos tiveram; foi insensato exigir dele um modo de ver que ultrapassa os limites de toda a política, um modo de ver do qual o inteligente "prussiano" está pelo menos tão longe quanto o seu rei. Toda essa declaração foi ainda mais insensata na medida em que o "prussiano" nos confessa: "As boas palavras e as boas intenções são baratas, o que é caro são a perspicácia e as ações eficazes; neste caso, elas são mais do que caras, são impossíveis de serem adquiridas". 51- Se não são adquiríveis, então é preciso reconhecer aquele que faz as coisas da melhor forma possível na posição que ocupa. No mais, deixo a critério do leitor julgar se, neste caso, a linguagem mercantil, cigana, em termos de "barato", "caro", "mais do que caro", "impossível de adquirir", possa ser incluída na categoria das "boas palavras" e das "boas intenções". 52- Suponhamos, porém, que as observações do "prussiano" sobre o governo alemão e sobre a burguesia alemã – esta última está, sem dúvida, compreendida na “sociedade alemã” – tenham pleno fundamento. Será que essa parte da sociedade está mais perplexa na Alemanha do que na Inglaterra ou na França? Pode-se estar mais perplexo do que na Inglaterra, onde a perplexidade foi erigida em sistema? Se, hoje, em toda a Inglaterra eclodem revoltas de trabalhadores, isso não significa que a burguesia e o governo locais estejam mais lúcidos do que no último trintênio do século dezoito. Seu único expediente é o poder material e, uma vez que o poder material decresce na mesma medida em que cresce a extensão do pauperismo e o entendimento do proletariado, do mesmo modo aumenta, em proporção geométrica, a perplexidade inglesa. 53- Enfim é falso, efetivamente falso, que a burguesia alemã desconheça inteiramente a importância geral da revolta silesiana. Em várias cidades, os mestres artesãos procuram associar-se aos aprendizes. Todos os jornais liberais, os órgãos da burguesia liberal, estão repletos de referências à organização do trabalho, à reforma da sociedade, à crítica aos monopólios e à concorrência etc.. Tudo isso em conseqüência dos movimentos dos trabalhadores. Os jornais de Tréveris, Aquisgrana, Colônia, Wesel, Mannheim, Breslau e até de Berlim trazem freqüentemente artigos sociais facilmente compreensíveis, dos quais o "prussiano" pode até aprender alguma coisa. Mais ainda, em cartas da Alemanha se exprime constantemente o espanto diante da fraca resistência da burguesia contra as tendências e idéias sociais. 54- O "prussiano – se tivesse maior familiaridade com a história dos movimentos sociais – teria formulado a sua perguntaao contrário. Por que também a burguesia alemã vê na miséria parcial uma 7 miséria relativamente tão universal? De onde provém a animosidade e o cinismo dos políticos, de onde provém a inércia e as simpatias da burguesia não- política para com o proletariado? Vorwärts!, no 63, sete de Agosto de 1844. ********** 55- Vamos agora aos oráculos do "prussiano" sobre os trabalhadores alemães. 56- "Os alemães pobres", graceja, "não são mais inteligentes do que os pobres alemães, quer dizer, não enxergam nada além do seu lar, da sua fábrica, do seu distrito; até agora toda a questão está ainda abandonada pela alma política que penetra em tudo". 57- Para poder comparar a situação dos trabalhadores alemães com a situação dos trabalhadores franceses e ingleses, o "prussiano" deveria comparar a primeira etapa, o início do movimento dos trabalhadores franceses e ingleses com o movimento alemão que começou agora. Mas ele negligencia isto. Deste modo, o seu raciocínio cai em obviedades, como essa de que a indústria na Alemanha ainda não está tão desenvolvida como na Inglaterra, ou então de que um movimento no seu início se apresenta diferente do que numa etapa posterior. Ele gostaria de falar das particularidades do movimento dos trabalhadores alemães. No entanto, não diz uma palavra a respeito desse assunto. 58- Que o "prussiano" se situe, pois, do ponto de vista correto. Verá que nenhuma das revoltas dos operários franceses e ingleses teve um caráter tão teórico e consciente como a revolta dos tecelões silesianos. 59- Lembremo-nos, antes de mais nada, o canto dos tecelões, aquela audaz palavra-de-ordem de luta na qual lar, fábrica e distrito não são mencionados uma vez sequer e na qual, pelo contrário, o proletariado proclama, de modo claro, cortante, implacável e poderoso, o seu antagonismo com a sociedade da propriedade privada. A revolta silesiana começa exatamente lá onde terminam as revoltas dos trabalhadores franceses e ingleses, isto é, na consciência daquilo que é a essência do proletariado. A própria ação traz este caráter superior. Não só são destruídas as máquinas, essas rivais do trabalhador, mas também os registros da contabilidade, os títulos de propriedade, e enquanto todos os outros movimentos se voltavam primeiramente contra o senhor da indústria, o inimigo visível, este movimento volta-se também contra o banqueiro (Bankier), o inimigo oculto. Enfim, nenhuma outra revolta de trabalhadores ingleses foi conduzida com tanta coragem, reflexão e duração. 60- No que concerne ao grau de instrução ou à capacidade cultural dos trabalhadores alemães em geral, remeto aos geniais escritos de Weitling, os quais, sob o aspecto teórico, muitas vezes ultrapassam o próprio Proudhon, embora permaneçam aquém dele no que se refere à exposição (Ausführung). Onde poderia a burguesia – incluídos os seus filósofos e eruditos – exibir uma obra, relativa à emancipação da burguesia, à emancipação política, igual à de Weitling: “Garantias da Harmonia e da Liberdade”? Caso se compare a insossa e pusilânime mediocridade da literatura política alemã com essa enorme e brilhante estréia literária dos operários alemães; caso se compare esse gigantesco calçado de criança do proletariado com a disforme pequenez do gasto calçado político da burguesia alemã, deve-se prognosticar para a Cinderela alemã um estatuto de atleta. Deve-se admitir que o proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês é o seu economista e o proletariado francês o seu político. Deve-se admitir que a Alemanha tem uma vocação tão clássica para a revolução social quanto é incapaz de uma revolução política. Com efeito, assim como a impotência da burguesia alemã é a impotência política da Alemanha, assim a aptidão do proletariado alemão – ainda que prescindindo da teoria alemã – é a capacidade social da Alemanha. A desproporção entre o desenvolvimento filosófico e o desenvolvimento político na Alemanha não é nenhuma anormalidade. É uma desproporção necessária. Somente no socialismo pode um povo filosófico encontrar a prática correspondente, quer dizer, somente no proletariado pode encontrar o elemento ativo da sua libertação. 61- Mas, nesse momento, não tenho nem tempo nem disposição para explicar ao “prussiano” a relação da "sociedade alemã" com a revolução social, e, a partir dela, de um lado a fraca reação da burguesia alemã contra o socialismo e, de outro, as excelentes disposições para o socialismo do proletariado alemão. Na minha “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (nos Deutsch-Französische Jahrbücher), ele encontrará os primeiros elementos para compreender esse fenômeno. 62- A inteligência dos alemães pobres está, portanto, em uma relação inversa com a inteligência dos pobres alemães. No entanto, pessoas para as quais qualquer assunto deve servir para exercícios públicos de estilo, acabam caindo, através dessa atividade formal, em um conteúdo falso, enquanto este conteúdo, por sua 8 vez, imprime novamente à forma o selo da vulgaridade. Deste modo, a tentativa do "prussiano", em uma ocasião como essa das revoltas dos operários silesianos, de expressar-se na forma de antíteses, leva-o à maior antítese contra a verdade. A única tarefa de uma mente pensante e amiga da verdade frente à primeira explosão da revolta dos trabalhadores silesianos, não consistia em desempenhar o papel de pedagogo desse acontecimento, mas, pelo contrário, em estudar o seu caráter peculiar. Mas para isto requer-se, antes de mais nada, uma certa perspicácia científica e um certo amor pelos homens, ao passo que, para a outra operação, é suficiente uma fraseologia ligeira, já pronta, embebida em um amor-próprio vazio. 63- Por que o "prussiano" julga com tanto desprezo os trabalhadores alemães? Porque ele acha que “toda a questão” – isto é, a questão da miséria dos operários – está abandonada "ainda até hoje" pela "alma política que penetra tudo". Eis como ele vai derramando o seu amor platônico pela alma política: 64- "No sangue e na incompreensão serão sufocadas todas as revoltas que explodem nesse desesperado isolamento dos homens da comunidade e de suas idéias dos princípios sociais; mas logo que a miséria tiver gerado a compreensão, e o entendimento político dos alemães tiver descoberto as raízes da miséria social, então também na Alemanha esses acontecimentos serão percebidos como sintomas de uma grande mudança". 65- Permita-nos o "prussiano", primeiramente, uma observação estilística. Sua antítese está incompleta. Na primeira metade, diz-se: a miséria gera a compreensão e na segunda metade: o entendimento político descobre as raízes da miséria social. A simples compreensão, na primeira metade da antítese, torna-se, na segunda metade, o entendimento político, como a miséria simples da primeira metade da antítese torna-se, na segunda, uma miséria social. Por que motivo o nosso estilista tratou de maneira tão desigual as duas metades da antítese? Não creio que tenha notado isso. Vou mostrar-lhe como foi verdadeiro seu instinto. Se o "prussiano" tivesse escrito: "A miséria social gera o entendimento político e o entendimento político descobre as raízes da miséria social", nenhum leitor atento teria deixado de perceber a falta de sentido dessa antítese. Todo mundo se teria perguntado, depois, por que o anônimo não opõe o entendimento social à miséria social e o entendimento político à miséria política, como mandaa lógica mais elementar. Mas vamos ao que interessa! 66- Tão falso é que a miséria social gere o entendimento político, como mais verdadeiro é antes o contrário, isto é, que o bem-estar social gera o entendimento político. O entendimento político é um espírito concedido a quem já possui e desfruta das comodidades. Que o nosso "prussiano" ouça, a esse propósito, um economista francês, o senhor Michel Chevalier: "No ano de l789, quando a burguesia se sublevou, para ser livre faltava-lhe apenas a participação no governo do país. Para ela, a libertação consistiu em arrebatar das mãos dos privilegiados que tinham o monopólio dessas funções, a direção dos negócios públicos, as mais altas funções civis, militares e religiosas. Sendo rica e ilustrada, podendo bastar-se e dirigir-se a si mesma, ela queria para ela o régime du bon plaisir (regime do arbítrio)". 67- Já demonstramos ao "prussiano" quanto o entendimento político é incapaz de descobrir a fonte da miséria social. Apenas mais uma palavra sobre essa sua concepção. Quanto mais evoluído e geral é o entendimento político de um povo, tanto mais o proletariado – pelo menos no início do movimento – gasta suas forças em insensatas e inúteis revoltas sufocadas em sangue. Uma vez que ele pensa de forma política, vê o fundamento de todos os males na vontade e todos os meios para remediá-los na violência e na derrubada de uma determinada forma de Estado. Demonstração: as primeiras revoltas do proletariado francês. Os operários de Lyon julgavam perseguir apenas fins políticos, ser apenas soldados da república, enquanto de fato eram soldados do socialismo. Deste modo, o seu entendimento político lhes tornou obscuras as raízes da miséria social, falseou a compreensão dos seus objetivos reais e, deste modo, o seu entendimento político enganou o seu instinto social. 68- Mas se o "prussiano" acha que a miséria gera o entendimento, por que então coloca junto os "sufocamentos no sangue" e os "sufocamentos na incompreensão"? Se a miséria é, em geral, um remédio, a miséria sangrenta será então um meio muito mais agudo para gerar o entendimento. Portanto, o "prussiano" deveria ter dito: o sufocamento em sangue sufocará a incompreensão e trará ao entendimento uma oportuna lufada de ar. 69- O "prussiano" prognostica o fim das revoltas que irrompem no "desesperado isolamento dos homens da comunidade e na separação de suas idéias dos princípios sociais". 70- Já demonstramos que a revolta silesiana de modo nenhum se realizou num estado de separação entre as idéias e os princípios sociais. Temos agora que nos 9 haver com o "desesperado isolamento dos homens da comunidade". A comunidade é entendida aqui como comunidade política, o Estado. É sempre a velha cantilena da não-politicidade da Alemanha. 71- Por acaso não rebentam todas as revoltas, sem exceção, no desesperado isolamento do homem da comunidade? Será que toda revolta não supõe necessariamente esse isolamento? Teria havido a revolução de l789 sem o desesperado isolamento dos burgueses franceses da comunidade? Ela estava destinada exatamente a suprimir esse isolamento. 72- Mas a comunidade da qual o trabalhador está isolado é uma comunidade inteiramente diferente e de uma outra extensão que a comunidade política. Essa comunidade, da qual é separado pelo seu próprio trabalho, é a própria vida, a vida física e espiritual, a moralidade humana, a atividade humana, o prazer humano, a essência humana. A essência humana é a verdadeira comunidade dos homens. E assim como o desesperado isolamento dela é incomparavelmente mais universal, insuportável, pavoroso e contraditório, do que o isolamento da comunidade política, assim também a supressão desse isolamento e até uma reação parcial, uma revolta contra ele, é tanto mais infinita quanto infinito é o homem em relação ao cidadão e a vida humana infinita em relação à vida política. Deste modo, por mais parcial que seja uma revolta industrial, ela encerra em si uma alma universal; e por mais universal que seja a revolta política, ela esconde, sob as formas mais colossais, um espírito estreito. 73- O "prussiano" fecha dignamente o seu artigo com esta frase: 74- "Uma revolução social sem alma política (isto é, sem uma visão organizativa do ponto de vista da totalidade) é impossível". 75- É óbvio. Uma revolução social se situa do ponto de vista da totalidade porque – mesmo que aconteça apenas em um distrito industrial – ela é um protesto do homem contra a vida desumana, porque brota do ponto de vista do indivíduo singular real, porque a comunidade, contra cuja separação o indivíduo reage, é a verdadeira comunidade do homem, é a essência humana. Ao contrário, a alma política de uma revolução consiste na tendência da classe privada de influência política a superar o seu isolamento do Estado e do poder. A sua perspectiva é o Estado, uma totalidade abstrata, que subsiste apenas a partir da separação da vida real, que é impensável sem o antagonismo organizado entre a idéia geral e a existência individual dos homens. Por isso, uma revolução com alma política organiza também, de acordo com a natureza limitada e discorde dessa alma, um círculo dirigente na sociedade às custas da sociedade. 76- Gostaríamos de confidenciar ao "prussiano" o que é "uma revolução social com uma alma política"; com isso também lhe revelamos o segredo de porque ele não consegue, mesmo nos seus torneios estilísticos, elevar-se para além do limitado ponto de vista político. 77- Uma revolução "social" com uma alma política ou é um completo absurdo, se o "prussiano" entende por revolução "social" uma revolução "social" contraposta a uma revolução política, e confere à revolução social uma alma política no lugar da alma social, ou, então, uma "revolução social com uma alma política" não é mais do que uma paráfrase do que já se chamou uma "revolução política" ou simplesmente uma “revolução”. Toda revolução dissolve a velha sociedade; nesse sentido é social. Toda revolução derruba o velho poder; neste sentido é política. 78- Que o "prussiano" escolha entre a paráfrase e o absurdo! Contudo, se é parafrásico ou absurdo uma revolução social com uma alma política, ao contrário é racional uma revolução política com uma alma social. A revolução enquanto tal – a derrubada do poder existente e a dissolução das velhas relações – é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem necessidade dessa derrubada e dessa dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político. 79- Toda essa digressão foi necessária para rasgar o tecido de erros que se esconde em apenas uma coluna de jornal. Nem todos os leitores podem ter a cultura e o tempo necessários para perceber uma tal charlatanice literária. Não tem, portanto, o "prussiano", diante do público leitor, o dever de renunciar momentaneamente a qualquer atividade de escritor com objetivo político e social, bem como às declarações sobre a situação da Alemanha, e de começar um consciencioso exame da sua própria situação? Vorwärts!, no 64, 10 de Agosto de 1844. 10 Comentário Crítico (Extrato de “A Crítica da Política”, capítulo III da dissertação ONTOLOGIA E POLÍTICA: A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO MARXIANO DE 1842 A 1846) Rubens M. Enderle (...) Além dos textos publicados nosAnais Franco-Alemães, Marx ainda colabora, no ano de 1844, com três artigos para o periódico Avante! (Vorwärts!). Dentre estas colaborações, duas são de notável importância na consolidação da determinação ontonegativa da politicidade. Referimo-nos, aqui, às duas partes que compõem as Glosas Críticas ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social. Por um Prussiano”, redigidas em franca contraposição às teses de Ruge sobre a revolta dos tecelões da Silésia. Em um artigo publicado no mesmo periódico, Ruge argumentara contra a afirmação, feita pelo jornal francês La Reforme, de que a ordem de gabinete do rei Frederico Guilherme IV diante da greve dos trabalhadores silesianos seria o prenúncio de profundas reformas sociais. A idéia central de Ruge era a de que a Alemanha, por ser um país apolítico, não estava à altura de tais reformas, pois não compreendia a “penúria parcial dos distritos fabris” como um “assunto geral”, mas sim como um evento localizado. Como ele mesmo afirma nesta passagem, citada por Marx na abertura de seu artigo: “O rei e a sociedade alemã não chegaram ainda ao „pressentimento de sua reforma‟, e nem tampouco as insurreições da Silésia e Boêmia provocaram este sentimento. É impossível fazer compreender a um país apolítico como a Alemanha que a penúria parcial dos distritos fabris constitui um assunto geral e, menos ainda, que representa um dano para todo o mundo civilizado. Estes acontecimentos têm para a Alemanha o mesmo caráter que pode ter qualquer penúria local relacionada com a água ou com a fome. Daí que o rei os considere como uma falha administrativa ou uma falta de caridade”. Para refutar esta tese, Marx toma como exemplo a Inglaterra, país político e, ao mesmo tempo, país do pauperismo. Diz ele: “Não resta dúvida de que a situação da Inglaterra constitui o experimento mais seguro para conhecer a atitude de um país político frente ao pauperismo. Na Inglaterra, a penúria dos operários não é parcial, mas universal /.../. E estes movimentos não se encontram, ali, em sua fase inicial, mas se repetem periodicamente há quase um século”. A realidade mostra, no entanto, que, nem a burguesia da política Inglaterra, nem tampouco o governo e a imprensa associados a esta classe, tratam o pauperismo de modo diferente do modo alemão. Ou seja, para os ingleses a penúria é, assim como para Frederico Guilherme IV e a burguesia prussiana, uma falha administrativa, um defeito político a ser resolvido politicamente. Cada partido inglês vê a causa do pauperismo na política do partido contrário, que deve ceder lugar a sua própria política, supostamente resolutiva: “Enquanto a burguesia inglesa põe a culpa do pauperismo na política, os whigs acusam os tories e os tories acusam os whigs de serem a causa deste mal. /.../ Nenhum dos dois partidos encontra a razão na situação política em geral, mas somente na política do partido contrário. E sequer sonham com uma reforma da sociedade”. De modo que, aquilo que Ruge imagina ser a conseqüência do caráter apolítico de um país, a saber, a compreensão dos problemas sociais como acontecimentos parciais, desprovidos de importância geral e decorrentes de falhas administrativas, mostra-se, segundo Marx, ao contrário, como o procedimento próprio de uma sociedade política. Alemanha e Inglaterra partilham, assim, a despeito da diferente magnitude que o pauperismo apresenta em cada um destes países, da mesma mentalidade política que os impede de visualizar a dimensão universal dos problemas sociais. Como afirma Marx: “Se a burguesia da apolítica Alemanha não se apercebe da importância geral que possui uma penúria parcial, a burguesia da política Inglaterra desconhece também, por sua vez, a importância geral que reveste uma penúria universal, penúria que manifesta sua importância geral tanto por sua reiteração periódica no tempo quanto por sua extensão no espaço e pelo fracasso de todas as tentativas de remediá-la”. À estreiteza da mentalidade política sobre a importância dos males sociais corresponde a ineficácia das ações políticas contra estes mesmos males. Assim, Marx, detendo-se sobre três expoentes da inteligência e da energia políticas – o parlamento inglês, Napoleão Bonaparte e a Convenção francesa –, procura demonstrar que “todos os Estados que se ocuparam do pauperismo limitaram-se a aplicar medidas administrativas e de beneficência, ou permaneceram abaixo desta classe de medidas”. O Estado dá provas, com isso, de sua limitação intrínseca, sua natureza formal, abstrata. Ele é a organização da sociedade sob o ponto de vista político, isto é, sob o ponto de vista de sua separação em relação à sociedade civil. Fundado sobre o “caráter antisocial” da propriedade privada, o Estado não pode buscar a origem dos problemas sociais na “essência do Estado”, uma vez que, ao eliminar a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares, ou entre a administração da sociedade civil e a própria sociedade civil, ele estaria promovendo sua autodestruição. De acordo com Marx: “O Estado não pode superar a contradição entre a disposição e boa vontade da administração, por um lado, e seus meios e sua capacidade, por outro, sem destruir a si mesmo, já que está assentado nesta mesma contradição. Assenta-se na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Daí que a administração deva limitar-se a uma atividade formal e negativa, pois sua ação termina lá onde começa a vida civil e seu trabalho. Mais ainda, frente às conseqüências que derivam do caráter antisocial desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio e desta indústria, deste saqueio mútuo dos diversos círculos civis, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, este desvio, esta vileza, esta escravidão da sociedade civil, constitui o fundamento natural em que se baseia o Estado moderno /.../. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência de sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. E se quisesse acabar com a vida privada, teria que destruir a si mesmo, pois o Estado existe somente em oposição a ela. Porém, nenhum ser vivo crê que os defeitos de sua existência radiquem no princípio de sua vida, na essência de sua vida, mas sim em circunstâncias exteriores a ela. O suicídio é contrário à natureza. Decorre daí que o Estado não pode crer na impotência intrínseca de sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode somente reconhecer e procurar corrigir seus defeitos puramente formais e fortuitos. E se estas modificações mostram-se estéreis, ele concluirá que os males sociais são uma imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou que a vontade dos particulares acha-se demasiadamente corrompida para acomodar-se aos excelentes fins da administração”. Esfera abstrata dos interesses gerais a flutuar sobre a escravidão da vida privada que a engendra, o Estado esbarra na lei natural de sua impotência sempre que procura atacar problemas que radicam na essência de sua vida. O caráter formal e negativo da administração não diz respeito, portanto, a uma falha acidental, mas sim a uma determinação ontológica 11 essencial: para tornar-se uma ação concreta e positiva, ela teria que atentar contra sua própria existência. A perfeição do ser do Estado é a perfeição de sua incapacidade para compreender e solucionar os males sociais. Seus limites são os limites próprios da política e do entendimento político, cujo princípio é a vontade: “Quanto mais poderoso seja o Estadoe mais político seja, portanto, o país, menos ele se inclinará a buscar no princípio do Estado, e, por conseguinte, na atual organização da sociedade, cuja expressão ativa, consciente de si mesma e oficial é o Estado, o fundamento dos males sociais e a compreender seu princípio geral. O entendimento político o é, precisamente, porque pensa dentro dos limites da política. E quanto mais vivo e sagaz seja, mais incapacitado estará para compreender os males sociais. /.../ O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral e, portanto, mais perfeito seja o entendimento político, tanto mais acreditará na omnipotência da vontade, tanto mais resistirá a ver as barreiras naturais e espirituais que se levantam frente a ela, mais incapaz será, por conseguinte, de descobrir a fonte dos males sociais”. Para Marx, o “período clássico” do entendimento político foi a Revolução francesa. Neste evento, os “defeitos sociais” eram vistos, não como problemas originários, localizados no “princípio do Estado”, mas sim como um entrave para se atingir a perfeição da política. “Assim, diz Marx, Robespierre entende que a grande pobreza e a grande riqueza representam simplesmente um obstáculo para a democracia pura”. O entendimento político não reconhece que o Estado brota da “fonte dos males sociais”. Invertendo a ordem determinativa entre sociedade civil e Estado, ele entende estes males como meros acidentes que impedem a realização do princípio político. O que é essencial – a sociedade civil e seus males – aparece como acidental, e o que é acidental – a política – aparece como a esfera originária, essencial. Desse modo, pode-se conferir à idéia de democracia pura uma preponderância ontológica sobre a pobreza e a riqueza reais, bem como atribuir à vontade um caráter omnipotente, acima das barreiras naturais e espirituais que, na realidade, determinam seus limites. As Glosas Críticas sobressaem como o momento em que Marx, retomando o percurso iniciado a partir da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e desenvolvido nos Anais Franco- Alemães, deixa evidente o caráter ontológico de sua crítica à política. Concebido em termos incisivos e inequívocos, este artigo representa uma síntese das linhas fundamentais da determinação ontonegativa da politicidade, teoria que Chasin explicita da seguinte forma: “Tratando-se de uma configuração de natureza ontológica, o propósito essencial dessa teoria é identificar o caráter da política, esclarecer sua origem e configurar sua peculiaridade na constelação dos predicados do ser social. Donde, é onto- negativa, precisamente, porque exclui o atributo da política da essência do ser social, só o admitindo como extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de historicamente circunstancial; numa expressão mais enfática, enquanto predicado típico do ser social, apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-história. É no interior da intrincada trajetória dessa pré-história que a politicidade adquire sua fisionomia plena e perfeita, sob a forma de poder político centralizado, ou seja, do estado moderno /.../. Esse traçado marxiano é o oposto, sem dúvida, de qualquer expressão própria ao âmbito secularmente predominante da determinação onto-positiva da política, para a qual o atributo da politicidade não só integra o que há de mais fundamental do ser humano- societário – é intrínseco a ele – mas tende a ser considerado como sua propriedade por excelência, a mais elevada, espiritualmente, ou a mais indispensável, pragmaticamente; tanto que conduz à indissolubilidade entre política e sociedade, a ponto de tornar quase impossível, até mesmo para a simples imaginação, um formato social que independa de qualquer forma de poder político”i. A crítica ontológica distingue o que é essencial do que é acidental, o que é determinante do que é determinado. Ela desvenda o modo como as categorias do ser social se engendram e se determinam umas às outras, bem como a necessidade de sua existência. Sua tarefa principal consiste, desse modo, em localizar o pólo determinante do ser do homem; e todo o itinerário marxiano desde a Crítica de Kreuznach resulta na constatação de que tal pólo não pode ser encontrado na esfera política, mas sim na sociabilidade. A esfera política é, pelo contrário, a expressão da perda, pelo homem, de seu próprio ser, de sua vida genérica, que precisa então ser figurada de modo abstrato, como vida política, separada da vida privada. A sociabilidade é o locus ontológico do humano, não sua essência antropológica. Ela representa a esfera da existência do homem, a base a partir de onde se formam as diversas categorias que constituem seu ser. Entre tais categorias, figura a política, que corresponde a um dado modo de efetivação do ser social, justamente aquele modo no qual o homem aliena sua capacidade de autodeterminação. Razões pelas quais pode-se afirmar que a politicidade constitui, para Marx, um atributo negativo do ser social, a separação, do homem e pelo homem, de suas forças próprias, suas forças humanas, enfim, suas forças sociais. Em Marx, portanto, a política é ontologicamente determinada – o que vale para todas as categorias do ser social – pelo modo através do qual o homem produz sua existência. O entendimento da política remete à análise da “anatomia da sociedade civil”, análise que eleva as “categorias econômicas” ao patamar de categorias ontológicas, que dizem respeito à autoprodução do ser social. Como afirma Lukács, destacando a importância dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 no conjunto da obra marxiana: “/.../ pela primeira vez na história da filosofia, as categorias econômicas aparecem como as categorias da produção e reprodução da vida humana, tornando assim possível uma descrição ontológica do ser social sobre bases materialistas”ii. (...) i CHASIN, J. Marx: Estatuto Ontológico... Op. cit., pp. 367-368. ii LUKÁCS, G. Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p. 15.
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