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A Literariedade - Jonathan Culler

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Prévia do material em texto

1 
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL – TEORIA DA LITERATURA – PROSA 
PROFESSORES HELBA CARVALHO E MANOEL FRANCISCO 
GUARANHA 
TEXTOS PARA AS AULAS 
 
A literariedade - Jonathan Culler. 
 
 
Que é literatura? Esta pergunta, que parece impor-se como a pergunta base dos estudos 
literários e como o objeto primordial da teoria literária, pode ser compreendida de diferentes 
maneiras: em primeiro lugar, como uma pergunta sobre a natureza geral da literatura. Que 
tipo de objeto ou de atividade é a literatura? Para que serve? Por que estudá-la? Qual o seu 
lugar na diversidade das atividades humanas? Compreendida desta maneira, se trataria de uma 
pergunta não de definição, mas de caracterização, e isto porque interessaria a todos os que se 
ocupam da literatura e queriam saber por que se dedicar a esta atividade e não a outra. 
Mas o que é literatura? Também pode significar o que distingue literatura das outras 
coisas: o que é que a distingue dos outros textos, das outras representações? O que a distingue 
dos outros produtos do ser humano ou das outras práticas? Perguntar-se qual é ou quais são a 
ou as qualidades distintivas da literatura é colocar a pergunta da literariedade: qual é ou quais 
são os critérios que fazem de algo literatura? 
Apesar do caráter aparentemente central desta pergunta acerca dos estudos literários, 
temos de confessar que não se chegou a uma definição central de literariedade. 
Northrop Frye, em seu livro Anatomia da Crítica, tem razão quando declara que “não 
dispomos de verdadeiros critérios para distinguir um estrutura verbal literária de uma que não 
é” (1966,13). 
Há várias razões para isso. Se refletirmos um momento, nos damos conta de que há 
dificuldades de princípio assim como dificuldades empíricas. Existe uma imensa variedade de 
obras literárias e um romance determinado, por exemplo, Em busca do tempo perdido ou 
Jane Eyre, pode parecer-se mais com uma autobiografia do que com um soneto, ainda que 
uma poesia lírica de Burns, de Heine ou de Verlaine se pareça mais com uma canção do que 
uma obra de teatro de Sófocles. Assim, um primeiro problema consistiria em saber se existem 
propriedades interessantes que estão presentes em todas as obras que denominamos literárias 
e que as distinguem dos objetos não literários com os quais se parecem. Mas esta pergunta se 
torna mais difícil em uma perspectiva histórica, por pouco que seja. Segundo um célebre 
perito em poesia, “a fronteira que separa a obra poética da que não é poética é mais instável 
que a fronteira dos territórios administrativos da China” (JAKOBSON, 1973, 114). Podemos 
pensar em alguns poemas modernos que em outras épocas não seriam considerados como 
literatura. Os talk poems do poeta norte-americano David Antin, por exemplo, manifestam um 
discurso que não pode ser mais comum, sem rimas nem ritmos, sem figuras especiais, e que 
possui todas as vacilações e repetições da fala cotidiana. Quando do auge do nouveau roman 
francês, muitos críticos e leitores achavam que essas construções sem personagens a sem as 
intrigas tradicionais tampouco podiam ser consideradas literatura. Esses textos não poderiam 
levar o nome de “romance” no século XIX. 
 Nessas condições, poderíamos chegar à conclusão de que a literatura não é nada além 
do que aquilo que uma determinada sociedade trata como literatura: quer dizer, um conjunto 
de textos que os árbitros da cultura – professores, escritores, críticos, acadêmicos – 
reconhecem que pertence à literatura. Esta conclusão não é muito satisfatória, mas nos 
servimos de outras categorias da mesma natureza mediante as quais os critérios de definição e 
delimitação dos objetos culturais nos remetem às opiniões mutáveis de um grupo, grande ou 
pequeno. Neste sentido, a literatura seria uma categoria como a das más ervas (Ellis, 1974). 
 2 
As ervas más são um simplesmente um tipo de plantas que uma sociedade não trata cultivar, 
mas sim de eliminar quando brotam em um lugar em que deve florescer outra coisa. De 
forma que não haveria qualidades de forma ou de fundo que as más ervas possuiriam. Não há 
nenhuma essência de “má erva” ou nenhum critério pertinente de delimitação. Aquele que se 
interessasse por esta categoria, o que teria de fazer não seria buscar a natureza botânica das 
ervas más, mas levar a cabo investigações históricas, sociológicas e talvez psicológicas, sobre 
as diferentes espécies de plantas que estão catalogadas como ervas más por grupos ou 
sociedades diferentes, sem por isso chegar a estar jamais seguro de encontrar um critério 
geral, nem sequer para uma época determinada. 
 Se a literatura fosse uma categoria desse tipo, a literariedade não seria objeto de 
análise de um teórico, mas unicamente objeto de uma investigação histórica que pretenderia 
tornar explícitos os critérios utilizados por diferentes grupos que se interessam por ela. Mas 
em geral, as respostas às perguntas sobre a literariedade não se formulam desta maneira. As 
próprias dificuldades de definição e de delimitação inspiram e fazem que seja mais 
interessante a reflexão sobre a natureza da literatura, reflexão esta que é perseguida pelos 
teóricos, não porque queiram saber que discursos querem excluir ou incluir na literatura, não 
porque queiram explicitar critérios que tenham regido as inclusões e exclusões de outras 
culturas ou momentos históricos, mas porque se perguntam quais são os aspectos mais 
importantes da literatura e porque querem determinar o que é estudar um texto como parte 
integrante da literatura. Em suma, as definições de literariedade não são importantes como 
critérios para identificar aquilo que põe em evidência que há literatura [em um texto], mas 
como instrumentos de orientação teórica e metodológica que trazem à luz os aspectos 
fundamentais da literatura e que finalmente orientam os estudos literários. Por um lado, a 
literariedade se define em termos de uma relação com uma realidade suposta, como discurso 
fictício ou imitação dos atos da linguagem cotidiana. Por outro lado, aponta para 
determinadas propriedades da linguagem. Embora coincidam em alguns pontos, estas duas 
respostas devem ser analisadas separadamente e detalhadamente. Haja vista que nem uma 
nem outra implicam uma resposta historicizante, é necessário proporcionar previamente 
algumas indicações históricas. 
 Para explicar o que é literariedade, o que é esta qualidade suscetível de definir o 
“literário”, teríamos de compreender o contexto que promoveu a pergunta sobre a natureza da 
literatura. Obras que denominamos literárias foram criadas há vinte e cinco séculos, mas a 
idéia moderna de literatura data de apenas dois séculos. Até o século XIX, a literatura e 
termos análogos em outras línguas européias significavam de uma maneira global “os 
escritos” e até o “saber livresco”. Nas Briefe die neueste literatur betreffend [Cartas sobre 
a nova literatura] de Liessinga, publicadas a partir de 1759, a palavra toma um sentido 
precocemente moderno que designa a produção literária contemporânea. É sobretudo o livro 
de Mme Staël, De la littérature considerée dans ses reports avec les institutions sociales 
(1800) [Sobre a literatura considerada em relação às instituições sociais], que marca o 
estabelecimento do sentido moderno. 
 Mas foi somente com a instituição da crítica literária e o estudo profissional da 
literatura que a pergunta sobre a especificidade da literatura e, portanto, da literariedade, pôde 
se estabelecer. Antes de fins do século XIX, o estudo da literatura não era uma atividade 
realizada de maneira independente: estudavam-se os poetas antigos ao mesmo tempo em que 
se estudavam os filósofos e os oradores – os escritores de todo tipo – e os escritos que 
chamamos literários formavam parte deum todo cultural mais vasto. Foi, pois, com a 
fundação dos estudos especificamente literários que o problema do caráter distintivo da 
literatura se implantou. Temos que considerar que a pergunta se colocou, não porque se 
quisesse distinguir o que é literário do que não é, mas porque se queria promover, mediante a 
separação do “peculiar” da literatura, métodos de análises que permitiriam fazer avançar a 
 3 
compreensão deste objeto e deixar de lado os métodos impróprios que não levavam em 
consideração a natureza deste objeto. 
 Assim, foram os formalistas russos, grupo de jovens linguistas e “poeticistas” de 
Moscou e Leningrado, no início do século XX, os que, inicialmente, apontaram a literariedade 
(literaturnost) e formularam algumas das grandes linhas do debate sobre esse problema. 
Roman Jakobson colocava o problema da seguinte maneira: “O objeto da ciência literária não 
é a literatura, mas a literariedade, é dizer o que faz de uma determinada obra literária” 
(1921,11). Os críticos literários e os historiadores da literatura, postulava [Jakobson], 
utilizavam a vida pessoal do autor, a psicologia, a filosofia, em vez de vislumbrar uma ciência 
literária. “Se os estudos literários querem se converter em uma ciência – declara Jakobson – 
têm que reconhecer o procedimento (priem) como o seu ‘personagem’ único. Depois, a 
pergunta principal é a da aplicação, a da justificação do procedimento”. 
 Portanto, a questão da literariedade serve para a atrair a atenção para as estruturas que 
seriam essenciais nas obras literárias e, em contrapartida, não seriam essenciais em outras 
obras. Estudar um texto como texto literário em vez de valer-se dele como documento 
biográfico e histórico, ou ainda como declaração filosófica é, para o analista, concentrar sua 
atenção no uso de algumas estratégias verbais. Os formalistas tinham “como afirmação 
fundamental que o objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades 
específicas dos objetos literários que os distinguem de outra narrativa” (Eichenbaun, 1927, 
25). O problema essencial consiste em encontrar particularidades específicas das obras 
literárias que sejam suficientemente genéricas (gerais) para manifestar-se na prosa assim 
como na poesia. Esta literariedade possui três características fundamentais: 1) os 
procedimentos do foregrounding (evidentes, de primeiro plano) da própria linguagem; 2) a 
dependência do texto as relações, convenções e seus vínculos com outros textos da tradição 
literária; e 3) a perspectiva da integração composicional dos elementos e dos materiais 
utilizados em um texto. 
 No que se refere ao primeiro ponto, o formalista russo Shklovski declara que “a língua 
poética difere da língua prosaica (cotidiana) pelo caráter perceptível [oshchutimost] de tal 
construção” (Eichenbaum, 1972, 32). Para o checo Mukarovský, um dos fundadores da escola 
de Praga, que se situa na continuidade do formalismo russo, a linguagem poética não se define 
por sua beleza, nem por seu ornamento, nem por sua afetividade, nem por seu caráter 
metafórico, nem por sua singularidade, mas pela sua manifestação (aktualisace, 
foregrounding) (1977,3,4). Há várias maneias de tornar perceptível a linguagem de modo que 
o leitor não receba o texto como um simples meio transparente de comunicar uma mensagem, 
mas que surja envolvido pela materialidade do significante e outros aspectos da estrutura 
verbal. O desvio ou aberração linguística – a criação de neologismos, as combinações 
insólitas de palavras, a eleição de estruturas não gramaticais ou aberrantes no plano semântico 
– são formas de “pôr em evidência” que se utiliza, sobretudo, na poesia, mas que se 
encontram também na prosa, como no início de Finnegans Wake: “Eins within a space and a 
wearrywide space it was wohned a Mookse. The onesomeness eas alltonely, archunsitslike, 
broadyoval, and a Mookse he would walking go.”1. O fim e o resultado desta forma de 
 
1 Finnegans Wake, ou, na tradução brasileira, Finnicius Revém, é o último romance de James Joyce, publicado 
em 1939, e um dos grandes marcos da literatura experimental por ser escrito em uma linguagem composta pela 
fusão de outras palavras, em inglês e outras línguas, buscando uma multiplicidade de significados. 
Referências 
Campos, Augusto de; Campos, Haroldo de. (2001) Panorama do Finnegans Wake. São Paulo: Editora 
Perspectiva, 2001. 
Joyce, James. Finnegans Wake/Finnicius Revém. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: Ateliê Editorial, 1999. 
(N.T) 
 
 4 
evidenciação é o que os formalistas russos chamam de desfamiliarização [estranhamento] 
(ostraniere) ou desautomatização da linguagem, que produz a percepção dos signos enquanto 
tal. Isto se pode obter mediante o recurso a diferentes classes de paralelismos e de repetições. 
No plano do significante, a rima, a assonância e a aliteração criam o efeito de um objeto muito 
estruturado como nos versos de Valéry: 
 
 Dormeuse, amas doré d’ombres et d’abandons, 
 Ton repos redoutable est chargé de tels dons… (“La Dormeuse”) 
 
[Dormente cúmulo dourado e sombras e abandonos, / teu repouso terrível está 
carregado de tuas dádivas...] 
 
 Os ritmos, regulares e irregulares, as repetições de categorias sintáticas que criam 
paralelismo, todo tipo de estribilhos e de estruturas fechadas, fazem perceptível e linguagem 
em outros meios. As estruturas do relato (paralelismos, repetições e detalhes, construção 
“escalonada”) produzem efeitos herméticos, e se considera que expressam que se trata de um 
discurso bem construído em que cada detalhe deve ser levado a sério. Além disso, uma 
linguagem figurativa que exige esforço de interpretação serve também para significar a 
literariedade. Com efeito, a linguagem literária (obraz) que pretende criar uma nova 
percepção colocando o objeto em uma perspectiva insólita, muitas vezes é tomada como o 
elemento mais comum, o mais expandido da literariedade. Até o romance realista serve-se de 
imagens novas para mostrar: “os tetos de palha, como gorros enterrados até os olhos...” 
(Fleubert, Madame Bovary). Em outro plano a perspectiva realista eleita é o elemento que 
vai atualizar o efeito de desfamiliarização. Em “Jolstemer”, de Tolstoi, o relato é narrado por 
um cavalo e é por meio dele que os objetos tornam-se singulares graças a esta percepção 
inusitada e à tematização da linguagem e da interpretação: o narrador observa, por exemplo, 
que as palavras “meu cavalo”, quando se referem a ele, parecem-lhe tão estranhas como 
“minha terra”, “meu ar” e “minha água”. 
 Pôr em evidência os signos linguísticos e os meios de representação pode fazer da 
literatura uma crítica dos modelos semióticos mediante o costume que temos de fazer o 
mundo inteligível. Assim, pois, o nouveau roman2 foi reconhecido por sua crítica aos modelos 
romanescos tradicionais, tais como os de personagem e os do princípio de causalidade, 
mediante os quais interpretamos o mundo quase sem saber, da mesma forma que a poesia tem 
tratado muitas vezes de romper as associações que considera “normais”. 
 Mas há uma ressalva a fazer em relação à literatura como desfamiliarização. No plano 
linguístico, de fato, a literatura destaca-se não só por figuras ou combinações insólitas, mas 
também pela linguagem “elevada”, que consiste, em parte, em utilizar fórmulas que perderam 
sua força inovadora: “the azure vault of heaven” [“a abóbada azul do firmamento”] percebe-se 
de imediato como literário porque o emprego do adjetivo ativa no leitor a idéia da literatura 
enquanto enunciação elegante e perifrástica de sentimentos elevados. Dizer “quarenta velas” 
em vez de “quarenta navios” é uma figura literária convencional. Cada língua possui algumas2 Nouveau roman: Forma experimentalista, característica da produção literária de romancistas franceses da 
década de 1950, entre os quais se encontram Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet. Os ensaios deste último 
escritor, reunidos em Pour um Nouveau Roman (1963), contêm muitos dos fundamentos teóricos desta 
tendência. De modos vários, os escritores do nouveau roman procuraram eliminar as personagens, o enredo e a 
subjectividade inerente ao trabalho do autor, tentando, na sua escrita, apresentar o mundo como uma «coisa em 
si mesma», na sua solidez e pureza de conceito. As obras Le Voyeur (1955), de Robbe-Grillet, e Le Planetarium 
(1959), de Sarraute, tornaram-se exemplos bem aceites pela crítica desta tendência literária. Outros escritores, 
como Michel Butor, Claude Ollier e Marguerite Duras foram também associados ao nouveau roman, também 
designado por «anti-romance», pela subversão dos processos tradicionais da narrativa. Em Portugal, 
aproximaram-se deste tipo de romance escritores como Nuno Bragança e Artur Portela Filho. (N.T) 
 5 
palavras e convenções que pertencem a uma linguagem arcaica e elevada e que indicam que 
têm a ver com a literatura, mesmo quando a paródia ou destruição desta mesma linguagem 
seja também discurso literário. 
 Não obstante, nos expomos a um importante obstáculo quando tratamos de limitar o 
efeito de literariedade de um texto à presença de um repertório de procedimentos linguísticos, 
pois todos esses elementos e procedimentos podem ser encontrados em outra parte, em textos 
não literários. O próprio Jakobson reconhece que “as aliterações e outros procedimentos 
eufônicos3 são utilizados pela linguagem falada no cotidiano. No ônibus escutam-se 
brincadeiras baseadas nas mesmas figuras nas quais a poesia mais sutil, e os boatos 
frequentemente estão compostos de acordo com as leis que regem a composição das 
narrativas curtas” (1960, 353). 
 Que quer dizer isto? Esta definição retoma em parte a noção tradicional de que o 
objeto estético tem um valor em si, não está submetido a quaisquer fins utilitários, mas possui 
o que Kant em sua Crítica da razão denomina a “finalidade sem fim” (Zweckmässigkeit ohne 
Zweck). Livre das delimitações do discurso cotidiano, histórico e prático, a obra literária situa-
se de outra maneira (como veremos mais adiante) e pode produzir ambiguidade, pode 
constituir-se como estrutura autônoma ligada ao exercício da imaginação do autor e do leitor. 
Esta liberdade é que põe em jogo algumas idéias mestras da literariedade: a idéia, por 
exemplo, de um discurso polivalente, no qual todos os sentidos de uma palavra (sobretudo as 
conotações) podem entrar em jogo, ou a de um discurso portador de um sentido oculto, 
indireto e complementar, que seria o sentido mais importante. 
 Assim, pois, contemplamos mais de perto a noção a função poética da linguagem 
como o tom da linguagem por sua própria conta. Não se deve compreender tal coisa como 
uma autonomia, mas como uma relação específica com outros elementos constituintes da 
situação linguística. Se agendo uma entrevista com um amigo, às seis da tarde, ou de manhã, 
em um café, o que é essencial é que, antes de tudo, a mensagem seja emitida com seriedade 
por mim e vá destinada a ele pessoalmente, quer dizer, que não se trate de uma brincadeira, 
nem de um exemplo gramatical, que a mensagem não esteja destinada a nada mais, e que a 
hora e o lugar do encontro estejam fixados em referência a um contexto geográfico e temporal 
em que nos situamos. A forma da frase e as palavras específicas de que me sirvo são menos 
importantes, como também são as relações com outros convites emitidos por mim e por outras 
pessoas antes desta. Em contrapartida, em um poema como “Convidando um amigo para 
jantar”, do poeta inglês Ben Johnson, o que se produz é todo o contrário: aqui, o que mais 
importa é a estrutura das imagens e dos ritmos no texto; o contexto no qual se insere a 
mensagem é o contexto de um gênero literário, um certo lirismo do cotidiano, do que se 
desprende, no tom e no movimento do poema, uma visão dos valores que sustentam o modo 
de vida que se evoca. Shklovski fala da literatura como do “caminho no qual o pé sente a 
pedra, o caminho que regressa sobre si mesmo” (1919,115). A obra não está dirigida a um 
fim, mas isto não quer dizer que careça de determinações. Na realidade, a obra se refere a seus 
próprios meios, ou seja, a evidência da linguagem em um texto literário é uma maneira de 
desprendê-lo de outros contextos (do momento e das circunstâncias práticas do enunciado), de 
fazer do ato de linguagem que o texto pretende cumprir (como o convite) um procedimento 
literário e situá-lo em um contexto de textos e de procedimentos literários. 
 Voltamos agora, portanto, às afirmações de Jakobson para quem os estudos literários 
farão do procedimento seu personagem único: qualquer discussão que se centra na 
literariedade não considerará o procedimento como um meio de expressar uma mensagem 
qualquer, mas como protagonista o sujeito do discurso literário. 
 
3 eufônicos: que produzem sons harmoniosos (N.T). 
 6 
 Em um determinado nível, o texto nos conta uma aventura puramente literária 
(formal). Então temos de nos perguntar: o que faz aqui este encadeamento? Em que se 
converte o soneto? Em que consistem as combinações de imagens e quais são os seus efeitos? 
Em vez de tratar um elemento formal – a forma do soneto, por exemplo – como um meio para 
expressar a visão de um amante, pode-se contemplar este conteúdo como o meio de explorar 
ou de fazer avançar ou desviar o soneto. Este aspecto da literariedade, que tende a isolar o 
texto dos contextos práticos e históricos da sua produção, redefine, por oposição, o contexto 
como o contexto específico da literatura. Desse modo, escrever é inscrever-se na tradição 
literária e tem-se que explicar as obras de acordo com esta única perspectiva. 
 Toda obra literária se cria em referência e em oposição a um modelo específico que 
fornecem outras obras da tradição. As obras estão determinadas por estruturas convencionais 
– por exemplo, os procedimentos para estabelecer a intriga. Shkolovski demonstra que “a 
convencionalidade mora no miolo de toda obra, posto que as situações estão livres de suas 
relações cotidianas e se determinam segundo as leis de uma trama artística dada” (1911, 118). 
Como indicamos, a forma da obra está determinada pelas formas literárias preexistentes. 
 À medida que a literatura, em seus vínculos com outros discursos literários, é um 
comentário ou uma reflexão sobre a literatura, isto nos ajuda a ver o papel das estruturas 
linguísticas e retóricas que tratamos anteriormente em nossa análise da literariedade como 
evidência da linguagem. Constatamos que o foregrounding [primeiro plano] apenas pode 
chegar a ser um critério suficiente do literário, visto que há repetições e aberrações também 
em outros textos. É, melhor dizendo, o modo de integração destas estruturas – o 
estabelecimento de uma interdependência funcional e unificadora de acordo com as normas 
da tradição do contexto literário – o que caracteriza a literatura. São os três níveis ou os tipos 
de integração que devemos contemplar. 
 Em um primeiro nível está a integração das estruturas ou das relações que em outros 
discursos não têm função alguma. Quando marco um encontro, na forma de minha mensagem 
se pode ignorar uma assonância, uma aliteração ou um paralelismo. Precisamente porque o 
texto literário não é um discurso que comunique informações práticas, mas porque está 
vinculado a uma situação de comunicação peculiar, na qual reina a convenção da importância 
dos detalhes e das estruturas linguísticas, [ele] significa em vários níveis deanálise. Em um 
poema, qualquer paralelismo coloca a questão das relações semânticas entre seus 
componentes. Ali onde domina a função poética da linguagem, “a similaridade se converte no 
procedimento constitutivo da sequência” (Jakobson, 1960, 358) – procedimento constitutivo 
no momento para o autor, que escolhe e reúne os elementos em virtude de qualquer 
similaridade (fonológica, morfológica, sintática ou semântica) e para o leitor, que deve 
considerar em que medida uma espécie de equivalência se transforma em outra. Na “Chanson 
d’automne”, de Verlaine, as repetições de sons e de estruturas rítmicas produzem 
aproximações nos níveis semântico e temático: 
 Les sanglots longs 
 Des violons 
 De l’automne 
 Blessent mon caeur 
 D’une langueur 
 Monotone 
 
[Os grandes soluços/ Dos violinos/ Do outono/ Ferem meu coração/ com uma 
languidez/ Monótona.] 
 
O resultado desta estruturação – efeito propriamente literário – consiste em fazer 
funcionar a capacidade da linguagem para produzir pensamento. As comparações criam a 
 7 
ideia, por exemplo, de um outono relacionado com os violinos, a ideia de uma relação entre a 
languidez da estação, os soluços e talvez os ventos violentos que podem gemer como violinos. 
Em suma, a primeira classe de integração é a produção de efeitos semânticos e temáticos 
mediante estruturas formais. 
 A integração em segundo nível é a da obra de arte completa: a convenção pela qual a 
obra literária há de ser um todo orgânico (Ingarden, 1931) e a que, em consequência, o sabor 
da interpretação consista em buscar e demonstrar essa unidade, é uma das noções 
fundamentais da literariedade. Os formalistas russos falam da “dominante” que se apresenta 
em forma de um elemento ou de uma estrutura unificadora (às vezes uma figura, como o 
quiasmo) localizável em todos os níveis (Jakobson, 1973, 145). Mas é pouco frequente 
encontrar um só motivo que encarne a literariedade deste modo. O essencial é que se suponha 
esta unidade e engendre um esforço para perceber como um momento ou um elemento do 
texto pode relacionar-se com outros, transformá-los, inclusive confrontá-los, e criar uma 
estrutura de conjunto. Esse aspecto da literatura se põe em evidência de maneira 
surpreendente em textos de aparência fragmentária que exigem um esforço especial do leitor. 
“Papyrus”, de Ezra Pound, consiste em três versos fragmentários: 
 
Spring.../ Too long…/ Gongola… [Primavera…/Muito tempo…/Gongola…] 
 
As convenções da literariedade incitam os leitores a conferir uma totalidade formal a 
este texto e a outorgar uma significação às “ausências” que se revelam nele. Se tomamos 
“Gongola” como um nome próprio e se supomos uma relação entre Gongola e o que fala, as 
lacunas do poema acabam funcionando como signos da ausência, da carência, sobretudo na 
primavera. 
 Não é que sempre se encontra a unidade que se busca, mas a suposição da unidade faz 
que apareçam tensões e até contradições entre os elementos ou entre as estruturas em 
diferentes níveis. “A linguagem da poesia é a linguagem do paradoxo”, declara um ilustre 
representante do New Criticism4 norte-americano (Brooks, 1947,3): a literatura, mediante o 
jogo das conotações e a apresentação irônica dos discursos (os discursos do cotidiano e os 
discursos da literatura anterior), faz que se sinta até que ponto toda a redução a uma posição 
ou a uma visão monológica baseia-se em simplificações. A linguagem da poesia procura os 
meios para o questionamento de proposições simplistas. Quando, por exemplo, se trata de 
definir a relação entre as dimensões constatativas e performativas do texto – a relação entre o 
que ele diz e o que ele faz -, é frequente tropeçar em dificuldades. Um exemplo célebre: o 
verso do poeta norte-americano Archibald Macleish, frequentemente citado pelo New 
Criticism, “A poem should not mean, but be” [“Um poema não deveria significar mas ser”], 
contrapõe ser e significar e, por meio disso, significa: faz que se veja que a oposição entre ser 
e significação é mais complicada do que se supunha anteriormente. 
 Mas é a presunção de unidade – este segundo nível de integração – que faz que surjam 
as dissonâncias e se produzam muitos efeitos literários deste gênero. 
 Em um terceiro nível de integração, a obra significa muito em relação ao contexto 
literário: em sua relação com os procedimentos e convenções, com os gêneros literários, com 
os códigos e modelos pelos quais a literatura permite aos leitores interpretar o mundo. Neste 
nível, o texto literário oferece sempre um comentário sobre uma leitura implícita (Iser, 1972) 
 
4 O New Criticism é um movimento inicial da teoria literária surgido nos anos 20 nos Estados Unidos. Ele 
propõe a separação do texto e do autor a fim de que o texto que seja objeto em si mesmo. Rompe com 
biografismo da crítica de então, mas rejeita também a análise literária a partir de contextos sociais ou culturais. 
Por isso dizemos que se enquadra na Corrente Textualista dos estudos literários. 
Um dos conceitos mais conhecidos destes teóricos é o Close Reading, leitura analítica e minuciosa do texto 
preconizada por Elliot. Colhida em: http://pt.wikipedia.org/wiki/New_Criticism (N.T) . 
 8 
ou pode se interpretado como uma alegoria da leitura, uma reflexão sobre as dificuldades da 
interpretação (De Man, 1979). A possibilidade de ler um texto literário como uma reflexão 
sobre sua própria natureza e sobre a natureza da literatura, faz da literatura um discurso auto-
reflexivo, um discurso que, implicitamente (por causa de sua situação de comunicação 
adiada), conta algo interessante sobre sua própria atividade significativa. Isto não quer dizer 
que se explique o texto inteiramente ou se domine plenamente: pelo contrário, as 
investigações recentes indicam que há sempre aspectos do funcionamento do texto que 
escapam à reflexão ou à definição. Nesse sentido, o tema profundo da literatura sempre é a 
impossibilidade da literatura, essa perseguição do absoluto literário é de certa maneira o 
fracasso (Blanchot, 1955). Mas para voltar às formas mais familiares que traduzem a prática 
mediante a qual os autores buscam renovar e fazer progredir a literatura, essa prática é uma 
crítica da literatura – da noção de literatura que eles herdam - e nisto a literariedade é um tipo 
de reflexividade. 
 O atual debate sobre literariedade oscila entre uma definição das propriedades dos 
textos (da organização do texto) e uma definição das convenções e pressupostos com os quais 
se aborda o texto literário. Estas duas perspectivas não são de modo algum idênticas, nem 
tampouco se pode supor que estejam em contradição. Na realidade, a natureza da linguagem e 
dos fenômenos culturais exige essa alternância de perspectivas: só em relação a um conjunto 
de convenções, em um ou outro nível, é que uma série de marcas ou uma sequência sonora 
estão dotadas de propriedades. Não obstante, essa alternância de perspectivas cria problemas 
para uma delimitação da literatura. Por uma parte, está claro que a noção de literariedade é 
uma função das relações diferenciais do discurso literário e de outros discursos, mais que uma 
qualidade intrínseca. Se se toma um fragmento de prosa periodística (narrativa jornalística) e 
se dispõe em uma página em forma de poema, vemos surgir algumas qualidades que estão no 
texto, mas que são uma função das novas convenções que se aplicam a ele: 
 
 Hier sur la Nationale sept 
 Une automobile 
 Roulant à cent à l’heure s’est jeteé 
 Sur un platane 
 Ses quatre occupants ont été 
 Tués. (Genette, 1969, 150) 
 
[Ontem, na estrada nacional sete,/Um automóvel/ A cem por hora lançou-se/Contra 
um plátano/Seus quatro ocupantes foram/Mortos.]Os diversos dados mudam de aspecto. “Ontem” já não se relaciona somente com uma 
data, mas com todos os “ontens” e, em consequência, conota um acontecimento frequente, 
não extraordinário. “Lançou-se” adquire uma nova força, como se o carro tivesse vontade 
própria, e se escuta o “esmagamento” do plátano. O estilo de reportagem e a escassez de 
detalhes podem inclusive indicar uma atitude de resignação. Em outro nível, se poderia 
entender na eleição do tema um comentário sobre o lirismo hoje, em que a tragédia adquire 
esta forma banal. Estas interpretações literárias são o resultado de uma orientação crítica que 
contempla esse discurso como se fosse literatura. Precisamente porque isso é possível, é 
necessário refletir sobre o que é literariedade. 
 
 Mas, por outro lado, cada vez que se identifica uma certa literariedade, se constata que 
estes tipos de organizações encontram-se em outros discursos, até quando não se trata esse 
discurso como se fosse literatura. Jakobson mesmo cita como exemplo da função poética da 
linguagem um lema norte-americano da campanha presidencial de Eisenhower em 1954, “I 
 9 
Like Ike” [Eu gosto do Ike]: há aqui uma repetição paronomástica muito acentuada, na qual o 
sujeito do gosto e o objeto do gosto estão inteiramente envoltos pelo ato de gostar (Like 
contém I e Ike), como se fosse inevitável, inscrito até na língua, que “I like Ike” (1960,357). 
Temos que observar que em toda uma série de investigações teóricas atuais – em campos tão 
diferentes como a antropologia, a psicanálise, a filosofia e a história - têm encontrado uma 
certa literariedade em fenômenos não literários. Os estudos de Sigmund Freud e de Jacques 
Lacan demonstraram, por exemplo, o papel constitutivo no funcionamento da psique de uma 
lógica da significação mais diretamente observável na poesia. Jacques Derrida mostra a 
centralidade inquestionável da metáfora no discurso filosófico. Claude-Levi Strauss descreveu 
uma lógica do concreto que atua nos mitos e no totemismo, lógica que se parece com o jogo 
de oposições (macho/fêmea, terrestre/celeste, moreno/loiro, sol/lua) da temática literária. É 
como se cada procedimento e cada espécie de estrutura que poderiam parecer essencialmente 
literários, pudessem ser encontrados também em outros discursos. Esta constatação seria 
desesperante se o objetivo das investigações sobre a natureza da literatura consistisse 
unicamente em distinguir a literatura do que não é, mas à medida que a finalidade consiste em 
identificar o que é importante na literatura, a busca da literariedade nos mostra até que ponto a 
literariedade pode iluminar outros fenômenos culturais e revelar mecanismos semióticos 
fundamentais. 
 A outra concepção da literariedade, representada por velhos lemas como a fórmula de 
Sir Philip Sydney segundo a qual “o poeta não afirma nada e portanto não mente”, põem a 
tônica em uma relação particular do discurso com a realidade: estas proposições referem-se a 
pessoas e acontecimentos imaginários mais que históricos. Este caminho não consegue captar 
o critério distintivo da literatura haja vista que no discurso há outras instâncias da ficção. 
Enunciados que pertencem à linguística e à filosofia põem em cena personagens fictícios – Le 
roi actuel de la France est chauve, John is eager to please [O rei atual da França é calvo. João 
está ansioso por agradar] – como fazem toda parábola e todo cenário hipotético. Mas estas 
observações não minimizam a importância dos esforços para definir as relações da literatura 
com a realidade. A ficcionalidade não se limita a personagens, situações e acontecimentos 
imaginários. Não é [dizer] unicamente que Anna Karenina, Don Quixote e Hans Castorp 
não existam; um “eu” de um poema não designa tampouco um indivíduo empírico em um 
dado momento, mas um sujeito criado no e pelo poema: “J’ai plus de souvenirs que si j’avais 
mille ans”5, o primeiro verso de “Spleen” de Baudelaire, não é uma proposição sobre o 
 
5 SPLEEN 
 
Eu tenho mais recordações do que há em mil anos. 
Uma cômoda imensa atulhada de planos, 
Versos, cartas de amor, romances escrituras, 
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas, 
Guarda menos segredos que o meu coração. 
É uma pirâmide, um fantástico porão, 
E jazigo não há que mais mortos possua. 
- Eu sou um cemitério odiado pela lua, 
Onde, como remorsos, vermes atrevidos 
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos. 
Sou como um camarim onde há rosas fanadas, 
Em meio a um turbilhão de modas já passadas, 
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado 
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado. 
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias, 
Quando, sob o rigor das brancas invernias, 
O tédio, taciturno exílio da vontade, 
Assume as proporções da própria eternidade. 
 10 
Charles Baudelaire que escreveu Flores de Mal. Neste sentido, a obra literária é um 
acontecimento semântico: projeta um mundo imaginário, que abarca os narradores e os 
leitores implícitos. Mas esta concepção de literatura como ficção não é de todo exata, posto 
que as obras literárias também põem em cena realidades históricas e psicológicas – Napoleão, 
a batalha de Waterloo, as condições de trabalho dos trabalhadores das minas, o sentimento de 
ciúmes de um menino mimado etc. Podemos então dizer que a obra se refere mais a um 
mundo possível entre vários mundos possíveis do que a um mundo imaginário. Para expor 
melhor as implicações desta ficcionalidade, alguns teóricos, em vez de dizerem que a obra se 
refere a um mundo de ficção, querem dizer que o ato de referência é em si fictício. Como ato 
de linguagem, a obra literária é imitação de um ato de linguagem “sério”, na qual o locutor é 
responsável pelas proposições que emite, pelas promessas que fez etc. Por esta perspectiva, a 
ficção se entende em relação com o “discurso natural” ou não fictício o qual imita6. “A 
ficcionalidade essencial das obras literárias não se há de descobrir na ausência de realidade 
dos personagens, objetos e acontecimentos aos quais se referem, mas na realidade do próprio 
ato de referência” (Smith, 1978, 11). Assim, em um romance, é o ato de narrar os 
acontecimentos, de descrever os personagens e de referir-se aos lugares é que é fictício. O 
romance representa o ato de alguém que descreve, que conta feitos etc. A mimese da literatura 
não consistiria tanto na imitação dos personagens e dos acontecimentos como na imitação dos 
discursos “naturais”, dos atos de linguagem “sérios”. Os romances seriam as instâncias 
fictícias de diversos tipos de livros - crônicas, diários, memórias, biografias, histórias e até 
coleções de cartas. O novelista “faz crer que escreve uma biografia, mas o que faz é fabricar 
uma” (Smith, 1978, 30). O teórico espanhol Martinez-Bonati vai mais longe ao dizer que os 
signos chamados linguísticos de uma obra, na realidade, são imitações fictícias e não 
verdadeiramente linguísticas, dos signos propriamente linguísticos (1981,81). 
 Há romances que efetivamente “nos levam a crer” que são biografias ou coleções de 
cartas, ou que põem em cena um personagem que simula contar sua vida, ma na maior parte 
dos casos o texto literários, a ficcionalidade não é de modo algum a qualidade essencial que 
distingue um romance de uma biografia. Smith entende que ao escrever A Morte de Ivan 
Ilich7 Tolstoi “faz crer que escreve uma biografia, mas na verdade fabrica uma”, embora ao 
contrário Tolstoi não simule nada. Longe de fabricar um escrito que pareça uma biografia, 
Tolstoi vale-se de procedimentos que seriam ilegítimos em uma biografia e que são próprios- Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro! 
Um granito açoitado por ondas de assombro, 
A dormir nos confins de um Saara brumoso; 
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso, 
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor 
Canta apenas os raios do sol a se pôr. 
 
Fonte: http://geocities.yahoo.com.br/edterranova/baudelapoe76.htm em 16/3/2006. 
 
6 Observamos uma situação peculiar na qual os teóricos da literatura ou da literariedade como ficção definem a 
literatura como imitação de um discurso não fictício, e os analistas dos discursos não fictícios (o relato da 
Historia, por exemplo) mostram que temos de compreendê-los em relação ao discurso literário. A inteligibilidade 
da história não dependerá da uma causalidade científica, mas da maneira que os elementos do relato se sucedem 
e se vinculam para formar um todo segundo os modelos do gênero literário. Este é outro exemplo de um campo 
em que os discursos literários funcionam segundo estruturas e procedimentos que se manifestam mais 
explicitamente na literatura. 
7 A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, novela publicada em 1886, retrata com uma aguda profundidade o 
tema da morte e o sentido da vida, personalizada em Ivan Ilitch, um juiz russo que na antecâmara da morte faz 
uma reflexão profunda sobre todas as etapas da sua vida desvendando-se a si próprio. 
 (Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_morte_de_ivan_ilitch, 
18/01/2012). 
 11 
do romance. Ilich está escrito em terceira pessoa e, naturalmente, vemos o mundo segundo o 
ponto de vista do autor e [também] seguimos o ponto de vista do protagonista no momento de 
sua morte. Käte Hamburger (1968) distingue a literatura dos demais discursos pela capacidade 
que ela tem de apresentar um mundo, incluída a experiência anterior, a partir do ponto de 
vista de um personagem que está representando em terceira pessoa. O indício desta 
literariedade é um tipo de frase propriamente literária, “Morgen war Weihnachten” [Amanhã 
era natal], na qual os elementos dêiticos (manhã, ontem, aqui, lá, você) estão definidos em 
relação a uma subjetividade (do personagem) que está situado no passado, mas no presente da 
enunciação. Martinez-Bonati refere-se também a modos de discurso da ficção que não são a 
imitação de um ato cotidiano supostamente “real” (1981, 104). Assim, há boas razões para 
supor que a literatura não é uma imitação fictícia dos atos de linguagem não fictícios e 
“sérios”, mas um ato de linguagem específico como, por exemplo, contar uma história. 
 Por este caminho chegamos a uma conclusão que já foi abordada no princípio de outra 
forma: que o discurso literário para possuir condições de enunciação diferentes de outros atos 
linguísticos, se relaciona com condições específicas. Mas quais são essas condições e, em 
particular, qual é a relação entre estes atos de linguagem do relato literário e dos relatos não 
literários? Pergunta essencial para uma literatura vinculada à ficcionalidade. Mary Louise 
Pratt, que se opõe à idéia de uma linguagem literária distinta, insiste na importância que teria 
contemplar as narrações literárias como membros de uma classe de “textos narrativos de 
exibição” [narrative display texts], classe que abarcaria a todo relato de acontecimentos 
apresentados como insólitos, interessantes, destinados a divertir, e nos quais se consideraria 
que o destinatário reconhece que a pertinência do relato não está nas informações que este 
propõe, mas no fato de que seja “contável” [tellable] (1977, 148). Nesta classe, os relatos 
literários se beneficiam dos mecanismos da seleção - edição, crítica literária, ensino – que 
criam, frente a estes relatos, “um princípio de cooperatividade hiperprotegida” [hyper-
protected cooperativa principle] e permitem ao leitor acreditar que podem resultar dele uma 
comunicação interessante. Para compreender este princípio de cooperatividade, temos que 
notar que se pressupõe uma cooperação que sustenta e faz possível a comunicação comum: 
assim, em geral, pressupõe-se que nosso interlocutor se coloca em uma atitude de cooperação 
e que sua resposta será pertinente com respeito à questão proposta (se me convidam ao 
cinema e eu respondo “faz um bom dia”, o princípio de cooperatividade nos autoriza a 
encontrar a pertinência dessa resposta). Em nossas relações cotidianas, às vezes decidimos 
[coisas] tão apressadamente que os detalhes e as digressões do relato que alguém nos faz não 
são pertinentes e que nosso interlocutor viola o princípio da cooperatividade. Mas em 
literatura, este princípio está “hiper-protegido”, no sentido de que pressupomos a pertinência e 
o valor dos momentos obscuros, anormais e digressivos. Quando o relato literário parece que 
não obedece às regras da comunicação eficaz, é que está a serviço de uma comunicação 
diferente e indireta. Teríamos que acumular uma imensa soma de incompreensões e de 
frustrações frente a um texto para que podermos decidir que não há solicitação de 
comunicação cooperativa, pois em literatura até a impertinência dos detalhes pode ser um 
componente significativo da arte. Em suma, o que distingue A Morte em Veneza8 do relato 
da morte de um homem mais velho que desejava um rapaz é sobretudo que temos boas razões 
para supor que o primeiro relato será mais rico, complexo, “valerá a pena” ouvi-lo ou lê-lo, 
 
8 A Morte em Veneza (no original em alemão Der Tod in Venedig) é uma novela escrita por Thomas Mann e 
publicada pela primeira vez em 1912. 
 
Em A Morte em Veneza, Thomas Mann apresenta uma escrita complexa e profunda, onde quase cada parágrafo 
pode ter várias leituras. Em contraponto, o enredo é praticamente inexistente: um homem de meia-idade viaja até 
Veneza, apaixona-se platonicamente por um jovem rapaz polaco extremamente atraente e morre sem sequer ter 
trocado uma palavra com ele. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Morte_em_Veneza). 
 12 
terá uma unidade e demais propriedades da literariedade das quais nos ocupamos 
anteriormente. 
 Portanto, vemos que uma discussão sobre a ficcionalidade dos atos literários de 
linguagem nos levam a essas pressuposições da literariedade que nos fazem buscar e 
encontrar na obra uma organização complexa e intensa da linguagem. Isto não quer dizer que 
tenhamos resolvido o problema da literariedade; não encontramos um critério distintivo o 
suficiente que possa definir, o que significa simplesmente que todas as buscas que procura 
isolar os elementos e as convenções determinantes para produzir literatura coincidem e 
propõem juntas meios importante para os estudos literários. 
 
In ANGENOT, Marc et alii. Teoria Literaria. Madrid: Siglo veintiuno editores: 1993, pp. 
36-50. 
 
Tradução: Manoel Francisco Guaranha.

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