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03/06/2015 Revista Cult » Guerras psi
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Guerras psi
Publicada há 50 anos, obra de Michel Foucault defende que a loucura é uma construção histórica e cultural
TAGS: filosofia, foucault, história da loucura
Joel Birman
Defendida como tese de doutorado em 1961 e publicada como livro no mesmo ano pela editora
francesa Plon, a obra de Foucault já tem a duração de 50 anos. Se foi intitulada inicialmente
como Loucura e Desrazão – História da Loucura na Idade Clássica, em contrapartida, na
edição de 1972, pela Gallimard, o livro foi publicado com o título História da Loucura na
Idade Clássica, que permanece até hoje.
A formulação desse livro foi a contrapartida do impasse em que se encontrava a psiquiatria nos
anos 1950, na medida em que o estatuto de destruição dos enfermos mentais pela longa
internação asilar estava em pauta.
Com efeito, a condição asilar dos internados evocava a recente experiência dos campos de
concentração nazistas, tanto na tradição europeia quanto na norte­americana. Daí porque foi
no mesmo contexto histórico em que Foucault publicou sua obra inaugural que o psiquiatra
Szasz publicou O Mito da Doença Mental (1961) e o antropólogo Goffman publicou Asilos
(1959), ambos nos Estados Unidos.
Logo em seguida iniciou­se o movimento antipsiquiátrico, nas suas diferentes modalidades
discursivas e políticas, que colocou em questão o estatuto do internamento dos loucos e a
concepção da loucura como enfermidade mental.
Não obstante esse a priori histórico e social, o livro de Foucault tem uma especificidade teórica
que o distingue dos demais, pois inaugurou um novo estilo de pensar no campo da filosofia, no
qual criticava a tradição universitária instituída pela conjugação da filosofia de Nietzsche com
o discurso teórico da história, situada esta na escala da longa duração.
Foi por esse viés que Foucault construiu inicialmente a arqueologia do saber e posteriormente
a genealogia do poder, para concluir seu percurso teórico pela realização de uma estilística da
existência.
Nesse contexto, passou a formular que o que fizera desde o início de seu percurso teórico
foram problematizações nas quais as diferentes problemáticas que escolheu como objeto de
pesquisa – a razão, a vida e a morte, o discurso, a punição, a sexualidade e o sujeito –
tinham um alcance estratégico para a leitura dos pontos cruciais que constituíram a tradição
ocidental, iniciada no Renascimento e desdobrando­se na modernidade.
Portanto, a História da Loucura na Idade Clássica foi o pontapé inicial conduzido por
Foucault na longa epopeia filosófica de suas problematizações, centrando­se na oposição
razão e desrazão.
O livro transformou­se num clássico, não necessariamente para a psiquiatria, a psicologia e a
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psicanálise, cuja recepção foi marcada pela ambiguidade e pela crítica, mas pelas ciências
humanas, as ciências sociais e a filosofia – que reconheceram positivamente seu potencial
crítico, de maneira que pôde contribuir para a renovação desses discursos teóricos.
Pressupostos filosóficos
Por que houve resistência dos saberes do campo psi a essa obra?
Antes de mais nada, porque ela rompeu com suas certezas, na medida em que Foucault
sustentava que a loucura era uma construção eminentemente histórica e cultural, rompendo
assim com uma leitura naturalista dela.
Além disso, indicava como as diferentes leituras sobre a loucura se inscreviam em pressupostos
filosófico, moral, religioso e científico que regulariam as práticas sociais sobre ela, e que era isso
que deveria ser colocado em evidência numa arqueologia da loucura.
Dito de outra maneira, o que Foucault ressaltou foi como a ?experiência da loucura foi objeto
de silêncio e de exclusão social como seu correlato; necessário seria realizar a arqueologia desse
silêncio. Para isso, portanto, seria preciso percorrer os diferentes momentos constitutivos desse
silenciamento para indicar como a loucura foi transformada numa experiência sem sujeito,
sem verdade e marcada pela ausência da obra.
Assim, o que estaria em pauta nesse projeto seria assinalar que a loucura foi transformada pela
psiquiatria em doença mental somente no século 19, como também criticar o gesto libertário
dos loucos por Pinel. Este e aquele supunham efetivamente uma transformação social e
política fundamental, mas que não foram necessariamente na direção de constituir uma
sociedade democrática, como suporiam posteriormente Gauchet e Swain em A Prática do
Espírito Humano – A Instituição Asilar e a Revolução Democrática (1980).
Foi por causa disso que Henri Ey, referência maior da psiquiatria francesa de então,
denominou de psiquiatricida a intenção teórica de Foucault, num colóquio de 1969 intitulado
“Concepção Ideológica da História da Loucura” (Évolution Psychiatrique, tomo 36, fascículo
2, 1971).
Da mesma forma, Ellenberger, em A Descoberta do Inconsciente (1972), não podia aceitar que
a loucura não se inscrevesse no registro da natureza, não obstante suas diferentes leituras
sociais e culturais.
Entre Bosch e Erasmo
No entanto, para Foucault algo se transformou na recepção social da experiência da loucura
de maneira fundamental, entre as telas inquietantes de Bosch e o discurso teórico de Erasmo
em Elogio à Loucura.
Se no primeiro registro a loucura era figurada de maneira ameaçadora, no segundo ela já
estaria domesticada. O que estaria em pauta, portanto, seria a descontinuidade entre o tempo
da livre circulação da loucura no espaço social – e onde esta era enunciada como fonte de
verdade – e o tempo posterior no qual a loucura não teria mais qualquer referência ao sujeito e
à verdade, caracterizando­se como ausência de obra.
Foi no intervalo entre esses dois marcos que a razão teria sido constituída. Enunciou­se assim a
grande ousadia teórica de Foucault, que articulou intimamente a constituição da filosofia
moderna e a configuração do registro da desrazão, na medida em que aquela, com o cogito de
Descartes, forjou a razão e seu correlato, qual seja, o discurso da ciência.
Assim, o que Foucault procurou demonstrar, em sua arqueologia do silêncio da loucura, foi
que existia uma relação estrutural entre a emergência histérica do cogito cartesiano nas
Meditações (1641) e a construção dos hospitais gerais, para onde o soberano enviava todos
aqueles inscritos no registro da desrazão: loucos, vagabundos, blasfemadores, heréticos,
traidores etc.
Com efeito, foi com o estabelecimento do campo da razão que o da desrazão foi instituído, já
que Descartes, nas Meditações, excluía a loucura do registro do pensamento. Portanto, para a
loucura não seria possível enunciar o “penso, logo existo”, pois não existiria naquela nem
sujeito nem tampouco verdade.
O desdobramento disso foi a exclusão da loucura do espaço social que perdurou durante
séculos em nossa tradição, até bem recentemente.
Nessa perspectiva, Foucault formulou a existência de duas tradições face à loucura, quais
sejam: a crítica e a trágica. Se pela primeira aquela seria objeto de desconfiança, pois não
existiria nela nem sujeito, nem verdade, na segunda a loucura seria marcada pela criatividade
e pela possibilidade de produção de obra.
Foi então a tradição crítica que se instituiu no século 17 e que se desdobrou na constituição da
psiquiatria no final do século 18. Em contrapartida, a tradição trágica manteve­se sempre
marginalnos registros da literatura (Holderlin e Nerval), da dramaturgia (Strindberg e
Artaud), da pintura (Van Gogh e Goya) e da filosofia (Nietzsche), em que sujeito e verdade
puderam efetivamente se conjugar.
Terceira margem da loucura
É claro que Foucault pretendeu enunciar a tradição trágica numa terceira margem, para
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parafrasear Guimarães Rosa, fazendo então a elegia dos marginalizados pela história do
Ocidente. Por isso mesmo, a literatura e a tradição artística foram os verdadeiros herdeiros da
tradição trágica na modernidade.
Da mesma forma, foi por causa disso que Foucault empreendeu posteriormente uma
genealogia da punição, em Vigiar e Punir (1974), ?e uma genealogia da sexualidade ?baseada
no dispositivo da confissão, em A Vontade do Saber (1976).
Além disso, Foucault inscreveu a constituição da psicanálise no registro da tradição crítica, na
medida em que Freud teria tido a genialidade de perceber que o dispositivo asilar estaria
centrado na figura do alienista.
Assim, descartando­se das figuras do enfermeiro e do guarda, Freud inventou o espaço
psicanalítico centrado na transferência, de forma que as alienações e as desalienações do
sujeito se realizariam desde então em referência ao personagem taumatúrgico do analista, em
continuidade com o dispositivo psiquiátrico do tratamento moral.
Como indicou devidamente Elisabeth Roudinesco, em “Leituras da História da Loucura (1961­
1986)”, no colóquio comemorativo dos 30 anos da publicação do livro (Penser la Folie, Galilée,
1991), a obra de Foucault pegou a psiquiatria de calças curtas, pois não realizava até então
obras de história da psiquiatria, e sim apenas hagiografias dos psiquiatras libertadores da
loucura.
A obra magistral de Foucault teve assim o efeito de constituir uma historiografia psiquiátrica
baseada em arquivos consistentes. A mesma formulação seria válida para a história da
psicanálise, que teve na obra de Roudinesco sua grande realização.
Debate com Derrida
Contudo, o grande debate sobre a obra de Foucault realizou­se no campo da filosofia, tendo
em Derrida o maior crítico. Assim, numa conferência realizada em 1963, no Collège de
Philosophie, intitulada “Cogito e História da Loucura”, Derrida não aceitou o pecado
metafísico de Foucault de inscrever a filosofia de Descartes em sua arqueologia da desrazão.
Ele sustentou assim que, com a figura do gênio maligno, o cogito cartesiano estaria presente na
experiência da loucura, de forma que o “penso, logo existo” poderia ser dito em qualquer
circunstância. Além disso, formulou que a dita obra de Foucault apenas pôde ser escrita com a
invenção da psicanálise, na medida em que essa deslocou a figura da loucura em nossa
tradição, com a formulação do conceito do inconsciente.
Foucault interpelou Derrida em 1972, em “Resposta a Derrida”, afirmando entre outras coisas
que, quando formulou a História da Loucura na Idade Clássica, estava rompendo com a
tradição filosófica de que Derrida era o porta­voz em sua crítica, na medida em que retirara do
discurso filosófico qualquer superioridade ?teórica sobre os demais discursos e que procurara
colocar em evidência, com o conceito de “episteme”, a existência de um inconsciente do saber.
Derrida retomou a crítica a Foucault, em 1991, em “Fazer Justiça a Freud”, indicando as
múltiplas ambiguidades de Foucault face à psicanálise.
Pode­se afirmar então que a obra de Foucault sobre a loucura foi não apenas um livro­
acontecimento, mas continua viva, pelas inúmeras polêmicas que provocou e ainda provoca.
Além disso, mesmo que o estatuto da internação da doença mental tenha sido colocado em
questão com as curtas internações, a minoridade do louco e sua relação com a verdade estão
ainda em pauta, quando as camisas de força bioquímicas passaram a regular a experiência da
loucura na atualidade e onde o discurso da loucura é francamente interditado.
Sob essa perspectiva, Foucault, numa passagem célebre de seu livro, sublinha que seria preciso
fazer justiça a Freud, pois na narrativa de suas histórias clínicas e em particular no caso
Schreber inscreveu a loucura no campo do discurso.
Assim, apesar de suas críticas, Foucault também escutou a formulação de Freud de que o
delírio, como discurso, seria uma “tentativa de cura” e que, nessa medida, a psicanálise se
inscreveria na tradição trágica sobre a loucura.
Não seria essa “tentativa de cura” que estaria hoje interditada com as camisas de força
bioquímicas?
Joel Birman é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e professor­adjunto do
Instituto de Medicina Social da Uerj
FOUCAULT NO BRASIL
O que sairá em 2011
Julho
Ditos e Escritos VII – Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina
–Forense Universitária
Setembro
03/06/2015 Revista Cult » Guerras psi
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Prof. Ary Carlos Moura Cardoso | 24/07/2011
COMENTÁRIOS (1)
Temos, diz Foucault, que criar a nós mesmos como uma obra de arte. São projetos, sem dúvida, agonísticos de
Liberdade. São “éticas do cuidado de si”. Ora, as engrenagens sociais são cimentadas por poderes – excitam
nossa liberdade ­; mas, ela só pode existir, de fato, se for resistência à subjetividade, às prisões.
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