Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
03/06/2015 Revista Cult » Guerras psi http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/guerraspsi/ 1/5 Assine 0800 703 3000 SAC Batepapo Email Notícias Esporte Entretenimento Mulher Shopping BUSCAR Edições Marcia Tiburi Welington Andrade Oficina Literária TV CULT Espaço CULT Loja CULT na Cult na Web Home > Edições > 159 > Guerras psi Guerras psi Publicada há 50 anos, obra de Michel Foucault defende que a loucura é uma construção histórica e cultural TAGS: filosofia, foucault, história da loucura Joel Birman Defendida como tese de doutorado em 1961 e publicada como livro no mesmo ano pela editora francesa Plon, a obra de Foucault já tem a duração de 50 anos. Se foi intitulada inicialmente como Loucura e Desrazão – História da Loucura na Idade Clássica, em contrapartida, na edição de 1972, pela Gallimard, o livro foi publicado com o título História da Loucura na Idade Clássica, que permanece até hoje. A formulação desse livro foi a contrapartida do impasse em que se encontrava a psiquiatria nos anos 1950, na medida em que o estatuto de destruição dos enfermos mentais pela longa internação asilar estava em pauta. Com efeito, a condição asilar dos internados evocava a recente experiência dos campos de concentração nazistas, tanto na tradição europeia quanto na norteamericana. Daí porque foi no mesmo contexto histórico em que Foucault publicou sua obra inaugural que o psiquiatra Szasz publicou O Mito da Doença Mental (1961) e o antropólogo Goffman publicou Asilos (1959), ambos nos Estados Unidos. Logo em seguida iniciouse o movimento antipsiquiátrico, nas suas diferentes modalidades discursivas e políticas, que colocou em questão o estatuto do internamento dos loucos e a concepção da loucura como enfermidade mental. Não obstante esse a priori histórico e social, o livro de Foucault tem uma especificidade teórica que o distingue dos demais, pois inaugurou um novo estilo de pensar no campo da filosofia, no qual criticava a tradição universitária instituída pela conjugação da filosofia de Nietzsche com o discurso teórico da história, situada esta na escala da longa duração. Foi por esse viés que Foucault construiu inicialmente a arqueologia do saber e posteriormente a genealogia do poder, para concluir seu percurso teórico pela realização de uma estilística da existência. Nesse contexto, passou a formular que o que fizera desde o início de seu percurso teórico foram problematizações nas quais as diferentes problemáticas que escolheu como objeto de pesquisa – a razão, a vida e a morte, o discurso, a punição, a sexualidade e o sujeito – tinham um alcance estratégico para a leitura dos pontos cruciais que constituíram a tradição ocidental, iniciada no Renascimento e desdobrandose na modernidade. Portanto, a História da Loucura na Idade Clássica foi o pontapé inicial conduzido por Foucault na longa epopeia filosófica de suas problematizações, centrandose na oposição razão e desrazão. O livro transformouse num clássico, não necessariamente para a psiquiatria, a psicologia e a EDIÇÃO 202 EDIÇÕES ANTERIORES TWITTER Tweets by @revistacult 03/06/2015 Revista Cult » Guerras psi http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/guerraspsi/ 2/5 psicanálise, cuja recepção foi marcada pela ambiguidade e pela crítica, mas pelas ciências humanas, as ciências sociais e a filosofia – que reconheceram positivamente seu potencial crítico, de maneira que pôde contribuir para a renovação desses discursos teóricos. Pressupostos filosóficos Por que houve resistência dos saberes do campo psi a essa obra? Antes de mais nada, porque ela rompeu com suas certezas, na medida em que Foucault sustentava que a loucura era uma construção eminentemente histórica e cultural, rompendo assim com uma leitura naturalista dela. Além disso, indicava como as diferentes leituras sobre a loucura se inscreviam em pressupostos filosófico, moral, religioso e científico que regulariam as práticas sociais sobre ela, e que era isso que deveria ser colocado em evidência numa arqueologia da loucura. Dito de outra maneira, o que Foucault ressaltou foi como a ?experiência da loucura foi objeto de silêncio e de exclusão social como seu correlato; necessário seria realizar a arqueologia desse silêncio. Para isso, portanto, seria preciso percorrer os diferentes momentos constitutivos desse silenciamento para indicar como a loucura foi transformada numa experiência sem sujeito, sem verdade e marcada pela ausência da obra. Assim, o que estaria em pauta nesse projeto seria assinalar que a loucura foi transformada pela psiquiatria em doença mental somente no século 19, como também criticar o gesto libertário dos loucos por Pinel. Este e aquele supunham efetivamente uma transformação social e política fundamental, mas que não foram necessariamente na direção de constituir uma sociedade democrática, como suporiam posteriormente Gauchet e Swain em A Prática do Espírito Humano – A Instituição Asilar e a Revolução Democrática (1980). Foi por causa disso que Henri Ey, referência maior da psiquiatria francesa de então, denominou de psiquiatricida a intenção teórica de Foucault, num colóquio de 1969 intitulado “Concepção Ideológica da História da Loucura” (Évolution Psychiatrique, tomo 36, fascículo 2, 1971). Da mesma forma, Ellenberger, em A Descoberta do Inconsciente (1972), não podia aceitar que a loucura não se inscrevesse no registro da natureza, não obstante suas diferentes leituras sociais e culturais. Entre Bosch e Erasmo No entanto, para Foucault algo se transformou na recepção social da experiência da loucura de maneira fundamental, entre as telas inquietantes de Bosch e o discurso teórico de Erasmo em Elogio à Loucura. Se no primeiro registro a loucura era figurada de maneira ameaçadora, no segundo ela já estaria domesticada. O que estaria em pauta, portanto, seria a descontinuidade entre o tempo da livre circulação da loucura no espaço social – e onde esta era enunciada como fonte de verdade – e o tempo posterior no qual a loucura não teria mais qualquer referência ao sujeito e à verdade, caracterizandose como ausência de obra. Foi no intervalo entre esses dois marcos que a razão teria sido constituída. Enunciouse assim a grande ousadia teórica de Foucault, que articulou intimamente a constituição da filosofia moderna e a configuração do registro da desrazão, na medida em que aquela, com o cogito de Descartes, forjou a razão e seu correlato, qual seja, o discurso da ciência. Assim, o que Foucault procurou demonstrar, em sua arqueologia do silêncio da loucura, foi que existia uma relação estrutural entre a emergência histérica do cogito cartesiano nas Meditações (1641) e a construção dos hospitais gerais, para onde o soberano enviava todos aqueles inscritos no registro da desrazão: loucos, vagabundos, blasfemadores, heréticos, traidores etc. Com efeito, foi com o estabelecimento do campo da razão que o da desrazão foi instituído, já que Descartes, nas Meditações, excluía a loucura do registro do pensamento. Portanto, para a loucura não seria possível enunciar o “penso, logo existo”, pois não existiria naquela nem sujeito nem tampouco verdade. O desdobramento disso foi a exclusão da loucura do espaço social que perdurou durante séculos em nossa tradição, até bem recentemente. Nessa perspectiva, Foucault formulou a existência de duas tradições face à loucura, quais sejam: a crítica e a trágica. Se pela primeira aquela seria objeto de desconfiança, pois não existiria nela nem sujeito, nem verdade, na segunda a loucura seria marcada pela criatividade e pela possibilidade de produção de obra. Foi então a tradição crítica que se instituiu no século 17 e que se desdobrou na constituição da psiquiatria no final do século 18. Em contrapartida, a tradição trágica mantevese sempre marginalnos registros da literatura (Holderlin e Nerval), da dramaturgia (Strindberg e Artaud), da pintura (Van Gogh e Goya) e da filosofia (Nietzsche), em que sujeito e verdade puderam efetivamente se conjugar. Terceira margem da loucura É claro que Foucault pretendeu enunciar a tradição trágica numa terceira margem, para 03/06/2015 Revista Cult » Guerras psi http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/guerraspsi/ 3/5 parafrasear Guimarães Rosa, fazendo então a elegia dos marginalizados pela história do Ocidente. Por isso mesmo, a literatura e a tradição artística foram os verdadeiros herdeiros da tradição trágica na modernidade. Da mesma forma, foi por causa disso que Foucault empreendeu posteriormente uma genealogia da punição, em Vigiar e Punir (1974), ?e uma genealogia da sexualidade ?baseada no dispositivo da confissão, em A Vontade do Saber (1976). Além disso, Foucault inscreveu a constituição da psicanálise no registro da tradição crítica, na medida em que Freud teria tido a genialidade de perceber que o dispositivo asilar estaria centrado na figura do alienista. Assim, descartandose das figuras do enfermeiro e do guarda, Freud inventou o espaço psicanalítico centrado na transferência, de forma que as alienações e as desalienações do sujeito se realizariam desde então em referência ao personagem taumatúrgico do analista, em continuidade com o dispositivo psiquiátrico do tratamento moral. Como indicou devidamente Elisabeth Roudinesco, em “Leituras da História da Loucura (1961 1986)”, no colóquio comemorativo dos 30 anos da publicação do livro (Penser la Folie, Galilée, 1991), a obra de Foucault pegou a psiquiatria de calças curtas, pois não realizava até então obras de história da psiquiatria, e sim apenas hagiografias dos psiquiatras libertadores da loucura. A obra magistral de Foucault teve assim o efeito de constituir uma historiografia psiquiátrica baseada em arquivos consistentes. A mesma formulação seria válida para a história da psicanálise, que teve na obra de Roudinesco sua grande realização. Debate com Derrida Contudo, o grande debate sobre a obra de Foucault realizouse no campo da filosofia, tendo em Derrida o maior crítico. Assim, numa conferência realizada em 1963, no Collège de Philosophie, intitulada “Cogito e História da Loucura”, Derrida não aceitou o pecado metafísico de Foucault de inscrever a filosofia de Descartes em sua arqueologia da desrazão. Ele sustentou assim que, com a figura do gênio maligno, o cogito cartesiano estaria presente na experiência da loucura, de forma que o “penso, logo existo” poderia ser dito em qualquer circunstância. Além disso, formulou que a dita obra de Foucault apenas pôde ser escrita com a invenção da psicanálise, na medida em que essa deslocou a figura da loucura em nossa tradição, com a formulação do conceito do inconsciente. Foucault interpelou Derrida em 1972, em “Resposta a Derrida”, afirmando entre outras coisas que, quando formulou a História da Loucura na Idade Clássica, estava rompendo com a tradição filosófica de que Derrida era o portavoz em sua crítica, na medida em que retirara do discurso filosófico qualquer superioridade ?teórica sobre os demais discursos e que procurara colocar em evidência, com o conceito de “episteme”, a existência de um inconsciente do saber. Derrida retomou a crítica a Foucault, em 1991, em “Fazer Justiça a Freud”, indicando as múltiplas ambiguidades de Foucault face à psicanálise. Podese afirmar então que a obra de Foucault sobre a loucura foi não apenas um livro acontecimento, mas continua viva, pelas inúmeras polêmicas que provocou e ainda provoca. Além disso, mesmo que o estatuto da internação da doença mental tenha sido colocado em questão com as curtas internações, a minoridade do louco e sua relação com a verdade estão ainda em pauta, quando as camisas de força bioquímicas passaram a regular a experiência da loucura na atualidade e onde o discurso da loucura é francamente interditado. Sob essa perspectiva, Foucault, numa passagem célebre de seu livro, sublinha que seria preciso fazer justiça a Freud, pois na narrativa de suas histórias clínicas e em particular no caso Schreber inscreveu a loucura no campo do discurso. Assim, apesar de suas críticas, Foucault também escutou a formulação de Freud de que o delírio, como discurso, seria uma “tentativa de cura” e que, nessa medida, a psicanálise se inscreveria na tradição trágica sobre a loucura. Não seria essa “tentativa de cura” que estaria hoje interditada com as camisas de força bioquímicas? Joel Birman é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e professoradjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj FOUCAULT NO BRASIL O que sairá em 2011 Julho Ditos e Escritos VII – Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina –Forense Universitária Setembro 03/06/2015 Revista Cult » Guerras psi http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/guerraspsi/ 4/5 Comente Compartilhar Imprimir ARTIGOS RELACIONADOS 02/06 O terrorismo poético 27/05 partidA 08/05 Marcia Tiburi: Polifonia do silêncio 06/05 O plástico essencial Prof. Ary Carlos Moura Cardoso | 24/07/2011 COMENTÁRIOS (1) Temos, diz Foucault, que criar a nós mesmos como uma obra de arte. São projetos, sem dúvida, agonísticos de Liberdade. São “éticas do cuidado de si”. Ora, as engrenagens sociais são cimentadas por poderes – excitam nossa liberdade ; mas, ela só pode existir, de fato, se for resistência à subjetividade, às prisões. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant Loyola Novembro A Coragem de Dizer a Verdade Martins Fontes O que já saiu pela Forense A Arqueologia do Saber Ditos e Escritos (vols. I a VI) O Nascimento da Clínica pela Graal Microfísica do Poder Histórias da Sexualidade Eu, Pierre Riviere, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão pela Loyola A Ordem do Discurso pela Martins Fontes As Palavras e as Coisas O Poder Psiquiátrico Os Anormais Em Defesa da Sociedade A Hermenêutica do Sujeito O Governo de Si e dos Outros pela Nau A Verdade e as Formas Jurídicas pela Paz e Terra Isto Não É um Cachimbo pela Perspectiva História da Loucura na Idade Clássica pela Tempo Brasileiro Doença Mental e Psicologia pela Vozes Vigiar e Punir 246 pessoas curtiram isso.Curtir 03/06/2015 Revista Cult » Guerras psi http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/guerraspsi/ 5/5 0 Comentários Revista Cult Entrar1 Compartilhar⤤ Ordenar por Melhor avaliado Comece a discussão... Seja o primeiro a comentar. Assinar feed✉ Adicione o Disqus no seu sited Privacidade Recommend Editora Bregantini Assine ou compre a Cult Anuncie Equipe Pç. Santo Agostinho, 70 | 10º andar | Paraíso | São Paulo, SP | CEP 01533070 | Tel.: (11) 33853385 Fax.: (11) 33853386 Copyright © 2014 Editora Bregantini. Todos os direitos reservados.
Compartilhar