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44 Unidade II Unidade II 5 PSICOLOGIA E COMPROMISSO SOCIAL 5.1 Compromisso social da psicologia Gonçalves (2010), ao analisar o papel da psicologia no âmbito das políticas públicas, traz uma discussão importante sobre a dimensão subjetiva e sócio‑histórica presente nesta intersecção. A história da relação da ciência psicológica com o campo das políticas públicas pode, conforme Gonçalves (2010), grosso modo, ser dividida em dois momentos: o primeiro, quando a psicologia estava ausente das políticas públicas (ou, conforme a autora, à margem das políticas públicas, já que não estava completamente ausente, mas, de alguma forma, não estava compromissada com a defesa dos direitos sociais); e o segundo momento é quando a psicologia esteve (e está, até os dias de hoje) presente nas políticas públicas. Ambos os momentos têm relação com a construção histórica da ciência psicológica no Brasil e com os referenciais epistemológicos e consequentes posições políticas em que tais referenciais se implicam. A história da psicologia enquanto ciência da diversidade, tanto teórica quanto de campos de atuação, pode ser analisada sob o prisma do papel social exercido pela ciência psicológica na história brasileira. A posição epistemológica de que a ciência é “neutra” trouxe para a ciência psicológica práticas sociais sobre as quais são criadas expectativas de um atendimento especializado, realizado por um profissional que se formou em sua área de atuação e tem o conhecimento técnico para servir às demandas que se apresentam de forma não implicada politicamente. Ou seja, essa posição parte do pressuposto de que o conhecimento científico é produzido sem conexão com a realidade social. Pretensamente, os estudos sobre os objetos da psicologia (comportamentos, emoções, desenvolvimento, personalidade, percepção, adoecimento mental etc.) lançariam foco sobre os processos psicológicos de maneira isolada. O contexto social, de acordo com o ponto de vista da neutralidade, não é levado em conta para o entendimento dos processos psicológicos. É uma visão de ciência que implica o profissional a “apenas” prestar o serviço especializado, a partir do domínio de técnicas específicas, que atuam sobre determinado objeto previamente pesquisado pela ciência. A psicologia aplicada seria um exemplo claro dessa visão. Setores sociais como saúde e educação solicitavam ao psicólogo um laudo ou diagnóstico, a partir da constatação ou suspeita de algo “anormal” (psicologicamente falando). Entendendo que os instrumentos para a realização do serviço são suficientes, a visão de neutralidade científica resulta em uma prática que não leva em conta os contextos social, político, histórico e cultural para uma análise do indivíduo. A “neutralidade”, na verdade, funciona como neutralização de fatores que são desprezados pelo profissional que, na maioria dos casos, é um profissional liberal. 45 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Não há uma proposta de reflexão sobre a prática profissional, em termos de políticas públicas, em dois aspectos. Em primeiro lugar, a visão de que um objeto científico deve ser pesquisado e desenvolvido de maneira “neutra” acarreta o desenvolvimento de conceitos descolados de uma realidade social, portanto, a partir desse ponto de vista, não haveria porque associar os processos psicológicos à garantia de direitos sociais. Em segundo lugar, a atuação de profissionais liberais (psicólogos que atendem em consultório particular) ocupa um papel social à margem das políticas sociais. Como um profissional que parte de um referencial científico de “neutralidade”, serviços como a emissão de laudos, diagnósticos e mesmo o atendimento psicoterápico se configuram na esfera da individualização de problemas coletivos. Diretamente associada a essa visão, há outra convicção que tem sido predominante na história da psicologia. Diz respeito à naturalização dos fenômenos psicológicos, implicando a busca de um conhecimento considerado universal sobre o psiquismo humano. Um conhecimento que se crê natural e universal justifica ações normalizadoras, de adaptação dos indivíduos a situações existentes. Também por essa via a presença da psicologia no campo das políticas públicas termina por ser pequena ou inexistente, pois ela não teria que produzir conhecimentos e procedimentos de intervenção específicos para cada situação, apenas “aplicar” o que já existia (Gonçalves, 2010, p. 82‑83). A questão da adaptação exposta pela autora marca o papel social das práticas psicológicas. Dessa forma, pode‑se perceber claramente uma função social da psicologia, sem passar pelas políticas públicas. A ideia de adaptar um indivíduo a um contexto implica entender que esse indivíduo está fora de padrões de “normalidade” e não se faz uma análise de como o contexto afeta psicologicamente o indivíduo ou, mais do que isso, não se considera o contexto como parte do processo psicológico. Assim sendo, Gonçalves (2010) analisa a psicologia “ausente” das políticas públicas no sentido de entender o papel social das práticas profissionais e da produção científica. A atuação de psicólogos como profissionais liberais, em consultórios ou clínicas privadas, se destaca pelo recebimento de encaminhamento de setores sociais, como educação, saúde e trabalho, para que, utilizando‑se de instrumentos desenvolvidos por uma ciência supostamente neutra, atendessem a demandas de diagnóstico e tratamento pelo viés da anormalidade. Tais práticas, além de desprezar o contexto social e histórico como constituintes da subjetividade, colocavam o indivíduo como único fator dos processos psicológicos, sem olhar para a necessidade da promoção de direitos sociais como um aspecto fundamental para o desenvolvimento psicológico. As consequências das práticas individualizantes podem ser vistas como a essência das marcas deixadas por uma ausência das políticas públicas. A psicologia, como se colocava como apoio para outros campos das políticas sociais, reforçava a responsabilização individual por problemas coletivos. Na educação, o conceito de “normalidade” e a consequente concepção patologizante de crianças em idade escolar mostra como a psicologia atua no sentido de estigmatizar e até mesmo excluir as crianças do processo de escolarização e aprendizagem. Na saúde, a parceria da psicologia com a psiquiatria marca o campo da saúde mental no sentido higienista e disciplinador, reforçando a lógica manicomial, desumana e violenta. No campo do trabalho, a busca por enquadrar “o homem certo no lugar certo” 46 Unidade II buscava fazer o trabalhador se adaptar às condições de trabalho, muitas vezes desgastantes e sob risco de acidente de trabalho, atuando para que o processo de industrialização virasse as costas para as condições de trabalho, colocando uma suposta “inaptidão” como responsável pelas mazelas da saúde mental do trabalhador. O que é importante salientar é que todas essas características vão contribuir no desenvolvimento da profissão para que ela tenha esse lugar: secundário, enquanto saber e atuação que subsidia outras práticas, a partir da descrição e classificação de indivíduos em relação a seus “aspectos psicológicos”. Isso pode ser observado na escola, onde o psicólogo tem atuação auxiliar ou complementar em relação a professores e pedagogos (só para os “casos‑problema”); na empresa, em que subsidia o trabalho do administrador; na saúde, em que auxilia o médico psiquiatra; na justiça, em que auxilia o juiz; esse é, então, o lugar predominantemente ocupado no campo social. E, alternativo a esse, o lugar de psicoterapeuta no consultório particular, aí também utilizando, de forma geral, o mesmo conhecimento naturalizante e descontextualizado, mas, neste caso, como profissional autônomo (Gonçalves, 2010, p. 90). A autora ainda chama atenção para o crescimento das práticas psicoterapêuticas, que, com a regulamentação da profissão em 1962, e com o aumento da oferta de cursos de psicologia, passa a configurar umna elaboração de programas de prevenção, evitando que se limitem apenas ao ensino do uso do preservativo, recomendações médicas e dados estatísticos. Também critica abordagens comportamentais ou pedagógicas, que tratam o usuário como simples receptor de informações, como ainda ocorre na maioria dos serviços públicos de saúde. 7 ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO SUAS 7.1 A esfera de trabalho da psicologia no campo das políticas públicas da assistência social A psicologia no contexto da assistência social tem sido objeto de constante reflexão. Por se tratar de uma inserção relativamente nova, psicólogos brasileiros têm colocado suas práticas em debate no sentido de realizar a construção de saberes e práticas que sejam pertinentes para a atuação no Suas. É importante salientar que a psicologia tem sido objeto de reflexão constante dentro de sua linha histórica no Brasil. O modelo médico, até certo ponto, influenciou as práticas psicológicas de maneira decisiva, principalmente até a década de 1980, quando então a psicologia brasileira passa a exercer um olhar mais crítico sobre esse modelo. De alguma forma, a prática psicoterapêutica individual ainda permeia o imaginário sobre as práticas psicológicas. O consultório particular ainda é muito associado 69 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA ao trabalho do psicólogo, e uma visão de saúde como tratamento de doença, mesmo que amplamente criticada nas últimas décadas, ainda faz parte do repertório profissional da psicologia. Sendo uma prática de um profissional liberal, a psicologia clínica era acessada por uma pequena parcela da população, uma elite econômica que, ao mesmo tempo, podia pagar pelos serviços, e tinha algum esclarecimento sobre o trabalho da psicologia – ou, podemos dizer, no mínimo, tinha acesso a algum conhecimento a respeito de saúde mental. Com o crescimento do pensamento crítico em relação a um modelo médico na psicologia, os profissionais, pesquisadores e pensadores da área passam a discutir novos modelos de atuação. A psicologia passa a enfrentar uma crise de identidade profissional, ao passo que a ampliação dos espaços de atuação, na década de 1980, coloca o psicólogo em contextos novos para a profissão. Antes de adentrar a área da assistência social, já que a regulamentação do Suas data de 1993, o psicólogo passa a atuar em espaços como: escola, comunidades, sindicatos e centros de saúde do trabalhador, sistema judiciário, em discussões sobre uma saúde mental crítica ao modelo manicomial etc. Todas essas inserções, de alguma forma, tentaram transpor o modelo médico de atenção psicológica clínica ao indivíduo, tentativa essa que esbarrou em uma série de empecilhos que, na verdade, eram um chamado para algumas reflexões críticas: seria possível fazer atendimento clínico em um contexto de pobreza e vulnerabilidade em um centro comunitário? A psicologia jurídica e a psicologia escolar viam sentido em replicar o modelo de laudos, diagnósticos e classificação em contextos em que os sujeitos e as coletividades eram produtores de sofrimento? Através de tais questionamentos, o objeto e os objetivos da psicologia passam a ser reelaborados. Esse momento de crise da psicologia culmina em movimentos de intenso debate e redefinição de suas práticas. A partir disso, os currículos dos cursos de graduação foram revistos, mesmo com a dificuldade de acompanhar as discussões e a implementação de novas práticas que foram e estão sendo construídas nos diferentes contextos. No caso da assistência social, essa construção em torno de novas práticas passa pela reflexão sobre as situações de risco e vulnerabilidade. Os primeiros psicólogos na assistência, após a promulgação da lei do Suas, vêm de uma formação acadêmica e profissional que não discutiu nem instrumentalizou o psicólogo para lidar com esses contextos. O aprendizado foi acontecendo na prática, no campo de trabalho. Durante o fim da década de 1970 até a década de 1990, quando ainda eram incipientes as reflexões sobre as condições sociais e suas relações com o contexto histórico e político, ficou marcada o que foi chamada de crise dos paradigmas na psicologia. Disciplinas como sociologia, antropologia, ciências políticas, história e geografia, mesmo que anteriormente já presentes nos currículos de formação, passaram a se embrenhar com mais frequência às reflexões da psicologia, afinal, uma das grandes questões era (re)definir o objeto de estudo e atuação. Que sujeito era aquele que, em condições de pobreza, vulnerabilidade e violência, se apresentava para ser usuário de um serviço de psicologia? O que a psicologia deveria fazer e com que princípios deveria atuar? Como entender então o sofrimento desse sujeito? Uma pessoa que está em situação de vulnerabilidade social deve ter seu sofrimento entendido como distúrbio psicológico? Essas são algumas questões que passam a ser colocadas para um profissional em crise. 70 Unidade II É notável também que o profissional de psicologia não é instigado a fazer reflexões políticas acerca da profissão ou acerca das condições sociais e econômicas que permeiam as contingências da população a quem esta ciência e profissão serve no contexto da assistência social. Esta reflexão faz‑se necessária para melhor compreensão da realidade como um todo, e não apenas de recortes da realidade. A pesquisa permitiu a constatação de que o psicólogo ainda não se sente pertencente àquele lugar. Não há um sentimento de pertença ao SUAS, não há um “chegar para ficar”, como sendo ali seu lugar. Os serviços acabam muitas vezes sendo realizados de forma fragmentada e desmembrada do todo. Entende‑se que isso também é consequência da fraca fundamentação na graduação e pouca instrumentalização para a prática nas políticas sociais. Outra razão para isso é o lugar de desejo do estudante de psicologia ainda ser o da clínica, com uma relação paciente/psicólogo, e não usuário/técnico de referência, por toda a construção histórica da profissão que foi discutida no início deste trabalho (Sales, 2017, p. 166). A autora ainda relata, como resultado de sua pesquisa, que a percepção dos profissionais da psicologia no Suas é de que existe um campo de atuação que faz sentido para a psicologia. Não obstante os desafios da construção do campo de atuação, há um direcionamento para uma visão positiva da profissão. Do ponto de vista do ordenamento e regulamentação da profissão a partir de um Conselho que busca fiscalizar a prática profissional, a inserção do psicólogo no SUAS e uma delimitação de seu papel nesse contexto é vantajosa, uma vez que trata‑se de reserva de mercado para a profissão e da demarcação de uma identidade laboral do profissional que ali se encontra. Nesse sentido seria interessante pensar numa construção da identidade profissional que esteja atrelada ao ideário das políticas públicas (Sales, 2017, p. 166). Ainda no sentido de construção de identidade profissional, no processo de construção do campo de atuação aqui discutido, há um entrelaçamento entre a atuação do psicólogo da assistência social com o arcabouço da psicologia social comunitária. O conceito de “conscientização” – bastante discutido na psicologia social comunitária latino‑americana desde a década de 1970, amparando‑se nas obras de Paulo Freire, Karl Marx e dos autores soviéticos Vygotskty, Luria e Leontiev, entre outros –, acaba por vir de encontro de maneira inevitável com a atuação da psicologia na assistência social. Ao deparar‑se com um público em situação de pobreza, risco e vulnerabilidade, é imprescindível entender a importância de se apropriar conscientemente de seu processo histórico de formação social. Tema de importantes debates na psicologia social comunitária, a conscientização está relacionada à questão dos indivíduos e grupos assumirem um papel de protagonista no destino de suas histórias. O fato de se conscientizarem possibilitaria uma busca ativa para as soluções de seus problemas e de construção coletiva de ações comunitárias.71 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Por mais que a conscientização possa parecer elementar para a prática do psicólogo comunitário em um primeiro momento, a prática não é tão simples como pode parecer. Não basta “levar informações” para o público atendido no contexto comunitário. A consciência, enquanto fenômeno psicossocial, é multideterminada por fatores individuais, assim como históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais. Muitos fatores presentes na consciência se fazem de forma não consciente para o sujeito, ou, pode‑se dizer também, de difícil percepção. Processos como a ideologia, a propaganda, a socialização primária e secundária são formadores da consciência. A psicologia social comunitária vai percebendo a importância de uma construção conjunta, a partir de uma base comum ético‑política em que profissional e público atendido se relacionem sem as amarras do autoritarismo e da desigualdade. Portanto, conscientização é um processo de fazer juntos, já que o profissional também passa pelo processo de conscientização, e deve rever seus preconceitos e ideologias no trabalho. Ao entrar na comunidade, o psicólogo deve estar ciente que lidará com um sujeito concreto, inserido numa realidade sócio‑histórica‑cultural, tendo no cotidiano seu espaço vital, portanto, opta‑se por se pensar em uma metodologia cujos objetivos são definidos a posteriori e o trabalho pensado e formulado juntamente com a população. [...] este processo inicia‑se com a inserção efetiva do psicólogo na comunidade, cujo início baseia‑se na construção de um vínculo, configurado por uma parceria, na qual comunidade e interventor têm igualdade de importância no processo (Silva; Corgozinho 2011, p. 18). O processo de conscientização é um fazer conjunto, no qual o estabelecimento de prioridades, a definição de objetivos e a determinação de quais caminhos tomar são decididos pelo grupo e pela comunidade. A conscientização já se impõe como processo na própria criação de vínculos e no fazer coletivo; estar consciente é estar junto. Ao perceber as condições de vida, o questionamento de suas determinantes vem quase que naturalmente. A busca pelo bem‑estar e pela melhoria de vida só é possível quando se entende a condição sócio‑histórica. O trabalho do psicólogo no Suas tem respaldo na construção teórico‑técnica da psicologia social comunitária. Dessa forma, esta Psicologia vem a ser uma ciência comprometida com a realidade estudada, especialmente com os excluídos, comprometimento que possui relação direta com os trabalhos visados e executados pelo CRS, que atua com grupos, famílias e indivíduos em seu contexto comunitário, e visa o direito à proteção social, garantindo a segurança de sobrevivência, de acolhida, e do convívio ou vivência familiar. […] A partir disso, inicia‑se a fase de implementação e execução dos projetos, elaborados a partir das demandas comunitárias, que necessitam ter metas claras. Como é apresentado pelos documentos que regem o CRS, esses projetos devem se materializar, de preferência, através de trabalhos grupais, 72 Unidade II no qual o profissional de Psicologia poderá fazer uso de uma das teorias existentes, que o qualifique, oriente e dê suporte. Nesses trabalhos deverão ser focados os conceitos, já apresentados, da Psicologia Social Comunitária, respeitando‑se a identidade e a alteridade do sujeito, na sua qualificação em busca de autonomia (Silva; Corgozinho, 2011, p. 18). A defasagem técnica encontrada para a atuação da psicologia no Suas pode ser sanada com a aproximação da psicologia social comunitária. Claramente percebe‑se uma falta de preparação do psicólogo para atuação na assistência social, tanto nos cursos de graduação como na própria formação dos profissionais que já estão no setor. É necessário produzir cada vez mais teses, dissertações, artigos e relatos de experiência prática. O caminho da psicologia social comunitária é convidativo para esses profissionais. Lembrete Políticas sociais são ações por parte de governos e instituições que visam a melhoria da qualidade de vida, o acesso a direitos sociais e a promoção de justiça. Já as políticas públicas são programas e ações que visam promover os direitos previstos na Constituição. Como dizem os autores Rossini, Rotta e Borkovski (2019): “No conjunto das políticas públicas, entende‑se as políticas sociais como um conjunto de programas e ações, caracterizadas pela garantia da oferta de bens e serviços, transferências de renda e regulação de elementos do mercado, que visam a alcançar a proteção e a promoção social”. 7.2 Do “sujeito da caridade” ao “sujeito de direito” A emergência de questões sociais no Brasil, que se deu no início do período da redemocratização (a partir da década de 1980), é notadamente resultado de reivindicações de movimentos sociais que surgiram naquele momento. O processo de garantia de direitos no Brasil foi precedido por um período de violação de direitos durante a ditadura militar. Foi só a partir do retorno das eleições diretas, do fortalecimento da participação popular em processos decisórios e da criação de políticas públicas previstas em lei, com a Constituição de 1988, que passamos a ter um panorama no Brasil de embate político em torno da formulação e da implementação das políticas sociais. Vemos nas referências técnicas de atuação do psicólogo no Cras (Conselho Federal de Psicologia, 2021) uma importante discussão sobre pobreza e subjetividade, que dá embasamento para uma discussão no âmbito ético‑político relevante para a profissão. De acordo com a referência (Conselho Federal de Psicologia, 2021, p. 35), políticas públicas voltadas para a garantia de direitos têm um objetivo de enfrentamento das desigualdades estruturais em nossa sociedade, com um foco na participação democrática ampla e na construção de um Estado que assegure 73 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA os direitos humanos. Desse modo, a Loas, a PNAS e a NOB se configuram como ferramentas essenciais para a criação de práticas profissionais que visam garantir o acesso e a efetivação de direitos. As populações marginalizadas, que vivem na pobreza, vulnerabilidade e situação de riscos, são aquelas que ocupam áreas urbanas precárias e negligenciadas, onde as condições mínimas de vida são sistematicamente negadas, o que resulta em uma contínua pobreza e violações de direitos. Essa situação afeta diversas populações em diferentes contextos, como as rurais, ribeirinhas, indígenas, pescadores, quilombolas e pessoas em situação de rua. As desigualdades que moldam essas realidades estão profundamente relacionadas a questões de gênero, etnia, território, moradia e a extrema pobreza imposta a esses grupos socioculturais. É importante caracterizar a complexidade da pobreza enquanto processo social. Pode‑se entender a pobreza como falta de recursos financeiros, ou mesmo como a falta de acesso a alimentos. A pobreza multidimensional, por sua vez, considera a pobreza como a incapacidade de satisfazer tanto as necessidades básicas monetárias quanto as não monetárias dos indivíduos. Já a pobreza relativa se refere aos estudos que a enxergam como a privação relativa de renda ou de outras dimensões socioeconômicas. Ainda existe a pobreza relativa ou subjetiva, que se baseia no posicionamento declarado pela própria pessoa. A referência técnica (Conselho Federal de Psicologia, 2021, p. 36) traz a importante contribuição de Robert Castel, que se destaca por se alinhar mais diretamente ao campo da assistência social, pois vê a pobreza não apenas como um fenômeno econômico (como moradia, renda e higiene), mas como o resultado de várias rupturas de vínculos. Desse modo, a vulnerabilidade é gerada pela integração (ou falta dela) ao mercado de trabalho e pela inserção (ou não) no contexto sociofamiliar. A população em situação de pobreza depende do Estado que, por sua vez, realiza investimento na promoção de direitos. Ao mesmo tempo, na sociedade capitalista, o Estado buscadar conta do crescimento econômico, o que nem sempre acompanha o desenvolvimento social. Essa tensão constante dificulta a implementação de políticas sociais públicas. A assistência social tem sido uma área ambígua nas relações entre Estado e sociedade civil, sendo que os conceitos de assistencialismo e clientelismo são frequentemente associados a uma sociedade conservadora, que, por muito tempo, tratou a pobreza como uma característica individual daqueles que não se esforçaram para superá‑la. [...] essa tensão no campo das políticas sociais públicas permanece e se acirra no século XXI, vale lembrar que após a promulgação da Constituição Federal de 1988 a expressão sujeito de direito começa a ser mencionada, até então havia práticas de assistência social, em que o objeto destas era o sujeito da caridade, aquele que precisa de ajuda por algum motivo, o desvalido, o pobre. Ainda vivemos uma transição, parece ser um longo processo de incorporação da nova concepção. O sujeito de direito não é somente pobre (ainda que possa ser), mas o desfiliado. O desfiliado conjuga o estado de precariedade do trabalho com a fragilidade do elo social, aludindo à ruptura, à desqualificação e à invalidação social, atrelado às vias de sua produção, diferente do conceito de exclusão, que sugere uma condição estanque, designando estado de privação. Assim, o processo de desfiliação é continuamente balizado pela chamada zona de vulnerabilidade (Conselho Federal de Psicologia, 2021, p. 36‑37). 74 Unidade II A questão urbana é outro fator importante no debate. As cidades brasileiras passaram a ser espaços marcados por uma urbanização que contribui para a produção e manutenção da pobreza, especialmente devido à criação de uma infraestrutura social e política que configura territórios de extrema pobreza, onde as condições de vida são subumanas. Nesse contexto, é essencial compreender a pobreza extrema ou a miséria não como algo inerente às características dos indivíduos, mas como um fenômeno produzido pelo próprio sistema capitalista, de forma cada vez mais intensa nas sociedades que ele domina. Assim, precisamos levar em conta as condições sociais e históricas ao refletirmos sobre as práticas profissionais no campo da assistência social. Cabe mencionar também as populações que vivem distantes dos grandes centros urbanos, em condições de vulnerabilidade associadas à pobreza extrema, e que necessitam de medidas protetivas por parte do Estado. As chamadas comunidades tradicionais têm acumulado, ao longo da história do país, uma série de violências e violações de direitos que precisam ser reparadas. Esse processo de reparação pode ocorrer por meio de ações de um Estado de direitos e de promoção da justiça social, considerando as comunidades quilombolas, ribeirinhas, ciganas, indígenas, pessoas em situação de rua etc. que sofreram graves abusos e violências durante os anos de colonização, em uma política de extermínio de povos, culturas e costumes (Conselho Federal de Psicologia, 2021, p. 37). Além disso, deve‑se destacar que, nesse processo de desinvestimento, as mulheres foram historicamente ignoradas na construção socioeconômica das nossas sociedades e riquezas, sendo minimizadas na importância estrutural das atividades que desempenham. É na interação desses diversos marcadores sociais de diferença (como ser mulher, ser negra, viver em determinada região, estar em situação de pobreza, ser LGBTQIAPN+ etc.) que os processos de exclusão e inclusão sociais operam na construção das desigualdades que moldam nossas subjetividades e influenciam o governo, o que exige uma abordagem interseccional para compreender esses problemas complexos. Isso é especialmente relevante quando se considera o fortalecimento dos vínculos sociocomunitários, com foco nas relações com a família e a comunidade. A composição e desenvolvimento sistemático de governo desses processos de subjetivação, que ocorrem sob essa alcunha do Estado, possuem como atrizes(atores) sociais psicólogas(os), assistentes sociais, antropólogas(os), sociólogas(os), advogadas(os), entre outras(os) profissionais que enfrentam em seu cotidiano as dificuldades inerentes às políticas públicas como campos de atuação e efetivação de direitos, por isso a importância de construir e problematizar reflexões e orientações para nossas práticas nas políticas públicas da Assistência Social. […] Ao longo das últimas décadas, houve um avanço expressivo, mas ainda insuficiente, do número de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) no país. Também uma série de profissionais, (muitos recém‑formados), encontram nesses espaços disposição para atuação profissional que coloca em destaque uma ação que possui, entre outros elementos, um caráter comunitário, para amenizar os efeitos da questão social, que, mais do que 75 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA nunca, é profunda em sua complexidade e adquire extensas proporções. Além de desempenharem atividades que garantem a constituição e o acesso a uma rede de serviços no território em que as populações atendidas vivem e constroem suas experiências como sujeitos políticos (Conselho Federal de Psicologia, 2021, p. 38‑39). 7.3 Relatos de experiência O profissional da psicologia pode atuar em praticamente qualquer equipamento do Suas, como: Centro de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop). Ainda, o profissional de psicologia pode atuar nos Centros de Convivência, como Centro de Convivência Intergeracional (CCInter), Centro de Convivência do Idoso (CCI), Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), Núcleo de Convivência de Idoso (NCI) e Centro de Convivência e Cooperativa (Cecco). Nesses equipamentos, o psicólogo pode buscar garantir o acesso a direitos básicos de pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial e em sofrimento psíquico. Ainda é possível agir na promoção da autonomia e da emancipação, trabalhar a fragilidade e condição psicossocial de pessoas em situação de violência, promover o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e educacionais, dentre outras funções. A fim de exemplificação, apresentaremos três exemplos práticos de atuação do psicólogo no Suas. O primeiro exemplo de atuação (Schmitt; Schweizer, 2017) relata o trabalho de estagiários junto à população de rua em um Centro Pop no município de Florianópolis, em Santa Catarina. O segundo exemplo (Ruffier et al., 2019) traz a atuação de estagiários de psicologia em um CCFV na região sul do Brasil (sem identificar o município). Por fim, o terceiro exemplo, apresentado (Oliveira et al., 2016), traz o relato das atividades desenvolvidas por estagiários juntamente com um psicólogo de um Cras localizado em um município do Rio Grande do Norte. O exemplo apresentado por Schmitt e Schweizer (2017) tem como foco as intervenções psicossociais o tema “trabalho”. Os estagiários, inicialmente, fizeram reuniões com a equipe do Centro Pop para estabelecer um vínculo inicial e definir as diretrizes e os objetivos da intervenção proposta. Com o convênio estabelecido, foram acordadas, junto a equipe, as temáticas a serem trabalhadas, considerando modificações de planejamento caso outras demandas surgissem ao longo dos encontros. Os temas definidos foram os seguintes: preconceito e violência; realidade das ruas, utilização de drogas e outras substâncias; projeto de vida e futuro; sentidos e significados do trabalho; cursos e profissões; inserção e permanência no mercado de trabalho; elaboração de currículos e preparação para entrevistas de emprego; e música. 76 Unidade II Essa experiência aconteceu por meio de nove encontros presenciais com o grupo, com atividades específicas de acordo com as necessidades identificadas pelos profissionais do local e da demandados encontros grupais (Schmitt; Schweizer, 2017, p. 106). Durante o processo de intervenção, que se deu por meio de atendimentos grupais, constatou‑se que, para as pessoas em situação de rua, a dificuldade em se conseguir trabalho está associada a diversos fatores. A ruptura de vínculos sociais, especialmente dos vínculos familiares, denota a falta de apoio e suporte emocional, que, para tantas esferas da organização cotidiana, traz consequências importantes. A busca por trabalho não ocorre da forma habitual como se dá para a população geral (em que apenas a competência técnica e um currículo bastam), para pessoas em situação de rua, os estigmas sociais representam bloqueios simbólicos e emocionais. A falta de acesso a bens materiais, além de dificultar a busca por trabalho, reforça o estigma: “Ao longo do projeto, pôde ser percebido que uma das grandes dificuldades enfrentadas pela população em situação de rua acessada não está somente em conseguir um emprego, mas em encontrar um local para ficar e obter apoio material, psicológico e emocional” (Schmitt; Schweizer, 2017, p. 108). A vivência nos grupos possibilitou aos participantes a valorização de si mesmo, a potencialização da autoestima e a experiência em um espaço de troca e aprendizado. O projeto de vida e de trabalho elaborado durante os encontros gerou um processo de reconstrução subjetiva. Foi importante perceber como o trabalho pode carregar um sentido de produção de desejos, ou seja, mesmo diante das dificuldades enfrentadas, e o próprio reconhecimento das dificuldades, foi importante para os participantes se perceberem enquanto seres de desejo – desejo esse que se construiu com apoio dos vínculos estabelecidos. A importância da potencialização e empoderamento desses sujeitos surge como um fator essencial para o resgate da autoestima e autonomia, criando a necessidade de se propor alternativas econômicas e sociais que respondam às urgentes demandas dessa população, além de resgatar a autonomia e a independência (Schmitt; Schweizer, 2017, p. 108). Esse primeiro exemplo de atuação da psicologia em contexto de assistência social demonstra uma possibilidade de atuação que leva em conta a realidade vivenciada pela população em situação de rua. Por meio do presente projeto salientou‑se a importância de acreditar no potencial das pessoas em situação de rua, de modo a valorizar suas competências e habilidades, facilitando a visualização de caminhos de seus interesses, proporcionando mudanças neste ambiente por meio das discussões das temáticas propostas (Schmitt; Schweizer, 2017, p. 110). O segundo exemplo, apresentado por Ruffier et al. (2019), traz o relato de atividades desenvolvidas por duas estudantes estagiárias de psicologia junto a um Centro de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (CCFV) localizado em um município do sul do Brasil, uma unidade referenciada ao Cras local. O CCFV é um equipamento da assistência social que promove encontros e atividades no intuito 77 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA de promover o fortalecimento das famílias e comunidades e prevenir que, futuramente, estejam em situação de risco e vulnerabilidade, sendo complementar ao trabalho realizado com as famílias por meio dos programas Paif e Paefi. A trajetória das estagiárias começa no Cras, porém, com o passar do tempo, elas relatam desmotivação com o trabalho nessa unidade, ao perceberem dificuldades em implementar uma proposta baseada em trabalho territorializado, e elaboram uma proposta de realizar uma intervenção no CCFV. Foi verificada uma grande dificuldade por parte das educadoras contratadas pelo CCFV em definir vínculos com as crianças usuárias do serviço. Dessa forma, as estagiárias realizaram encontros com as crianças para conhecê‑las, assim como suas demandas. No decorrer dos encontros com as crianças, as estagiárias perceberam como os relatos do cotidiano das vidas das crianças traziam marcas próprias das vivências no território. Suas narrativas sobre a vida da comunidade auxiliaram as estagiárias a compreenderem sua complexa trama, a conhecer suas realidades e reconhecer, gradualmente, interesses e demandas que poderiam ser trabalhadas nesse contexto, com o grupo em particular com o qual trabalharam (Ruffier et al., 2019, p. 93). Dessa forma, as estagiárias decidiram, então, desenvolver o trabalho com dois grupos: um com crianças de 6 a 9 anos, e outro de 10 a 12 anos. O primeiro encontro formalizado com os grupos se deu a partir da leitura do livro O pintor de lembranças, de José de Antonio del Cañizo. A partir daí o tema da memória permeou diversas atividades, trazidas de forma diversificada pelas estagiárias. Durante as atividades, as crianças oscilavam entre interesse e dispersão, implicando a necessidade de uma prática criativa e flexível. Foi indispensável para a continuidade do grupo um constante reinventar‑se por parte das estagiárias, movido pelo movimento das crianças, seus desejos e necessidades (Ruffier et al., 2019, p. 95). O brincar foi fundamental nas atividades, possibilitando que os vínculos fossem fortalecidos, a partir da possibilidade de vivências marcadas por prazer, imaginação, criatividade e iniciativa. Alguns dos temas que surgiram nos grupos estavam ligados à questão social de gênero, propiciando a discussão sobre o masculino e o feminino enquanto convenções sociais. Além disso, a vulnerabilidade experienciada no cotidiano apareceu em muitos momentos e de diversas formas nos grupos. As questões de gênero que emergiram também exigiram o redirecionamento do olhar das estagiárias. As diferenciações das masculinidades e feminilidades objetivavam‑se em suas falas, formas de vestir, comportamentos, brincadeiras e criações artísticas 78 Unidade II Conjectura‑se que a situação de vulnerabilidade decorrente dos movimentos migratórios das famílias em busca de melhores condições de vida, o distanciamento de entes queridos, a morte de familiares, pais ausentes devido à longa jornada de trabalho diário, entre outras condições, tenham produzido nessas crianças sentimentos que eram significados, enfrentados e reproduzidos de diferentes formas. Algumas expressavam muita raiva e insatisfação. Outras se mostravam tristes, com pouco interesse e motivação para as atividades. Ainda, havia aquelas que demandavam incessantemente a atenção das estagiárias e outros profissionais do serviço, seja com estripulias, proximidade corporal, pedidos, questionamentos, olhares e falas (Ruffier et al., 2019, p. 95). O trabalho realizado pelas estagiárias mostra uma das muitas possibilidades de atuação da psicologia no contexto de assistência social. A vivência das crianças que frequentavam o CCFV foi ressignificada a partir do trabalho proposto. No artigo de Oliveira et al. (2016), encontramos nosso terceiro exemplo. Nele, temos a atuação prática da psicologia no campo, com relatos e detalhes das atividades desenvolvidas pela equipe de um Cras localizado em um município no estado do Rio Grande do Norte (o artigo não especifica qual município). As atividades relatadas tiveram a participação de uma psicóloga da equipe do Cras e de uma estagiária que cursava a graduação em psicologia. A abordagem teórica utilizada para a análise das práticas se baseia na psicologia comunitária de origem latino‑americana. Conforme descrito no artigo, o Cras mantinha relações e realizava projetos em conjunto com outros equipamentos da comunidade, tais como uma pastoral da criança, uma associação cooperativa de costureiras e um grupo de idosos. A equipe do centro em questão era composta por cinco profissionais: uma coordenadora, uma assistente social, uma psicóloga, uma assistente de serviços gerais e uma estagiária de psicologia. O artigo ressalta e descreve as atividades que envolviam a psicóloga e a estagiária de psicologia, mas é importante ressaltar que diversas dessas atividades tinham o caráter inter e multidisciplinar, contando com a participação de outros profissionais.A primeira atividade descrita é o acolhimento: O acolhimento se caracterizava pela escuta da demanda espontânea que chegava à instituição. Operacionalizava‑se desde a escuta do usuário que chegava em busca de informações gerais, por exemplo, saber onde era realizado o cadastro para inserção no PBF, até denúncias e solicitações de atendimento com a assistente social ou com a psicóloga. A partir do acolhimento, não se identificava apenas a demanda do usuário, mas também se investigava a inserção da família nos programas sociais, os devidos encaminhamentos para outros serviços, caso fosse necessário, e a situação cadastral da família na instituição. O preenchimento de cadastro mostrou‑se instrumento potencial para conhecer as condições materiais de existência das famílias, visto que eram recolhidas suas características socioeconômicas, 79 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA tornando‑se um recurso fundamental para contextualização da demanda trazida pelo usuário. O acolhimento também demandava outras ações da equipe, principalmente no que diz respeito aos encaminhamentos (Oliveira et al., 2016). As autoras ainda destacam a importância da busca ativa (entrar em contato com os usuários de Cras, convidando‑o para comparecer à instituição), que resultava no comparecimento ao Cras, onde era possível o acolhimento. A busca ativa, muitas vezes, incluía o levantamento de dados dos usuários, permitindo saber informações importantes, como o local de residência e quais programas da assistência se beneficiavam. Em alguns casos, eram agendadas visitas domiciliares, sobretudo quando envolviam denúncias em relação a situações de vulnerabilidade, inclusive envolvendo crianças, adolescentes e idosos. Para a Psicologia comunitária, a visita domiciliar é um recurso psicossocial que protege a família mediante situações de vulnerabilidade, tendo como objetivo central potencializar a capacidade de cuidado. Permite ainda ao profissional identificar melhor as demandas e atuar em coerência com as necessidades concretas das famílias (Oliveira et al., 2016, p. 39). Outra atividade importante era a realização de grupos com os usuários do Cras. Foram realizadas sessões em grupo com quatro públicos diferentes: um grupo de idosos (composto em sua maioria por mulheres que já frequentavam o Cras); um grupo de gestantes; um grupo de mulheres que faziam parte de uma associação de costureiras; e um grupo de mães ligadas ao Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), que foram identificadas como estando naquele momento com os vínculos familiares fragilizados. A perspectiva teórico‑técnica dos atendimentos em grupo se embasava na concepção de sujeito da psicologia comunitária, compreendendo a subjetividade como parte de um contexto histórico e social. Ou seja, uma perspectiva que insere o sujeito no processo de historicidade para compreender contextualmente a sua formação humana. Acredita‑se que as temáticas trabalhadas com os grupos de mães, idosos, gestantes e a Associação das Costureiras contribuiu com a incorporação de processos de empoderamento de suas vidas, principalmente em relação à família e à comunidade (Oliveira et al., 2016, p. 41). Outras duas atividades importantes foram a articulação com as redes intersetoriais. A primeira delas foi o desenvolvimento de oficinas que eram aplicadas a públicos diferentes, como: a equipe gestora da educação; os agentes comunitários de saúde; a equipe do Conselho Tutelar e os líderes da Pastoral da Criança. Já a segunda foi a sistematização de informações pertinentes para entender as demandas que chegavam ao Cras. 80 Unidade II 8 OUTRAS ATUAÇÕES DO PSICÓLOGO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS Para além de todas as discussões que trouxemos até aqui, recomendamos, ainda, que sejam lidas todas as referências técnicas presentes no site do Crepop. Até aqui, nosso foco foi a saúde e a assistência social, assim, a seguir, apresentaremos quatro discussões que fazem referência à articulação da psicologia com as políticas públicas. 8.1 Psicologia e políticas públicas: violência e direitos humanos A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um documento que foi produzido pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo estava abalado com os horrores da violência praticada na guerra, principalmente em relação ao holocausto promovido pelo nazismo. A tensão geopolítica estabelecida naquele momento levou os países‑membros da ONU a pensar em ações que promovessem direitos fundamentais a toda a população no planeta, independentemente de onde residissem. Com o objetivo de determinar diretos básicos a todos os seres humanos, a DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos) serve de marco para outros documentos e tratados internacionais subsequentes da ONU, como a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006). A declaração é composta por 30 artigos que estabelecem os direitos fundamentais aos quais todas as pessoas devem ter o acesso garantido de alguma forma. Os artigos versam sobre as liberdades fundamentais e os direitos básicos, e todos os países signatários estão comprometidos, ao assinar esse documento, a garantir seu cumprimento. Embora a criação da DUDH seja um marco essencial para a humanidade e para o direito internacional, a violação de direitos humanos continua sendo uma realidade a ser enfrentada. Os países signatários observam uma série de violações, e a própria ONU tem tido problemas e dificuldades para fiscalizar, receber denúncias e exigir a garantia do cumprimento da declaração. A escalada da violência e descumprimento de diversos dos artigos por parte de muitos Estados‑membros crescem a cada ano. Observa‑se grande deficiência na operacionalização dos direitos humanos mesmo naqueles países que oficialmente já reconheceram as declarações acerca desses direitos promulgadas pela ONU. Até naqueles países que integraram estes princípios normativos em suas próprias constituições, o que é o caso também do Brasil, verificam‑se estas dificuldades, demonstrando‑se, com efeito, fraquezas das instituições responsáveis de fazer vigorar tais princípios na vida social, deficiências estas que, no Brasil, levam esta temática à pauta do dia tanto nas organizações governamentais quanto nas não governamentais e nas universidades (Maluschke; Bucher‑Maluschke; Hermanns, 2004, p. 17). 81 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Dessa forma, verifica‑se a necessidade de abordar essa temática por uma visão interdisciplinar. No âmbito dos direitos humanos, passamos pela questão das políticas públicas, do direito internacional e constitucional, das ciências políticas, das ciências sociais, e no caso das questões relativas à saúde mental e o impacto das violações de direitos para ela, a psicologia, dentre outras ciências e produções científicas relevantes. Se considerarmos os 30 artigos da DUDH,podemos considerar que é possível violar cada um deles. É necessário compreender que, historicamente, a DUDH foi elaborada em um contexto de pós‑guerra e da iminente Guerra Fria. Os países‑membros da ONU, ao se depararem com os horrores do holocausto e dos crimes de guerra, julgaram ser necessária a elaboração de um documento considerado universal, ou seja, que tenha validade para todas as nações, todas as culturas, todas as formas de organização social e todos os povos. Ao mesmo tempo, quando a Guerra Fria entre os países do bloco liderado pelos Estados Unidos e os países liderados pela União Soviética – que se iniciou após o fim da Segunda Guerra Mundial e durou até a década de 1990 – mostrava os riscos de um novo conflito de escala mundial, acirrado pela ameaçade uso de armas nucleares, fez‑se necessário o esforço de se chegar a consensos em favor da paz e da não agressão entre os povos. As necessidades que a DUDH atendia para que se garantisse o acesso aos direitos básicos coletivos e de liberdades individuais foram levantadas e discutidas por representantes dos dois blocos envolvidos na Guerra Fria: o capitalista e o socialista. Dessa forma, ficou evidente que seria necessário um esforço mútuo para que todos garantissem e fiscalizassem as garantias do cumprimento da declaração. No entanto, a disputa imperialista entre os dois blocos levou ao descumprimento de uma série de direitos. As disputas belicosas por domínio de territórios, por si só, já elevam o potencial de violação dos direitos humanos, ao se detectar crimes de guerra e práticas de genocídio. Além disso, as mazelas econômicas provenientes diretamente do conflito armado ou indiretamente pelas disputas de mercados levam à violação dos direitos por levar à escassez de recursos que são necessários para propiciar habitação, saúde, educação, cultura etc. às populações envolvidas nas disputas dos blocos econômicos. Um exemplo claro dessa violação dos direitos humanos envolve os fluxos migratórios forçados, nos quais grandes contingentes populacionais são cruelmente expostos à escolha de viver em meio à guerra ou migrar para um lugar completamente novo e desconhecido. O próprio deslocamento se dá, na maior parte das vezes, em condições de alto risco de morte ou prisão, em que os refugiados enfrentam fome e sede, meios de transporte perigosos, ataques de organizações paramilitares e risco de extradição. Assim, é urgente a construção de uma cultura, de políticas e de uma sociedade que valorize e faça cumprir os direitos humanos. O desenvolvimento de uma cultura de respeito aos direitos humanos no Brasil é uma tarefa complexa que requer o apoio de todas as forças progressistas. Esse processo enfrenta o desafio das grandes desigualdades sociais e também deve considerar os aspectos subjetivos que influenciam a promoção e violação dos direitos humanos. A psicologia tem um papel importante nesse contexto, ao investigar os mecanismos subjetivos que legitimam ou invalidam práticas sociais que afetam os direitos humanos. 82 Unidade II Rosato (2011) diz que, a partir da redemocratização do país, o campo psicológico se ampliou e houve uma ruptura com o que inicialmente foi a proposta da profissão. Já não era mais possível manter uma psicologia individualizante, descontextualizada e a‑histórica. Esse momento político vivenciado no país apresenta‑se como um momento de ruptura para a psicologia ou, pelo menos, permite à profissão o começo de uma longa e fértil revisão de suas propostas de intervenção. Pode‑se dizer, inclusive, que esse novo contexto reforçou a necessidade de uma avaliação da profissão e de seus objetivos, logo, de sua função pública perante a sociedade brasileira. Com a redemocratização do Brasil, a psicologia passou por uma ampliação e ruptura em relação à sua proposta inicial, deixando de ser uma prática individualista e descontextualizada. Esse momento político impulsionou uma revisão profunda da profissão, destacando a necessidade de avaliar seus objetivos e sua função pública na sociedade brasileira (Rosato, 2011, p. 16). Ao adotar a dignidade humana como princípio central, os direitos humanos se aproximam da psicologia, que também visa o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida das pessoas. Essa convergência destaca a similaridade entre os dois campos, pois ambos buscam, de forma direta ou indireta, promover a dignidade humana, o que favorece uma estreita relação entre teoria e prática em ambos. Considerando ainda que o sofrimento humano tem sido um dos principais objetos de estudo e intervenção da Psicologia, infere‑se que frequentemente violações de Direitos Humanos são colocadas aos profissionais, tendo em vista que, muitas vezes, violações vem acompanhadas de sofrimento e adoecimento psíquico. Nessa lógica, fica o questionamento sobre o que foi e tem sido feito pelos profissionais nessas situações de violações? (Rosato, 2011, p. 25). Nos últimos tempos, cresceu no Brasil o clamor pela redução da maioridade penal, especialmente em contextos urbanos, em que acontecimentos cotidianos tornam mais fácil angariar apoio para essa causa e defender punições mais severas. Essa proposta segue a tendência crescente da judicialização e da política de penalização, que contribuem para o aumento do encarceramento no país. No entanto, há estudiosos que afirmam que reduzir a idade penal não resolve a criminalidade, nem diminui a violência, o medo social e a insegurança que afetam os cidadãos, especialmente nas grandes cidades do Brasil. Isso se dá, principalmente, porque a violência se manifesta de diversas formas, como: guerra, tortura, corrupção, preconceito, trabalho infantil, tráfico de drogas e pessoas, violência doméstica, entre outras. Esses fenômenos fazem parte do cotidiano, seja através da mídia, das experiências diretas ou das estatísticas, afetando as vidas das pessoas em várias esferas. De forma a se colocar contra esse crescente da judicialização, o Estatuto da Criança e do Adolescente reflete os avanços das normas internacionais de direitos humanos e tem um caráter sancionatório e educacional. Ele busca responsabilizar o adolescente, reconhecendo sua capacidade de discernimento e considerando a fase de desenvolvimento importante, com mudanças físicas, psíquicas e sociais aceleradas, além da formação de identidade e novas oportunidades de inserção social e produtiva. 83 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Os críticos do ECA alegam que ele é brando com adolescentes infratores, mas ignoram que a legislação está alinhada com normas internacionais e que a redução da maioridade penal em outros países falhou. Além disso, esquecem que a prisão pode tornar os adolescentes mais perigosos e aumentar a reincidência, e que o Brasil é um dos países que mais mata seus jovens, refletindo a gravidade do problema. Adolescentes em situação de vulnerabilidade carregam uma história de perdas e violações de direitos, sendo frequentemente marginalizados e submetidos a violência policial, tortura e prisões. A sociedade os vê como uma ameaça a ser corrigida por medidas punitivas, muitas vezes seletivas e discriminatórias, baseadas em classe social e etnia. As tensões sociais aumentam entre os que defendem punições mais severas e os que se opõem a esse modelo, que reduz a complexidade das questões sociais a uma lógica de punição antecipada, tratando a adolescência como um risco a ser contido. Faz‑se necessário promover um amplo debate sobre a garantia dos direitos humanos e sociais para todos, independentemente de classe, raça, etnia, gênero, entre outros. A redução da maioridade penal deve ser conduzida pelo viés da garantia de direitos, esclarecendo equívocos disseminados por alguns meios de comunicação e grupos sociais que culpam os marcos legais pela impunidade e pelo aumento da violência no país. Ao tratar crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, a resposta ao ato infracional é a aplicação de medidas socioeducativas previstas no ECA, como advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade etc. Essas medidas consideram a capacidade do jovem, as circunstâncias e a gravidade da infração, sem admitir, em nenhum caso, o trabalho forçado. 8.2 Psicologia e políticas públicas voltadas ao uso de álcool e drogas O problema das drogas surgiu recentemente, no século XX, quando passou a ser visto como uma ameaça à sociedade, levando o Estado a adotar políticas de proibição. Substâncias psicoativas foram consideradas prejudiciais à saúde pública e seus usuários criminalizados. A política proibicionista teve início com a Primeira Conferência Internacional do Ópio, em 1912, e foi consolidada pela Convenção das Nações Unidas sobre Entorpecentes, em 1961, quando os países se comprometeram a combatero “flagelo da droga”. Ao longo do século XX, intensificaram‑se as estratégias de controle e proibição de substâncias como maconha, cocaína, heroína e outras drogas. As razões para a proibição envolvem fatores econômicos, políticos e culturais, além de um discurso médico‑científico controverso sobre risco e prazer. Assim, as motivações do proibicionismo vão além da preocupação com a saúde pública, chegando a ser uma forma de promoção de racismo e violência de Estado. O paradigma proibicionista nas estratégias de atenção aos usuários de álcool e outras drogas adota práticas tuteladoras e violadoras de direitos, baseadas no modelo médico‑moral. Esse modelo contraria a Reforma Psiquiátrica Brasileira, reforçando a internação compulsória e o tratamento voltado para a abstinência. A alta exigência dificulta o vínculo entre os usuários e os serviços de saúde, gerando obstáculos no acesso a saúde e outros direitos, especialmente para quem não deseja ou não pode parar de usar drogas. 84 Unidade II O proibicionismo e a redução de danos representam abordagens diferentes para lidar com o uso de drogas. O proibicionismo busca reduzir a oferta e demanda por substâncias psicoativas (SPAs) por meio de ações repressivas e criminalização, enquanto a redução de danos foca em tratar problemas de saúde, sociais e econômicos relacionados ao uso de drogas de forma pragmática, sem julgamentos morais. Além disso, há uma discussão sobre a divisão moral entre drogas prescritas, consideradas essenciais à saúde, e as proibidas, vistas como prejudiciais. O processo de medicalização da sociedade ampliou o uso de psicofármacos, mostrando que a questão das drogas vai além das substâncias proibidas. As drogas lícitas, como álcool e psicofármacos, são as principais responsáveis pelos danos à saúde. Uma pesquisa da Senad revelou que 12,3% da população brasileira tem dependência de álcool. Em 2003, a política pública brasileira passou a coordenar ações contra o álcool, após identificá‑lo como o principal problema de saúde pública, criando a Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas (Pechansky; Duarte; De Boni, 2010). Por muito tempo, a única forma de atenção aos usuários de álcool e outras drogas era a internação em hospitais psiquiátricos ou clínicas privadas, além de iniciativas religiosas e de apoio mútuo. Essas abordagens viam o uso de drogas como uma doença incurável. A partir da década de 1980, com a Política Nacional de DST/Aids e a Reforma Psiquiátrica, surgiram novos dispositivos de cuidado e políticas públicas. Nesse período, predominavam instituições com foco na abstinência, mas também foram criados centros de referência para pesquisa e tratamento. Alguns centros de tratamento e pesquisa foram criados na década de oitenta, ligados a universidades brasileiras, e se tornaram referência para as políticas de álcool e outras drogas. Podemos citar o Centro de Estudos e Terapias ao Abuso de Drogas (CETAD) e, posteriormente, a Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti (ARD‑FC), em Salvador; o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Atenção ao Uso de Drogas (NEPAD), no Rio de Janeiro; o Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (PROAD), em São Paulo; o Centro Mineiro de Toxicomanias (CMT), em Belo Horizonte, e o Centro de Referência para Assessoramento e Educação em Redução de Danos da Escola de Saúde Pública do RS, entre outros (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 30). Os centros de pesquisa foram fundamentais para o desenvolvimento de práticas clínicas e de cuidado para usuários de álcool e outras drogas. Na década de 1990, iniciativas como o Consultório de Rua, em Salvador, ajudaram a aproximar os usuários nas cenas de uso e tornaram‑se políticas públicas de atenção psicossocial. Essas políticas foram essenciais para consolidar estratégias de cuidado e afirmar a cidadania dos usuários, combatendo a discriminação. O movimento da Reforma Psiquiátrica, focado na desinstitucionalização da loucura, demorou a reconhecer a especificidade do álcool e de outras drogas e a necessidade de desenvolver tecnologias de cuidado para esse campo. Como resultado, entrou tardiamente no debate sobre estratégias psicossociais para o uso de substâncias. A falta de uma proposta política coordenada fez com que outros modelos, como as comunidades terapêuticas, ganhassem espaço, combinando assistência médica e apoio religioso. 85 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA As práticas de cuidado na saúde mental ainda refletem fortemente o paradigma da abstinência. O Programa dos Doze Passos, criado pelos grupos de Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, muitas vezes é adotado sem crítica nos serviços de saúde mental. Nas comunidades terapêuticas, a lógica da abstinência e da medicalização predomina, integrando estratégias motivacionais e outras práticas que não são baseadas no conhecimento clínico, ético e político da psicologia. Em 2003, a política do Ministério da Saúde para a atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas adotou o paradigma da redução de danos, promovendo práticas de cuidado alinhadas à Reforma Psiquiátrica e à defesa dos direitos humanos dos usuários de drogas. Embora ainda em fase de experimentação, o campo de atenção psicossocial começava a se estruturar no Brasil, apoiado pelas experiências de centros de referência. Ações como os Caps AD e Consultórios na Rua foram implementadas, fortalecendo a cidadania, autonomia e direitos humanos dos usuários, em articulação com outras políticas públicas de assistência social, moradia, educação e trabalho. A portaria n. 2.488/11, que cria a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), fortalece a capilaridade e a abrangência das ações voltadas para a atenção dos usuários de álcool e outras drogas. Intensifica‑se a articulação da Unidade Básica de Saúde (UBS), junto com a Estratégia de Saúde da Família (ESF), Equipes dos Consultórios na Rua (CnR) com a rede especializada da atenção psicossocial, CAPS‑AD e Unidades de Acolhimento (UAs). Para ampliar as ações de proteção social, o SUAS preconiza os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), além do Centro Pop, voltado para o atendimento especializado à população em situação de rua (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 32). As políticas sobre álcool e outras drogas envolvem diferentes setores públicos, como segurança, saúde, assistência social e educação. O desafio é adotar uma abordagem intersetorial que garanta direitos, superando a lógica reducionista que vê as drogas apenas como doença e ameaça. Essa visão dificulta o acolhimento dos usuários, que enfrentam discriminação, preconceito e exclusão, além de impulsionar práticas como a internação compulsória, observada em grandes cidades brasileiras. Nesse contexto, surge a ideia de redução de danos (RD), uma estratégia que valoriza a autonomia, o diálogo e os direitos dos usuários de substâncias psicoativas, sem julgamentos morais ou práticas punitivas. Ela busca criar um espaço de corresponsabilização e vínculo entre os agentes e os usuários, reconhecendo‑os como sujeitos de direitos e garantindo seu acesso integral às políticas públicas. A RD foca a educação sobre os riscos do uso de drogas e a construção de atenção com o sujeito, e não por ele. A interrupção do uso de substâncias é uma decisão clínica que deve ser feita de forma personalizada, não sendo uma prescrição universal. As estratégias de redução de danos não excluem a abstinência, que deve ser negociada com o usuário, independentemente da substância. Assim, o paradigma da abstinência vai além de uma orientação clínica, envolvendo articulações entre diversos setores, como o jurídico, psiquiátrico e religioso, que impõem essa abordagem de maneira coercitiva. 86 Unidade II A partir de 2003, a política do Ministério da Saúde adotou a RD como estratégia de saúde pública, focando em intervenções parausuários de drogas que, por questões de vulnerabilidade, não desejam parar de usá‑las. Essa abordagem foi reconhecida como uma intervenção importante para ampliar o acesso à saúde para uma população historicamente desassistida. Os modelos de cuidado comunitário, que operam fora do modelo hospitalar e da abstinência como única solução, trouxeram à tona debates sobre liberdade de escolha, responsabilidade social e familiar, direitos dos usuários e o dever do Estado de promover condições para o autocuidado e apoio social. O papel dos psicólogos no paradigma da RD é construído a partir da prática e do posicionamento que adotam nas intervenções com usuários. Eles devem evitar julgamentos ou censuras morais sobre comportamentos relacionados ao uso de substâncias ou condutas sociais. Sua função é acessar usuários muitas vezes marginalizados pela rede de saúde e social, oferecendo aceitação e respeito, o que permite a construção de um vínculo de confiança essencial para o trabalho. A política de atenção ao usuário de álcool e drogas deve ser construída por meio do diálogo entre diversos setores sociais, e não ser definida exclusivamente por especialistas. É importante valorizar o protagonismo dos usuários e ativar as redes de cuidado nos territórios. O usuário de drogas pode não precisar de tratamento especializado, pois pode ter outras demandas clínicas e subjetivas. Assim, o tratamento compulsório não é aceitável, pois o cuidado efetivo depende da autonomia e liberdade do indivíduo para lidar com seu sofrimento. A atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas foca em uma rede psicossocial que prioriza a integralidade, considerando a subjetividade e as relações sociais na atuação profissional. Essa abordagem se distancia da lógica biomédica, rompendo com metodologias que buscam soluções prontas para o sofrimento. Em vez disso, valoriza o território e a comunidade, com ênfase na ética da autonomia e nas relações horizontais na rede de atenção. A rede deve envolver não apenas a saúde, mas também a assistência social, a educação e as entidades comunitárias, especialmente em contextos com crianças e adolescentes. Desse modo, as(os) profissionais da Psicologia compõem, junto com profissionais de outras áreas, as equipes de saúde nos CAPS‑AD, nos Consultórios na/de Rua, na Estratégia de Saúde da Família (ESF), nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Acolhimento (UA), nos Centros de Convivência, além de atuarem nos equipamentos da Assistência Social, nos Projetos de Inclusão Produtiva e de Geração de Trabalho e Renda, nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), entre outros dispositivos da rede (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 48‑49). O SUS, a Reforma Psiquiátrica e o Suas criaram dispositivos de cuidado integral aos usuários de álcool e outras drogas, nos quais diferentes profissionais, incluindo psicólogos, trabalham com foco na defesa dos direitos humanos e na ampliação da autonomia e participação social dos usuários. A equipe multiprofissional adota uma abordagem integrada e multidisciplinar, baseada na clínica ampliada, que rompe com a visão fragmentada de atendimento e coloca o sujeito em seu contexto social e histórico. Essa abordagem valoriza 87 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA a história de vida do indivíduo, dando maior liberdade ao sujeito para discutir temas além de sua patologia, favorecendo sua autonomia, protagonismo e a relação de confiança entre profissional e atendido. O matriciamento é uma estratégia de cuidado colaborativo entre saúde mental e atenção primária, proposta por Campos (1999), que visa a construção conjunta de uma intervenção pedagógica‑terapêutica. Estruturado de forma horizontal, com equipes de referência e apoio matricial, o matriciamento promove novos arranjos organizacionais e uma metodologia de gestão em saúde, fortalecendo a clínica ampliada e a integração entre diferentes saberes e profissões. O apoio matricial é implementado por estratégias como o PTS, interconsulta, consulta conjunta de saúde mental na Atenção Básica, visita domiciliar conjunta e o uso de tecnologias de comunicação. Baseado nos princípios da Reforma Psiquiátrica, esse trabalho visa fortalecer os laços sociais e atender às diversas necessidades dos usuários, desde situações de urgência até o acompanhamento psicossocial, sempre com respeito à autonomia, sem preconceito ou compulsoriedade. A estratégia de redução de danos é central nesse modelo, oferecendo um cuidado ético e direcionado às intervenções com usuários de álcool e outras drogas. O Caps AD, criado pela Portaria n. 336 de 2002, é um centro de cuidado, integrado em rede, destinado a pacientes com transtornos causados pelo uso e dependência de substâncias psicoativas. As atividades disponíveis no CAPS‑AD incluem, como descreve a portaria: A. Atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros); B. Atendimento em grupos (psicoterapia, grupo operativo, atividades de suporte social, entre outras); C. Atendimento em oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível médio; D. Visitas e atendimentos domiciliares; E. Atendimento à família; F. Atividades comunitárias enfocando a integração do dependente químico na comunidade e sua inserção familiar e social; G. Os pacientes assistidos em um turno (04 horas) receberão uma refeição diária; os assistidos em dois turnos (08 horas) receberão duas refeições diárias. H. Atendimento de desintoxicação (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 52‑53). 88 Unidade II Nos Caps AD, os psicólogos realizam atendimentos psicoterápicos individuais e em grupo, além de oficinas terapêuticas, visitas domiciliares e atividades comunitárias focadas na promoção da saúde, com sua gestão também contendo envolvimento de psicólogos. O Caps AD III oferece atenção integral e contínua a pessoas com problemas relacionados ao consumo de álcool, crack e outras drogas, funcionando 24 horas por dia, todos os dias da semana, incluindo fins de semana e feriados. Além das atividades realizadas nos Caps AD, este centro inclui plantões diários, ações de reabilitação psicossocial e fornecimento de refeições diárias. As políticas públicas de saúde visam ampliar a autonomia e promover os direitos humanos, com os psicólogos incentivando o protagonismo de usuários e familiares por meio de atividades de participação e controle social, como assembleias e debates sobre políticas públicas. Na APS os psicólogos atuam de forma intersetorial, considerando o contexto familiar e cultural dos indivíduos; no Nasf, os psicólogos fazem parte de uma equipe que oferece cuidado longitudinal, promovendo ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação. A abordagem interdisciplinar e o foco na realidade territorial garantem um cuidado integral, com ênfase na participação social e no fortalecimento dos espaços comunitários. O Consultório na Rua (CR) é uma estratégia de atendimento a usuários de substâncias psicoativas em situação de rua, com dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Ele funciona de forma intersetorial, articulado com políticas públicas de saúde mental e atenção primária. A equipe, formada de maneira multidisciplinar, inclui profissionais como médicos, psicólogos, assistentes sociais, técnicos de enfermagem e educadores sociais, com foco no desenvolvimento de habilidades dos usuários, ajudando na construção do PTS. A seguir, apresentamos algumas ferramentas metodológicas e de intervenção utilizadas nesse dispositivo: Abertura de campo: a abertura do trabalho de campo é realizada pela equipe técnica do CR, em parceria com organizações, lideranças, equipamentos e serviços presentes no território de atuação. A abertura de campo visa a identificar as potencialidades e principais características do território, identificar os sujeitose grupos atendidos pelo dispositivo de cuidado e apresentar o trabalho a ser desenvolvido. Diário de campo: os membros da equipe técnica do CR utilizam o diário de campo como ferramenta metodológica, visando a mapear as principais questões identificadas no desenvolvimento das ações de saúde. Trabalho de campo: o trabalho de campo consiste em ações de cuidado, prevenção e promoção de saúde com a população usuária de substâncias psicoativas em situação de rua. A atuação de campo é realizada através de diversas estratégias de cuidado e integrada com as demais ações e programas de saúde presentes no território (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 55‑56). 89 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Para além dos Caps AD, há, ainda, os Caps ADi, com serviços psicossociais voltados para crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso e que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. Integrados à Rede de Atenção Psicossocial (Raps), esses serviços foram criados pela Portaria n. 3088/2011 e fortalecem o cuidado e acolhimento dessa população. Sua criação está alinhada à política nacional de atenção a usuários de álcool e drogas e ao Plano Emergencial para Enfrentamento de Ações em Álcool e Drogas (Pead), focando no cuidado da população infantojuvenil. Os Caps ADi, alinhados à Reforma Psiquiátrica e legislações vigentes, oferecem atendimento integral aos sujeitos, considerando‑os além da doença mental e possibilitando o surgimento de subjetividades, problemas, desejos e projetos de crianças e adolescentes com sofrimento psíquico intenso. Dada a recente implantação dos Caps ADi, é importante divulgar e conhecer mais sobre essas experiências por meio de estudos e pesquisas. Observação O Caps é o serviço de saúde mental implementado via SUS, fruto de luta e construção coletiva advindos da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica. O serviço contém as seguintes classificações: • Caps I: atende populações de 20 mil a 70 mil habitantes. • Caps II: atende populações de 70 mil a 200 mil habitantes. • Caps III: atende populações acima de 200 mil habitantes. • Caps: atende crianças e adolescentes com transtornos mentais. • Caps AD II: atende pacientes com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas, como álcool e drogas. • Caps AD III: atende pacientes com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas, como álcool e drogas, funcionando 24 horas por dia. As Unidades de Acolhimento Adulto e Infantojuvenil, criadas pela Portaria n. 121/2012, são serviços residenciais temporários que oferecem acolhimento voluntário e cuidados contínuos 24 horas para pessoas com necessidades decorrentes do uso de substâncias, como crack, álcool e outras drogas, em situação de vulnerabilidade social e familiar. Elas visam reduzir danos, apoiar a construção de novos projetos de vida e fortalecer os PTS. Os serviços prestados têm duas modalidades: Unidade de Acolhimento Adulto (UAA), para maiores de 18 anos, e Unidade de Acolhimento Infantojuvenil (UAI), para crianças e adolescentes, ambas integradas à Raps. 90 Unidade II O Cras é uma unidade pública voltada para a proteção social básica, localizada em áreas de pobreza e vulnerabilidade social. Seu objetivo é prevenir situações de risco e vulnerabilidade, promovendo o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. O Cras oferece serviços como Benefícios de Prestação Continuada (BPC), Paif, e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Já o Creas atende famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social, como abuso, abandono e uso de substâncias psicoativas. Ambos os serviços têm equipes compostas por psicólogos e assistentes sociais que atuam para fortalecer a inserção social e os vínculos familiares. Os psicólogos desempenham um papel essencial na articulação entre diferentes setores da rede de saúde, fortalecendo parcerias e ações coletivas para garantir a integralidade do cuidado. Isso promove a participação cidadã e contribui para o desenvolvimento da autonomia dos indivíduos, tornando‑os mais críticos e protagonistas de suas próprias histórias. As atividades dos psicólogos no Cras, Caps, CR e na rede de saúde devem focar na atenção e prevenção de riscos e vulnerabilidades, além de promover e fortalecer a autonomia dos indivíduos, por meio do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Como já colocado, a questão do uso de drogas é permeada por determinantes históricos, sociais e culturais, não podendo ser reduzida a uma classificação ou a um diagnóstico patológico a ser tratado. Por outro lado, não se pode negar que o uso abusivo de álcool e outras drogas, ao colocar a substância no controle da vida do indivíduo, cria uma condição de assujeitamento e coisificação, provocando intenso sofrimento psíquico, o que gera a necessidade e impulsiona a busca por cuidado. É nesse indivíduo que vamos focar ao nos referir ao cuidado psicológico como prática emancipatória (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 65). A perspectiva emancipatória de garantia de direitos deve basear‑se na compreensão de que a subjetividade é mutável e contextualizada, sendo influenciada pelas relações sociais na família, comunidade e sociedade. O uso de drogas, por si só, não define o desenvolvimento do indivíduo, mas pode gerar modos de vida diferenciados. A compreensão do uso abusivo de drogas envolve analisar as relações e determinantes sociais que influenciam a vida do indivíduo, como família, escola e comunidade. 8.3 Psicologia, políticas públicas e educação A escola, ao organizar seu cotidiano, estabelece normas de comportamento, define o que é certo e errado, e classifica quem sabe ou não, consolidando valores e padrões de conduta. Ao mesmo tempo, cria o que foge dessas normas, formando o oposto e a desordem, seguindo uma ideologia que atende aos interesses do capital. No entanto, raramente se questiona esse processo ou se reflete sobre as instituições envolvidas nas relações escolares. As equipes educacionais frequentemente trabalham de forma acelerada, sem compreender completamente as dinâmicas e dificuldades, o que leva a uma crescente impotência para professores, estudantes, famílias e psicólogos (Conselho Federal de Psicologia, 2019c). 91 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Quando afirmamos que o psicólogo busca melhorar a saúde mental e as condições de trabalho, estamos nos referindo ao acolhimento das imprevisibilidades e ao esforço de analisar coletivamente o que ocorre no cotidiano da escola. O objetivo é criar um espaço de reflexão mais lento e criativo, que ajude a lidar com o desconhecido e com os problemas que surgem quando algo foge às expectativas e à ordem estabelecida. O papel do psicólogo na escola não se baseia em fornecer soluções rápidas para problemas, mas sim em contribuir para a criação de redes de apoio focadas nas potencialidades dos indivíduos, no acompanhamento do desenvolvimento das crianças e em ações preventivas. A psicologia na escola busca evitar uma posição hierárquica entre educadores, estudantes e familiares, promovendo uma relação mais colaborativa. O objetivo não é oferecer respostas definitivas, mas sim estimular a reflexão da equipe sobre o trabalho realizado no cotidiano escolar. Mudar a abordagem na escola exige uma transição do foco nas soluções eficientes para a problematização, estimulando novas perguntas e uma formação que envolva todos, incluindo o psicólogo. O trabalho deve ser coletivo, com a participação de toda a escola, valorizando o professor, ouvindo os pais e fortalecendo a equipe pedagógica. Para isso, é necessário ampliar a cultura educacional, entender as questões da formação e estar preparado para compreender e vivenciar o cotidiano escolar. O cotidiano de trabalho envolve certo uso do tempo, do currículo, das relações e das histórias que aproximam e distanciam escola e comunidade. A construção de narrativas abre espaço para a produção de conhecimento, aprofundamento teórico‑metodológicosobre o que se vive a partir do que se faz. As narrativas podem tomar força, deslocando dos casos problemas a histórias de vida. Porém, a lógica médica que nos atravessa vem delimitando papéis e funções na efetivação de medidas para as velhas urgências e que bloqueiam o pensamento, pois requer outro tempo de ação. O que vemos no campo de trabalho na atualidade é que, diante das urgências e da falta de tempo para conversar, as cenas se repetem e a rotina tem sido passar o problema adiante (encaminhamento), culpabilizar (a si próprio, às crianças, aos familiares, ao sistema), lamentar‑se (sofrer, adoecer, licenciar‑se). Quando a potência de interferir é fragilizada traz como efeito a perda do sentido das práticas e a pouca implicação com o processo de trabalho (Conselho Federal de Psicologia, 2019c, p. 39‑40). Os desafios surgem de forma inesperada, entre saberes e experiências que se revelam ao longo da ação. A rotina é substituída pela imprevisibilidade, acolhendo o imprevisto. Sem controvérsias, não há como questionar as instituições em questão. Somos diversos e vivemos experiências únicas, e o desafio está em criar um novo uso do tempo e espaço, longe da ideia de competência ligada à performance e produtividade. Esse espaço de experimentação entre ensinar e aprender abre possibilidades para novas ideias e a criação de outros mundos. 92 Unidade II Para melhorar a qualidade da educação, nossas ações devem focar em disponibilizar o conhecimento específico da psicologia para questões educacionais, priorizando o fortalecimento de uma gestão educacional democrática que envolva todos os membros da comunidade escolar e implemente formas eficazes de acompanhamento do processo de escolarização. Esse conhecimento se baseia na compreensão da dimensão subjetiva do processo de ensino‑aprendizagem, abordando temas como desenvolvimento, relações afetivas, motivação, comportamento, sentimentos, socialização e identidades, com o objetivo de valorizar os sujeitos envolvidos nas relações escolares. A escola tem como objetivo socializar conhecimentos e proporcionar o acesso ao saber, abordando questões como classe, cultura, religião, gênero e etnia. O psicólogo, nesse contexto, pode atuar tanto para transformar quanto para manter a sociedade como ela é. Ao compreender as diversas dimensões da atividade educacional, o psicólogo pode direcionar suas intervenções para áreas específicas, trabalhando de forma coletiva com toda a comunidade escolar, incluindo professores, pais, funcionários e estudantes, sempre visando o bem de todos. Ao elaborar planos de intervenção no contexto escolar, o psicólogo deve entender a organização da escola, considerando dados como o número de estudantes, turmas, professores, índices de aprovação, reprovação e evasão, serviços prestados, o perfil socioeconômico da comunidade escolar e a história da escola. Além disso, é fundamental conhecer a equipe docente, suas condições de trabalho e a metodologia pedagógica utilizada. O psicólogo, ao participar do cotidiano escolar, colabora com as equipes para criar experiências enriquecedoras, contribuindo para o planejamento, desenvolvimento e a avaliação de intervenções eficazes. O conhecimento da psicologia sobre os processos de ensino e aprendizagem evoluiu historicamente, desde abordagens higienistas até teorias que veem esse processo como resultado de múltiplas influências, como as pedagógicas, institucionais, relacionais, políticas, culturais e econômicas. As práticas de intervenção na educação, portanto, são baseadas nessas diferentes concepções. O processo de ensino e aprendizagem, de uma perspectiva crítica, é entendido como resultado das práticas sociais e escolares que o influenciam. A psicologia avança na compreensão desse processo ao analisá‑lo com base nas condições histórico‑sociais. A superação das desigualdades na educação depende de ações que envolvam diferentes aspectos da escolarização, como relações familiares, práticas institucionais e contexto social. A análise das práticas escolares deve focar nas relações institucionais e no contexto social e histórico. Para trabalhar com estudantes, a psicologia deve usar o conhecimento científico para ajudar os alunos a descobrir seu potencial, considerando formas culturais de expressão, e, ao avaliar dificuldades, é importante focar nas possibilidades de desenvolvimento, não apenas nas limitações. O psicólogo pode trabalhar com pais, familiares ou responsáveis para refletir sobre o papel da escola e da família, abordando as questões que afetam a vida de pais e filhos. Ao discutir coletivamente as dificuldades escolares, é possível gerar novas ideias e ações que favoreçam uma prática compartilhada e melhorem o processo de ensino e aprendizagem. 93 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Os psicólogos podem colaborar com educadores para compreender os processos de ensino e aprendizagem em suas dimensões subjetivas e objetivas, tanto coletivas quanto singulares. Podem ajudar a superar explicações que culpabilizam estudantes, familiares ou professores, agindo como mediadores e fortalecendo o papel do professor como principal agente do processo educacional. A chave é estabelecer parcerias com os docentes e valorizar seu trabalho. O psicólogo pode atuar na formação contínua de educadores, abordando temas como desenvolvimento, aprendizagem e dimensões que constituem os sujeitos, como classe social, gênero, sexualidades, relações étnico‑raciais, mídias e tecnologias. O objetivo é fornecer subsídios teóricos para ajudar os professores a compreender como os estudantes aprendem, aprofundando o entendimento sobre as relações entre a subjetividade humana, a formação do psiquismo e o processo educacional. Um dos principais obstáculos para uma atuação crítica do psicólogo em contextos educacionais inclusivos é a formação inicial, que aborda de forma superficial a deficiência e a inclusão escolar, além de focar principalmente na psicologia clínica. A falta de informações sobre esses temas dificulta a intervenção eficaz do psicólogo no processo de inclusão de estudantes com deficiências. A prática psicológica em contextos de inclusão escolar ainda segue o modelo antigo, no qual crianças e jovens com deficiência eram encaminhados para escolas especiais. A atuação envolve apenas a realização de anamnese e avaliação do nível intelectual e emocional, gerando laudos que destacam o que os estudantes não conseguem fazer devido às suas deficiências, sem oferecer informações que ajudem os professores. Isso perpetua o preconceito e as práticas de exclusão nas relações entre professores, estudantes e equipe escolar. Para combater essa situação, é essencial que o psicólogo promova grupos de trabalho com todos os envolvidos, abordando o preconceito e refletindo sobre barreiras atitudinais e arquitetônicas no ambiente escolar. O trabalho do psicólogo no contexto da inclusão escolar deve promover discussões sobre o preconceito e garantir o direito de pertencimento do estudante com deficiência à escola regular. Isso pode criar um ambiente que desafie o estudante a desenvolver suas potencialidades e superar a deficiência. O foco do psicólogo será fortalecer as capacidades do estudante para enfrentar suas dificuldades e buscar uma posição social mais valorizada dentro da comunidade escolar. Observação Em 2019, foi promulgada a Lei n. 13.935, que determina que é dever do poder público assegurar atendimento psicológico e socioassistencial aos alunos da rede pública de Educação Básica. Na esteira das reflexões sobre o preconceito e a “normalização”, é mister para o profissional da psicologia se familiarizar com o debate sobre a “medicalização” (Conselho Federal de Psicologia, 2015). A chamada medicalização é o processo de reduzir questões sociais complexas e culturais a uma explicação simplificada, vinculando dificuldades de adaptação às normas sociais a determinismos orgânicos, tratando‑as como doenças. 94 Unidade II A medicalizaçãolugar importante para o profissional psicólogo, não sem se embasar na mesma epistemologia da “neutralidade científica”, ou seja, descontextualizante. O pensamento crítico a esse processo, que se deu principalmente na primeira metade do século XX até os anos 1970, começa a ganhar força como proposta alternativa a práticas e pensamentos individualizantes. A história da psicologia comunitária no Brasil parte da percepção de que, em primeiro lugar, o contexto sócio‑histórico é parte constituinte dos processos psicológicos e, em segundo lugar, a visão da “normalidade” individualista leva ao reforço de práticas sociais ligadas à desigualdade social, ao impedimento de participação política e à produção de estigmas e preconceitos. É importante ressaltar que o desenvolvimento profissional da psicologia no Brasil, a partir da regulamentação da profissão, se dá concomitantemente ao regime ditatorial militar, que teve seu início com o golpe de 1964. Dessa forma, o regime repressor valida e reafirma as políticas sociais tecnocráticas e autoritárias que individualizam os processos de desigualdade social (isso quando o panorama não era de total omissão em relação às políticas sociais), despolitizando o debate, ao mesmo tempo que os movimentos de resistência se intensificam, inclusive em relação às propostas de políticas sociais e ao campo das ciências de teor crítico. 47 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA A aproximação de setores científico‑acadêmicos com movimentos sociais populares faz parte de ondas de resistência ao regime opressor e violento. “A psicologia comunitária no Brasil trouxe a articulação entre uma concepção sócio‑histórica de subjetividade e uma prática emancipadora do sujeito” (Gonçalves, 2010, p. 92). A crítica à neutralidade científica trouxe possibilidades de perspectiva de produção de novos conhecimentos (e novas formas de se produzir o conhecimento científico) e novas práticas, quebrando paradigmas de instituições conservadoras. A ideia de participação popular como forma de promoção de autonomia, de emancipação e até de saúde mental colocou em perspectiva o crescimento de uma psicologia comunitária crítica ao modelo psicológico anteriormente hegemônico. Acentua‑se que a ideia de subjetividade como conceito sócio‑histórico dentro da psicologia se desenvolve entre os anos 1970 e 1980, ganhando força à medida que a ciência psicológica foi quebrando paradigmas, levando em conta cada vez mais os processos grupais e psicoinstitucionais como objetos de estudo e intervenção. Também com o crescimento dos movimentos sociais e o processo político de redemocratização na década de 1980 no Brasil, a visão que se tem dos processos psicológicos diretamente ligados a propostas de políticas sociais ganha força e protagonismo. O desenvolvimento teórico‑metodológico da psicologia a partir da década de 1980 passa a ser marcado pelo espírito crítico em relação à compartimentalização dos objetos de estudo e dos campos de atuação. A psicologia comunitária, a psicologia escolar crítica e a atuação na saúde mental em direção à luta antimanicomial são exemplos de como a ciência psicológica passa a rever suas teorias e práticas e, ao mesmo tempo, essa revisão aproxima a psicologia das discussões sobre políticas públicas. No entanto, algumas questões limitantes se colocam a partir daí. No campo das comunidades pobres, como seria possível pensar em subjetividade e psiquismo em relação às populações que passam fome, que sofrem com o desemprego e com a violência estatal? No campo da educação, qual seria o papel da psicologia em um contexto escolar preconceituoso, no qual a criança seria um porta‑voz de políticas de descaso e abandono? Quais seriam alternativas a um modelo de saúde mental aprisionante, que colocava o paciente como uma ameaça à sociedade, estigmatizando‑o, e não se pensava nos seus direitos e na sua cidadania? Questões como essas vão moldando uma nova forma de se fazer ciência e de se construir práticas profissionais. É dessa maneira que a Psicologia começa a se inserir de outra forma no campo social, uma forma crítica ao que predominava. Evidentemente, tais perspectivas não são as únicas nem são hegemônicas. A psicologia elitista, adaptadora, calcada em um saber naturalizador da realidade e em uma formação tecnicista, desvinculada da nossa realidade e distante das políticas públicas, persistia e persiste ainda hoje (Gonçalves, 2010, p. 97). Dado o panorama de embate político no que se refere à construção da psicologia no campo das políticas públicas, com o avanço do movimento crítico, mas não sem resistência daqueles que adotavam uma visão supostamente neutra, pode‑se fazer uma análise histórica de uma aproximação cada vez maior da psicologia com o campo social. 48 Unidade II Com a Constituição Cidadã de 1988, a previsão de garantias e promoção dos direitos sociais traz a psicologia para um lugar importante no debate das políticas públicas. Pesquisas e práticas que abordam a importância psicossocial da cidadania crescem em número e em qualidade crítica. A democratização das instituições entra na psicologia como valor não apenas político, mas também científico e profissional. As instituições que regulam a profissão e os centros de pesquisa passam a se preocupar com um fazer institucional democrático, o que marca não apenas uma nova forma de se fazer política, mas também o direcionamento do pensamento científico para as relações sociais pautadas por igualdade, justiça e cidadania. Ou seja, era mister pensar e considerar as práticas psicológicas em seu contexto mais amplo e propor novas formas de relações sociais que trouxessem valores democráticos, não apenas nas instituições que eram objetos de análise da psicologia (escola, manicômio, empresa, comunidade etc.), mas nas próprias instituições que regulamentavam a psicologia. Dessa forma, instituições como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP), o Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira e diversas entidades e associações ligadas à prática profissional e científica (por exemplo, a Associação Brasileira de Psicologia Social, Abrapso, que teve papel importante nesse processo desde o início da década de 1980) passam a promover debates e determinar diretrizes para a profissão que buscavam não somente uma constante avaliação crítica da profissão, mas também dar maior visibilidade à categoria. O avanço de tais discussões gerou um marco importante para a psicologia. Foi criado o slogan “Psicologia e Compromisso Social” e, a partir disso, a ideia de que a psicologia tem que pautar suas práticas pelo compromisso social se difunde, se tornando um balizador para a categoria profissional desde a graduação. Nesse processo, dois eixos foram se consolidando como referências para a discussão sobre os rumos da psicologia em sua inserção social e como referência para o Projeto do Compromisso Social: a análise constante de práticas e saberes pelo viés do respeito aos direitos humanos; e a defesa da presença da psicologia nas políticas públicas (Gonçalves, 2010, p. 100). A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi outro ponto de virada nas discussões sobre as diretrizes para a prática psicológica, sendo um documento que traz valores fundamentais, além de ser um documento que pauta os valores da Constituição Federal Brasileira. É a partir desse momento que a psicologia passa a mergulhar cada vez mais fundo no campo das políticas públicas. A defesa dos direitos humanos nos fala de um tipo de sociedade que se quer. A defesa de políticas públicas nos fala do compromisso com a construção de uma sociedade democrática e que respeita os direitos sociais. Essa perspectiva é a que se coloca para a psicologia como ciência e profissão no projeto denominado “Compromisso Social”, formulando e reformulando, a cada momento, seu conteúdo (Gonçalves, 2010, p. 101). 49 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA 5.2 Psicologia, subjetividade e políticasno contexto educacional reduz dificuldades e problemas sociais, como o adoecimento dos professores ou dificuldades de aprendizagem, a transtornos ou doenças, como o burnout ou o transtorno opositor desafiador, sem questionar as condições estruturais da educação e da sociedade. Essa abordagem simplifica questões complexas, centrando‑se em distúrbios orgânicos e desconsiderando fatores sociais e educativos. Tome‑se o exemplo da dislexia: tudo o que se poderia problematizar sobre leitura e escrita como representação social da linguagem humana e enquanto construção simbólica (portanto, dependente de mediação) é reduzido a uma suposta “doença neurológica” contra a qual pouco se pode fazer. O que nem todos sabem é que existe, na própria comunidade médica, uma enorme polêmica e um dissenso muito sério em torno deste suposto distúrbio neurológico, várias vezes renomeado e frágil enquanto entidade nosológica nos termos da racionalidade médica e nos termos do rigor que se espera da ciência médica (Conselho Federal de Psicologia, 2015, p. 11‑12). Os processos de medicalização criam doenças para justificar o uso de medicamentos, impulsionando o mercado farmacêutico. A relação entre a indústria e a produção de diagnósticos e tratamentos, baseados nessa lógica, muitas vezes ignora questões éticas e verdadeiras necessidades de saúde. Uma forma de combater a medicalização é fortalecer políticas públicas na educação, por meio de objetivos, decisões governamentais e ações coordenadas, garantindo que crianças e jovens não sejam influenciados pela lógica medicalizante. O tema das políticas públicas está diretamente relacionado aos sistemas de saúde e educação. No entanto, no Brasil, a precarização dos serviços públicos afeta o acesso da população a direitos básicos, como saúde e educação, direitos garantidos pelo ECA, direitos estes que têm sido negados pela crescente medicalização. Dessa forma, a crítica ao sistema educacional deve considerar a realidade concreta das escolas e o papel dos indivíduos envolvidos. Embora o sistema apresente obstáculos, a escola, como um espaço de contradição, pode ser um ambiente fértil para a resistência e para a emergência de novas vozes e práticas. 8.4 Movimentos sociais e a construção de políticas públicas: psicologia e diversidade sexual Estudos contemporâneos apontam que a sexualidade não é determinada por instintos ou uma essência fixa, mas, sim, por experiências históricas, sociais e coletivas, moldadas por contextos culturais. Ela é entendida como uma produção de subjetividade, que é influenciada pelas condições históricas em que se desenvolve. A subjetividade deixa de ser vista como algo interno e psicológico, passando a ser entendida como algo complexo, formado por diversos fatores linguísticos, sociais, culturais, legais, institucionais e midiáticos. 95 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA A produção de subjetividade abrange diversas identidades e expressões de sexualidade e gênero, como heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis etc. Contudo, perguntas sobre a identidade de pessoas LGBTQIAPN+ são comuns, enquanto raramente se questiona por que alguém se torna heterossexual ou cisgênero. Isso reflete, como apontam os movimentos das lutas identitárias, a lógica cis‑heteronormativa, que considera a heterossexualidade e a cisgeneridade como normas universais e legítimas, marginalizando outras formas de identidade e expressão. Para autores ligados aos estudos de gênero, a cis‑heteronormatividade se manifesta desde o nascimento, quando o sexo do bebê é atribuído, produzindo uma identidade de gênero baseada em características físicas, como os órgãos genitais. Essa produção de masculinidade e feminilidade se estende a escolhas de cores, brinquedos, roupas e expectativas sobre comportamentos e orientações sexuais futuras. A sociedade, estruturada em torno dessa norma, é reforçada por instituições como família, escola, igreja e mídia, que marginalizam orientações sexuais que fogem do padrão heterossexual. Esse processo resulta na patologização de expressões de sexualidade e gênero não hegemônicas, tratando‑as como “anormais”. Embora a psicologia tenha historicamente contribuído para essa patologização, atualmente, ela tem se posicionado contra essa abordagem normalizadora, buscando apoiar as identidades de gênero e sexualidades não convencionais, como demonstrado nas referências técnicas para a atuação de psicólogos em políticas públicas para a população LGBTQIAPN+ (Conselho Federal de Psicologia, 2023). O direito ao pleno exercício da sexualidade e à autodeterminação de gênero é parte fundamental da saúde mental. O profissional de psicologia deve compreender a produção social das expressões de sexualidade e gênero, entendendo que as orientações sexuais e identidades de gênero não são escolhas individuais simples, mas resultam de fatores sociais e contextuais. O que significa a sigla LGBTQIAPN+? É importante que todos saibam, inclusive profissionais da psicologia, o que cada uma dessas letras significa: • L — Lésbicas: mulheres que sentem atração sexual e afetiva por outras mulheres. • G — Gay: homens que sentem atração sexual e afetiva por outros homens. • B — Bissexuais: pessoas que sentem atração sexual e afetiva por homens e mulheres. • T — Transexuais: pessoas que assumem o gênero oposto ao de seu nascimento. Uma identidade ligada ao psicológico, e não ao físico, pois nestes casos pode ou não haver mudança fisiológica para adequação. • Q — Queer: termo que foi usado como uma ofensa para a comunidade LGBTQIAPN+, no entanto, as pessoas do grupo se apropriaram dele e, hoje, é utilizado como uma forma de designar pessoas que não se encaixam na heterocisnormatividade, a imposição compulsória da heterossexualidade e da cisgeneridade. 96 Unidade II • I — Intersexo: pessoas que não se adequam à forma binária (feminino e masculino) de nascença. Ou seja, seus genitais, hormônios etc. não se encaixam na forma típica de masculino e feminino. • A — Assexual: pessoas que não têm interesse sexual. Por vezes, esse grupo pode, também, ser arromântico, ou seja, não ter relacionamentos românticos com outras pessoas. • P — Pansexual: pessoas que desenvolvem atração física, amor e desejo sexual por outras pessoas independentemente de sua identidade de gênero. • N — Não binário: pessoas que não se identificam com nenhum ou com vários gêneros. • +: o símbolo serve para abranger as demais pessoas da bandeira e a pluralidade de orientações sexuais e variações de gênero. Os psicólogos devem acolher o sofrimento psíquico de pessoas LGBTQIAPN+, que muitas vezes enfrentam angústias devido à não aceitação social de suas orientações sexuais e identidades de gênero. A LGBTQIA+fobia, como outras formas de preconceito, surge da tentativa de desumanizar o “outro” que é visto como contrário à norma. Esse preconceito é alimentado pela hierarquização das sexualidades, com a heterossexualidade sendo considerada o padrão. Pessoas que desafiam essa norma, como homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis etc., sofrem com a marginalização imposta pela cis‑heteronormatividade. Desse modo, o sofrimento psíquico não é fruto das orientações sexuais ou das identidades de gênero em si, mas sim da LGBTQIA+fobia estrutural que as qualificam como expressões anormais ou patológicas. Ter dimensão da extensão social do sofrimento psíquico de pessoas não heterossexuais, não cisgêneras e não binárias é muito importante para a atuação da(o) profissional de Psicologia, principalmente em um momento em que há uma demanda por terapias de conversão sexual, como veremos a seguir. “Não há cura para o que não é doença”, afirma categoricamente uma Psicologia conectada com os Direitos Humanos (Conselho Federal de Psicologia, 2023, p. 35‑36). O sofrimento psíquico não é visto como um problema interno ou individual, mas como resultado de uma rede complexa de fatores ambientais, políticos, tecnológicos e socioculturais. Por exemplo,ao atender uma mulher lésbica que sofre preconceito familiar, o profissional de psicologia deve entender esse sofrimento como fruto de questões históricas, políticas e sociais, considerando o contexto em que a pessoa vive. Assim, a psicologia aborda tanto as condições subjetivas do indivíduo quanto os aspectos sociais e históricos que moldam os modos de ser. A psicologia deve adotar a perspectiva da interseccionalidade, um conceito desenvolvido por feministas negras, para analisar as múltiplas formas de opressão que afetam as pessoas, como raça, classe social, sexualidade e geração. A interseccionalidade ajuda a entender como diferentes formas de discriminação, como racismo, sexismo e classismo, se cruzam e afetam de maneira desigual as mulheres e outras pessoas. Aplicando essa abordagem, a psicologia pode compreender melhor o sofrimento psíquico de pessoas LGBTQIAPN+, considerando não apenas sua orientação sexual ou identidade de 97 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA gênero, mas também outras dimensões como classe, raça, idade e deficiência. Esse olhar interseccional permite uma compreensão mais ampla das experiências vividas, sem patologizar as diversas expressões de sexualidade e gênero. O atendimento psicológico à população LGBTQIAPN+ deve focar no acolhimento do sofrimento do indivíduo, fortalecendo sua identidade de gênero e/ou orientação sexual. Esse atendimento deve também promover reflexões e intervenções sobre aspectos que impactam a saúde dessa população, considerando as questões específicas que afetam seu bem‑estar, tais como: – Diminuição da autoestima por meio da internalização do estigma quanto ao que representa ser LGBTQIA+; – Ansiedade ocasionada pelo medo e pela expectativa de rejeição decorrente da LGBTQIA+fobia; Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas, Psicólogos e Psicólogues em Políticas Públicas para População LGBTQIA+ Tentativa de suicídio, depressão, transtornos alimentares e angústias das mais diversas formas, provocados na população transexual e travesti não apenas pelo não pertencimento ao gênero compulsoriamente atribuído no nascimento, mas também pelas condições de vulnerabilidade social; – Exposição às mais diversas formas de violências (psicológica, física, sexual, moral) vivenciadas diante da sociedade LGBTQIAfóbica; – Dificuldade de acesso aos serviços de saúde/educação/cultura/lazer diante dos processos de exclusão e preconceitos vivenciados; – Constrangimentos e sofrimento psíquico vivenciado por pessoas transexuais e travestis diante da dificuldade em realizar a retificação de nome e/ou gênero no registro civil, caso o desejem (o fato da retificação ser realizada desde 2018 no cartório não é sinônimo de ausência de burocracia e outros obstáculos); – No caso das pessoas intersexo, dificuldade de garantir a autonomia para determinação dos cuidados ao corpo que não se encaixa no binarismo; […] Dois aspectos importantes ao mencionar os exemplos anteriores se fazem necessários apontar. Primeiro, considerar as questões de antes possibilitam que psicólogas, psicólogos e psicólogues estejam atentas(os/es) às especificidades de algumas demandas apresentadas com frequência pela população LGBTQIA+ nos serviços. Segundo, ao apontar tais exemplos, não se pretende limitar as vivências das pessoas LGBTQIA+ a sofrimento e dores, pois são corpos que têm potência, resistem e persistem em viver apesar da estrutura LGBTQIA+fóbica na qual estamos inseridos (Conselho Federal de Psicologia, 2023, p. 85‑86). 98 Unidade II Pessoas LGBTQIAPN+ devem ter acesso a toda a rede de serviços disponível para a população em geral, incluindo os serviços psicológicos. No entanto, devido às violações e violências específicas que esse grupo enfrenta, é necessário criar serviços especializados para lidar com essas questões. A psicologia deve estar inserida em serviços que tratam da violação de direitos humanos, garantia de cidadania, acolhimento de violências na saúde e assistência social, além de serviços específicos como ambulatórios LGBTQIAPN+ e os procedimentos transexualizadores no SUS. Um aspecto importante para o acesso e desenvolvimento de tais políticas públicas, de acordo com Ferreira e Aguinsky (2013), é o papel dos movimentos sociais. Na contemporaneidade, os movimentos sociais enfrentam dificuldades para manter sua influência, especialmente a partir da década de 1990, quando os movimentos passaram a atuar como parceiros do Estado, enfraquecendo sua postura combativa. Esse processo foi intensificado nos movimentos sociais de gênero e sexualidade, que lidam com temas marginalizados e com pouca atenção estatal. Além disso, os movimentos enfrentam crescente resistência de grupos religiosos e da bancada evangélica, que disputam o espaço político, especialmente em questões como orientação sexual, empoderamento feminino e direitos reprodutivos. Os movimentos sociais são formas de enfrentamento das contradições sociais, surgindo como reações coletivas a bloqueios ou afrontas aos interesses de um grupo. No caso dos movimentos de gênero e diversidade sexual, o foco está nas particularidades de grupos discriminados, em vez de adotar uma abordagem universal. No campo das políticas públicas, os movimentos sociais de gênero e sexualidade enfrentam desafios ainda mais complexos. Embora tenham conquistado avanços importantes, como o direito à união estável para homossexuais, a Lei Maria da Penha e o direito à cirurgia de transgenitalização no SUS, essa visibilidade muitas vezes vem acompanhada de dois vieses problemáticos: a vitimização das identidades e a criminalização de outras. Por exemplo, o movimento LGBTQIAPN+ conquista financiamento para projetos de prevenção à Aids, ao mesmo tempo que luta para desvincular sua população do estigma da doença. O caso da epidemia de HIV/Aids revela um paradoxo, pois ao mesmo tempo que a epidemia trouxe visibilidade à condição homossexual, também a estigmatizou. A população LGBTQIAPN+, especialmente os homens gays, foi fortemente associada ao HIV devido ao estigma da promiscuidade e à ideia de que esses grupos tinham mais acesso a viagens internacionais, onde ocorreram os primeiros casos de transmissão. Isso gerou uma conexão direta entre o HIV e a homossexualidade, intensificando a discriminação. A associação do HIV/Aids aos movimentos de diversidade sexual e de gênero continua até hoje, com esses movimentos recebendo financiamento para projetos de prevenção. No entanto, essa relação revela contradições, pois, embora os homens gays e bissexuais sejam de fato vulneráveis à epidemia, o foco nos financiamentos para prevenção muitas vezes negligencia questões mais amplas de cidadania e acesso aos serviços de saúde. Isso cria uma dinâmica de visibilidade e invisibilidade perversa, na qual os movimentos acabam utilizando estratégias de autovitimização para garantir sua sobrevivência social. 99 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA A criação de políticas públicas é uma bandeira central dos movimentos sociais de gênero e sexualidade. A partir da Constituição de 1988, começam a ser reconhecidas as desigualdades sociais, visando à distribuição igualitária dos direitos. As primeiras políticas públicas no Brasil focaram na valorização das culturas negra e indígena, e na igualdade entre homens e mulheres. A diversidade sexual, no entanto, foi o último tema a ser incluído na agenda antidiscriminatória com a fundação da Frente Parlamentar Mista Pela Livre Expressão Sexual em 2003 e o Programa Brasil Sem Homofobia em 2004, as primeiras ações do governo nacional voltadas para essa população. Os movimentos sociais de gênero e sexualidade enfrentam a “perversidade” em sua visibilidade política, relacionada ao papel das identidades que escolhem assumir, muitas vezes acolhendo ou excluindo sujeitos conforme se enquadram nessas identidades. Cabe ressaltar que assumir uma identidade, em geral, desafia o status quo, o que é importante para a pluralidade do debate. Saiba maisPara entender melhor o assunto estudado, leia: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Referências técnicas para atuação de psicólogas, psicólogos e psicólogues em políticas públicas para população LGBTQIA+. Brasília, 2023. Disponível em: https://tinyurl.com/dkr4vwac. Acesso em: 4 abr. 2025. 100 Unidade II Resumo Nesta unidade, abordamos, principalmente, o papel da psicologia frente aos direitos sociais e culturais da população e, com o auxílio de exemplos de vivências retirados de pesquisas da área, conseguimos traçar de forma mais contundente as noções da prática do profissional de psicologia. Dessa forma, vimos como a inserção da psicologia na discussão das políticas públicas, junto ao papel do Estado, auxilia na criação de leis e medidas que beneficiam toda uma comunidade, especialmente quando atrelado ao seu papel sócio‑histórico. O Crepop, dispositivo esse que é um importante instrumento para promover o avanço da categoria e fortalecer sua presença nas políticas públicas, é uma das instituições criadas pelo Conselho Federal de Psicologia, a fim de promover uma maior inclusão do profissional de psicologia nas discussões sobre a sociedade. Junto a discussão sobre o papel da psicologia nas ações junto ao Estado, discutimos o papel dessa profissão, também, no SUS, uma instituição que sofre problemas constantes desde sua implementação, mas que é um dos poucos meios de acesso à saúde para grande parte da população brasileira. Assim, a atuação do psicólogo no SUS requer discussões frequentes no que toca uma prática normativa na qual predominam práticas diagnósticas e clínicas dissociadas dos contextos socioeconômicos e da integralidade, sem levar em consideração os fatores políticos e sociais do processo saúde‑doença. Ainda adentramos a prática da psicologia junto ao Suas, o Sistema de Único de Assistência Social promovido pelo Estado. Desse modo, discutimos como a psicologia social comunitária percebe a importância de uma construção conjunta, a partir de uma base comum ético‑política em que profissional e público atendido se relacionem sem as amarras do autoritarismo e da desigualdade. Por fim, ao encerrarmos este livro‑texto, estudamos o conjunto de ações que percorre a luta pelos direitos humanos e os movimentos sociais que lutam por um mundo mais justo e democrático. Frente a isso, encontra‑se o papel do psicólogo e da psicologia, já que, ao adotar a dignidade humana como princípio central, os direitos humanos se aproximam da psicologia, que também visa o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida das pessoas. Essa convergência destaca a similaridade entre os dois campos, pois ambos buscam, de forma direta ou indireta, promover a dignidade humana, o que favorece uma estreita relação entre teoria e prática em ambos. 101 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Exercícios Questão 1. Em 2013, após extensa pesquisa, a jornalista Daniela Arbex publicou o livro Holocausto brasileiro, no qual narra a história do hospital psiquiátrico Colônia, localizado em Barbacena, Minas Gerais. Do início do século XX até 1980, os pacientes que viviam no hospital eram abandonados em condições desumanas e estima‑se que cerca de 60 mil pessoas morreram no local. No documentário baseado no livro e realizado pela Netflix, a autora declarou que a obra foi motivada pela constatação de que o Brasil desconhecia uma de suas piores tragédias. Leia, a seguir, um trecho do prefácio, escrito pela também jornalista Eliane Brum: Neste livro, Daniela Arbex devolve nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados de tal”. Eram um não ser. Pela narrativa, eles retornam, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. Ou ainda Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que ficou vinte e um dos trinta e quatro anos de internação mudo porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava. São sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX, vivido no Colônia, como é chamado o maior hospício do Brasil, na cidade mineira de Barbacena. Como pessoas, não mais como corpos sem palavras, eles, que foram chamados de “doidos”, denunciam a loucura dos “normais”. As palavras sofrem com a banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas de sentido. Holocausto é uma palavra assim. Em geral, soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra. Neste livro, porém, seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maioria, enfiadas nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças. Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs. Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo — e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio 102 Unidade II foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida. ARBEX, D. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 14. Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas. I – O SUS, a Reforma Psiquiátrica Brasileira e o Suas criaram dispositivos de cuidado integral aos usuários de álcool e de outras drogas, nos quais diferentes profissionais, incluindo psicólogos, atuam com foco na defesa dos direitos humanos e na ampliação da autonomia e da participação social dos usuários. II – A internação compulsória ainda permanece como a prática predominante recomendada pela psicologia, principalmente nos casos de usuários de drogas e de doentes mentais. III – Em relação à homossexualidade, que já foi considerada doença no Brasil, atualmente, o profissional de psicologia deve compreender as orientações sexuais e as identidades de gênero nos seus atendimentos, mas deve sempre conduzir os pacientes à cis‑heteronormatividade. É correto o que se afirma apenas em: A) I e II. B) I e III. C) II e III. D) II, apenas. E) I, apenas. Resposta correta: alternativa E. Análise da questão Atualmente, a internação compulsória é amplamente criticada, não sendo mais a prática comum, e, em oposição à afirmativa III, o profissional de psicologia não deve conduzir ninguém à cis‑heteronormatividade. 103 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Questão 2. Observe a charge: Figura 2 – Charge representa cidadãos lendo a Constituição de 1988 Disponível em: https://tinyurl.com/4p6vyh63. Acesso em: 19 fev. 2025. Combase na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas. I – A charge revela que os direitos básicos, garantidos pela Constituição brasileira, não são acessíveis a uma parcela da população. II – A psicologia deve atuar de forma alinhada aos direitos humanos, visando o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida das pessoas. III – A violação dos direitos básicos é um fator que causa sofrimento psíquico. Por isso, as questões sociais permeiam a atuação dos psicólogos. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) I e II, apenas. C) II e III, apenas. D) I e III, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa E. 104 Unidade II Análise da questão A violação dos direitos básicos garantidos pela Constituição provoca sofrimento e problemas psicológicos. Assim, o profissional de psicologia deve atuar considerando os aspectos socioeconômicos do indivíduo, visando seu desenvolvimento. 105 REFERÊNCIAS ALMEIDA, L. A.; AFONSO. M. L. M. O diálogo interdisciplinar no CRAS: desafios para a equipe multidisciplinar de proteção social básica. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 6, n. 12, p. 96785‑96804, dez. 2020. ARAÚJO, T. B. As políticas públicas no Brasil: heranças, tendências e desafios. In: SANTOS JUNIOR, O. A. et al. (orgs.). Políticas públicas e gestão local: programa interdisciplinar de capacitação de conselheiros municipais. Rio de Janeiro: Fase, 2003. AYRES, J. R. C. M. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 14, n. 8, p. 73‑92, 2004. 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No entanto, ao mesmo tempo que se buscava discutir garantias de direitos, políticas governamentais indicavam a terceirização, a privatização e o estado mínimo como formas de políticas sociais. Não obstante, é notável o avanço da psicologia em direção à defesa das políticas públicas. A partir da década de 2000, começam a ser organizados pelo CFP os Seminários Nacionais de Psicologia e Políticas Públicas. Observa‑se, conforme Gonçalves (2010), uma ampliação do debate dentro da categoria profissional. São aspectos abordados nos seminários: [...] justificativas para a discussão de políticas públicas pelos psicólogos; elementos conjunturais que foram considerados; concepções de políticas públicas que se apresentaram; aspectos da relação entre psicologia e políticas públicas; e condições para a participação da psicologia nas políticas públicas (Gonçalves, 2010, p. 104). Um elemento importante presente nas discussões dos seminários foi a necessidade de uma deselitização da profissão. Para justificar a presença da psicologia nas políticas públicas, seria necessário entender as práticas profissionais destacadas do consultório particular e dos contextos privatistas e liberais. Logo, seriam necessárias novas formas do fazer profissional em psicologia. Na esteira do debate da deselitização, vem a ideia de que as políticas públicas devem considerar os aspectos subjetivos envolvidos. Sendo a subjetividade o objeto da ciência psicológica, cabe defender que esta seja considerada em formulações de políticas públicas. Tal ideia vem como contraponto de uma tendência de estado neoliberal, já que a objetivação e busca de resultados por números e índices é uma tendência que “atropela” a subjetividade. Como citado anteriormente, não foi sem disputa política que se deu a entrada da psicologia nas políticas públicas. Já no I Seminário apontou‑se a necessidade da redefinição do papel do Estado em relação às políticas sociais. A questão a ser enfrentada seria: em tempos de globalização e reorientação de políticas sociais, o Estado é financiador, provedor ou regulador? Financiador e provedor? Ou apenas regulador? A depender da resposta que se desse a essas questões, o direcionamento na defesa do que são e como devem ser desenvolvidas as políticas públicas e sociais mudaria (Gonçalves, 2010, p. 109). 50 Unidade II O debate se coloca a ponto de se discutir a relação entre a psicologia e o Estado. A defesa das práticas profissionais e da ciência psicológica passa pela ideia de que a subjetividade deve ser levada em conta, na saúde (inclusive na saúde mental), na assistência social, na educação, no trabalho, em suma, em qualquer campo social. A defesa dos direitos humanos é a defesa também do bem‑estar psicológico, portanto, dos aspectos subjetivos. A concepção crítica de que os fenômenos sociais têm uma dimensão subjetiva está no cerne do desenvolvimento científico da psicologia e, logo, serve como base teórica e epistemológica para a consideração de tal dimensão para o desenvolvimento de políticas públicas. Para além de uma disputa de teorias psicológicas, é uma disputa política, já que, como abordado anteriormente, o avanço científico da psicologia se dá no bojo da democratização e da defesa dos direitos humanos. Como vimos, considerar a dimensão subjetiva dos fenômenos sociais é identificar na relação entre os indivíduos e o contexto social aspectos que vão se constituindo em ambas as direções. Há aspectos subjetivos individuais que passam a constituir os fenômenos sociais; e há aspectos objetivos dos quais se apropriam os indivíduos e que passam a constituir sua subjetividade. A leitura da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais presentes no campo das políticas públicas permite que as políticas considerem o sujeito a que se destinam e, ao mesmo tempo, apontem o campo social em que se propõem a introduzir transformações, dirigidas aos objetivos das referidas políticas (Gonçalves, 2010, p. 116‑117). Dessa forma, pode‑se dizer que a prática profissional do psicólogo é uma prática de um cidadão. O compromisso social, mais que um slogan, é uma posição política, que revela uma visão profissional e científica que leva em conta a cidadania, os direitos humanos e o bem‑estar como partes do mesmo contexto. Como um dos resultados dos debates nos Seminários Nacionais de Psicologia e Políticas Públicas, devemos considerar a fundamental importância, por parte do CFP, da criação do Crepop. Saiba mais Para entender melhor as disposições do Crepop, acesse: Disponível em: https://shre.ink/MtOP. Acesso em: 4 abr. 2025. 51 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA As questões abordadas nos debates dos seminários podem ser acompanhadas a partir da criação do Crepop; por meio desse dispositivo, se configura um importante instrumento para promover o avanço da categoria e fortalecer sua presença nas políticas públicas. O Crepop conta com uma metodologia própria para gerar referências de diferentes naturezas sobre a relação entre psicologia e políticas públicas, além de contar com os seguintes itens (Gonçalves, 2010, p. 121): • Levantamentos sobre a inserção dos psicólogos nos diversos programas e projetos de políticas públicas de diferentes áreas, por meio de pesquisa online, reuniões abertas e grupos fechados, atividades coordenadas pelo CFP e executadas pelos CRP. • Levantamento e divulgação sobre os marcos legais das diferentes políticas públicas. • Produção e divulgação de relatórios quantitativos e qualitativos sobre a inserção dos psicólogos nas políticas públicas. • Identificação de práticas inovadoras nas diferentes áreas. • Produção de documentos de referências sobre a prática. Ressalta‑se que a análise realizada a partir dos relatórios mencionados pondera as opiniões dos psicólogos que atuam em cada uma das áreas abordadas, coletadas por meio de questionários respondidos online, além das reuniões abertas e discussões em grupos fechados realizadas regionalmente. Nesse sentido, os psicólogos, embora critiquem as políticas implementadas, reconhecem a necessidade de fortalecer os sistemas de garantia de direitos e políticas mais abrangentes, como o SUS, o Suas, o ECA e a Reforma Psiquiátrica. Eles também apontam dificuldades no ambiente de trabalho, como a falta de condições adequadas para o desenvolvimento das ações. Além disso, destacam que as políticas existentes não abordam o problema em sua totalidade e que há obstáculos na implementação das diretrizes políticas já estabelecidas, como nas unidades de internação em medidas socioeducativas, no sistema prisional, nos Caps e nos programas de atendimento e prevenção em DST/Aids. Entre os aspectos mais positivos, acentuam‑se os relatos que mencionam práticas inovadoras, criadas em resposta às demandas da realidade. Os depoimentos destacam essa característica e ressaltam a necessidade de uma postura flexível por parte do profissional, capaz de articular conhecimentos, frequentemente estabelecidos, com as demandas de uma realidade repleta de especificidades e situações inesperadas. É primordial o diálogo com outros campos do saber para que se possa alcançar a flexibilidade desejada. 52 Unidade II Destaque Principais pontos abordados pelo Crepop Ponto 1: há necessidade de posicionamento; o psicólogo não é neutro; as produções subjetivas não são neutras;os indivíduos têm posição e devem explicitá‑la frente à realidade; a produção subjetiva deve incluir direção, escolha, posição. Ponto 2: políticas devem se referir a diversas esferas da vida social; elas devem se referir a ações que promovam o acesso amplo às riquezas socialmente produzidas e às conquistas da humanidade. Explicitando um posicionamento, dizemos que não se trata apenas de garantir sobrevivência e reprodução à força de trabalho nem de assistir os menos favorecidos ou os excluídos do processo social; trata‑se de criar o espaço social necessário para o desenvolvimento de todos os indivíduos, para o acesso de todos à riqueza, material e cultural, existente em cada período histórico. Ponto 3: ter direitos é conquista histórica dos homens e representa hoje, diante da desigualdade social produzida historicamente, a defesa da necessidade de lutar pela superação da sociedade desigual e do que a determina; reconhecer a necessidade de se ter políticas públicas em sentido amplo é reconhecer o direito de ter direitos. Ponto 4: as políticas públicas devem ser universais e garantidas por um Estado e instituições democráticas; deve haver a participação dos indivíduos e deve haver controle social; as políticas devem garantir direitos de forma universal e a participação dos sujeitos, na direção da transformação da sociedade e da superação da desigualdade. Ponto 5: a diversidade de possibilidades de realização dos sujeitos deve ser respeitada, mas não deve encobrir seu caráter histórico e a desigualdade social, que não é inexorável, mas constituída historicamente. Ponto 6: nosso objeto – a subjetividade – é sempre passível de transformação, que pode ser deliberada e na direção desejada; resta escolher a direção da transformação; as intervenções devem explicitar isso e, para não se correr risco de arbitrariedade, é necessário explicitar posições e trazer o sujeito da intervenção para a cena, para que ele participe também. Ponto 7: a atuação em políticas públicas deve visar compreender e intervir junto à dimensão subjetiva dos fenômenos sociais presentes nesse campo; a compreensão da dimensão subjetiva se inicia com a afirmação do homem como sujeito e da historicidade da subjetividade. 53 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Ponto 8: as referências da psicologia sócio‑histórica podem orientar a elaboração de políticas públicas e a intervenção do psicólogo, que deve se reconhecer como responsável por realizar uma possibilidade: colocar a psicologia a serviço da transformação social em direção a um outro mundo possível. Adaptado de: Gonçalves (2010, p. 125‑129). 6 ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO SUS 6.1 A esfera de trabalho da psicologia no campo das políticas públicas de saúde O principal desafio para os psicólogos, demais profissionais de saúde e a sociedade brasileira é a consolidação do SUS. Após mais de 15 anos de implementação, o SUS ainda enfrenta problemas como acesso, financiamento, descentralização, participação popular, desigualdade regional, oferta de serviços e insumos, além de questões relacionadas à gestão e formação dos trabalhadores da saúde (Spink; Mattel, 2010, p. 44). Algumas estratégias em andamento para reformular a formação e o trabalho em saúde, alinhando‑os aos princípios do SUS, incluem a expansão do Programa Saúde da Família (PSF), a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), que desenvolve iniciativas como polos de educação permanente, o Ensina‑SUS e o fortalecimento das Escolas Técnicas do SUS. O desafio de formar profissionais mais alinhados aos ideais do SUS não é exclusivo da psicologia, mas, sim, uma preocupação para várias profissões da área da saúde. Há uma tendência política de incentivar a formação e organização de equipes de saúde para ampliar o acesso e reorientar o modelo assistencial a partir da AB. Diversas profissões estão se voltando para a expansão desse novo modelo, alinhado aos discursos de saúde pública e coletiva, visando à democratização e socialização das questões de saúde. O objetivo é substituir o enfoque individualista e médico‑curativo por uma abordagem coletiva e integral. Portanto, para pensar a possibilidade de formação e atuação profissional, a partir do SUS, é fundamental reafirmar os seus princípios: 1) Da saúde como um direito (universalidade). 2) De reduzir as desigualdades do sistema, que espelham as desigualdades sociais e regionais por meio da distribuição equânime dos serviços, dos profissionais e dos recursos (equidade). 3) Da organização das ações, a partir das demandas de saúde da população, as quais são produzidas nas lutas pela interpretação daquilo que se convencionou chamar de necessidades de saúde (Spink; Mattel, 2010, p. 44‑45). 54 Unidade II Esses princípios, combinados com diretrizes de descentralização, regionalização, hierarquização e participação popular, formam uma base que obriga os profissionais de saúde a refletir e se envolver com questões como gestão do sistema, participação e autonomização dos usuários, e a formulação de políticas de saúde e direitos sociais. O primeiro grande desafio da psicologia, considerando sua história, teorias e práticas, é alinhar seus saberes e práticas aos valores e ideais do SUS. Isso implica que todos os profissionais de saúde, incluindo os psicólogos, devem assumir seu papel no compromisso constitucional de construir o sistema de saúde no Brasil (Spink; Mattel, 2010). O segundo desafio da psicologia no SUS é a noção de indivíduo. A prática privada dos psicólogos e sua associação histórica com o modelo médico/normativo formaram a identidade cultural da profissão, o que se reflete nas unidades de saúde do SUS, onde predominam práticas diagnósticas e clínicas dissociadas dos contextos socioeconômicos e da integralidade. Esse cenário destaca a necessidade de desafios em formação, pesquisa e organização do trabalho para a psicologia, especialmente em atividades ambulatoriais, hospitais e unidades de AB. Diversas atividades no campo da saúde mental, historicamente contra‑hegemônicas, avançaram na compreensão ampliada do processo saúde‑doença, identificando os fatores políticos, sociais e institucionais presentes nas interpretações sobre a loucura. A psicologia social e a abordagem institucionalista foram fundamentais na denúncia da medicalização da psiquiatria e na formulação de propostas para sua crítica e superação. Essa perspectiva, ao analisar o campo da saúde pública, busca identificar os fenômenos que envolvem a possibilidade de patologia mental, como transtornos de humor, dependência química e psicoses. O terceiro desafio é estabelecer um diálogo produtivo entre a saúde mental e a saúde pública, superando a ideia de “universos paralelos”. Para atingir os objetivos da Reforma Sanitária, é essencial expandir seu campo de atuação, incorporando os desafios da Reforma Psiquiátrica e promovendo a integralidade das ações de saúde. A integralidade, como princípio do SUS, visa organizar o sistema de saúde, integrando ações de prevenção, tratamento e reabilitação que antes estavam separadas entre os Ministérios da Saúde e da Previdência. A integralidade foi expandida para além do sentido constitucional, considerando a pessoa como um todo, incluindo aspectos sociais, econômicos, políticos e psicológicos no processo saúde‑doença. Isso ressignifica o paciente como sujeito de direitos, levando à criação de práticas como medicina integral, psicologia médica e bioética. A Política Nacional de Humanização, defendida por muitos psicólogos da área da saúde, sobretudo em hospitais, enfatiza que todas as políticas e ações de saúde devem ser centradas na humanização. Essa abordagem critica o modelo anátomo‑fisiológico da medicina moderna, reconhecendo o paciente como sujeito com necessidades que vão além do cuidado com a doença e o corpo. 55 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Os atores da Saúde Coletiva foram partícipes importantes do movimento da Reforma Sanitária que levou à aprovaçãoe implantação do SUS. Não surpreende, pois, que, nos princípios básicos do SUS, estejam incluídas: a regionalização – enfatizando o nível local da atenção à saúde; a integralidade – enfatizando a perspectiva transdisciplinar da atenção à saúde; e a participação popular % enfatizando o necessário envolvimento de todos na implementação plena do SUS (Spink; Mattel, 2010, p. 49). Ao comparar as abordagens históricas da psicologia, focadas na individualização, com as necessidades coletivas na atenção à saúde, surgem desafios políticos significativos para a formação de psicólogos no SUS. Cabe aqui acompanhar a discussão de Spink et al. (2010) a respeito de alguns dados da atividade profissional da psicologia, a fim de que nossa discussão possa se aprofundar mais. Em 2006, o Cadastro do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde) registrou 18.353 psicólogos, mas estão inclusas 3.948 duplicações devido a vínculos em mais de um local. Assim, 14.407 psicólogos estavam efetivamente atuando na rede de serviços de saúde na época da pesquisa. A proporção entre o número de psicólogos(as) que possuem vínculos com o SUS e o número de psicólogos(as) registrados no Sistema Conselhos de Psicologia, varia de 7,97% dos psicólogos da Região Centro‑Oeste a 14,76% dos psicólogos da Região Nordeste. A média no país é de 10,08% do número total de psicólogos, que possuem algum tipo de vínculo com o SUS (Spink et al., 2010, p. 60). A pesquisa indicada pela Abep (Associação Brasileira de Ensino em Psicologia) confirma dados de estudos anteriores, feitos por entidades da área e pesquisas acadêmicas, que mostram que os serviços de saúde, tanto privados quanto públicos, sobretudo os conveniados com o SUS, se tornaram opções para a inserção de psicólogos. Essa situação está ligada tanto às mudanças na organização dos serviços públicos de saúde após a criação do SUS, quanto às transformações nas percepções sobre o que é “saúde”. Os desafios para a formação dos psicólogos são evidentes, conforme abordado anteriormente. A pesquisa indica que apenas uma parte dos psicólogos ingressou nos serviços de saúde movidos por motivações alinhadas às políticas do SUS. Muitas respostas revelam um caráter assistencialista, com a intenção de ajudar a população carente, o que não corresponde à proposta da Reforma Sanitária. Além disso, a maior parte das motivações está relacionada a fatores oportunistas, como concursos ou a falta de opções no mercado de trabalho tradicional da psicologia. Ou seja, temos muito a fazer de maneira a levar a proposta do SUS à atenção dos formadores em cursos de graduação, clínicas, escolas e supervisão de estágios. Para que a saúde da população seja, de fato, uma prioridade, temos que batalhar para que o ingresso de psicólogos em serviços de saúde deixe de ser uma opção paliativa diante do desejo da prática terapêutica em consultório, ou em cargos sedutores da área de recursos humanos de empresas multinacionais (Spink et al., 2010, p. 79). 56 Unidade II Os dados apresentados por Campos e Guando (2010) também são interessantes: as pesquisadoras entrevistaram psicólogos que atuam no SUS e que, quando perguntados sobre suas atividades, mais de 80% das respostas se concentram nas atividades do atendimento, diretamente no usuário, estando, assim, menos representadas todas as tarefas ligadas ao planejamento e gestão do trabalho, nas quais todos os profissionais devem estar envolvidos, como, por exemplo, o conhecimento das demandas do território, dos recursos públicos e comunitários de que este dispõe e o trabalho conjunto com o gestor para administrar e otimizar o seu aproveitamento (Campos; Guando, 2010, p. 85‑86). As demandas nos serviços de saúde, conforme as respostas, envolvem principalmente queixas ou quadros clínicos, refletindo a predominância das classificações internacionais da doença (CID) e da epidemiologia. Embora essas ferramentas sejam necessárias, é importante que o psicólogo reconheça as demandas da saúde pública sob outras perspectivas, distinguindo entre diagnóstico, queixa e demanda real dos pacientes. As demandas mais pesadas envolvem situações de violência, abuso, maus‑tratos, negligência, proteção da família e inclusão social, mencionadas pelos entrevistados, mas com menor frequência. Isso sugere que muitos profissionais ainda não conseguem distinguir claramente entre as demandas para a atuação das equipes de saúde e os quadros clínicos que enfrentam. De novo, neste aspecto, a pesquisa mostra as respostas dos que trabalham em diferentes modelos de atenção; fica claro principalmente “quem demanda” nos diferentes modelos. Outros profissionais (médicos, enfermeiros, professores, juízes etc.) e instituições (conselho tutelar, escola, asilos, presídios etc.) demandam a atenção tradicional: – Toda natureza de demanda da saúde mental; – São vários, não vou nem especificar…; – Vários, todos patológicos, escolares, do conselho tutelar; – Todos pacientes encaminhados pelo psiquiatra; – Todas, crianças e adultos, idosos… de médicos, de escolas…; – A maior demanda é depressão em idosos e problemas de aprendizagem e comportamento em criança; – A gente recebe de tudo, abre o CID‑10 e tem lá tudo… depressão, falta de limites, aprendizagem…; – É bem ampla, bastante variada… diversificado (Campos; Guando, 2010, p. 88). 57 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Contudo, quais são os temas e mudanças essenciais que nesses últimos anos têm influenciado o trabalho do psicólogo na saúde pública? Vejamos. Em 1988, a Constituição Brasileira estabeleceu a saúde como um direito de todos e dever do Estado, marcando um divisor de águas no setor. Esse avanço foi resultado da luta pela Reforma Sanitária, que culminou na criação do SUS por meio da Lei n. 8.080, garantindo acesso universal e atenção integral e equitativa. Antes da criação do SUS, já existiam experiências de um modelo de atenção integral à saúde, organizado em níveis (primária, secundária e terciária). A oferta de serviços era hierarquizada conforme a complexidade tecnológica e financeira, e os resultados eram avaliados com base no custo‑benefício. O perfil epidemiológico da população definia as necessidades e a oferta de procedimentos na região. O modelo de atenção era centrado em uma organização hierarquizada dos serviços, com foco nas “necessidades do serviço”, oferecendo ações programadas de prevenção e promoção. Nesse modelo, profissionais como psicólogos podiam definir sua oferta com base no seu saber técnico. Por exemplo, a psicoterapia passou a ser uma especialidade isolada na atenção primária, desconectada tanto do profissional que a solicitava quanto da necessidade subjetiva do usuário. O modelo de atenção brasileiro está em transição, com remanescentes do antigo sistema centrado em hospitais e especialistas, com pouca coordenação e planejamento na assistência. As mudanças no modelo de atenção focaram nas necessidades do usuário, orientando a oferta e as tecnologias utilizadas. O trabalho deve ser multidisciplinar, valorizando o saber coletivo e promovendo uma atenção integral ao sujeito, considerando seu território de vida, relações e conflitos. O modelo exige que o psicólogo saiba integrar uma equipe multiprofissional e multidisciplinar, focada na inclusão do usuário, na construção de uma rede de cuidado intersetorial e na adaptação de sua prática clínica às necessidades do sujeito. A prática em saúde coletiva foca na relação dos indivíduos dentro do território, sendo o sujeito um membro dessa coletividade. Seu processo de trabalho é multiprofissional, exigindo saberes inter e transdisciplinares para a gestão do cotidiano. A formação do psicólogo ainda foca na patologia e no cliente individual, criando uma dicotomia na prática da saúde pública, em que o profissional lida com a complexidade da vida e do entorno do paciente, entre a formação acadêmica e a realidade prática, entre técnica, política, modelo e mercado. O paradigma da Saúde Públicacoloca, além disso, outras ambiguidades, já que ela é, quase que por excelência, normativa; deve cuidar da vida, da coletividade. Tome‑se, por exemplo, as notificações compulsórias, para os casos de moléstias infecciosas, riscos, e, mais atualmente, casos de violência e maus‑tratos, tentativas de suicídios e suicídios. O psicólogo, perplexo, fica entre a discrição que protege o cliente, que lhe foi ensinada na escola, e a notificação à Vigilância de Saúde, que protege o direito dos indivíduos na política pública. A notificação de violência doméstica expõe quem é atendido, quem o trás e busca ajuda. Porém a notificação é importante para proteção 58 Unidade II destes mesmos indivíduos e do coletivo onde vivem. É função do psicólogo e de quem o forma encontrar maneiras de fazê‑la: quantas pessoas deverão ser envolvidas, que fato serão narrados, que ações serão empreendidas. É este o cenário da possibilidade de encontro entre o sigilo em respeito ao envolvido/vítima, e o respeito ao dever político com o coletivo. Aqui as considerações passam pelo indivíduo – em cada caso haverá uma melhor solução – em cada caso haverá uma melhor solução – e pelas obrigações do coletivo (Campos; Guando, 2010, p. 93). O exemplo mostra como a formação acadêmica pode gerar conflitos na prática, com psicólogos se escondendo atrás do código de ética ou recusando atendimentos devido à falta de formação específica. A situação revela que a singularidade do caso, incluindo o contexto da pessoa e sua inserção no serviço, deve ser discutida e avaliada, não se limitando apenas à formação teórica. 6.2 Desafios teóricos‑metodológicos e ético‑políticos da atuação do psicólogo no SUS Nos anos de 1950 e 1960, a estatização da saúde, impulsionada por organismos da ONU, coexistiu com o modelo preventivista, que, segundo Sergio Arouca, apresentava um dilema. Embora o modelo defendesse a prevenção de doenças, ele individualizava o adoecimento, ignorando as condições concretas de vida. Isso levou o Estado a apoiar uma visão liberal, centrada na prática médica e no uso de insumos da indústria farmacêutica e tecnologias em saúde, refletindo uma visão limitada e financiada pela indústria da saúde. No século XX, o Brasil passou por um processo de construção da nação, com destaque para a saúde pública. Na primeira metade do século, o sanitarismo campanhista foi fundamental e, nos anos 1950, a lógica hospitalar da indústria da saúde se somou ao sanitarismo, impulsionada pela indústria incipiente. Já nessa época, havia mobilizações por um sistema de saúde regionalizado e de responsabilidade estatal, como evidenciado pela III Conferência Nacional de Saúde de 1963. Contudo, com a ditadura militar de 1964, alinhada aos Estados Unidos, as iniciativas progressistas no país foram enfraquecidas, especialmente no contexto da Guerra Fria. Com a chegada dos militares ao poder, houve uma diminuição da responsabilidade do Estado na execução de políticas públicas, incluindo na saúde. A Constituição de 1967 atribuía ao Estado apenas a elaboração de planos e normas, sem envolvimento na implementação de políticas. Setores da saúde, especialmente hospitais, foram entregues ao interesse privado, com financiamento público. O ensino de saúde retornou ao modelo de Abraham Flexner, focando na doença individual. Como resultado, várias epidemias controladas anteriormente voltaram a se espalhar devido ao abandono da saúde pública e à estratégia de medicalização social. Durante o período ditatorial, o modelo de saúde pública brasileiro, que estava em construção de forma mais abrangente, foi destruído e abandonado. A construção foi interrompida, e o modelo campanhista (baseado em campanhas para combate a epidemias) do início do século foi retomado, com foco em um complexo médico‑hospitalar, tudo sob o regime militar. Antes da Constituição Federal, 59 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA a ideia de atenção primária à saúde, isto é, AB, já discutida globalmente desde a Conferência de Alma Ata em 1978, surgia como uma possível mudança radical para melhorar a saúde nos países, visando a manutenção e potencialização da vida. Sob a influência da Conferência de Alma Ata e dos Princípios do SUS, a AB passou a ser vista como o espaço capaz de abordar de forma integral os fenômenos relacionados ao adoecimento, considerando sua natureza multifacetada e biopsicossocial. No entanto, a AB enfrentou grandes desafios para superar os interesses econômicos consolidados e as percepções sociais sobre saúde que haviam se formado ao longo do século. O setor de saúde no Brasil, conforme previsto na Constituição, permitiu a complementaridade do setor privado, o que resultou em mudanças tímidas no sistema de saúde. Durante os anos 1990, as transformações na AB foram limitadas, com sua implementação e financiamento de forma inadequada. A atenção médico‑hospitalar, embora prevista como universal, ficou dividida entre o público pagante e com planos de saúde, criando uma saúde seletiva, tornando a AB principalmente para a população mais pobre. A partir da década de 1980, práticas semelhantes à AB começaram a surgir em condições precárias, como no semiárido do Ceará, por meio de programas como os Agentes Comunitários de Saúde e de postos de saúde em regiões com grandes problemas, oferecendo vacinas e medicamentos. No entanto, a AB formalmente começou a ser implementada a partir de 1994 com o PSF, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, mas com uma abordagem seletiva quanto aos serviços e população atendida. A política econômica e o modelo biomédico centrado nos hospitais influenciaram a instalação da AB, resultando em uma medicina simplificada voltada para a população pobre, tanto em áreas urbanas quanto rurais. A AB foi oficialmente estabelecida com nível de atenção em saúde em 1997, por meio do documento “Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial”. Essa mudança de “programa” para “estratégia” visava revisar as concepções de saúde, com base nas propostas de Alma Ata, buscando a integração das ações de saúde de forma territorializada, e não vertical. A AB passou a ser vista como uma abordagem mais relacional e integrada, com foco na continuidade do cuidado e na abordagem biopsicossocial da saúde e doença, sempre próxima à realidade das pessoas. Apesar dos avanços institucionais, a AB manteve uma lógica seletiva, com financiamento insuficiente e convivendo com um sistema hospitalar e ambulatorial centralizado. A AB continuou a atender apenas uma parte da população, enquanto o setor privado, como planos de saúde e hospitais, crescia dentro da lógica de mercado. Nos primeiros anos, a AB, embora oficializada como política pública, ainda combinava uma abordagem epidemiológica com uma ideia vaga de transformação nos processos de trabalho e cuidado, sem uma mudança efetiva na ética do setor. Na década de 2000, a Atenção Básica começou a demonstrar maior eficácia na saúde da população, especialmente com a criação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em 2006 – tendo revisões em 2011 e 2017 –, por meio de portarias ministeriais que alinharam a AB aos princípios constitucionais do setor de saúde no Brasil. 60 Unidade II No início do século XXI, a AB passou a ser vista como um ponto estratégico para um sistema de saúde biopsicossocial, indo além da retórica. Esse papel central da AB também abriu espaço para a psicologia, permitindo sua contribuição técnica e política. A AB passou a ser parte de uma rede poliárquica, não mais hierarquizada, conforme a perspectiva técnica de redes de saúde. Com esses avanços, a AB passou a exigir cada vez mais a atuação da psicologia, especialmente no que se refere ao conceito de território, presente na PNAB. O território envolve o conhecimento das necessidades de saúde da população, considerando suas condições de vida, e está diretamente relacionado às perspectivas da psicologia, que aborda a interação entre a sociedadee a subjetividade. A PNAB busca superar abordagens simplistas que veem a assistência e a promoção da saúde como opostas, reconhecendo que a ação deve considerar os múltiplos determinantes e condicionantes dos fenômenos de saúde no território. A fim de exemplificar as possibilidades e alcance da Atenção Básica, sob a égide da riqueza fenomênica que envolve sua presença no território, vejamos algumas dessas extensões: – A AB pode açambarcar, a um só tempo, toda a população de um território, realizando ações que sejam fundamentais para o “caminhar pela vida”, como controle de doenças, por meio de vacinas; prevenção de afecções comumente presentes na vida das pessoas, contabilização e análise de dados de vigilância em saúde; – A AB pode fazer o acompanhamento de etapas e condições específicas da vida, não necessariamente relativas a adoecimento, mas visando as potencialidades nessas situações, acompanhamento de gestação, puerpério e até as vicissitudes do envelhecimento; – A AB tem potencial técnico e metodológico para acompanhar situações complexas como situações de recuperação após hospitalizações, inclusive para dar seguimento após tratamentos de alta complexidade, como o câncer; – A AB tem no seu escopo a possibilidade de desenvolver práticas de promoção da saúde, que envolvem o desenvolvimento de hábitos de vida que potencializam a relação com o corpo em sua plenitude máxima, como prática de exercícios, e convivências em processos de rede; mas na perspectiva da integralidade envolve prevenção de doenças e agravos, tratamento, reabilitação e redução de danos ou de sofrimentos das pessoas adstritas ao seu território; – A AB tem como premissa se relacionar intersetorialmente com outras políticas públicas de saúde localizadas no território; ou 61 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA com instituições de outra natureza, ou mesmo com a organização comunitária de maneira mais geral, de modo a fazer a gestão de práticas que alcancem objetivos relativos ao zelo pela vida e a potencialização das pessoas; – A AB é locus potencial de cuidado em saúde mental, tendo em vista estar embrenhada na vida das relações da comunidade e poder funcionar como potencializadora de desenvolvimento e/ou resgate de vínculos entre pessoas com história de sofrimentos psíquicos severos e persistentes; – A AB pode fazer seu projeto de trabalho, para além de levar em conta as diretrizes pactuadas nacionalmente. Ela tem como premissa realizar atividades participativas junto ao território que pode colaborar no rol de atividades projetadas. – A AB, pela sua organização territorial, tem a potência de indicar políticas voltadas às populações e situações específicas. E tem sido estabelecido a partir dela políticas direcionadas à saúde de pessoas que vivem em situações de rua, os Consultórios na Rua, ou ainda o trabalho de atenção primária a populações ribeirinhas. Outras políticas podem ser articuladas ao espaço da AB, na perspectiva de se ter ampliado o ethos nesses espaços (Conselho Federal de Psicologia, 2019b, p. 25‑26). Com a criação da PNAB, houve uma maior aproximação com os fenômenos presentes nos territórios, permitindo à psicologia da saúde atuar na ampliação da ética do cuidado, considerando as realidades locais. A ética pessoal foi resgatada, promovendo práticas de resistência à medicalização, impessoalidade e burocracia. A partir da PNAB, também foram incorporados os Núcleos de Apoio à Saúde da Família Nasf, em 2008, permitindo à psicologia uma atuação mais estruturada no apoio a fenômenos que iam além da lógica médica tradicional, especialmente em saúde mental. Lembrete O SUS foi criado pela Constituição de 1988, após anos de luta do Movimento Sanitário, sendo, assim, fruto de lutas sociais. Os princípios do SUS – universalidade, equidade, integralidade, participação popular e controle social – têm relação direta com a luta pela democracia. Os Nasf permitiram a inserção da psicologia na AB, embora enfrente desafios, como cobrir grandes populações e territórios, com demandas de trabalho complexas e metodologias diversificadas. Cada equipe de Nasf, composta por cinco profissionais de saúde, atende cerca de 20 mil pessoas, o que dificulta a prática da psicologia. A partir da PNAB, foi possível integrar novas tecnologias assistenciais, como educação permanente, matriciamento e projetos terapêuticos, e reconfigurar a AB dentro da rede 62 Unidade II de saúde, corrigindo a visão anterior de “rede básica”, fazendo com que a AB passasse a ser vista como parte central dentro do sistema de saúde, em vez de uma rede separada. Com a PNAB, a AB passou a ter maior visibilidade sobre os fenômenos apresentados a ela. Isso foi corroborado pela ideia de “trabalho vivo” de Emerson Elias Merhy, que envolve três tipos de tecnologias: a dura (como diagnósticos e prescrições), a leve‑dura (como indicações de cuidados) e a leve (que inclui ouvir a pessoa e entender suas dificuldades). Quando a prática de saúde não integra essas diferentes tecnologias, ela se torna desconectada do paciente e não gera transformações, resultando em um “trabalho morto”. O trabalho vivo é centrado na relação, no vínculo, acolhimento e no uso integrado de todas as tecnologias, sendo essencial para lidar com os fenômenos na AB. Práticas como acolhimento e clínica ampliada são fundamentais, pois exigem a criação de um ethos no serviço e na prática, ampliando as normas biológicas tradicionais. Nesse contexto, a psicologia pode fazer uma grande contribuição, ajudando a redefinir essas práticas de cuidado. O acolhimento é uma prática que, ao considerar o sujeito em sua totalidade, leva em conta suas condições de vida e adota uma postura inclusiva em relação a sofrimentos relacionados à marginalização, exclusão ou violência. Ele não pode negligenciar questões como violência doméstica, racismo e diversidade sexual, já que estas estão ligadas a práticas divisórias nos direitos e geram sofrimento. A clínica ampliada é uma tecnologia de cuidado que aborda tanto o indivíduo quanto o coletivo, conforme a PNAB. Ela busca construir vínculos positivos e intervenções eficazes, centradas na pessoa e visando aumentar a autonomia de indivíduos e grupos sociais. Além disso, ela reconhece que os fenômenos de saúde são múltiplos e requerem um encontro com o sujeito e suas demandas, considerando não apenas o aspecto biológico, mas também as condições do território, como espaço de vida, vínculos e projetos de vida. A AB, em meio a práticas sociais, foi sendo ampliada na medida em que foi revisada com relação a espaço de normatividades biomédico‑centradas. Nesse percurso tem sido fundamental uma política que tornou mais próximo do exequível o financiamento com o estabelecimento de tecnologias biopsicossociais para além da retórica, sua articulação com outras políticas com vieses democráticas no âmbito das políticas públicas, sejam elas as de saúde ou intersetoriais como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), Educação, Justiça e as outras políticas públicas. Em meio a esse processo pode ser destacada uma última busca de reorganização do sistema, agora vislumbrando a direção para a gestão dos serviços: o Decreto n. 7508/11 (Conselho Federal de Psicologia, 2019b, p. 31). Esse decreto estabeleceu a territorialidade e a responsabilidade dos gestores pela organização da saúde em Regiões de Saúde, com pontos de atenção estratégicos, incluindo a AB, e sua articulação em redes. Destaca‑se a criação da Rede de Atenção Psicossocial dentro dessas regiões e a implementação do Contrato de Gestão em Saúde, tornando os gestores responsáveis pela manutenção dos serviços 63 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA pactuados. Caso não cumpram os planos de saúde estabelecidos para sua região, os gestores podem ser responsabilizados civilmente. 6.3 Relatos de experiência Como já acentuado, muitas são as possibilidades de atuação da psicologia no SUS. É possível atuar em todos os níveis de atenção àsaúde: primária, secundária e terciária. Ainda, há a possibilidade de atuação em equipamentos como UBS, Centros de Referência em DST/Aids (atenção primária), UPA e Caps (atenção secundária), hospitais, centros de cirurgia e diagnóstico avançado e clínicas oncológicas (atenção terciária). São muitas as possibilidades de atividades e atuação, passando por prevenção em saúde mental, acolhimento, atendimento clínico, atendimento comunitário, atendimentos em grupos para públicos específicos, acompanhamento psicológico de pessoas adoentadas, atendimento a pessoas enlutadas etc. Assim, serão apresentados três relatos de experiências de atuação de psicólogas e psicólogos no SUS. Aqui, vale retomar a ideia de desconstrução de um modelo clínico privatista e a valorização de um modelo que promova a saúde enquanto direito coletivo, mais ligado a democracia e aos direitos humanos. O primeiro exemplo (Mota; Costa, 2017) traz a atuação de uma psicóloga no Caps no município de São José dos Quatro Marcos, no estado do Mato Grosso. O segundo exemplo (Santos; Casado, 2022) traz a atuação de estagiários do curso de Psicologia em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) no município de Belém, no estado do Pará. O terceiro exemplo (Colosio et al., 2007) traz a atuação de um psicólogo pesquisador em dois CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) no município de São Paulo, estado de São Paulo. No artigo de Mota e Costa (2017), nosso primeiro exemplo, as autoras têm como objetivo “fomentar a discussão sobre os desafios na reconstrução cotidiana do ser psicólogo, promover saúde mental, reabilitação psicossocial, participação social, entre outros” (Mota; Costa, 2017, p. 834). Para tanto, as autoras acompanharam o trabalho de uma psicóloga concursada que atuava no Caps I do município de São José dos Quatro Marcos, no estado do Mato Grosso. As experiências da psicóloga foram relatadas e analisadas a partir da identificação de desafios e dificuldades relativos ao trabalho no Caps. Em relação às atribuições da psicóloga, escrevem as autoras: Foi realizado acolhimento, avaliação psicológica, observação e atendimento individual com usuários de diagnóstico recente e que não se adequaram às atividades de grupo, norteadas pela formação do estágio em Psicologia clínica na abordagem existencial fenomenológica (Mota; Costa, 2017, p. 835). Um dos grandes desafios encontrados foi a forma de lidar com a questão culturalmente estabelecida da institucionalização como prática em saúde mental. Embora um dos princípios do Caps seja o das portas abertas, via‑se o fenômeno da cronificação da doença mental enquanto vivência psicossocial. Os pacientes com transtornos mentais leves, que poderiam se libertar das amarras institucionais das práticas psiquiátricas medicalizantes, mostravam apatia e submissão veladas. 64 Unidade II Muitos desses usuários frequentavam o serviço desde o início do seu funcionamento, e havia receio da equipe em colocar limites na relação de assistência do serviço, no sentido de reduzir gradativamente a frequência do mesmo até encaminhar para outros espaços da comunidade que lhes oferecesse lazer e convivência. [...] Apesar das portas e portões abertos, era como se no CAPS as pessoas que o frequentavam até então também desenvolvessem nova cronicidade, organizando sua rotina em torno da instituição, desenvolvendo atividades que poderiam ser realizadas em outros serviços públicos de saúde e de assistência social, limitando seu percurso pela cidade e suas relações interpessoais (Mota; Costa, 2017, p. 835). Já os pacientes com transtornos mentais mais severos frequentavam o serviço para atualização de receita médica e encaminhamento para a internação. A questão da busca por novas formas de inserção social do usuário de serviços de saúde mental, preconizada pela Reforma Psiquiátrica, não era praticada no momento observado pelas pesquisadoras. Estava colocado o desafio de romper com as barreiras institucionais e psicossociais que reforçam o estigma de pacientes de serviços de saúde mental. Observou‑se que havia uma dificuldade na equipe de saúde do Caps em abandonar as práticas psiquiátricas medicalizantes. Quando novas formas de tratamento eram propostas, havia um estranhamento inicial, tanto por parte da equipe quanto por parte dos pacientes. Mais do que o tratamento/controle da doença neste paradigma, era necessário pensar a perspectiva do cuidado e da reabilitação psicossocial, a ampliação das relações pelo que os usuários ainda possuíam de saudável sem deixar de considerar os impactos que a doença gerava na sua vida e a utilização das mais variadas estratégias terapêuticas para que a vida desses sujeitos se desenrolasse em outros espaços comunitários (Mota; Costa, 2017, p. 836). Ou seja, iniciou‑se a busca por novas propostas de tratamento. Retomaram‑se as ideias da Reforma Psiquiátrica, e a equipe (não sem resistência) pôde discutir novas propostas. Uma delas foi a realização do Projeto Terapêutico Singular (PTS) juntamente com cada paciente. Isso deu uma nova dimensão subjetiva à experiência no Caps, e os pacientes passaram a se sentir mais autônomos e empoderados, já que a possibilidade de discutir sobre o próprio tratamento trazia a possibilidade de discutir sobre seu próprio destino, o que por si só já tem um efeito terapêutico. Outra iniciativa importante foi a proposta de realização de assembleias com a equipe, os usuários e os familiares dos usuários. Foram implementadas oficinas de geração de renda, oficinas de expressão subjetiva e também um cinedebate, em que eram exibidos filmes sugeridos pelos usuários para discussão posterior. Propostas que na perspectiva psiquiatra tradicional não fazem sentido, mas que, na perspectiva de uma atenção à saúde mental pautada por ideias da Reforma Psiquiátrica, traziam efeitos na saúde mental, justamente porque quando se considera a autonomia e a cidadania como componentes da saúde, promovem‑se bem‑estar e sentimento de pertencimento. 65 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Uma questão fundamental nessas práticas foi o desenvolvimento de vínculos, já que é no vínculo social que a saúde mental se realiza enquanto fenômeno. A importância do vínculo traz a ideia de que não é apenas a saúde do paciente que está em jogo. Todos os envolvidos, da equipe até os familiares e as comunidades, são parte do adoecimento e do tratamento. A ocupação do CAPS por seus usuários não só proporcionou à equipe, mas principalmente a eles mesmos, o estabelecimento de um vínculo pela potência de saúde que sobreviveu a todo tipo de assujeitamento que eles passaram, e até mesmo um espaço para dar vazão aos delírios e alucinações como produção de subjetividade, ao invés de dopá‑los junto com os seus possíveis significados (Mota; Costa, 2017, p. 839). O segundo exemplo, trazido por Santos e Casado (2022), relata a experiência de grupos de estudantes no estágio “Multicampi Saúde”, projeto realizado pela Universidade Federal do Pará. A atuação dos estagiários de deu na UBS do bairro da Cremação, no município de Belém, capital do estado do Pará. A UBS em questão está localizada em um bairro onde a desigualdade socioeconômica é visível, pois está entre os bairros mais ricos e os mais pobres da cidade. Para realização do estágio, antes de ir a campo, os estudantes fizeram um curso de capacitação. O curso tinha um olhar inter e multidisciplinar para a atuação em saúde. A psicologia se faz presente no cotidiano da Atenção Básica, atuando a partir de princípios profissionais e éticos da mesma e do SUS, enfatizando a importância em um prol coletivo dentro de um campo de extrema importância para produção de novas perspectivas em saúde. É nesse espaço que também se encontraram temáticas que dizem respeito ao usuário enquanto sujeito político, e que sofre de opressões nos âmbitos de raça, gênero, classe social, orientação sexual, trabalho etc. Assim, entende‑se que o psicólogo deve atuar considerando todo o histórico socioculturalde cada indivíduo, para então compreender seu processo de adoecimento em sua totalidade (Santos; Casado, 2022, p. 708). Ao ser inserido no campo, em um primeiro momento, o grupo de estagiários foi recebido pela preceptora de campo, uma enfermeira, que explicou e mostrou o funcionamento da unidade. Em um segundo momento, foi realizada coleta de informações junto aos pacientes, com a finalidade de identificar demandas e proporcionar acolhimento. A partir daí, os estagiários foram inseridos em diferentes setores da UBS e experienciaram as diversas formas de atuação do psicólogo no campo da saúde pública: • Acompanhamento pré‑natal: observação dos procedimentos médicos e exames no pré‑natal, ao mesmo tempo que se buscava identificar demandas psicológicas, por exemplo, o sofrimento de gestantes de alto risco, estresse ocasionado por problemas conjugais, casos de violência obstétrica, aborto espontâneo, morte de recém‑nascido etc. Adolescentes grávidas também eram 66 Unidade II acompanhadas e acolhidas pela equipe de psicologia, além de ser realizada uma iniciativa de psicoeducação nas escolas do bairro sobre a temática da gravidez na adolescência. • Acompanhamento do desenvolvimento infantil: crianças com idade de zero a 2 anos, com suas respectivas famílias, eram monitoradas para identificação de demandas emocionais em relação à dinâmica familiar vivenciada no puerpério. • Clínica geral e encaminhamento para serviços especializados: foram supervisionadas consultas gerais, exames gerais e específicos, atendimento a ferimentos diversos, e tratamento de tuberculose. Foi explorada a questão da evasão de tratamentos, assim como foram acompanhados encaminhamentos para o Caps e os CTA. • Saúde da mulher: exames de prevenção do câncer no colo do útero tiveram acompanhamento. A questão da violência doméstica também teve a atuação da equipe de psicologia, com a promoção de rodas de conversa entre as pacientes. • Saúde do homem: durante o ”novembro azul” (mês de prevenção ao câncer de próstata), foi realizada uma atividade que promoveu escuta para os homens que estivessem na UBS. O engajamento na escuta coletiva foi baixo, mas alguns homens procuraram posteriormente a equipe para tratar de questões individuais. • Saúde mental: algumas consultas em caráter de psicologia clínica foram acompanhadas. A partir delas, seguiu‑se uma discussão sobre o modelo clínico individual e foram discutidas propostas coletivas de promoção de saúde mental. Uma dessas ações foi uma atividade na sala de espera, discutindo o tema da saúde mental. • Saúde do idoso: participação no encontro mensal dos idosos usuários da UBS, promovido pela psicóloga e assistente social. Posteriormente, foi realizado um grupo sobre depressão. Com essas experiências, algumas reflexões importantes surgiram a partir do relato dos estagiários: Considerando os temas encontrados no cotidiano da experiência na UBS e como se deu o desenvolvimento de habilidades e intervenções referentes à prática da Psicologia, percebe‑se a interdisciplinaridade como item fundamental em uma ação de atenção à saúde, seja nas intervenções em conjunto com outros estagiários de outros cursos de saúde, como enfermagem, ou no diálogo intersetorial para identificar demandas e poder elaborar ações com ponto de partida (Santos; Casado, 2022, p. 727). Também foi ressaltada a importância da psicologia na identificação e acolhimento de demandas emocionais e psicossociais, sendo que o conhecimento e a consciência sobre os processos coletivos relacionados à saúde são condições para a promoção de práticas que estejam em consonância com os princípios do SUS. 67 POLÍTICAS PÚBLICAS E PSICOLOGIA Observação A atuação profissional do psicólogo no campo da saúde e da assistência social deve estar fixada em políticas públicas. Como complemento, as atividades desenvolvidas em estágios curriculares são válidas, com muitas delas sendo apresentadas em artigos de relato de experiência. O terceiro exemplo de atuação está no artigo de Colosio et al. (2007). Trata‑se de uma pesquisa feita sobre uma intervenção em grupo, denominado grupo operativo (a partir da proposta de Enrique Pichón‑Rivière), no trabalho de prevenção de infecção pelo HIV. O estudo foi dirigido à população de HSH (homens que fazem sexo com homens, ou seja, gays e bissexuais), com foco nos usuários de dois centros de testagem e aconselhamento da cidade de São Paulo, onde essa seleção se deu devido à alta demanda e aos altos índices de testes positivos nesses locais. Foram convidados 147 usuários para participar, que receberam explicações sobre o estudo, assinaram o termo de consentimento informado e participaram de entrevistas individuais. Realizou‑se um estudo de intervenção controlado, com alocação aleatória de voluntários, na sede do CRT‑DST/Aids (Centro de Referência em Testagem), em São Paulo. Inicialmente, foram formados grupos de intervenção e controle (100 voluntários, 50 em cada grupo), distribuídos por meio de sorteio realizado por uma pessoa não envolvida diretamente no recrutamento. O estudo utilizou um desenho metodológico de ensaio clínico aleatorizado, com grupo de controle, considerado eficaz na avaliação de intervenções. Esse método permite comparar os efeitos da intervenção, controlando as diferenças entre os grupos por meio da alocação aleatória, garantindo que eles sejam semelhantes, exceto pela intervenção em questão. O grupo operativo desenvolveu‑se em cinco sessões semanais de uma hora e meia. O trabalho foi conduzido por dois coordenadores, psicólogos especializados neste procedimento de intervenção e um observador (anotações para posterior trabalho de supervisão). Todas as sessões foram registradas em fita cassete e transcritas. Ao início dos trabalhos de grupo, os coordenadores esclareceram dúvidas sobre a pesquisa e apresentaram a tarefa (conceito definido para grupo operativo): discutir sobre as relações entre “proteção e sexualidade” (Colosio et al., 2007, p. 951). A condução dos grupos operativos seguiu as orientações de Pichon‑Rivière e Fernandes, com foco na articulação entre pensamento e afeto. O trabalho visou identificar fantasias inconscientes e os mecanismos de cisão e enrijecimento no grupo, criando espaços para desenvolver associações que promovam a ressignificação das representações conscientes sobre a proteção contra o HIV, além de possibilitar que as representações inconscientes se tornassem conscientes. 68 Unidade II Observou‑se diminuição do número médio de ocasiões com prática de sexo anal desprotegido entre os participantes do grupo de intervenção e aumento deste número médio entre os participantes do grupo de controle. Os resultados do estudo indicam que HSH podem se beneficiar de um programa de prevenção utilizando o grupo operativo. Esse efeito positivo, observado mesmo após seis meses, foi notado tanto nas práticas sexuais com uso de preservativo quanto nas crenças, atitudes e conhecimento sobre a infecção pelo HIV. O estudo permitiu identificar que é possível construir contextos mais amplos valendo‑se da articulação de afetos pessoais e grupais, a fim de promover uma maior compreensão de como essa comunidade pode se proteger do HIV. Isto se deu à medida que os participantes tomaram contato com contradições em seus discursos, nas polarizações da defesa de ideias, na superação de enrijecimentos e tensões que surgiram no processo grupal. Estes foram momentos do grupo promovidos pelo surgimento e articulação de questões (representações) tais como: identidade gay (revelar‑se/ocultar‑se), relacionamentos amorosos (abertos/fechados), representações sociais sobre o gay (preconceito/exaltação, o olhar da ciência), pacto conjugal (protetor/ opressor), funções do gueto (exclusão/proteção), diferenças e atritos na subcultura homossexual (pobre/rico, festivo/discreto, jovens/coroas) (Colosio et al., 2007, p. 954‑955). Ademais, o estudo destaca a importância de considerar contextos mais amplos