Buscar

MACEDO, LCMM (2000) KELSEN UM JUDEU ...

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 39 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 39 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 9, do total de 39 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

38
(ENSAIO em preparação, para discussão e posterior publicação. Baseado na reelaboração e atualização do primeiro capítulo da dissertação de mestrado, defendida no ano de 2000, como requisito para o título de Mestre em Filosofia do Direito e do Estado, na PUC/SP sob a orientação do Prof. Dr. Tércio Sampaio Ferraz Jr.)
KELSEN: UM JUDEU PERANTE O ANTI-SEMITISMO.
“Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” [1: In KAFKA, Franz. O Processo. Primeira reimpressão (tradução e posfácio de Modesto Carone) São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Página 9. ]
(“O Processo” de Franz Kafka.) 
A estranheza da situação enfrentada pelo personagem Josef K., do genial escritor (boêmio, theco, austríaco, judeu ?) FRANZ KAFKA saltará das páginas da ficção para se entranhar no martírio posterior de, aproximadamente, seis milhões de judeus, submetidos que foram em toda a Europa aos ditames da “solução final” da “questão judaica”, declarada expressamente por Adolf Hitler como um dos objetivos principais da guerra iniciada pelo Terceiro Reich. [2: A interrogação se justifica pelo fato de que o autor nasceu em 3 de julho de 1883 na cidade de Praga, Boêmia (hoje República Tcheca) mas que à época integrava o Império Austro-Húngaro, além de integrar a “nação” sem Estado que caracteriza os judeus desde a Diáspora após a destruição de Jerusalém em 70 d.c. ][3: Esse número provém de um cálculo aproximado feito por Adolf Eichmann em agosto de 1944 a Wilhelm Hottl (chefe do serviço de inteligência da SS) sendo quatro milhões mortos nos campos de extermínio e de dois milhões por intermédio dos Einsatzgruppen (unidade móvel de assassinato). A respeito, consultar : FERRO, Marc. História da Segunda Guerra Mundial: século XX. São Paulo: Ática, 1995,. página 137 e seguintes; ou ainda o insuperável ensaio-reportagem de ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ]
Segundo muitos especialistas, uma das características mais singulares da obra de KAFKA está em que a mesma gira ao redor de grandes temas do pensamento e da literatura judias – o exílio, a culpa, a expiação —, a culpabilidade vinculada ao desenraizamento e perseguição decorrentes do dilema assimilação/tradição e principalmente a solidão, temas estes desenvolvidos sem citar uma só vez a palavra “judeu” ou utilizar um personagem assumidamente judeu. [4: Dentre eles, ROBERT, Marthe. Franz Kafka o la soledad. México : Fondo de Cultura Económica, 1993. ][5: Ib. idem op. cit. Página 13. ]
KAFKA reflete em sua obra as características daquilo que HANNAH ARENDT chamaria posteriormente de “complexa psicologia do judeu médio” como um modo de ser, pensar e agir que caracterizou os judeus em geral na Europa bem como a intelligentsia judaica e que pode ser compreendido dentro do eterno dilema entre a manutenção das raízes e das tradições, por um lado, e do desejo de integração e assimilação nos Estados-nações da época como seu reverso. Nascido em 3 de julho de 1883 em uma das mais prósperas comunidades judaicas na Europa - a cidade de Praga – e falecido no sanatório para tuberculosos de Kierling, perto de Viena, Áustria, no dia 3 de junho de 1924, um mês antes de completar 41 anos de idade, FRANZ KAFKA está enterrado no cemitério judaico de Praga.[6: Origens do Totalitarismo. São Paulo : Companhia das Letras, 1989, página 87.]
Mesmo sendo desconhecido em vida como escritor (suas publicações foram póstumas), o fato de ter origem no mesmo ambiente político—cultural de HANS KELSEN, nascido na mesma cidade dois anos antes, além de comum formação em Direito — ambos sob a égide do Império Austro-Húngaro — acreditamos ser possível estabelecer um paralelo entre o modo de pensar (e de produção teórica) de ambos nos moldes do comportamento psicológico proposto por HANNAH ARENDT, em especial, como resistência ao insurgente anti-semitismo da época. 
O Anti-semitismo como doutrina leiga.
É no final do século XIX, aproximadamente por volta de 1879, que a palavra antisemitismus surge, originariamente na Alemanha e por criação de Wilhelm Marr, autor de “Der Sieg des Judentums über das Germanentum (A Vitória do Judaísmo sobre o Germanismo)”. Para HANNAH ARENDT, que pesquisou sua origem para a composição da obra “Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo”, o moderno anti-semitismo em sua origem e caraterísticas é uma doutrina leiga e que não pode ser confundido com o antigo ódio religioso multimilenar aos judeus, ainda que a tentativa de derivar um do outro seja insistentemente tentada ou por historiadores não-judeus, ou pelos próprios judeus, dentro da tradição de uma doutrina do “eterno anti-semitismo” cujas razões — na mentalidade judaica — estão em uma martiriologia que justifica a idéia de “povo eleito”. [7: Segundo FONTETTE, François de. História do Anti-semitismo. Rio de Janeiro : 1989, página 9 e RIBEIRO JÚNIOR, João. O que é nazismo? 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, página 49. ][8: In Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (Parte I – O anti-semitismo) : “ (...) É perfeitamente natural que os anti-semitas profissionais adotassem essa doutrina: é o melhor álibi possível para todos os horrores. Se é verdade que a humanidade tem insistido em assassinar judeus durante mais de 2 mil anos, então a matança de judeus é uma ocupação normal e até mesmo humana, e o ódio aos judeus fica justificado, sem necessitar de argumentos.” Página 27. ]
Esboçando uma visão analítica da história social do anti-semitismo, HANNAH ARENDT – alemã de origem judaica que viveu e estudou filosofia na Alemanha da República de Weimar -, oferece-nos um vasto e detalhado painel do seu desenvolvimento, sem “negar o ultrajante” mas, sem negar também a participação consciente ou não do próprio povo judeu na origem e formação dessa mentalidade discriminatória. Exemplo dessa postura pode ser encontrado em outra de suas obras, “Einchmann em Jerusalém” (um relato imparcial do julgamento de Einchmann em Jerusalém ocorrido em 196l), quando, na condição de jornalista correspondente e após ter acesso aos depoimentos e documentos do processo, ARENDT não teme em apontar os conselhos judeus (judenrat) de facilitarem a “solução final”, em virtude de sua colaboração com as autoridades nazistas de “imigração forçada” para o leste, rumos aos campos de concentração. Temos em suas descrições, portanto, um relato corajoso e honesto de quem viveu a tragédia do totalitarismo. [9: Ib. idem op. cit. página 20 : “Assim escondem o seguinte fenômeno: a separação dos judeus do mundo gentio, e mais especificamento do ambiente cristão, tem tido maior relevância na história judaica do que o seu oposto, pela razão óbvia de que a própria sobrevivência do povo judeu como entidade identificável dependia dessa separação, que era voluntária, e não, como se costumava supor, resultante da hostilidade dos cristãos e não-judeus em geral”. ]
Nas origens do anti-semitismo, enquanto doutrina política, segundo ARENDT, está o fato de que foi apenas nos séculos XIX e XX, quando os judeus passaram a aspirar à aceitação pela sociedade não-judaica dos distintos Estados-nações que floresciam, especialmente após a Primeira guerra mundial, é que surgiram os partidos políticos anti-semitas (com características pan-européias) e a “questão judaica” passou a ter importância publicitária e apelo popular. 
 Os primeiros teóricos do anti-semitismo surgiram de integrantes da aristocracia que, sendo integrantes de uma classe decadente — social e economicamente – , viam os judeus como colaboradores na implantação dos regimes democráticos e republicanos das novas nações que sucediam aos Impérios, ainda que a concessão aos habitantes judeus de igualdade de direitos, significasse uma revogação do status de proteção especial que a maior parte destes possuíam nas monarquias . Na Alemanha, o movimento anti-semitista iniciou-se justamente com a nobreza,cuja oposição ao Estado foi provocada pela transformação da monarquia prussiana em um Estado-Nação após 1871 por Bismarck, que mantinha estreitas relações com os judeus desde a época em que era primeiro-ministro. [10: Ib idem op. cit. página 52 “Assim, tornando-se antipática aos antipatizados judeus, a aristocracia almejava tornar-se simpática na opinião geral”. ][11: Ib idem op. cit página 38 : “ (...) os Münzjuden – judeus financistas – de Frederico da Prússia ou os judeus-da-corte do imperador austríaco receberam, sob a forma de “privilégios gerais” e “patentes”. O mesmo status que, meio século mais tarde, todos os judeus da Prússia receberiam com o nome de emancipação e igualdade de direitos...(...)”][12: Ib. idem op. cit. página 25 : “ A anti-semitismo austríaco tornou-se violento não sob o reinado de Metternich e Francisco José, mas na República austríaca após 1918, quando era perfeitamente óbvio que quase nenhum grupo havia sofrido tanta perda de influência e prestígio em consequência do desmembramento da monarquia dos Habsburgos, quanto os judeus.”]
Um outro fator que propiciou o surgimento do anti-semitismo foi a proeminência de tradicionais famílias judaicas no setor financeiro e bancário - setor em que os judeus foram de certa forma “confinados” após as proibições medievais de possuírem terra ou a falta de garantia contra a prática de constantes expulsões – e que gerou especulações sobre o seu poder político ilimitado e delírios de uma conspiração mundial, mas que, contrariamente ao alegado, nunca foi utilizado em benefício da condição política dos judeus em geral, ou ainda para a constituição do um Estado judeu ou empreendimento semelhante. No entanto, como destaca ARENDT, “para o pequeno lojista, o banqueiro parecia ser o mesmo tipo de explorador que o proprietário da grande empresa industrial era para o trabalhador”[13: M. GRUNWALD, in ib idem op. cit : “(...) na Áustria, onde em 44 anos (1695-1739) os judeus creditaram ao governo mais de 35 milhões de florins, e onde a morte de Samuel Oppenheimer em 1703 resultou numa grave crise financeira tanto para o Estado como para o imperador; na Baviera, onde em 1808 quase 80% de todos os empréstimos governamentais eram endossados e negociados por judeus. (...) ” Nota 6 da página 36. ][14: Segundo ARENDT, a formação do Sionismo foi uma reação ao anti-semitismo. A idéia sionista foi lançada por Theodor Herzl, então correspondente do jornal austríaco Die Neue Freie Presse em Paris. Herzl publicou em 1896 o livro Der Judenstaat (O Estado Judeu), antes de reunir, no ano seguinte, o primeiro congresso sionista na Basiléia, Suíça. A idéia sionista impressionou muitos judeus da Europa, mas não ao ponto de organiza-los com objetivos políticos, o que ocorreu apenas após a segunda guerra mundial, principalmente na luta pela criação do Estado de Israel.][15: Ib idem op. cit. página 57. ]
Por fim, a natural tendência dos próprios judeus em desenvolver-se separadamente levou à antipatia popular, habilmente manipulada pelos partidos de massa do totalitarismo que transformaram a discriminação em argumento político. Segundo ARENDT, “cada classe social que entrava em conflito com o Estado virava anti-semita, porque o único grupo que parecia representar o Estado, identificando-se com ele servilmente, eram os judeus.” [16: Ib idem op. cit página 45. ]
Por outro lado, procurando evitar resistências, a própria comunidade judaica buscava sua inserção social ao constituir uma intelligentsia judia e marcar sua presença nas ocupações culturais, fato especialmente marcante na Alemanha e na Áustria, ainda que neste último não houvesse intelligentsia judaica significativa antes do século XIX. Para ARENDT, 
“sentindo ali o impacto da pressão anti-semita, esses judeus intelectuais, como seus correligionários ricos, preferiam confiar na proteção da monarquia dos Habsburgos, e só se tornaram contestadores do status quo e socialistas depois da Primeira Grande Guerra, quando o Partido Social-Democrata subiu ao poder”. [17: Ib idem op. cit página 87. ]
Configurada a resistência social aos judeus – apenas reforçada pelo anti-semitismo – e o desejo dos mesmos em se integrarem, configurada está a “complexa psicologia do judeu médio”, nas palavras de ARENDT. Segundo ela,
 “os judeus sentiam simultaneamente o arrependimento do pária que não se tornou arrivista e a consciência pesada do arrivista que traiu o seu povo ao trocar a participação na igualdade de direitos de todos por privilégios pessoais. Uma coisa era certa: quem desejasse evitar todas as ambigüidades da existência social precisava aceitar com resignação o fato de que ser judeu significava pertencer ou a uma classe superprivilegiada, ou a uma massa marginal subprivilegiada.”. [18: Ib idem op. cit. página 89 ]
Ao comentar um adágio popular em voga, “ser homem na rua e judeu em casa” conclui a autora : “Não era fácil deixar de se assemelhar ao “judeu” e permanecer judeu; fingir não ser como os judeus e, contudo, demonstrar com suficiente clareza a sua judeidade.” [19: Ib idem op. cit. página 90.]
1.2 A vida de Kelsen frente ao anti-semitismo: as raízes da tolerância. 
A reconstituição das experiências e emoções de HANS KELSEN - talvez o maior teórico do Direito do século XX - é uma tarefa que se faz possível graças à biografia publicada pelo também jurista e discípulo RUDOLF ALADÁR MÉTALL, que, para tanto, valeu-se, conforme consta da introdução da referida obra, de uma “auto-exposição” manuscrita do próprio KELSEN e de uma “autobiografia” datilografada, além de diversas conversas travadas em Viena, Colônia, Genebra, Nova Iorque e Berkeley, bem como da proximidade pessoal e do conhecimento de sua obra decorrente do fato de exercer a condição de organizador dos escritos de KELSEN. No entanto, apesar de a referida biografia ter atingido apenas sua vida e obra até 1968 - a primeira edição da obra foi publicada em Viena pela editora Franz Deuticke em 1969 -, não tendo sido possível cobrir ou atualizar a mesma até a data do falecimento de KELSEN em 19 de abril de 1973, ela é referência indispensável para a compreensão das origens e desenvolvimento do seu pensamento. [20: MÉTALL, Rudolf Aladár. Hans Kelsen. Vida e Obra.. México : UNAM/Instituto de Investigações Jurídicas, 1976. ][21: Em 2008 foi publicado na Itália a sua autobiografia, na verdade duas versões do próprio autor, uma dos anos 1927e outra de 1947, reunidas na edição a seguir referida e acrescida de um precioso álbum fotográfico, a saber: LOSANO, Mario G. (org.) Hans Kelsen: scritti autobiografici. Reggio Emilia Italia: Ed. Diabasis, 2008. ][22: Conforme é reconhecido expressamente por KELSEN ao final do prefácio a 2ª edição da Teoria Pura do Direito, datado de 1960. Vide KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1995. ][23: Em virtude do falecimento posterior do próprio MÉTALL, ocorrido em 30 de novembro de 1975, de um ataque cardíaco em Genebra, Suíça (vide prólogo de SCHMILL, Ulises in Hans Kelsen. Vida e Obra..) ]
Assim descreve MÉTALL a origem do patronímico KELSEN: 
“ Na fronteira de Luxemburgo com a Alemanha, ao sudoeste de Saarburg em direção a Remich e entre Sarre e Mosela, está uma pequena comunidade que em 1953 contava com 139 habitantes a qual leva, conforme o Grande Dicionário geográfico alemão Müller (10ª edição de 1953), o nome de “Kelsen sobre Saarburg, distrito de Trier” Tendo em vista que este lugar somente se encontra em grandes mapas, se dá aqui sua exata posição geográfica: 49.34 N., 6.29 E. (Palatinado Renano). 
A esta comarca devem ter chegado na antigüidade mercadores judeus, que vinham com os legionários romanos encarregados de proteger as fronteiras do império; estes mercadores emigraram séculos mais tarde em direção ao leste, quando as perseguições medievais contra os judeus fizeram que buscassem novos refúgios. Quando ao final do século XVIII se deram sobrenomes as famílias judias que habitavam na Áustria, é sabido que muitas delas escolheram o nome do lugarde sua procedência como patronímico. É possível que desta maneira tenham obtido seu sobrenome os antepassados de Kelsen”. [24: Ib idem op. cit. página 9. (tradução livre do espanhol). ]
A origem do patronímico Kelsen ainda causaria discussões quando da realização de um seminário sobre o tema “Os judeus na ciência do Direito”, realizado em 03 e 04 de outubro de 1936, evento presidido por Carl Schmitt e organizado pelo Grupo de Professores de Educação Superior da Liga Nacional—socialista dos Defensores do Direito. Na oportunidade, o professor Erich Jung insistiu chamar KELSEN de “Kelsen Kohn” e a pretendida mudança de nome foi repetida, quase 30 anos após, por um professor austríaco, como se fosse alguma vergonha chamar-se Kelsen ou Kohn, ou ainda como se isso pudesse desmerecer o valor de sua obra, observou indignado MÉTALL. [25: Ib idem op. cit. página 9. ]
Tal fato, dentre outros, demonstrará até que ponto a “questão judaica” esteve presente no cotidiano de Kelsen, moldando suas atitudes e sua visão de mundo e em conseqüência sua compreensão e conceito de Direito. 
Sobre sua origem, pouco se pode informar, porém é certo que o avô de Kelsen foi enterrado no cemitério judeu de Brody na antiga Galícia austríaca, na mesma cidade onde nasceu também o pai de Hans Kelsen, Adolfo Kelsen, em 1850. Aos catorze anos, por absoluta necessidade financeira, emigrou Adolfo Kelsen para Viena, capital do império austro-húngaro, o mais poderoso império europeu no final do século XIX. Posteriormente o pai de Kelsen se mudou para a cidade de Praga para começar uma pequena indústria de luminárias onde conheceu e casou-se com Auguste Löwy, nascida na Boêmia, que integrava o Império Austro-Húngaro e mais tarde constituiria a República da Tchecoslováquia. Segundo informa seu biógrafo, “certamente Hans Kelsen mesmo não falou nunca tcheco e seu idioma materno era o alemão.” [26: Ib idem op. cit página 10.]
Em 11 de outubro de 1881 nasceu Kelsen, primogênito de recente união, na cidade de Praga. Quando contava com três anos, seus pais decidem voltar à capital do Império, Viena, que nas primeiras duas décadas do século XX, se tornaria o centro cultural da Europa, reunindo os maiores nomes da cultura em geral, ambiente fértil em que Kelsen posteriormente buscaria formação. 
Seus pais, ainda que pertencentes à “religião mosaica” como se costuma dizer, parecem ter sido indiferentes à formação judaica de Kelsen - a se crer nas informações de seu biógrafo -, pois o teriam enviado para uma escola evangélica primária em Viena. Posteriormente ingressou em 1892 no Ginásio Acadêmico de Viena, onde desenvolveu gosto pela literatura e poesia, bem como o contato com a poesia. Por volta de dezesseis anos, teve contato com a filosofia de Schopenhauer, o que ajudou a moldar sua visão pessimista de mundo e com a de Kant, de onde extraiu a idéia do sujeito que cria o objeto no processo de conhecimento. Empolgado com os estudos filosóficos, pretendia inscrever-se na Faculdade de Filosofia, mas visando a uma profissão mais segura de fornecer melhores condições econômicas para si e para sua família, conforma-se, sem muito entusiasmo, em ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Viena, com o propósito de chegar a ser advogado ou juiz, porém, nunca considerando a hipótese de chegar a professor de escola superior.
Na Faculdade de Direito da Universidade de Viena, interessou-se pela cadeira de História da Filosofia do Direito, que era ministrada por Leo Strisower, e, segundo suas próprias palavras, um pouco decepcionado com as demais disciplinas, deixou em pouco tempo de freqüentar a maioria dos cursos e dedicou-se à leitura de obras filosóficas. Foi com seu professor de Filosofia de Direito que Kelsen ficou sabendo de uma obra escrita por Dante Aliguieri, sobre filosofia política: De Monarchia.
Essa informação e o gosto pela pesquisa levariam Kelsen a trabalhar em seu primeiro livro: A doutrina política de Dante Aliguieri. Com o passar do tempo, o interesse filosófico pelos problemas jurídicos foi-se desenvolvendo nas questões de Teoria do Direito, tais como pessoa jurídica, Direito subjetivo e, principalmente, o conceito de norma jurídica. Foi a partir daí, que intuitivamente pareceu a Kelsen necessário estabelecer uma rigorosa distinção da Ciência jurídica de uma parte, da Ética e da Sociologia por outra. Foi apenas após a publicação de sua obra Problemas Capitais da Teoria jurídica do Direito e do Estado em 1911 que Kelsen foi alertado por comentários de que seu pensamento tinha o paralelo com o de outro pensador judeu de Marburgo, Herman Cohen, expresso na obra Ética da vontade pura. Com certeza, foi sob a influência desse autor que Kelsen elegeu a denominação de seu pensamento jurídico como “Teoria pura do Direito”.
Com vinte e cinco anos de idade, depois de prestar os exames finais em 18 de junho de 1906, recebeu Kelsen, o título de Doutor em Direito pela Universidade de Viena. Porém, a preocupação com a situação econômica familiar fez com que Kelsen se dedicasse à carreira docente. Com o agravamento da doença cardíaca de seu pai em 1905, e conseqüente falecimento do mesmo em 1907, a decisão de lecionar se consolidou. A solução encontrada por Kelsen para contribuir no sustento da família, da qual era o filho mais velho, foi a de dar aulas particulares para preparação de exames finais de Direito. 
Em que pesem as questões particulares, Kelsen dedicou-se ao estudo da legislação eleitoral, em especial à reforma que introduziu o direito de voto universal e direto no parlamento imperial austríaco, estudos esses que lhe garantiram uma bolsa de estudos de três semestres em Heidelberg, onde teria aulas com Georg Jellinek, considerado, naquele tempo, a maior autoridade na Teoria Geral do Estado. Ao despedir-se de Viena, informando sobre o seu desejo de estudar e ingressar na carreira acadêmica foi desestimulado pelo seu antigo professor Bernatzik, que lhe disse ter poucas possibilidades de fazer uma carreira acadêmica e que seria melhor ser advogado ou empregado de Banco. Obviamente, como compreendeu Kelsen, tal fato se dava não somente por pertencer à religião judaica, senão também, por meramente ter ascendência judaica, obstáculo mais sério para uma carreira acadêmica no império austríaco, oficialmente católico do imperador Francisco José. É bom destacar que Kelsen, segundo seu biógrafo, sempre foi agnóstico e indiferente frente à religião e que em 1905, antes da própria bolsa de estudos, estando vivo ainda seu pai, Kelsen havia-se decidido batizar, pois ele acreditava que sem dar esse passo, devido ao anti-semitismo racial e religioso que imperava nas escolas superiores austríacas, o ingresso e progresso na carreira acadêmica estaria inviabilizado, visto que o acesso aos cargos públicos era prerrogativa exclusiva de católicos.
Em Heidelberg, Kelsen não conseguiu superar o círculo de admiradores e adoradores de Jellinek, que também de sua parte não admitia nenhuma contradição. Após ter estudar profundamente suas obras, ficou para Kelsen a impressão de que não haveria grandes contribuições dessa teoria na Teoria Geral do Direito, portanto, Kelsen limitou-se a assistir as aulas ministradas e permanecer sem maiores contatos pessoais com Jellinek, dedicando-se ao manuscrito de seu livro “Problemas capitais”. Mais tarde, conforme constataria com pesar, deixou de ter contato com o círculo de Max Weber, que fazia muito sucesso com suas aulas em Heidelberg, e com cujos escritos somente mais tarde se familiarizaria. Depois da Primeira Guerra Mundial, quando Max Weber esteve por curto tempo como professor convidado em Viena, Kelsen pôde conhecê-lo pessoalmente e verificar a coincidência de muitos pontos de vista, principalmente no tocante a necessária separação entre a política e a ciência como concepções de mundo e métodos necessariamente distintos. 
Por razões familiares, Kelsen teve que interromper sua estância em Heidelberg antes do planejado e sem haver terminado o manuscrito dos “Problemas capitais”. Retornando a Viena,solicitou uma vaga que estava livre como redator no escritório da Universidade de Viena e após ter recebido a notícia de que era o melhor candidato, segundo o Diretor Administrativo, foi posteriormente chamado a sua presença, onde o mesmo bastante constrangido, lhe afirmou que a indicação ao reitor não poderia ser atendida em vista dos documentos que acompanhavam o pedido, a saber, a certidão de nascimento datada de 1881 e a certidão de batismo de 1905, isto é, tinha sido ele preterido por sua origem judaica. O Diretor argumentou, ainda, que a nomeação de uma pessoa de origem judaica para um posto que exigia relações com estudantes alemães, cada vez mais anti-semitas não podia acontecer, declarou o mesmo. Destaque-se o fato de que o Diretor lamentava o ocorrido, permanecendo Kelsen com suas aulas particulares. No entanto, em virtude de seus artigos sobre direitos eleitorais e políticos, passou a lecionar ocasionalmente na Academia de Exportação Real e Imperial Museu de Comércio de Viena, onde, finalmente, por Decreto do Ministério do Comércio datado de 21 de junho de 1911, obteve o cargo de professor adjunto em caráter provisório, iniciando aí sua carreira docente como professor de Teoria Constitucional e Administrativa. No mesmo ano, como resultado de cinco anos de trabalho preparatório, publicou finalmente “Problemas capitais”, obra com mais de 720 páginas a qual teve que contribuir com os custos de impressão, mas que lhe deram fama e destaque imediato, não somente em Viena e na Áustria, bem como em todo o mundo de fala alemã e posteriormente em toda Europa.
Durante as aulas no Museu de Comércio, Kelsen conheceu um colega professor, Adolf Drucker, que lhe apresentou sua irmã Margarethe, nascida em Viena em 1890. Em 1912, Kelsen casou-se com a mesma e em 1914 nasceu sua primeira filha: Anna e em 1915 a segunda: Maria. Kelsen tinha então, 31 anos e sua esposa Margarethe 22 anos. A partir de então, decide pela fundação de uma revista de debates de Direito Público e após contatar seus antigos professores acaba na condição de secretário de redação organizando a Revista Austríaca de Direito Público. 
Devido à deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) Kelsen, na condição de primeiro Tenente da Reserva, foi chamado a incorporar-se ao regimento estacionado na cidade de Linz. Logo que chegou, teve uma grave pneumonia, que lhe causou uma reclassificação para “trabalhos de escritório”. Por intervenção de Ignaz Verdross, pai de seu discípulo Alfred, foi enviado ao escritório de provisões bélicas em Viena. Logo após a recuperação de sua saúde, nova intervenção de colegas conseguiram para ele a função de representante de procurador militar no Tribunal de Viena. Estimulado pelo trabalho, que consistia em exarar pareceres em processos disciplinares e após conseguir um grande número de absolvições, foi transferido ao Departamento de Justiça no Ministério da Guerra e logo após assessor imediato do próprio ministro, em virtude de artigos que escreveu sobre a reforma do Exército. Começa, então, um trabalho de grande influência e responsabilidade: além de acompanhar o ministro em várias conferências e reuniões do Estado Maior e do próprio gabinete, chegou a produzir um relatório ao Imperador Carlos. Em outra ocasião, interveio para que o ministro da Guerra recebesse Otto Bauer, político social-democrata e posteriormente líder do partido na Alemanha à época da ascensão de Hitler ao poder. O desempenho dessas funções no período final da Primeira Guerra o tornaria pessoa de confiança dos militares, que logo após seriam os fiadores da proclamação da República Austríaca, fato que posteriormente lhe propiciaria o convite para redigir um anteprojeto de Constituição, que se tornaria a base das discussões da assembléia constituinte da primeira Constituição da República Austríaca.
Pelos serviços desempenhados no Ministério da Guerra, Kelsen recebeu o apoio decisivo do ministro para sua candidatura a vaga de professor extraordinário da Faculdade de Direito das Universidade de Viena, algo que lhe parecia impossível devido à sua origem judaica, mas que após alguns obstáculos acabou conseguindo em julho de 1918. Tinha então, trinta e sete anos de idade.
Suas primeiras turmas na Universidade de Viena foram formadas por estudantes de várias nacionalidades que se tornaram posteriormente grandes autores da Ciência e da Filosofia do Direito, como Alf Ross da Dinamarca; Charles Eisenmann da França; Tomoo Otaka do Japão e Luis Legaz y Lacambra e Luis Recaséns Siches da Espanha, entre outros. Desde o início de sua carreira docente. não só pregou como praticou a tolerância para com as opiniões que divergiam de suas doutrinas. Assim sendo, Kelsen jamais teve uma posição de “chefe de escola” preferindo sempre o debate das distintas concepções e posições políticas de seus discípulos, muitas vezes distintas de sua própria visão de mundo. 
Em Viena, cultivou um círculo de amizades que ia desde políticos sociais-democratas de “esquerda” como Karl Renner, Otto Bauer e Max Adler, bem como personalidades burguesas de “direita” como os economistas e professores Joseph A. Schumpeter e Ludwig von Mises, sendo que, esse último, havia sido seu colega dos bancos escolares fundamentais.
Apesar das amizades, Kelsen nunca teve nenhum tipo de vínculo político-partidário, razão pela qual jamais se filiou ao partido Social-democrata com qual tinha maior afinidade, apesar de rechaçar a teoria política do marxismo, isto porque considerava que um professor na área de Ciências sociais não deveria possuir vínculo com nenhum partido político, na concepção de que isso restringiria sua independência científica, tal como já havia alertado Max Weber. No entanto, via com simpatia aos partidos que eram ao mesmo tempo socialistas (entendidos como defensores de um certo planejamento estatal da economia) e democráticos, conforme confessou em sua autobiografia.[27: Conforme as conferências proferidas por Max Weber na Universidade de Munique em 1918 e publicadas em 1919, intituladas: “Política como vocação” e “Ciência como vocação”. In WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5a ed. Rio de Janeiro: Guanabra/Koogan, 1982, p. 98-183.][28: MÉTALL, R. A. Op. Cit. p. 40. ]
As relações pessoais que mantinha com os políticos sociais-democratas, em especial com Karl Renner, posteriormente chanceler da República Austríaca, propiciaram sua nomeação como integrante da comissão que elaboraria o texto da Lei Constitucional da República Austríaca. O grande modelo seria a Constituição de Weimar, que se encontrava também em preparação. Porém, para Kelsen, a grande questão técnica não consistia em apenas codificar os princípios políticos, mas sim em construir as garantias efetivas para o cumprimento da Constituição e do controle da Constitucionalidade das funções do Estado, para ele o núcleo jurídico da Constituição. O Tribunal Imperial foi convertido por Kelsen em um verdadeiro Tribunal Constitucional, na verdade o primeiro modelo deste tipo na História do Direito Constitucional.
Para Kelsen, na efetiva realização do princípio do Estado do Direito, compreendido como princípio da constitucionalidade da legislação e da legalidade de sua execução (justiça e administração) estava a garantia mais marcante de defesa da constituição. Promulgada em 1o de outubro de 1920, tornou-se a Constituição definitiva da Áustria, tendo sido posta novamente em vigor após 1945 como fundamento jurídico da Áustria. Pouco antes, na seqüência de sua carreira acadêmica, havia sido nomeado professor ordinário de Direito Constitucional e Administrativo na Universidade de Viena. Teoricamente, desenvolvia a investigação sobre o problema da soberania que tinha começado durante a Primeira Guerra Mundial e que, posteriormente se apresentaria no livro “O problema da soberania” aparecido em 1920, obra na qual apareceria pela primeira vez a expressão “teoria pura do Direito” (indicada no subtítulo), a idéia da unidade entre Direito e Estado, bem como a doutrina da estrutura hierárquica do direito positivo, queKelsen aproveitou do discípulo e amigo Adolf Merky.[29: Em tradução italiana: KELSEN, Hans. Il problema della sovranità. Milano: Giuffrè, 1989. ][30: MÉTALL, R. A. Op. Cit. p. 45. ]
Ao mesmo tempo em que desenvolvia seus trabalhos teóricos-jurídicos, Kelsen dedicava-se ao escritos sobre ciência política, especialmente sobre os problemas fundamentais da democracia, que enfrentava violentas críticas teóricas tanto por parte das ideologias nazi-facistas, quanto por parte do incipiente modelo da “democracia socialista” experimentada pela República Soviética e decorrente da revolução bolchevique de 1917. Escrita praticamente como um contraponto ao pensamento do jurista alemão Carl Schmitt, surge a obra “Essência e Valor da democracia”, publicada em 1920 e republicada com uma substancial ampliação em 1929. Já em 1912, Kelsen havia publicado um artigo denominado "Cosmovisão política e educação” em que identificava na ideologia democrática uma clara tendência por uma concepção empirico-relativista, enquanto as formas políticas autocráticas corresponderiam a uma concepção metafísico-absolutista, tese por ele retomada em “Essência e Valor da democracia”. Também em 1920 publicou o resultado de suas reflexões dobre a teoria política marxista sob o título de “Socialismo e Estado” reeditado em 1923 de forma mais ampla. [31: O célebre debate entre os referidos pensadores se deu principalmente através da obra citada de Kelsen em confronto com a obra de Schmitt intitulada “A crise da democracia parlamentar” ( tradução brasileira publicada pela editora Scritta, São Paulo, em 1996), com a primeira edição alemã em 1923 e segunda edição em 1926 onde aliás, existe uma crítica indireta ao pensamento de Kelsen em seu prefácio. ][32: Em tradução brasileira está disponível em coletânea de textos publicada em: KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ][33: Em tradução espanhola: KELSEN, Hans. Socialismo y Estado. Mexico:Siglo Veintiuno Editores, 1982. ]
Outra área de reflexão de Kelsen foi a relação entre o Direito e a psicanálise. Atendendo a convite de Freud, Kelsen proferiu uma conferência em 30 de novembro de 1921 perante a Sociedade Psicanalítica de Viena sobre o tema “O conceito de Estado e a psicologia de massas de Freud”. Essa análise causou tão boa impressão que foi posteriormente publicada no órgão oficial do movimento psicanalítico, a revista Imago, bem como foi objeto de comentário favorável expresso do próprio Freud , apesar das críticas a aspectos da conceituação freudiana. A influência psicanalítica na investigação kelseniana pode ser encontrada também na obra “Deus e Estado”, em que, além do mecanismo da hipostasiação, isto é, a tendência de atribuir uma “personalidade” à figura jurídica do Estado (base do criticado “dualismo” Direito-Estado), aponta também as teorias jurídicas dualistas de estado como verdadeiras teodicéias/teologias . [34: Nota de rodapé número 2, acrescentada em 1923 : [Divirjo do que, em outros respeito, constitui compreensiva e arguta crítica de Hans Kelsen (1922), quando diz que prover a “mente grupal” de uma organização desse tipo significa uma hipóstase dela, ou seja, implica um atribuição a ela da independência dos processos mentais no indivíduo.] in “Psicologia de grupo e a análise do ego” FREUD, Sigmund. “Obras psicológicas completas de Sigmund Freud : edição standard brasileira. Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.97. ][35: Em tradução italiana: KELSEN, Hans. Dio e Stato: La giurisprudenza como scienza dello spirito. Napoli: Ed. Scientifiche Italiane, 1988.][36: Notável nesse sentido é o esforço de Carl Schmitt em sua “Teologia Política” publicada originalmente em alemão em 1922, in SCMITT, Carl. Op. Cit. p. 81-130. ]
Segundo dados de sua autobiografia citada por MÉTALL, foi com base em sua experiência pessoal e observação do funcionamento do Império Austro-Húngaro como Estado Multinacional (alemão, húngaro, tcheco e eslovaco) que Kelsen concluiu ser o Estado apenas uma unidade jurídica: [37: Op. Cit. p. 49. ]
“A vista do Estado Austríaco, composto de grupos tão distintos por sua raça, idioma, religião e história, as teorias que pretendem fundamentar a unidade do Estado em algum nexo psico-social ou biológico-social dos homens que juridicamente pertencem ao Estado, se mostram claramente como ficções. Enquanto que esta teoria do Estado é uma parte essencial da teoria pura do direito, pode considerar-se a teoria pura como uma teoria especificamente austríaca” 
Pelo exposto e reconhecido pelo próprio biografo de Kelsen, “a doutrina de Kelsen, assim como sua visão de mundo, haviam tido suas raízes espirituais na velha monarquia austríaca...”, ainda que, conforme já se disse, tenha sido Kelsen indiferente a nacionalidade. 
Simultaneamente aos encargos de docente, a partir de sua eleição por todos os partidos da Assembléia Nacional Austríaca como integrante vitalício do recém-constituído Tribunal Constitucional (aprovado pela Lei Federal sobre a Organização e o Procedimento do Tribunal Constitucional de 13 de julho de 1921), passou a exercer no mesmo a função de relator permanente. No entanto, a situação política da Áustria caminhava rumo à implantação de um sistema fascista a partir de 1924 e que desembocaria posteriormente na Anchluss (anexação da Áustria pela Alemanha nazista em 13 de março de 1938).
O processo de ascensão do fascismo na Áustria teve teve início a partir da entrada em vigor da constituição federal em 1920, quando o partido social-democrata foi alijado do poder federal, ficando restrito ao governo da capital federal: Viena. Desde 1924, coube ao Partido Social-Cristão, em cumprimento do ideário baseado no regime fascista italiano, fortalecer o poder do Presidente da República e o do poder executivo. O objetivo era o de preparar um governo sem parlamento ou limites formais. Portanto, incumbia transformar o Tribunal Constitucional a fim de anulá-lo. Como pretexto, foi utilizado o caso das “dispensas” matrimoniais. Segundo o Código Civil aprovado pelo Império em 1811 e mantido em vigor na primeira república o matrimônio entre católicos era indissolúvel, conforme seu artigo 111. No entanto, o Direito austríaco permitia uma separação de corpos (artigo 103) e até mesmo a “dispensa” de eventuais impedimentos por parte do monarca ou seus representantes, ou seja, autorizava a constituição de novo matrimônio (artigo 83 a 88). Deste modo, o Código Civil continha dois princípios contraditórios: o princípio católico da indissolubilidade do matrimônio e, por outro lado, o princípio absolutista da ilimitabilidade das faculdades da administração para outorgar dispensa. 
Com a proclamação da República, teve início uma praxe de as autoridades administrativas federais concederem as dispensas. Mesmo quando se recorria as autoridades administrativas máximas até eventualmente chegar ao chanceler, em sendo um social-cristão, buscava esse uma licença breve, para que o vice-chanceler geralmente de outro partido pudesse manter as dispensas concedidas. No entanto, apesar desse curioso recurso, começaram a pipocar diversas decisões dos tribunais regionais declarando inválida a dispensa outorgada por autoridades administrativas. Com isso, teve início uma situação insustentável: o combate político e ideológico dos tribunais a autoridade adminstrativa, em uma verdadeira usurpação de competências. Assim retrata Kelsen em sua autobiografia, em trecho citado por MÉTALL : [38: Op. Cit p. 58-59. ]
“O mesmo Estado que através de seus funcionários administrativos permitia expresamente a celebração de um matrimônio, declarava através de seus tribunais ao mesmo matrimônio como inválido. (...) Conforme o direito vigente, os tribunais ordinários careciam de competência para decidir acerca da legalidade de um ato administrativo. Para a decisão acerca da legalidade de um ato administrativo, era competente única e exclusivamente um tribunal especial: o Tribunal Administrativo. Se um tribunal ordinário ao decidir sobre a validade de um matrimônio,declarava ainda que fosse como uma questão prévia, a ilegalidade de um ato administrativo que fundamentava a celebração do matrimônio, se excedia na competência que lhe fora estabelecida e invadia a do Tribunal Administrativo.(...) Desde então, todo defensor de um matrimônio dispensado no processo de anulação de dirigia, naturalmente, ao Tribunal Constitucional, o qual decidiu sempre da mesma maneira, que dizer, declarando a incompetência do Tribunal Ordinário para pronunciar-se acerca da ilegalidade do ato administrativo e anulando, por essa razão, a sentença que invalidava o matrimônio.(...) Precisamente esta atitude da Corte, conservadora no melhor sentido da palavra e segundo a qual intervinha devidamente a favor do direito existente e da autoridade estatal que descansava sobe ela, a conduziu a sua dissolução.” 
A atitude do Tribunal Constitucional como defensor do Estado de Direito, acabou implicando em uma pressão dos círculos clericais e da imprensa social-cristã contrários e identificando em Kelsen o principal formulador da tese da incompetência dos tribunais ordinários. Desde então, passou a ser objeto de críticas eivadas de anti-semitismo pela imprensa, chegando à colocação de cartazes com “os mais obscenos insultos sexuais” na porta de sua casa, encontradas por suas duas pequenas filhas. O resultado das pressões foi a aprovação da reforma constitucional que reorganizou o Tribunal Constitucional em 07 de dezembro de 1929 e substituiu o critério de eleição de seus membros vitalícios para o parlamento pela indicação do governo. Dessa forma, os juízes com caráter vitalício foram retirados de seus postos a partir de 15 de fevereiro. Logo após, Kelsen afirmaria que considerava a eliminação de um Tribunal constitucional independente do governo como um passo de tendências fascistas, como depois se demonstrou verdadeiro com relação ao partido social-cristão. 
Destituído do seu cargo no Tribunal Constitucional, passou a ser alvo de violentos ataques pessoais e contra sua doutrina na Universidade de Viena, o que contrastava com os incessantes convites para palestras e para lecionar em universidades estrangeiras. Sentindo que o ambiente lhe ficava cada vez mais desfavorável, decidiu por aceitar convite que lhe havia sido dirigido pela universidade de Colônia e deixou a Áustria. 
Em 02 de novembro de 1930, - “dia de finados”, como faz questão de lembrar MÉTALL -, Kelsen chegou a Colônia, encarregado da cátedra de Direito Internacional. Segundo lembra seu biógrafo, “conforme o tratado internacional entre Alemanha e Áustria, vigente naquele tempo, com a aceitação de uma cátedra na universidade alemã, Kelsen adquiria a cidadania alemã, recebendo por isso um passaporte alemão.” Com 49 anos, preocupava-se Kelsen também com a aposentadoria, visto que, após quase 30 anos de serviço, acreditava que seria aceito pela parte alemã. Sua recepção foi excelente e sem dificuldades, acolhido que foi pelo administrador da universidade o Doutor Konrad Adenauer, que seria mais tarde o grande estadista da República Federal da Alemanha. Tudo parecia correr muito bem, inclusive com sua eleição para decano da Faculdade de Ciências Jurídicas de Colônia para o ano acadêmico de 1932-33. [39: Op. Cit. 64. ]
Em 30 de janeiro de 1933, com a chegada de Hitler ao poder, Kelsen decidiu-se por renunciar ao cargo de decano. Dias depois, no entanto, soube pela leitura do jornal que havia sido “licenciado” de seu cargo. Seus colegas da Faculdade de Direito ainda enviaram um pedido ao Ministério da Educação, alegando que as destituições estavam-se dando, segundo alegava o governo então, não por razões “raciais”, mas contra os “marxistas”. Recordavam então que Kelsen não só nunca tinha sido membro do partido social-democrata, como ainda era um crítico do marxismo e da teoria marxista do direito. No documento, citado por seu biógrafo, constaria ainda “que todos os membros da faculdade estavam fortemente convencidos da valiosa personalidade humana de Kelsen”. Por fim, pediam que “o licenciamento provisório do professor Kelsen não se convertesse em uma medida definitiva, senão que melhor se lhe autorizasse a permanecer em seu posto docente”. Conforme faz questão de lembrar MÉTALL, todos os professores assinaram o pedido, com exceção de um único membro: Carl Schmitt, que segundo afirma, devia sua nomeação como professor titular em Colônia, em grande parte, ao esforço pessoal de Kelsen em vencer as resistências contra o seu nome no próprio corpo docente. Mais ainda, pelo menos em três ocasiões (3 e 7 de setembro e 7 de outubro de 1932), Kelsen lhe enviou cartas pessoais visando convence-lo a aceitar o encargo , o que demonstra um empenho muito pessoal na sua nomeação. Certamente, não contava com o oportunismo político de Carl Schmitt que se transformaria depois em conselheiro de estado a partir de 1º de julho, nomeado por Göring . Em sua escalada adesista, a partir do outono de 1933, começou a adaptar sua obra aos princípios nazistas, inserindo nelas citações anti-semitas e valendo-se de conceitos como “raça” e “sangue” que anteriormente havia qualificado como absurdos. Curiosamente, se fosse seguido o critério biológico do nazismo, sua mulher, que era descendente de sérvios, bem como seus filhos deveriam ser excluídos da comunidade nacional ariana, afirma o estudioso de sua obra, BENDERSKY. [40: MÉTALL, op. cit. p. 67. ][41: BENDERSKY, Joseph W. Carl Schmitt: teorico del Reich. Bologna: Il Mulino. 1989, p. 227-228. A cátedra lhe foi oficialmente oferecida em 06 de agosto de 1932 e Schmitt a aceitou no fim de novembro com o compromisso de assumir o encargo apenas a partir de 1º de abril de 1933. ][42: BENDERSKY, op.cit. p 243. ][43: BENDERSKY, Joseph. W. op. cit. p. 247. ]
Enquanto isso, logo após seu desligamento compulsório da universidade de Colônia, Kelsen decidiu aceitar uma série de convites para a realização de conferências na Escandinávia, e em fins de março de 1933, viajou para Lund, Uppsala e Estocolmo. Estando em trânsito na Suécia, recebe informações por carta que no 1º de abril de 1933 – declarado “dia dos judeus” -, iniciara-se a primeira de uma série posterior de perseguições. Decide então retornar urgentemente para reencontrar-se com a família e providenciar a saída da Alemanha.
Paralelamente seu desafeto, Carl Schmitt, prosseguia na justificação das mais atrozes ações de Hitler , até ele próprio cair em desgraça junto ao poder em 1937, permanecendo até o final da Guerra sob a estreita vigilância das SS. Após a derrota do III Reich, chegou a ser preso - setembro de 1945 a 29 de abril de 1947 –, acusado de contribuir com seus escritos para a justificação do nazismo e teve que responder a inquérito perante o Tribunal de Nuremberg. Solto, passou seus últimos dias na “segurança do silêncio” e afastado do mundo universitário, até falecer em 1985.[44: Talvez o momento mais deprimente de sua atuação tenha sido a produção do breve artigo “O Führer proteje o direito” (Das Führer schütz das Recht) publicado logo após o expurgo por meio do assassinato de companheiros e lideranças das S. A. - dentre elas, o seu líder Ernest Röhm - no episódio conhecido como “a noite das longas facas”, ocorrido em 30 de junho e que se prolongou até 02 de julho de 1934. Calcula-se que tenham sido mortos de 150 a 200 pessoas, incluídas aí o ex-comandante do Exército e chanceler Schleicher, sua mulher, seu amigo o general von Bredow, Edgar Jung e dois assessores de von Papen, tendo sido este colocado em prisão domiciliar, mesmo sendo o vice-chanceler de Hitler. O episódio como um todo, incluindo o contexto e as consequências pode ser analisado na obra de TOLSTOY, Nikolai. A noite das longas facas.(História Ilustrada da 2ª guerra mundial: política em ação ) Rio de Janeiro: Editora Renes, 1976. ]
Inicia-se então para Kelsen a última tentativa de permanecer na Europa. Além das dificuldades inerentes a todo aquele de ascendência judaica em uma Europa cada vez mais consumida pelo nazi-facismo, Kelsen ainda tinha a responsabilidade de zelarpor uma esposa e duas filhas menores. Não possuía emprego fixo, não tinha nacionalidade reconhecida – na Áustria o partido social-cristão implementava leis anti-judaicas semelhantes a da Alemanha Nazista -, e sua perspectiva de aposentadoria esvaia-se ao mesmo tempo em que praticamente se consolidava a condição de apátrida.[45: Com o partido social-cristão no poder a partir de 1924, foi se instaurando um regime de tendências facistas. Em 1929 é realizada uma reforma na Constituição sob o governo do chanceler Engelbert Dollfuss e em 12 de fevereiro de 1934 é deflagrado sob suas ordens uma grande repressão aos trabalhadores e lideranças sociais-democratas. Segundo relato contido em SHIRER, Willian L. Ascensão e queda do Terceiro Reich. (volume II). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira. 1962, p. 74 : “ (...) dezessete mil homens das tropas do govêrno e da milícia fascista dirigiram o fogo da artilharia sobre os apartamentos dos trabalhadores, em Viena, matando um milhar de homens, mulheres e crianças, e ferindo mais uns três a quatro mil. As liberdades democráticas foram suprimidas e daí em diante a Áustria foi governada primeiro por Dollfuss e depois por Schuschnigg como uma ditadura clerical-facista.” Destaque-se que o próprio Dollfuss acabou sendo vitima de uma tentativa de golpe de estado promovido por um grupo de SS que invadiu a Chancelaria Federal da Áustria, em Viena, e atirou à queima-roupa no chanceler que agonizou por três horas até falecer. O golpe nazista porém não foi bem sucedido e Hitler teve que aguardar quatro anos até a Anchluss (anexação), quando entrou triunfalmente em sua terra natal e anistiou os assassinos de Dollfuss. Mais detalhes em TOLSTOY, op. cit. p.159. ]
Após constatar ser inviável o retorno a Áustria ou ainda outro emprego em faculdades de língua alemã, decide retornar a Genebra, onde chega com sua família em 18 de setembro de 1933. Havia conseguido aulas no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais, porém, o seu vínculo não lhe garantia direito a aposentadoria e o salário era inferior ao recebido em Colônia, ainda que suficiente para uma vida cômoda. Como dificuldade adicional, teve que desenvolver o seu francês para uma pronúncia correta, visto ser ferramenta essencial para a docência. Escrevia suas aulas e as lia três ou quatro vezes antes de pronunciá-las da cátedra. Logo no entanto, estaria apto a participar de discussões e de escrever em francês. 
Foi em Genebra que Kelsen concluiu a Primeira edição da obra Teoria Pura do Direito - primeira exposição sistemática da teoria pura - que foi publicada pela editora vienense F. Deuticke (a mesma que havia publicado sua primeira obra em 1905). Porém, segundo seu biógrafo, Kelsen também dedicou-se a palestras e conferências onde analisava as questões de Estado Unipartidário e de ditadura do partido, sempre na ótica da defesa da democracia. É em Genebra que empreende a construção de uma crítica da doutrina do Direito natural que pretendia unir a sua teoria pura do direito, em uma ampla teoria sistemática do positivismo jurídico. Surgem os seus estudos sobre a religião grega clássica e pré-homérica, sobre os conceitos de justiça de Platão e Aristóteles e sobre as religiões primitivas de outros povos (pré-animismo) a partir do material etnológico dentre outros de Lucien Lévy-Bruhl e Bronislaw Malinowski. Prenunciava-se uma sociologia da justiça a ser publicada posteriormente nos EUA. [46: MÉTALL, op. cit. p.72.][47: Em tradução para o espanhol: KELSEN, Hans. Sociedad y Naturaleza: una investigacion sociológica. Buenos Aires: Depalma, 1945. ]
Preocupado em garantir sua aposentadoria, Kelsen decidiu aceitar uma cátedra de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Alemã de Praga, em convite feito por um ex-aluno e apoiado por um grande número de professores da mesma instituição. Porém, os nacionalistas alemãs dos sudetos se mobilizaram contra a nomeação que somente se efetivou com a intervenção do presidente da República da Tchecoslováquia. Kelsen, então, decidiu repartir suas funções docentes entre Genebra e Praga, porém deixando sua família residindo na Suíça. 
 Desde o início de seus trabalhos em Praga, em outubro de 1936, as ameaças chegaram a tal ponto que puseram em perigo a sua vida. Os estudantes nazistas presentes a sua aula inaugural, prevista para as 8 horas, impediram que Kelsen se manifestasse. Controlado o tumulto apenas às 11 horas, logo que Kelsen iniciou sua fala, acompanhado do Decano da Faculdade, um estudante nazista gritou para que todos os presentes se retirassem. Ficaram apenas um punhado de alunos, no entanto, até mesmo estes foram retirados à força. Ao deixar o edifício, foi Kelsen recebido com gritos e assobios, quando o decano então ameaçou fechar a Faculdade se continuassem as manifestações. Kelsen teve que esperar quatro semanas para que pudesse desenvolver as aulas e ainda assim os estudantes nazistas decidiram por outra forma de manifestação: boicotar a presença em aula. Além disso, Kelsen recebia vários bilhetes anônimos nos quais havia ameaças de morte caso não abandonasse as aulas, o que não se devia subestimar, visto que outro professor Theodor Lessing, de fato terminou sendo morto em um atentado. 
Dados os acontecimentos, procurou Kelsen o primeiro-ministro da República da Tchecoslovávia, Eduard Benes, comunicando-lhe que pretendia renunciar, mas Benes pediu-lhe que permanecesse para a manutenção do prestígio de seu governo e apesar das dificuldades e ameaças pessoais, Kelsen permaneceu como professor até o semestre de inverno de 1938. Porém, após a anexação da Áustria em 1938 e a cessão dos sudetos alemães da Tchecoslováquia à Alemanha – no denominado acordo de Munique -, Kelsen via como iminente a ocupação do restante do país.
De fato, um novo governo pró-alemão foi instalado e começou a preparar a entrega do país. Conforme relata SHIRER, “precisamente antes do Natal, em 1938, o ministério tcheco, a fim de apaziguar novamente o Führer, dissolvera o Partido Comunista e suspendera todos os professores judeus das escolas alemãs.” Posteriormente, Hitler insuflou a independência da Eslováquia, declarando-se seu protetor e utilizando-se da ameaça de invasão do restante do país, conseguiu convencer o então presidente Hacha - sucessor em uma coalizão conservadora ao governo anterior de Benes –, a colocar “o destino do povo tcheco e do país nas mãos do Führer do Reich Alemão”, conforme comunicado assinado em 15 de março de 1939.[48: SHIRER, William L. op. cit. p. 227.][49: A “independência” da Eslováquia tinha o objetivo de enfraquecer e isolar o remanescente da República da Tchecoslováquia. Nesse sentido, teve papel fundamental o líder clerical-fascista e bispo católico, JOSEF TISO (1887-1947). Em SHIRER, op. cit. p. 232 temos que: “De acordo com o testemunho de Kepler em Nuremberg, que fora agene secreto de Hitler em Bratislava, como fora um ano antes em Viena, nas vésperas do Anschluss, os alemães ajudaram Tiso a redigir um telegrama que devia ser remetido polo Premier assim que voltasse a Bratislava, proclamando a independência da Eslováquia e pedindo urgentemente ao Führer que tomasse sob sua proteção o novo Estado”. Sobre o contexto consultar MILOSLAV, Novák. “Os checos e os eslovacos contra o Fascismo”.Praga: Orbis, 1992. Ainda em SHIRER, op. cit p. 232 temos a informação de que TISO, após a libertação foi “preso pelas autoridades do exército americano a 08 de junho de 1945, e entregue à recém restaurada Tchecoslováquia, foi condenado à morte a 15 de abril de 1947” e “executado a 18 de abril”. ]
Era o fim da República da Tchecoslováquia, que doravante se denominaria “Protetorado da Boêmia e da Morávia”, com um administrator-protetor nomeado por Hitler. A ocupação tinha o objetivo de implantar uma “solução final da questão tcheca” nos moldes da “solução final” reservada aos judeus, isto é, garantir pela “desocupação” física o espaço vital (lebensraum) para o pleno desenvolvimento do povo alemão. Ocupada por brigadas da SS que desenvolverambrutal repressão, apenas com a libertação de Praga pelo exército soviético em 09 de maio de 1945, terminou o domínio fascista e foi reconstituída a República da Tchecoslováquia. [50: MILOSLAV, op. cit. p.36]
Logo após a invasão da Polônia em 1º de setembro de 1939 - seguida da declaração de guerra da França e da Inglaterra dois dias após - Kelsen resolve abandonar a Europa. Durante o mês de agosto, Kelsen estava nos EUA em Cambridge, participando de um congresso e com muita dificuldade consegue retornar a Genebra. Decide-se a imigrar aos EUA, com ou sem emprego, porém encontra alguma dificuldade devido a política de “quotas” para o ingresso em solo americano que privilegiava aqueles que tivessem ocupação garantida. Porém, ainda em setembro de 1939, Alvin S. Johnson, presidente da New School for Social Research de Nova Iorque, ofereceu-lhe o emprego que garantia sua saída da Europa. Dessa forma, com muita tristeza deixou a cidade de Genebra em 28 de maio de 1940, com destino a Zürich, para obter o visto americano. Em seguida dirigiu-se a Locarno na Itália, de onde pegaram um avião rumo a Barcelona e daí seguiram até Lisboa onde embarcaram em um vapor norte-americano com destino a Nova Iorque. 
Ao chegar aos EUA, preferiu aceitar um convite que lhe havia feito o célebre jurista americano Roscoe Pound para lecionar na Harvard Law School, onde havia recebido o título de doutor honoris causa em 1933, visto que a permanência em Nova Iorque implicava em um custo de vida para o qual definitivamente não tinha meios. Dessa forma, assumiu as aulas em Harvard e ali permaneceu nos anos acadêmicos de 40/41 e 41/42, porém, o presidente da universidade decidiu não prolongar o contrato de Kelsen. Por recomendação de Roscoe Pound, ainda em princípios de 1942, recebeu Kelsen o convite para trabalhar como professor visitante da Universidade da Califórnia, em Berkeley, São Francisco, porém, não na Faculdade de Direito, mas sim, em seu departamento de ciência política.
Nos primeiros anos acadêmicos em Berkeley, de 1943 a 1945, decidiu alugar uma pequena casa e somente após sua contratação como professor titular é que resolveu adquirir uma modesta propriedade. Como relata surpreso seu biógrafo, foi com 65 anos que Kelsen pôde adquirir sua primeira casa: “Certamente não devemos imaginar uma casa que esteja em relação com a fama mundial de seu proprietário. É pequena, suficiente apenas para as exigências de duas pessoas modestas. Tem, no entanto, um lindo jardinzinho em que florescem as rosas.” Suas duas filhas já haviam deixado o lar paterno ainda em Genebra, uma com destino a Palestina e a outra rumo a Nova Iorque. [51: MÉTALL, op. cit. p. 84. ]
Nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, Kelsen foi por duas vezes chamado pelo governo dos EUA, mesmo sem ser ainda cidadão americano, a colaborar no esforço de guerra contra o III Reich : primeiramente no ano de 1944, atuando como assessor técnico do Bureau of Areas, Liberated Areas Branch, Economic Institutions Staff, (em Washington), “colaborando com os preparativos para a administração dos territórios que seriam liberados pelos aliados de mãos alemãs, especialmente na Áustria” e em 1945, quando inclusive teve que se licenciar de Berkeley, pois assumiu os encargos de assessor técnico da War Crimes Commission. Nesse mister, “desenvolveu durante três meses preparativos técnico-jurídicos para os processos de Nüremberg contra os criminosos de guerra nazistas, não tendo, no entanto, tomado parte do julgamento em questão.” [52: MÉTALL, op. cit. p. 85. ][53: MÉTALL, op. cit. p. 85. ]
Muito pouco conhecido, no entanto, é o fato de que Kelsen, mesmo tendo profundas razões de ordem pessoal e emocional - a perseguição sofrida por ele e sua família e o Holocausto do povo judeu pelos nazistas -, tenha conseguido manter-se como um cientista do Direito, purificado de interesses políticos imediatos como a vingança, na apreciação do Tribunal de Nüremberg. Corajosamente apontou em artigo denominado “Constituiria o julgamento de Nüremberg um precedente no Direito Internacional?” as deficiências procedimentais (e de legitimação?) do julgamento realizado pelas potências vencedoras e que após 10 meses e 403 sessões públicas resultou na absolvição de três homens, na condenação de sete à prisão e de doze à morte na forca. A posição jurídica de Kelsen foi comentada pelo autor de uma das mais famosas monografias a respeito - Bradley F. Smith. Descontadas as simplificações do historiador, é assim descrita: [54: KELSEN, Hans. “Will the Judgment in the Nuremberg Trial Constitute a Precedent in International Law?”. The International Law Wuartely,, I, number 2. 153-171. Este artigo é citado em SMITH F. Bradley. “O Tribunal de Nuremberg”. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1979, p. 363. ][55: Instaurado em 20 de novembro de 1945, encerrou seus trabalhos em 1º de outubro de 1946. SMITH F. Bradley, op. cit. p. XVIII. ]
“Uma das escolas de pensamento jurídico de maior influência na época era o positivismo jurídico, cujo porta-voz mais destacado, Hans Kelsen, sustentava que a validez de uma lei baseava-se unicamente nos tratados em vigor, nos procedimentos e nos costumes ; para os positivistas legais, as referências tradicionais a princípios jurídicos gerais ou universais não tinham o menor sentido. Não se precisava de muita imaginação para determinar quais as partes da Decisão de Nüremberg que seriam atacadas por Kelsen e seus colegas positivistas, pois era inevitável que eles teriam em mira o problema da guerra de agressão, se era ou não crime, e se líderes individuais do governo eram criminosamente responsáveis na época em que os atos inculpados no indiciamento tinham sido cometidos. Resumindo, o problema jurídico para a Corte, como disse Biddle a Nikitchenco com franqueza em setembro, era mostrar que suas medidas legais não tinham sido adotadas ex post facto.” [56: Respectivamente, Juiz titular Norte-americano e Juiz Titular Soviético, conforme SMITH F.Bradley, p. 327-328. ][57: Ib idem op. cit. p. 173. ]
 
Aqueles que ousavam levantar a voz contra os procedimentos empregados pelo Tribunal de Nüremberg, à época, eram tachados de humanistas ingênuos, quando não como “simpatizantes” da tese da impunidade. Nesse sentido, é esclarecedora a posição de KAHN, em livro denominado “Julgamento em Nuremberg: epílogo de uma tragédia”:
“Singularmente, os que condenam o que se fez em Nuremberg não têm apresentado qualquer alternativa para o que ali se passou. Limitam-se apenas a criticar”. [58: KAHN, Leo. “Julgamento em Nuremberg: epílogo de uma tragédia.” (História Ilustrada da 2ª Guerra Mundial – conflito humano1). Rio de Janeiro : Ed. Renes. 1973. p. 7. ]
Obviamente tal crítica não poderia ser dirigida a Kelsen, visto que, pouco depois que chegou aos EUA, em março de 1941, em suas célebres conferências “Oliver Wendell Holmes” ditadas em Harvard e publicadas em 1942, já havia defendido a tese da criação de um Tribunal Internacional com jurisdição (Penal) obrigatória como real garantia do direito e da paz nas relações internacionais. Para Kelsen, podemos supor que o Tribunal de Nüremberg e o direito por ele aplicado – a Carta-Estatuto do Tribunal Internacional, resultado do acordo de Londres de 1945 - mais se assemelhava a um tribunal de exceção do que ao órgão independente e com jurisdição obrigatória que ele propunha. Seu valor como “precedente” para futuros casos, portanto, era praticamente nulo. No entanto, a realização de sua idéia de um Tribunal Penal Internacional teve que esperar mais de cinqüenta anos para a sua criação – por via do Tratado de Roma.[59: “Law and Peace in international relations”, publicado em 1942. Consultar tradução espanhola “Derecho y paz em las relaciones internacionales”. México: Fondo de Cultura Económica, 1996 p. 177-204. No mesmo sentido a obra “Peace through Law”, na tradução espanhola “La paz por meio del derecho” Buenos Aires, 1946, p. 171-235, bem como a recente tradução brasileira de textos de Direito Internacional, KELSEN, Hans. Princípiosdo Direito Internacional. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010. ][60: Em julho de 1998, representantes de 120 países reunidos em uma conferência em Roma aprovaram o projeto de criação de um Tribunal Penal Internacional Permanente com sede em Haia, na Holanda. Segundo prevê o tratado, a corte começará a funcionar dentro de quatro a nove anos, após a ratificação de seu estatuto por pelo menos 60 países. Tem competência para julgar os responsáveis por crimes de guerra, genocícios e crimes contra a humanidade quando os tribunais nacionais não puderem ou não quiserem processar os criminosos. Apenas sete países votaram contra o projeto: EUA, China, Israel, Índia, Turquia, Filipinas e Sri Lanka. O grande temor dos EUA é o de que seus soldados alocados em missões de paz possam vir a ser julgados pelo Tribunal. ]
Já instalado definitivamente em Berkeley, foi apenas em 1946 que recebeu os primeiros chamados amistosos da antiga pátria austríaca: um telegrama do prefeito de Viena parabenizando-o pelo aniversário de 65 anos, e afirmando que “se recordam cordialmente os significativos trabalhos para a ciência e a liberdade”. Em 1947 foi Kelsen oficialmente nomeado pelo governo austríaco como professor honorário da Universidade de Viena e em 1949 como membro correspondente da Academia Austríaca de Ciências. [61: MÉTALL, op. cit. p. 87.]
Nos anos que se seguiram à sua nomeação definitiva como professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, ocorrida em 1948, Kelsen aceitou diversos convite para conferências, merecendo destaque as realizadas na América do Sul, na Argentina e no Brasil. Na Argentina, os colegas que realizaram o congresso tinham alguma preocupação com o fato de a Argentina estar vivendo a ditadura de Perón e com o fato das conferências e sua visita poderem ser utilizadas como mostra de liberdade de expressão. Kelsen, no entanto, manteve a viagem já que sua vocação democrática era incontestável e seu assunto seria a teoria pura do Direito.
Retornando da Argentina rumo aos Estados Unidos, Kelsen realizou um breve estada no Brasil, onde realizou diversas conferências na Fundação Getúlio Vargas, que foram preparadas por um antigo discípulo seu e mais tarde professor na Universidade de Jerusalém, Dr. Hans Klinghoffer e o professor Bilac Pinto. Infelizmente, parece ter ficado o registro de apenas uma dessas palestras, proferida em 29 de agosto de 1949, no Núcleo de Direito Público da Fundação Getúlio Vargas e editada e publicada pela mesma instituição em 1950 com o título “O Pacto do Atlântico e a Carta das Nações Unidas”. Na referida palestra, após a exposição registrou-se o debate travado por Kelsen e os ilustres juristas Prof. Osvaldo Aranha, Hermes Lima, Afonso Arinos e Levi Carneiro. Em 31 de agosto de 1949, na mesma estada no Rio de Janeiro, Kelsen recebeu o título de professor honoris causa da Universidade Nacional de Direito. Há também o registro indireto de uma conferência realizada no Rio de Janeiro em 02 de setembro de 1949, na sede da Sociedade Brasileira de Direito Internacional da qual foi publicada apenas a saudação do professor Haroldo Valladão.[62: KELSEN, Hans. O Pacto do Atlântico e a Carta das Nações Unidas. Rio de Janeiro: Editada pela Fundação Getúlio Vargas, 1950. 16 páginas. ][63: MÉTALL, op. cit. p. 103.][64: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, janeiro-dezembro de 1949, ano V, n. 9-10, Ministério das Relações Exteriores/Serviço de Publicações. ]
Retornando aos EUA, por volta de 1950, recebe Kelsen a solicitação do representante da Jewish Agency for Palestine, Dr. Nahum Goldmann, para que o representante do recém-fundado Estado de Israel, Jacob Robinson, pudesse solicitar pareceres e conselhos para sua atuação na ONU. Posteriormente, recebeu um convite para dar um curso na Universidade Hebraica em 1950, convite esse que foi renovado em 1951. Segundo relato de seu biógrafo, “em 1953, com base em uma resolução unânime do gabinete, se pediu a Kelsen que aceitasse o posto de assessor geral para direito internacional e direito público em Jerusalém, que lhe oferecia o Ministério da Justiça de Israel”. No entanto, alegando a dificuldade que tal mudança ocasionaria, em especial o fato de ter que aprender mais um idioma (o hebraico é o idioma oficial em Israel) somada a questão da idade - Kelsen tinha então mais de 70 anos -, tornou o empreendimento inviável. Segundo afirma seu biógrafo, Kelsen nunca chegou a visitar Israel. Poderíamos especular que talvez a razão da recusa tenha-se dado pela percepção da situação altamente conflituosa que marcou o surgimento e a história recente do Estado de Israel.[65: O atual Estado de Israel é proclamado em 14 de maio de 1948, tendo David Ben-Gurion como primeiro-ministro. ][66: MÉTALL, op. cit. p. 90. ][67: O surgimento de Israel e sua existência como um Estado é marcado por constantes guerras com os vizinhos árabes, bem como com a população árabe-palestina que residia no território da Palestina, anteriormente administrado pelos ingleses, que por sua vez o haviam tomado da Turquia na I Guerra Mundial. Em 1947 e antes da proclamação da independência, a ONU havia aprovado a divisão da antiga Palestina em dois estados: um para os judeus e outro para os árabes palestinos, resolução esta tomada sem consultar os árabes-palestinos. Seguem-se distintas guerras e violentos conflitos internos: Guerra do reconhecimento da independência (1948-49); Guerra do canal de Suez (1956); Guerra dos seis dias (1967); Guerra do Yom Kipur – Dia do Perdão (1973); Invasão do Líbano (1982-1985), revolta Palestina da Intifada – a “revolta das pedras” (1987); agressão externa do Iraque durante a Guerra do Golfo (1991); assassinato (04.11.95) do primeiro-ministro Itzhak Rabin, que havia assinado os acordos de paz Oslo I (1994) e Oslo II (1995) com os palestinos. Atualmente a situação está em um impasse pelo controle da cidade de Jerusalém, reivindicado como capital dos israelenses e palestinos. ]
Em 25 de abril de 1952, Kelsen aposentou-se da Universidade da Califórnia, porém continuou a publicar e a ministrar conferências. Em abril de 1954, Kelsen proferiu uma série de seis conferências na Universidade de Chicago (que sediaria posteriormente a escola econômica monetarista de Milton Friedman) sobre os fundamentos da democracia, dentro das famosas Walgreen Lectures. Posteriormente, foram essas conferências publicadas com o título Foundations of Democracy na revista “Ethics” no número de 1955-56. Curiosamente, na publicação que se seguiu, afirmaria Kelsen que inexiste incompatibilidade entre socialismo (compreendido como economia planificada) e democracia, isso, destaque-se, em pleno período de “caça às bruxas” (macartismo) nos EUA.[68: No Brasil as conferências foram publicadas em KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, página 137- 297. ][69: KELSEN, ib. idem op. cit. p. 265-268. ][70: Como decorrência da Guerra Fria, em 1945 é constituída a Comissão de Atividades Antiamericas (HUAC) no Congresso americano. Em 1950 foi aprovada a Lei MacCarran-Nixon (1950) que exigia o registro de todas as organizações comunistas e o início do trabalho na HUAC do senador Joseph McCarthy. Foi a senha para o início de um dos períodos de maior obscurantismo e ameaça às liberdades públicas nos EUA. Através da elaboração de “listas negras” milhares de pessoas perderam seus empregos. Calcula-se que a perseguição atingiu cerca de 6 milhões de norte-americanos entre o meio artístico, intelectual e sindical do país. Para conhecer melhor o macartismo consultar FERREIRA, Argemiro. Caça às Bruxas. Macartismo: uma tragédia americana. Porto Alegre: Ed. L&PM. 1989. ]
Em 1948 e 1955, Kelsen publica dois textos sendo um sobre a teoria jurídica comunista e outro sobre a teoria política do bolchevismo. Nesses textos ele retoma as discussões e a análise do socialismo e do marxismo que havia iniciado em 1923 com “Socialismo e Estado” e complementado em 1924 com “Marx ou Lassale. Mudanças na teoria política do marxismo”. Nestas obras, Kelsen realiza uma minuciosaanálise do marxismo à época da Terceira Internacional, a partir da análise teórica do austro-marxismo dos socialistas democráticos Otto Bauer e Max Adler. A crítica que Kelsen desenvolveu então não estava dirigida ao socialismo enquanto teoria “econômica” (compreendido como modelo de planejamento estatal) mas sim ao que considerava um “anarquismo potencial” (supressão do Estado em uma sociedade comunista) da teoria política do marxismo e que portanto implicava em uma crise e conflito de conceitos chaves da teoria do Direito e do Estado. 
Na continuidade de seu trabalho intelectual, publica em 1960 a segunda edição totalmente reformulada de sua “Teoria Pura do Direito”, quando já estava com quase 80 anos. Porém, a aparente obra definitiva sobre a teoria pura ainda seria acrescentada da “Teoria Geral das Normas” que ele não conseguiria concluir em vida, e que seria postumamente publicada com a organização de amigos e do Instituto Hans-Kelsen, criado pelo governo austríaco em 1971. Na referida obra, disponível em edição brasileira, é discutida as possibilidades e os limites da aplicação dos princípios da lógica às normas. [71: KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor. 1986. ]
Uma prova da preocupação de Kelsen na discussão pública e acesso democrático às suas idéias está em que, além de inúmeras conferências proferidas para públicos especializados da Europa e da América, seu biógrafo registrou as palestras que Kelsen proferiu na rádio da universidade – RIAS - de Berlim, em junho de 1961 e em março de 1963: a saber, respectivamente, sobre “Positivismo Jurídico e Jusnaturalismo” e “Auto-determinação do Direito”. [72: MÉTALL, op. cit. p. 95 e 97.]
Ao final de sua vida, já reconhecido e homenageado mundialmente, viu-se Kelsen envolvido em um episódio de anti-semitismo promovido por alunos neo-nazistas que protestavam pelo convite feito a ele pelo Reitor da Universidade de Viena, na oportunidade da comemoração dos 600 anos de sua fundação. Seu biógrafo assim relata o ocorrido: 
“Sem embargo, no inverno de 1964-65 se produziram em Viena graves manifestações de rua dos estudantes, provocadas em parte pelo modo como um professor da Escola de Comercio Mundial, na que Kelsen mesmo havia trabalhado 50 anos antes, falou, com êxito, a seus estudantes neo-nazistas do “judeu Kelsen que se chamou Kohn”. Durante as revoltas houve inclusive um morto e nestas circunstâncias, apesar de que alguns informes vindos de Viena minimizarem os incidentes, Kelsen escreveu ao reitor, retirando sua aceitação para que, em vista das manifestações anti-semitas dirigidas contra sua pessoa e provocadas por um professor da Escola de Comércio Mundial, tanto ele como a Universidade evitassem incômodos previsíveis.” [73: MÉTALL, op. Cit. p. 97 e 98. ]
Preocupados com a repercussão do caso, o próprio governo federal deliberou em convidar a Kelsen como hóspede do governo austríaco, que formulou o convite em carta pessoal do então chanceler Dr. Josef Klaus. Só então Kelsen decidiu por aceitar o convite para retornar à universidade onde se graduou e onde lecionou por tantos anos. A Áustria dava mostras de que os conceitos fascistas ainda estavam bem populares, em parte talvez pelo fato de o país não ter passado por um processo de desnazificação como o que foi realizado na Alemanha no período posterior ao da 2ª Guerra Mundial.
O retorno das velhas feridas na Áustria se deu de forma marcante em pelo menos dois episódios: a eleição de Kurt Waldhein para a presidência, mesmo após denúncias de sua participação em atrocidades nos Balcãs como oficial nazista na Segunda Guerra Mundial e o recente (fevereiro/ março/2000) e lamentável episódio da participação do Partido da Liberdade (extrema-direita) no gabinete do atual governo austríaco. O líder desse partido, Jöerg Haider, é um notório defensor de políticas anti-imigração (a nova senha do fascismo) e autor de polêmicas declarações elogiosas da “honra” de integrantes das SS. Por certo, quem não aprende com a História está condenado a repeti-la. 
Em 11 de abril de 1973 Hans Kelsen faleceu em São Francisco (onde funciona o Campus de Berkeley), Califórnia, nos EUA, após mais de sessenta anos de uma variada e intensa produção científica. Em artigo, intitulado “Por que ler Kelsen hoje”, comemorativo dos cem anos de seu nascimento, o professor Dr. Tércio Sampaio Ferraz Jr. relembrou o fato de que Kelsen teve “uma vida cercada por experiências difíceis que marcaram de modo geral a intelectualidade judaica, desde o início deste século, na Áustria e na Alemanha.” Porém, ao final de uma análise de seu pensamento conclui: “A obra de Kelsen ainda o mantém vivo. Suas implicações para a ciência jurídica, para a lógica da norma, para a aplicação do direito são tão fecundas, que, por mais que o critiquemos, não deixam de desvendar novos ângulos, novos encaminhamentos”.[74: Publicado originalmente no suplemento Cultura do jornal O Estado de São Paulo, datado de 1o de novembro de 1981 (número 73, página 12-13) consta como prólogo na obra de COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. São Paulo: Ed. Max Limonad. 1995. ]
Atualmente, ao adentrarmos o século XXI, seu pensamento recebe renovada divulgação com a preparação da edição oficial de suas obras completas (Hans Kelsen Werke) pelo professor MATTHIAS JESTAEDT, da Universidade Friedrich-Alexander em Erlangen, Nuremberg, na Alemanha, em convênio com o Hans-Kelsen Institut de Viena, Áustria. Até o ano de 2010, já haviam sido publicados quatro volumes de um total de trinta volumes previstos para as obras completas. O Brasil está representado no conselho editorial internacional da obra, pelo professor GABRIEL NOGUEIRA DIAS, que é correspondente do Instituto Hans-Kelsen desde 2003 e membro do conselho editorial internacional da obra completa desde 2004. [75: A obra vem sendo publicada pela prestigiosa Editora Mohr Siebeck, de Tübingen – Alemanha, e até o momento foram publicados o tomo 1(1905-1910) em 2007; o tomo 2 (1911) em volumes I e II em 2008 e o tomo 3 (1911-1917) em 2010, em um total de quatro volumes dos 30 previstos. ][76: Pelas análises e acesso aos textos de Kelsen, muitos ainda inéditos, bem como fecundo diálogo com os maiores especialistas do mundo sobre Kelsen, recomenda-se a indispensável e seminal obra de DIAS, Gabriel Nogueira. Positivismo Jurídico e a teoria geral do Direito na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. ]
Após quarenta anos da criação do Instituto Hans Kelsen, a Áustria parece acertar as contas com a inestimável contribuição do maior pensador do Direito no século XX, em que pese o constante recrudescimento do cenário político europeu com o fenômeno do reaparecimento do extremismo político de direita, de nítido caráter revisionista e negacionista do Holocausto judeu. Retomar Kelsen é urgente: nunca antes o Direito precisou tanto de sua proposta de tolerância e de defesa da democracia, tal como expressa no paradigma do Estado Constitucional de Direito. [77: Nesse ponto, consultar a edição de número 42 do mensário Le Monde Diplomatique Brasil (janeiro/2011), que tem como capa e chamada principal: “Europa: cresce a extrema direita”. ]

Outros materiais