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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Faculdade de Direito - FADIR GUILHERME BURZYNSKI DIENES A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ACIONISTA CONTROLADOR POR DANO AMBIENTAL CAMPO GRANDE/MS JUNHO/2012 SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Faculdade de Direito - FADIR GUILHERME BURZYNSKI DIENES A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ACIONISTA CONTROLADOR POR DANO AMBIENTAL Trabalho final de graduação apresentado como requisito para colação de grau no Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob a orientação do Prof. Me. Alexandre Lima Raslan. CAMPO GRANDE/MS JUNHO/2012 3 TERMO DE APROVAÇÃO A Monografia intitulada: “A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ACIONISTA CONTROLADOR POR DANO AMBIENTAL.”, apresentada por GUILHERME BURZYNSKI DIENES, RGA 2006.2002.086-8, como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito à Banca Examinadora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, obteve nota _______ para aprovação. BANCA EXAMINADORA Professor Me. Alexandre Lima Raslan Presidente Professor Examinador Professor Examinador Campo Grande/MS, ______de Julho de 2012. 4 Dedico à minha mãe e à Marina Torrecilha pelo apoio incondicional e dedicação que tiveram comigo ao longo dos anos. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente a minha mãe Maria Rosa Burzynski, que sempre me apoiou ao longo dessa extenuante e recompensadora jornada durante o curso do Direito e ao longo de todos os momentos, sejam eles alegres ou difíceis, sempre esteve ao meu lado me ajudando e guiando. Nas vezes em que tudo parecia perdido, ajudou-me incessantemente a levantar e continuar a caminhada, e me ensinou a não fugir dos problemas. Agradeço à Marina Torrecilha por todo o tempo que passamos juntos e por sempre me motivar a continuar me empenhando e estudando. O acaso fez com que nos conhecêssemos, mas a sua graça fez com que o encantamento inicial perdurasse até hoje. Agradeço a todos os professores que tive durante os tempos de escola, em especial a dois professores que tive em meu terceiro ano: Isali Dinaísa Lins de Oliveira, que com suas lições e aulas que se muito assemelhavam à poesia fez com que aprendesse a linguagem portuguesa escorreita em pouquíssimo tempo, mas de forma duradoura e muito significativa e Geraldo Fontana, que trazia alegria e conhecimento aos alunos lecionando sobre a história dos povos e a geografia, tornando fatos tão antigos em acontecimentos vivos na sala de aula. Agradeço especialmente ao meu orientador professor Me. Alexandre Lima Raslan pela disponibilidade e disposição em ajudar e aconselhar. Pela paciência para responder aos e- mails e receber em reuniões e especialmente pela confiança em permitir a conclusão da monografia. Suas lições inspiradoras na seara do direito ambiental foram o grande incentivo para que eu enfrentasse o tema deste trabalho. Agradeço especialmente a todos os professores que tive no decorrer do curso de Direito da UFMS, em especial às aulas magistrais do prof. Jully Heyder quando nos lecionava processo civil sempre acompanhadas de sua risada marcante e acalentadora, do prof. Carlos Anzoategui 6 Neto que com raciocínio claro e coerente fez com que nos aprofundássemos no estudo do Direito Constitucional, e do prof. Fabrício Martins Rocha pelas suas valiosas lições na área de processo penal, que muito me auxiliaram para a maior compreensão dessa matéria. Agradeço por fim aos meus colegas de sala de aula, em particular ao meu amigo Sérgio da Silva Maciel, que me acompanhou durante todo o curso, que igualmente relutou em continuar, mas ainda assim mudou de ideia e continuou a se aplicar e que hoje luta por um futuro promissor. Os problemas durante o curso apareceram, mas conversando aprendemos a dar risada deles. 7 “É provavelmente muito cômodo esperar que um grande Zelador do Ecossistema venha à Terra e corrija os nossos abusos ambientais. Cabe a nós a tarefa. Não deve ser tão difícil assim. Os pássaros – cuja inteligência tendemos a denegrir – sabem o que fazer para não sujar o ninho. Os camarões, com cérebros do tamanho de partículas de fiapos, sabem o que fazer. As algas sabem. Os microorganismos unicelulares sabem. Já é hora de sabermos também”. (SAGAN, Carl. Bilhões e Bilhões: reflexões sobre a vida e a morte na virada do milênio. São Paulo: Schwarcz, 1998. P. 63). 8 RESUMO O presente trabalho tem como foco principal o estudo das esferas de poder da sociedade anônima contemporânea, analisando, em particular, se é possível a responsabilização do acionista controlador pelo ressarcimento do dano ambiental gerado por sua companhia. O estudo faz um histórico sistemático da evolução das sociedades anônimas, desde o seu surgimento até a sua disseminação como a principal forma societária para financiar grandes empreendimentos, e a respectiva evolução legislativa delas na legislação brasileira, ressaltando para as formas de responsabilização dos seus poderes gestores. Trata de analisar os deveres imputados ao controlador com fim de mitigar as possíveis distorções que o seu poder de supremacia na assembleia geral poderia causar na empresa, na economia e na sociedade, definindo o teor da regulação principiológica feita pelo art. 116, parágrafo único, da lei 6.404/76, principalmente quanto à composição do interesse social e a função social da empresa. Para definir esta, trata de fazer uma análise sistemática dos princípios que regem a ordem econômica, consubstanciados no art. 170 da Constituição Federal de 1988, em conjunto com a análise da função social dos bens de produção. Aborda com grande apreço o instituto da responsabilidade civil objetiva aplicado no direito do ambiente, delineando os seus princípios e requisitos para a caracterização, à luz da doutrina. Disserta por fim sobre a aplicação à figura do acionista controlador, questionando se ele poderia ser considerado como um poluidor indireto, caso contribua para a superveniência do desastre ambiental, na inteligência do art. art. 3º, inciso IV, da lei 6.938/81. PALAVRAS-CHAVE: sociedade anônima, acionista controlador, dano ambiental, responsabilidade civil, poluidor indireto. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11 CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................... 13 1 O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS 13 1.1 CONCEITO DE SOCIEDADE ANÔNIMA ..............................................................13 1.2 A SOCIEDADE ANÔNIMA NA ANTIGUIDADE ATÉ A REVOLUÇÃO COMERCIAL ................................................................................................................... 13 1.2.1 A SOCIEDADE MARÍTIMA E O SURGIMENTO DAS COMPAGNIAS.................................................................................................................15 1.2.2 A DELIMITAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES E A CRIAÇÃO DA SOCIEDADE EM COMANDITA....................................................................................18 1.2.3 APARECIMETO DAS PRIMEIRAS SOCIEDADES POR AÇÕES E SEU DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO.............................................................................19 1.3 O INÍCIO DA REGULAÇÃO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS NO BRASIL...24 1.3.1 O DECRETO-LEI 2.627/1940..........................................................................27 1.3.2 A LEI 6.404/76..................................................................................................32 CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................... 35 2 O PODER DE CONTROLE NA LEI DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS ...................... 35 2.1 DEVERES DO ACIONISTA CONTROLADOR ...................................................... 37 2.1.1 A DEFINIÇÃO DO INTERESSE SOCIAL ..................................................... 38 2.1.1.1 A TEORIA CONTRATUALISTA....................................................38 2.1.1.2 A TEORIA INSTITUCIONALISTA................................................41 2.1.2 O RESPEITO AO INTERESSE DA COMUNIDADE COMO UM DEVER FIDUCIÁRIO DO CONTROLADOR ....................................................................... 46 2.1.3 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA..................................48 10 CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................... 56 3 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ACIONISTA CONTROLADOR POR DANO AMBIENTAL ....................................................................................................................... 56 3.1 PRINCÍPIOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL ........................... 56 3.1.1 PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO.......................................................................56 3.1.2 PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR......................................................60 3.1.3 PRINCÍPIO DA REPARAÇÃO INTEGRAL..................................................62 3.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPOSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL E PRESSUPOSTOS PARA A SUA OCORRÊNCIA ......................................................... 63 3.2.1 EVENTO DANOSO.........................................................................................67 3.2.2 NEXO DE CAUSALIDADE............................................................................68 3.3 A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL AO ACIONISTA CONTROLADOR ...................................................... 69 CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 80 11 INTRODUÇÃO Analisaremos neste trabalho o motor da economia mundial: a importância da sociedade anônima ultrapassa a mera captação de recursos para os grandes empreendimentos. Podemos ver sua contribuição crucial, por exemplo, na geração de empregos que pode ser demonstrada pela pesquisa citada no Capítulo 2, item 2.1.3, que afirma que no ano de 2002 as micro e pequenas empresas correspondiam a 99,2% da totalidade das empresas formais do respectivo ano e empregavam 57,2% dos trabalhadores com carteira assinada, ao passo que as sociedades de médio e grande porte representavam 0,8% do total das empresas, mas possuíam 42,8% do total dos empregados. Não somente lidando com a vida e o bem estar dos trabalhadores, a companhia envolve uma gama de interesses que abrange o interesse dos consumidores, dos próprios sócios e principalmente da comunidade, que vê seus recursos naturais muitas vezes vertidos para os grandes empreendimentos, o que gera uma série de benefícios tanto para a população quanto para as empresas que os utilizam, mas gera igualmente um risco para o meio ambiente que deve ser previamente avaliado pela empresa. No topo do poder econômico da sociedade anônima encontramos a figura do acionista controlador, criada pela lei 6.404/76, sobre a qual discorreremos no segundo capítulo. Ele possui a supremacia dentro da empresa, ditando os rumos e as estratégias que deverão ser tomadas por ela para ter sucesso em seus empreendimentos. Este poder soberano, legitimado pela legislação, possui uma série de deveres, que abordaremos no título 2.1 do segundo capítulo, dentre eles o de atender lealmente aos interesses da comunidade, consubstanciado no art. 116, parágrafo único, da lei das sociedades anônimas, bem como o de fazer cumprir a função social da empresa. 12 Dentre os interesses da comunidade a serem resguardados, podemos destacar o interesse difuso de se ter um meio ambiente equilibrado, disposto no caput do art. 225 da Constituição Federal de 1988. Ante a estes deveres inescusáveis, tentaremos observar o verdadeiro teor destes, e se de fato, ante a legislação ambiental, comercial e civil que abrange o tema, há ou não a possibilidade de se responsabilizar o acionista controlador por danos ao meio ambiente gerados pela companhia. 13 CAPÍTULO 1 1 O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS 1.1 CONCEITO DE SOCIEDADE ANÔNIMA Antes de nos debruçarmos sobre o tema deste capítulo e tentarmos identificar o surgimento das sociedades anônimas e contextualizá-las devemos ter uma plena noção do objeto a ser pesquisado. Para definí-la, utilizaremos o conceito de Fábio Ulhoa Coelho 1 , que leciona que: a sociedade anônima, também referida pela expressão ‘companhia’, é a sociedade empresária com capital social dividido em ações, espécie de valor mobiliário, na qual os sócios, chamados acionistas, respondem pelas obrigações sociais até o limite do preço de emissão das ações que possuem. Valor mobiliário, por sua vez, trata-se de um instituto jurídico que por vezes se assemelha aos títulos de crédito, tendo em vista que quem possui uma ação de uma empresa é credor desta quanto aos seus dividendos, mas se diferencia por serem os direitos titularizados muito mais amplos, e por possuírem os seus titulares deveres também 2 . 1.2 A SOCIEDADE ANÔNIMA NA ANTIGUIDADE ATÉ A REVOLUÇÃO COMERCIAL A história do comércio sempre foi permeada por sociedades mercantis. Em Roma havia 1 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 67. Vol. 2. 2 Ibidem, P. 68. 14 sociedades comerciais cujas atividades se estendiam a todo Meditarrâneo 3 . Amador Paes de Almeida cita que certos autores consideram a Societates vectigalium ou Societates publicanorum como a origem das sociedades anônimas 4 .Estas sociedades eram dotadas de personalidade jurídica e “arrendatárias dos tributos devidos ao Estado, fornecedoras de gêneros ao povo e ao exército, encarregadas da construção de obras públicas”5. João Eunápio Borges afirma que elas se assemelham mais à sociedade de comandita por ações, mas, certamente, contribuíram para a formação do moderno conceito de sociedade por ações, tendo em vista que “era claramente distinta a qualidade de sócio da de participante e os títulos de participação (imitando as ações) eram transferíveis a terceiros”6. Para Fernand Braudel existem três gerações de sociedades que evoluíram expressivamente desde o período medieval, com a retomada do comércio, até a idade moderna, podendo ser classificadas entre as sociedades gerais, as sociedades em comandita e as sociedades por ações 7 . Tentaremos focar as discussões no período compreendido entre os séculos X e XIX, marcado pelo fim do feudalismo, onde havia uma economia de subsistência, a maioria dos produtos era manufaturada pelos servos dos senhores feudais e a terra representava a riqueza. Também será considerado o início do mercantilismo, onde podemos observar um comércio em expressiva evolução, uma contínua inovação dos arcabouços legais tanto para fomentar e viabilizar o comércio quanto para instituir monopólios e privilégios a poucas empresas e corporações. 3 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-XVIII: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1998. P. 383. Vol. 2. 4 ALMEIDA, Amador Paes de. Manual das Sociedades Comerciais. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. P. 165. 5 BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. P. 359. 6 Ibidem, P. 360. 7 BRAUDEL, Fernand, Op. Cit., 1998, P. 391. 15 A maior parte das trocas na Europa era realizada mediante o comércio marítimo, tendo em vista que a maioria das estradas estavam em péssimas condições e “eram frequentadas por duas espécies de salteadores - bandidos comuns e senhores feudais que faziam parar os mercadores e exigiam que pagassem direitos para trafegar em suas estradas abomináveis”8. As Cruzadas consistiam em um grande estímulo ao comércio, uma vez que os que viajavam a Europa para lutar precisavam de provisões e conforme progrediam no caminho para a terra santa os mercadores os acompanhavam 9 . Posteriormente, após as conquistas, os cruzados voltavam aos seus países com gostos pelas especiarias, roupas e produtos exóticos com que tiveram contato no Oriente, criando uma demanda crescente para estes tipos de mercadorias 10 . Com as conquistas das Cruzadas findou o controle muçulmano das rotas comerciais do Mediterrâneo e se instaurou o controle europeu, havendo um renascimento do comércio na região 11 . Nos séculos IX e X, as cidades de Amauri e Veneza, dentre outras, reiniciaram o comércio internacional intensivo. Veneza tinha em especial o comércio com Constantinopla, que por muitos anos foi a maior cidade do Mediterrâneo 12 . Este comércio exigia um maior domínio dos transportes e principalmente o levantamento de reservas financeiras vultosas para longas operações 13 . Outro fator que contribuiu para a expansão dos mercados foi justamente a reunificação da moeda, que aconteceu progressivamente com o curso dos séculos, tendo em vista a dificuldade de trocar produtos sem dinheiro 14 . Isto estimulou a criação das grandes feiras de comércio nas cidades realizadas nos séculos XII e XIII, em alguns casos com o salvo-conduto dos senhores das terras, protegendo os comerciantes de salteadores e ladrões nas estradas 15 . 8 HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 21ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. P. 17. 9 Ibidem, P. 17. 10 Ibidem, P. 17. 11 Ibidem, P. 21. 12 Ibidem, P. 20. 13 BRAUDEL, Fernand. Op. Cit., 1998, P. 383. 14 HUBERMAN, Leo. Op. Cit., 1986, P. 25. 15 Ibidem, P. 23. 16 1.2.1 A SOCIEDADE MARÍTIMA E O SURGIMENTO DAS COMPAGNIAS Para conseguir levantar o capital para as grandes viagens náuticas uma das primeiras alternativas econômicas que surgiram foi a societas maris, a sociedade marítima, também nomeada de societas vera, sociedade verdadeira, “o que leva a supor que tal forma de sociedade tenha sido, na origem, a única existente”16. Ela consistia em “uma associação entre um socius stans, um sócio que fica no local, e um socius tractator, que embarca no navio que vai partir”, sendo que ambos financiavam a sociedade 17 , e era feita para apenas uma viagem, funcionando a curto prazo, ressalvando que as viagens no Mediterrâneo levavam alguns meses 18 . Há registros desta sociedade “tanto no Notularium do notário genovês Giovanni Scriba (1155-1164), mais de 400 menções, como nas atas de um notário marselhês do século XIII, Almaric (360 menções)”19. Esta forma de sociedade se torna muito utilizada tendo em vista a sua simplicidade, podendo ser encontrada em Marselha e em Ragusa até no século XVI, inclusive em Portugal na mesma época 20 . Principalmente no interior da Itália, há o surgimento da compagnia, que pode ser caracterizada como uma sociedade em nome coletivo, geralmente de âmbito familiar, onde todos os seus sócios são solidariamente responsáveis de forma ilimitada, “não apenas no limite da sua quota-parte, mas com todos os seus bens“21. Com o passar dos anos, ela passou a admitir “sócios estrangeiros (que trazem capitais e trabalho) e dinheiro de depositantes (que, se pensarmos nos colossos de Florença, representa facilmente dez vezes o próprio capital - o corpo - da companhia), e assim se compreende que tais empresas sejam instrumentos 16 EVERITT, Alan. The Agrarian History of England and Wales. Apud BRAUDEL, Fernand. Op. Cit., 1998, P. 383. 17 BRAUDEL, Fernand. Op. Cit., 1986, P. 383. 18 Ibidem, P. 383. 19 Ibidem, P. 383. 20 Ibidem, P. 383. 17 capitalistas de um peso anormal”22. Vale ressaltar que as companhias mais fortes com essa estrutura familiar conseguiam substituir seus membros no caso de morte e continuar em atividade 23 . Fernand Braudel ressalta a importância dessas sociedades do interior das cidades italianas, pois as sociedades marítimas, apesar de numerosas, eram pequenas e de curta duração 24 . Surgiram outros exemplos de sociedades mercantis com uma estrutura familiar, como a Magnas societas, a Grosse Ravensburger Gesselshaft, que consistia na reunião de três sociedades familiares 25 , que durou de 1380 a 1530, cujo capital chegava a 132 mil florins, um capital expressivo para a época. Seus membros e representantes frequentavam as crescentes feiras da Europa, principalmente a de Frankfürt-Am-Main e “seus pontos principais, além de Ravensburg, eram Memmingen, Constança, Nuremberg, Lindau, St. Gall; suas filiais situavam-se em Gênova, Milão, Berna, Genebra, Lyon, Bruges (depois Antuérpia), Barcelona Colônia, Viena e Paris”26. Fernand Braudel afirma que o traço característico desta sociedade era “não ter seguido as inovações que se impuseram com os grandes descobrimentos, não se ter instalado em Lisboa ou em Sevilha”27. Com o passar dos anos o número de sócios da Magnas societas diminuiu, os patrões compraram terras e se retiraram dos negócios 28 , mas ela continuou a existir até o século XVIII, pois a sua estrutura familiar assegurava a sua continuidade29 . Mas outro traço marcante dessas sociedades é justamente a mudança e reconstrução da empresa com o passar das 21 BRAUDEL, Fernand. Op. Cit., 1986, P. 384. 22 Ibidem, P. 384 23 Ibidem, P. 384. 24 Ibidem, P. 384. 25 Ibidem, P. 386. 26 Ibidem, P. 386. 27 Ibidem, P. 386. 28 Ibidem, P. 386. 29 Ibidem, P. 386 18 gerações 30 . Como exemplo desta mudança Fernand Braudel cita os Buonvisi, “mercadores luquenses instalados em Lyon”31, que entre 1575 e 1607 mudaram sua razão social cinco vezes 32 . 1.2.2 A DELIMITAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES SOCIETÁRIAS E A CRIAÇÃO DA SOCIEDADE EM COMANDITA Estas sociedades começam a ser designadas pelo nome de sociedade geral, sociedade livre ou sociedade em nome coletivo e possuíam o grande problema da limitação das responsabilidades. Para saná-lo, eis que surge a sociedade em comandita 33 . Esta forma societária se distingue das demais pois define que a responsabilidade dos sócios é delimitada apenas pelo valor investido na empresa. A sua origem pode ser traçada aos séculos X e XI, conforme estudo de John Gilissen: “Este tipo de sociedade surgiu a partir dos séculos X-XI no quadro de comércio marítimo, no Mediterrâneo. Deriva do empréstimo marítimo (ou empréstimo de grande risco), no qual um financiador empresta dinheiro a um capitão de navio por uma ou várias viagens determinadas. Na commenda (de commendare = confiar, emprestar), o financiador (comanditário) associa-se ao capitão de navio (comandita do); partilha com ele os lucros, mas não suporta as perdas senão até ao limite do seu contributo em capital. Este tipo de contrato permitia escapar mais facilmente à proibição do juro que o empréstimo marítimo; a procura de meios para fazer frutificar os capitais, não obstante a proibição canônica, contribuiu para o nascer da idéia duma responsabilidade limitada ao capital investido”34. Fernand Braudel, citando Federigo Melis, afirma que “foi em Florença (mas não antes do 30 BRAUDEL, Fernand. Op. Cit., 1986, P. 386. 31 Ibidem, P. 386. 32 Ibidem, P. 386. 33 Ibidem, P. 387. 34 Ibidem, P. 387. 19 início do século XVI, datando o primeiro contrato conhecido de 8 de maio de 1532) que o sistema da comandita se desenvolveu claramente (accomandita), o que permitirá ao capital florentino, na tendência à sua grande expansão, participar de toda uma série de operações que se assemelham às holdings atuais” 35. Conforme se torna mais usual a associação a longa distância, e pelo fato dos sócios poderem ficar mais reservados e apenas cuidarem de seus investimentos e do comércio ao invés de ter de lidar também com a família dos associados, a sociedade em comandita começou a se alastrar por toda a Europa 36 . A sua adoção criou a possibilidade de “um mercador irlandês de Nantes de se associar (1732) a um mercador irlandês de Cork e de contornar as prescrições da legislação francesa vigentes até a Revolução e que proíbem o não-reinícola de participar das empresas nacionais de navegação”37. 1.2.3 APARECIMENTO DAS PRIMEIRAS SOCIEDADES POR AÇÕES E SEU DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO Posteriormente houve o surgimento das sociedades por ações, uma sociedade apenas de capitais, onde cada sócio possui parte do capital social consubstanciada na ação, que pode ser livremente negociada no mercado. Segundo Fernand Braudel, esta prática de vender a possibilidade de se associar possui a sua origem na prática, datada antes do século XV, de se dividir a propriedade dos navios em ações - “chamadas partes em Veneza, luoghi em Gênova, caratti na maior parte das cidades italianas, quiratz ou carats em Marselha”38. Algumas minas na Europa central também eram partilhadas: “suas propriedades eram divididas em partes, as Kuxen, e estas Kuxen, transferíveis, eram objeto de especulações”39. Leo Huberman cita que até algumas expedições de corsários passaram a ser organizadas 35 BRAUDEL, Fernand, Op. Cit.,1998, P. 387. 36 Ibidem, P. 387. 37 Ibidem, 387. 38 Ibidem, P. 388. 39 Ibidem, P. 388. 20 mediante sociedade por ações, dentre elas, uma das expedições de Drake contra os espanhóis, que “a própria rainha Elisabete possuía ações, em troca do empréstimo de alguns navios. Os lucros, apenas nessa expedição, se elevaram a 4.700%, dos quais a boa rainha Bess recebeu cerca de 250 mil libras, como sua cota”40. Alguns autores consideram como primeira sociedade por ações a Banca di San Giorgio di Genova fundada em 1409, “quando os títulos de renda foram transformados em ações, ensejando a seus possuidores participação nos lucros ou dividendos”41. Mas Fernand Braudel observa que ela não passava de um “Estado dentro do Estado”, uma vez que exercia atividades que originariamente competiam ao governo de Gênova 42 . No comércio internacional, uma das rotas mais rentáveis era a rota às Índias, que era controlada por Veneza. Com a invenção da bússola e demais instrumentos de navegação como o astrolábio, os navios dos demais países passaram a se aventurar para achar rotas alternativas para as Índias. Leo Huberman afirma que “a viagem de Colombo rumo ao Ocidente foi apenas uma do sem- número de viagens semelhantes que se empreenderam”. Até que em 1497 “Vasco da Gama, por essa rota do sul, circunavegou o continente africano, e em 1498 ancorou no porto de Calecute, Índia”43, descobrindo o caminho marítimo para as Índias. Somente na primeira viagem de Vasco da Gama, “os lucros atingiram a 6.000%”44. Em um único navio, ele transportou um carregamento de especiarias equivalente a metade do que Veneza comerciava por um ano 45 . Após esta descoberta, o oceano atlântico passou a ser a “rota mais importante e Portugal Espanha, Holanda, Inglaterra e França ascenderam à eminência comercial”46. 40 HUBERMAN, Leo, Op. Cit., 1986, P. 91. 41 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit, 2007, P. 165. 42 BRAUDEL, Fernand, Op. Cit., 1998, P. 389. 43 HUBERMAN, Leo, Op. Cit., 1986, P. 89. 44 Ibidem, P. 89. 45 Ibidem, P. 89. 46 Ibidem, P. 90. 21 Este período marcado por uma intensificação das transações comerciais internacionais foi denominado de Revolução Comercial. Diversas inovações jurídicas passaram a ser utilizadas para viabilizar o comércio entre as nações européias, como, por exemplo, as letras de câmbio, que serviam para evitar sofrer o risco desnecessário de ter de transportar moedas de ouro e prata para pagar suas mercadorias 47 . A captação de recursos provenientes da venda de ações era o meio mais eficiente na época para levantar o capital suficiente para as expedições marítimas, e então começaram a ser criadas diversas companhias de mercadores com essa forma societária. Dentre elas, a companhia dos Aventureiros Mercadores, criada em 1552, sendo a primeira sociedade por ações inglesa, possuindo “240 acionistas que entravam, cada um com 25 libras - soma de certa importância na época”48. Posteriormente houve o surgimento na Holanda da Companhia das Índias Orientais, criada em 1602, e da Companhia das Índias Ocidentais, fundada em 1621 49 e de outras companhias em diversos países da Europa. Vale ressaltar que essas companhias colonizadoras detinham geralmente vários privilégiosna exploração de suas atividades econômicas, dentre eles o monopólio sustentado pelo Estado, que também ajudava a compor o capital social das empresas, sendo elas consideradas como uma descentralização política, social e econômica das funções estatais 50 . Um exemplo dado por Rubens Requião é o da outorga à Companhia das Índias Ocidentais pelo soberano holandês do “poder de efetuar pactos e alianças com príncipes e naturais dos países, nos limites da outorga que receberam na carta real de construir fortalezas, de armar exércitos, de nomear governadores e funcionários da justiça e outros para todos os serviços necessários à conservação das praças, à manutenção da ordem e da polícia”51. A sociedade anônima, mais vantajosa para arrecadar recursos da época, não se difundiu rapidamente, segundo Fernand Braudel: “a própria palavra ação se aclimata tardiamente na 47 HUBERMAN, Leo, Op. Cit., 1986, P. 96 48 Ibidem, P. 91. 49 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit., 2007, P. 165. 50 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. P. 4. Vol. 2. 22 França e, mesmo quando pode ser lida preto no branco, não se trata forçosamente de ações facilmente transferíveis. Muitas vezes aparece a palavra, mas não ainda a coisa”52. Com o passar do tempo, “as sociedades por ações que surgiam, uma por uma, de privilégio real, concedido por carta ou patente real, começaram a debater-se no círculo fechado do poder estatal, procurando a sua libertação”53. A discussão sobre a liberdade das sociedades anônimas teve progressos e retrocessos na França revolucionária do século XVIII 54 : não obstante a revolução garantir a liberdade dos indivíduos, o que pressupõe a liberdade do comércio, em junho de 1791 foi elaborada a Lei Le Chapelier, que “proibia a associação de qualquer espécie”55. Tendo em vista o prejuízo para economia francesa gerado por esta lei, pouco depois foram concedidas às empresas a plena liberdade 56 . Rubens Requião observa que esse regime de plena liberdade fez com que ocorressem muitos abusos, dentre eles “a fundação de companhias apenas para especular com ações”57 o que levou “a codificação napoleônica a sujeitar a constituição das sociedades por ações, como norma geral, ao controle do Estado, não mais pelo sistema do privilégio, mas pelo da autorização governamental”58, que foi estabelecida pelo art. 37 do Code de Comerce, que preconiza que “A sociedade anônima não pode existir sem a autorização do governo e com a aprovação do ato que a constitua”59. Foi este mesmo código que elevou as sociedades anônimas à categoria de mercantis, ao lado da sociedade em comandita por ações, e que fixou “a limitação da responsabilidade do acionista ao valor das ações subscritas, e a divisão do 51 REQUIÃO, Rubens, Op. Cit., 2007, P. 4. 52 BRAUDEL, Fernand, Op. Cit., 1998, P. 390. 53 REQUIÃO, Rubens, Op. Cit., 2007, P. 4. 54 Ibidem, P. 4. 55 Ibidem, P. 4. 56 Ibidem, P. 5. 57 BULGARELLI, Waldirio. Manual das sociedades anônimas. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. P. 61. 58 REQUIÃO, Rubens, Op. Cit., 2007, P. 5. 59 Texto original: “La société anonyme ne peut exister qu’avec l’autorisation du governement et avec son approbation pour l’acte qui la constitue” 23 capital em ações”60. A partir de 1844, na Inglaterra, as sociedades anônimas poderiam se constituir livremente, apenas com o registro em repartição competente 61 . Anteriormente, houve um período datado a partir de 1720 onde em virtude da falência da Companhia dos Mares do Sul, criou-se o Bubble Act, que “condicionava a personalização jurídica das sociedades anônimas, bem como a captação de recursos da poupança popular, a prévia concessão estatal (por meio de Royal Charter ou de Act of Parliament“62. Em 1862 houve uma “convenção firmada entre a França e a Inglaterra que levou a primeira a permitir às sociedades inglesas funcionarem livremente em seu território”63, o que estimulou a criação de sociedades inglesas por franceses para atuar na França dada a ausência da necessidade de permissão do Estado 64 . Segundo Rubens Requião 65 , isso pressionou o governo francês a promulgar: uma lei de transição, pela qual as sociedades anônimas, cujo capital não excedesse de vinte milhões de francos poderiam constituir-se sem autorização, e a essas sociedades se lhes atribuiu, impropriamente, a categoria de sociedades de responsabilidade limitada, por influência do sistema britânico 66 . Por fim, houve a elaboração da Lei francesa de 24 de julho de 1867 que estabeleceu “plena liberdade para as sociedades comerciais, inclusive para as sociedades anônimas, que passam, como as demais, a contar com lei normativa, cujos postulados, uma vez cumpridos e respeitados, permitem a livre constituição e funcionamento”67. Com a desnecessidade da autorização do governante para a sua criação, as sociedades 60 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit., 2007, P. 165. 61 BULGARELLI, Waldirio, Op. Cit., 1999, P. 62. 62 COELHO, Fábio Ulhoa, Op. Cit., 2010. P.65. 63 REQUIÃO, Rubens, Op. Cit., 2007, P. 5. 64 Ibidem, P. 5. 65 Ibidem, P. 5. 66 Ibidem, P. 5. 67 Ibidem, P. 5. 24 anônimas começaram a se multiplicar no período da Revolução Industrial, por ser o meio mais eficiente de captação de recursos imprescindíveis para o princípio da atividade industrial e fabril, podendo qualquer um com o capital suficiente comprar as ações e receber os dividendos. Ela passou de ser um instrumento jurídico excepcional e se tornou uma forma jurídica “normal” da empresa econômica “e a sua adoção se espalhou pari passu com a industrialização dos vários países”68. 1.3 O INÍCIO DA REGULAÇÃO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS NO BRASIL No período colonial brasileiro as sociedades anônimas só poderiam se constituir mediante outorga em carta real de Portugal 69 . Um dos exemplos desta outorga foi o Alvará de 10 de março de 1649 que instituiu a criação da Companhia Geral de Comércio do Brasil, instituída para explorar especialmente a região do nordeste brasileiro, sendo uma medida para garantir a conquista portuguesa da região, que então estava sendo tomada pelos holandeses 70 . Esta empresa “era administrada por uma Junta composta de nove deputados ou diretores, sendo oito eleitos pelos acionistas de mais de 5.000 cruzados e um designado pela municipalidade de Lisboa, mais oito conselheiros eleitos pelos comerciantes lisboetas”71. Dentre os privilégios concedidos a esta companhia Waldirio Bulgarelli destaca o de “estanco para o Brasil dos quatros gêneros de mantimentos, a saber: vinhos, farinhas, azeites e bacalhau”72. Esta companhia foi posteriormente sucedida em 1755 pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, que detinha o privilégio do monopólio do tráfico de escravos negros 73 . 68 ASCARELLI, Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969. P. 318. 69 REQUIÃO, Rubens, Op. Cit., 2007, P. 9. 70 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit., 2007, P. 166. 71 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 37. 72 BULGARELLI, Waldirio, Op. Cit., 1999, P. 60. 73 ALMEIDA, AmadorPaes de, Op. Cit., 2007, P. 166. 25 Ela foi em seguida sucedida pela Companhia Geral das Capitanias de Pernambuco e Paraíba, datada de 1779 74 . Com a vinda da família real portuguesa ao Brasil foi criado, por iniciativa de Dom João VI, o Banco do Brasil, em 1808, “conceituado em seus estatutos como um corpo moral, limitada a responsabilidade do acionista a sua entrada, devendo o dividendo ser pago semanalmente”75. As sociedades criadas no Brasil até 1849 foram feitas no regime do privilégio concedido pelo governo, “emanando de lei especial (alvarás, cartas régias etc) a sua organização e os seus estatutos”76 Em 10 de janeiro de 1849 foi instituído o regime de autorização governamental para a incorporação ou aprovação dos estatutos das Sociedades Anônimas no Brasil, através do Decreto nº 575. Ele foi posteriormente substituído pelo Código Comercial de 1850, cujo art. 295 preconizava: As companhias ou sociedades anônimas, designadas pelo objeto ou empresa a que se destinam, sem firma social e administradas por mandatários revogáveis, sócios ou não sócios, só podem estabelecer-se por tempo determinado e com autorização do governo, dependente da aprovação do corpo legislativo quando hajam de gozar de algum privilégio; e devem provar-se por escritura pública ou pelos seus estatutos e pelo ato do poder que as houver autorizado. Em 23 de agosto de 1860 a Lei nº 1.083 revogou o capítulo referente às sociedades anônimas do referido código e passou a subordinar a constituição das sociedades à prévia autorização governamental, “estabelecendo a necessidade de audiência do Conselho de Estado sobre os fins sociais da companhia, avaliação de bens e outros detalhes da organização”77. Esta lei vigeu até 1882 e foi substituída pela Lei nº 3.150, de 4 de novembro de 1882, que foi inspirada na lei francesa de 1867, e que ampliou a liberdade da iniciativa privada, “limitando a autorização governamental às sociedades religiosas, montepios, sociedades de seguro, 74 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit., 2007, P. 166. 75 Ibidem, P. 166. 76 BORGES, João Eunápio, Op. Cit., 1967, P. 364. 77 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit., 2007, P. 166. 26 caixas econômicas, gêneros alimentícios e sociedades estrangeiras, fixando, outrossim, a necessidade de autorização do Poder Legislativo para o funcionamento de sociedades anônimas constituídas em bancos de circulação”78. A Lei nº 3.150 delineou os órgãos de poder da sociedade anônima que eram estes, a saber: a administração, eleita pelos acionistas; a assembléia geral, exigindo que esta se realizasse a cada ano; e o conselho fiscal, composto por três ou mais fiscais nomeados pela assembléia geral, que era encarregado de dar pareceres sobre os negócios e operações do ano seguinte, tendo por base o balanço, inventário e contas da administração, nos termos do art. 14. Determinou especialmente a “responsabilidade pessoal e solidária dos incorporadores pela prática de atos em inobservância às leis; a responsabilidade do cedente de ações pelo valor integral destas; a obrigação de restituírem os administradores os dividendos indevidamente distribuídos, garantindo sobremaneira os interesses dos acionistas”79. Após a proclamação da República a Lei nº 3.150 foi substituída pelo Decreto nº 164 de 17 de janeiro de 1890 que, segundo Amador Paes de Almeida, “por uma série de circunstâncias, ensejou inúmeras irregularidades na então agitada vida financeira do país”80. Quanto à responsabilidade dos administradores, estes eram responsáveis perante a sociedade pela negligência, culpa ou dolo, com que se houverem no desempenho do mandato, perante a sociedade e os terceiros prejudicados, pelo excesso de mandato, por violação à legislação e ao estatuto da sociedade. Em 13 de outubro de 1890 surgiu o Decreto nº 850 que elevou de 10% para 30% o valor do depósito exigido para a constituição da sociedade anônima, proibindo a negociação de ações “antes de realizados 40% do capital subscrito”81. A legislação das sociedades anônimas só foi consolidada a partir do Decreto nº 434, de 4 78 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit., 2007, P. 166. 79 Ibidem, P. 166. 80 Ibidem, P. 166. 81 Ibidem, P. 166. 27 julho de 1891. Diversas outras leis e decretos se sucederam regrando as sociedades até a promulgação do Código Civil de 1916, que dentre outras determinações condicionou a atuação das sociedades estrangeiras por ações no Brasil à aprovação de seus respectivos estatutos pelo Governo Federal 82 . Posteriormente, houve o Decreto nº 21.828, de 15 de junho de 1932, que determinou que “as sociedades anônimas poderiam ter o seu capital social representado por ações preferenciais de uma ou mais classes”83. No mesmo ano houve o Decreto nº 21.828, de 14 de setembro, que “determinava a obrigatoriedade das sociedades de seguros revestirem-se a forma anônima e em março de 1940, o Decreto-lei nº 2.055 regulava a conversão de ações ordinárias em ações preferenciais emitidas por sociedades sujeitas à fiscalização do Governo Federal”84 1.3.1 O DECRETO-LEI Nº 2.627/1940 Inúmeras iniciativas para a mudança da legislação se sucederam até que com inspiração na reforma da legislação alemã referente às sociedades anônimas 85 , que ocorreu em 1937. Miranda Valverde elaborou um anteprojeto que foi transformado, com algumas alterações, no Decreto-lei nº 2.627/1940. João Eunapio Borges 86 . afirma que a única obrigação legal do acionista naquela época era a de “integralizar o valor de suas ações”. A sociedade anônima na época mantinha a estrutura delineada pelas legislações anteriores: havia “a assembléia geral dos acionistas, que detinha poder supremo da sociedade, a diretoria, que, nomeada pela assembléia e dela recebendo os seus poderes, constituía o seu poder executivo, e o conselho fiscal”87. O órgão máximo da sociedade anônima seria a assembléia geral, que possuía o poder “para 82 ALMEIDA, Amador Paes de, Op. Cit., 2007, P. 166. 83 Ibidem, P. 166. 84 Ibidem, P. 166. 85 BULGARELLI, Waldirio, Op. Cit., 1999, P. 25. 86 BORGES, João Eunápio, Op. Cit., 1967, P. 445. 28 resolver todos os negócios relativos ao objeto da sociedade e para tomar as decisões que julgar convenientes à defesa desta e ao desenvolvimento de suas operações”88, e que detinha o poder principal de indicar os membros da diretoria. Ainda assim, segundo Ana Frazão 89 “não caberia à assembleia geral os poderes de gestão”, caso esclarecido pelo §5º do art. 116 do decreto-lei nº 2.627/40 que dizia que “as atribuições e poderes conferidos pela lei aos diretores não podem ser outorgados a outro órgão, criado pela lei ou pelos estatutos”. Ana Frazão 90 conclui, com o raciocínio de Fábio Konder Comparato, que o decreto-lei “seguia a teoria dos poderes de direção, segundo a qual a assembleia geral de acionistas não teria competência para praticar atos de gestão”91. O ideal doutrinário era de que a sociedade anônima era o tipo “perfeito de democracia de governo popular”92, cuja soberania se manifestava nos atos deliberativos da assembléia geral que era composta por todos os acionistas. Era vigente o sistema majoritário, onde segundo Modesto Carvalhosa93 havia: uma correlação direta entre risco de capital empregado e mando social. O acionista ou grupo de acionistas que assumiam maior risco decapitais investidos na companhia é que deveriam comandá-la. Assim, aqueles que possuíam mais de 50% do capital votante eram considerados pela lei como os acionistas que teriam os poderes de decisão, de indicação dos administradores e da orientação política da companhia. A realidade é que em virtude do alto número de acionistas da maioria das companhias, que em 87 BORGES, João Eunápio, Op. Cit., 1967, P. 445. 88 Ibidem, P. 449. 89 FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. P.163 90 Ibidem, P. 163. 91 Ibidem, P. 163. 92 BORGES, João Eunápio, Op. Cit., 1967, P. 449. 93 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. Pág. 420. Vol. 2 29 alguns casos poderiam ter suas residências em locais diversos, seria praticamente inviável reuní-los todos no mesmo local, e poucos tinham de fato o interesse em dirigir a companhia, sendo que a grande maioria apenas possuía interesse em especular, adquirindo ações por puro interesse de revendê-las e não com o intuito de fazerem parte de uma sociedade 94 . O que acontecia na prática era que a assembléia tinha o seu “quorum preenchido por meio de procurações outorgadas não aos diretores (porque a lei o proibia), mas a acionistas- empregados, ou, de qualquer modo, estreitamente ligados aos diretores”95. Em virtude dessa abstenção em massa, a diretoria dispunha de um “poder autônomo e, praticamente, sem limites”96. Ruy Carneiro Guimarães corrobora este domínio do conselho de administração, que “conservando as aparências de um formalismo jurídico, governa, de fato, sob o regime de oligarquia”97. A supremacia do conselho de administração refletia também no conselho fiscal, uma vez que tinham os seus membros eleitos pela a assembléia geral, o que fazia com que ele fosse um órgão meramente decorativo 98 , contrariando todos os dispositivos legais de então que tentavam evitar que o administrador interviesse em sua composição, tal como o disposto no artigo 126, que considerava inelegível para o conselho fiscal os empregados da sociedade e os parentes dos diretores até o terceiro grau. Então, quais seriam as limitações ao poder dos administradores se eles de fato poderiam possuir pleno domínio das decisões da assembléia? A respeito dispõe o artigo 119 do Decreto- Lei nº 2.627: Os diretores não poderão praticar atos de liberalidade à custa da sociedade. Não lhes será, igualmente, lícito hipotecar, empenhar ou alienar bens sociais, sem expressa autorização dos estatutos ou da assembléia geral, salvo se esses 94 BORGES, João Eunápio, Op. Cit., 1967, P. 450. 95 Ibidem, P. 450. 96 Ibidem, P. 451. 97 GUIMARÃES, Ruy Carneiro. Sociedades por Ações (Notas de Doutrina e Jurisprudência). Rio de Janeiro: Forense, 1960. P. 171. Vol. 2. 98 BORGES, João Eunápio, Op. Cit., 1967, P. 447. 30 atos ou operações constituírem objeto da sociedade Parágrafo único. É também defeso os diretores tomar empréstimos à sociedade, sem prévia autorização da assembléia geral. Os referidos atos de liberalidade seriam os que “diminuem, de qualquer sorte, o patrimônio social, sem que tragam para a sociedade nenhum benefício ou vantagem econômica”99. Não poderiam os diretores igualmente agirem em conflito de interesses, segundo o art. 120 que preconiza que: é vedado ao diretor intervir em qualquer operação social, em que tenha interesse oposto ao da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais diretores, cumprindo-lhes cientificá-los do seu impedimento. Parágrafo único = a violação dessa proibição sujeitará o diretor à responsabilidade civil, pelos prejuízos causados à sociedade, e à responsabilidade penal que no caso couber. Sob a influência do institucionalismo, do qual trataremos no capítulo seguinte da monografia, havia igualmente uma exigência no art. 117, §7º de que “os diretores deverão empregar, no exercício de suas funções, tanto no interesse da empresa como do bem público, a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”. Apesar disso, as obrigações impostas aos administradores eram vistas como “de meio e não de fim, motivo pelo qual o critério aferidor seria a normalidade das operações e não os resultados das condutas”100. Ana Frazão destaca a previsão do art. 121, §1º do Decreto-lei que “continha cláusula geral responsabilizando os administradores pelos prejuízos que causarem dentro de suas atribuições, com culpa ou dolo (inciso I) e com violação da lei e dos estatutos (inciso II)”101 e afirma que tal disposição correspondeu à cláusula geral de responsabilidade civil dos administradores. 99 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades por ações. Apud GUIMARÃES, Ruy Carneiro. Op. Cit, 1960, P. 77. 100 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 165. 101 Ibidem, P. 165. 31 A previsão no inciso II, segundo Miranda Valverde 102 : perderia valor se, como geralmente se admite, houvesse necessidade da prova da culpa do diretor nos casos de violação da lei ou dos estatutos. Dir- se-á que a lei presume, nesses casos, a culpa do diretor pelo que a ele incumbirá provar que a violação da lei ou dos estatutos resultou de circunstâncias especialíssimas, por ele não provocadas ou relativamente às quais não podia ele ter nenhuma influência, ou, ainda, que os prejuízos verificados ocorreriam em qualquer hipótese. Por sua vez o art. 123 elencava as hipóteses que permitiam intentarem ação de responsabilidade civil contra os diretores, dentre elas a ação promovida pela sociedade para reparar os prejuízos causados diretamente ao seu patrimônio, sendo que se a empresa se mantivesse inerte por seis meses a contar da primeira assembleia geral ordinária, qualquer acionista poderá promovê-la em favor da companhia. Havia também a possibilidade do acionista que experimentasse prejuízo direto intentar com a ação de responsabilidade civil para reaver a quantia perdida. O decreto-lei de então não previa qualquer disposição expressa de que terceiros prejudicados poderiam se valer de ação de responsabilidade contra a diretoria, mas segundo Ana Frazão 103 a doutrina admitia tal possibilidade a partir das regras gerais de responsabilidade extracontratual. Tal raciocínio era corroborado por Miranda Valverde 104 que afirmava: a ação de responsabilidade ou reparação civil dos terceiros obedece às regras do direito comum, menos no que se relaciona com a prova da culpa ou do dolo do diretor, na hipótese de atos violadores da lei ou dos estatutos. Aliás, em princípio, não têm os terceiros contra os diretores ação alguma baseada em atos ou operações praticados por estes, dentro de suas atribuições e poderes. Os prejudicados são a sociedade e seus acionistas. O Decreto-Lei nº 2.627 vigeu até a promulgação da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que atualmente regula as Sociedades Anônimas no Brasil. 102 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por ações. Apud FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 165 103 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 167. 104 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por ações.Apud FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 167. 32 1.3.2 A LEI 6.404/76 Com o intuito de fortalecer o mercado de capitais e de se resguardar o direito dos acionistas minoritários, a lei 6.404/76 criou uma série de inovações quanto aos órgãos e aos cargos gestores da sociedade anônima, mantendo a maioria dos principais órgãos societários, tais como a assembleia geral e o conselho fiscal, e fazendo regulações incisivas nos órgãos gestores. Houve “o reconhecimento expresso dos administradores como órgãos, bem como a adoção do sistema dualístico – conselho de administração e diretoria – de forma obrigatória somente apenas para as companhias abertas e de capital autorizado (art. 138)”105. De acordo com Modesto Carvalhosa 106 a fundamentação formal da existência do conselho era justamente para tentar “conciliar os interesses dos acionistas controladores e daqueles que compõem a comunidade minoritária de investidores do mercado” e por sua vez a razão real seria para se tornar o órgão facilitador da execução dos acordos de acionistas, posicionando “em termos de privilégios, ou paridade, ou de veto, determinados grupos influentes de acionistas minoritários”107. O conselho de administração trata-se de um órgão colegiado, que é formado por no mínimo três membros eleitos pela assembleia geral e cujas competências se encontram dispostas no art. 142 da lei societária. Por sua vez, de acordo com o art. 143, a diretoria é composta por duas ou mais pessoas escolhidas pelo conselho de administração ou pela assembleia geral, possuindo competência privativa de representação da companhia de acordo com o art. 138, §1º. De acordo com o art. 139, as atribuições conferidas por lei a ambos os órgãos não podem ser outorgadas a outro órgão, criado por lei ou pelo estatuto. 105 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 168. 106 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. P. 5. Vol. 3. 107 Ibidem, P. 7 33 O diploma legal estabelece no seu art. 143 que até um terço dos membros do conselho de administração poderão ser eleitos para os cargos de diretores, e ainda afirma que o estatuto pode estabelecer que determinadas decisões, que sejam de competência dos diretores, sejam tomadas em reunião com a diretoria. De acordo com Ana Frazão 108, “apesar das diferenças entre os conselheiros e os diretores, o art. 145 da Lei das S/A esclarece que as normas relativas a deveres e responsabilidade dos administradores aplicam-se indistintamente aos dois grupos”. Já Modesto Carvalhosa 109 aponta a relatividade do preceito legal dizendo que haveria diferentes momentos e diversas intensidades no tocante à responsabilidade dos dois grupos, e segundo sua lição: basta verificar o caráter colegial das deliberações do Conselho e o regime individual dos atos praticados pelos diretores. Os conselheiros somente serão responsáveis pelos atos, documentos e negócios jurídicos que chegarem ao conhecimento do órgão, seja em virtude do exercício do controle de legitimidade que lhes cabe, seja pelo exame das informações e relatórios que são trazidos às reuniões pelos diretores. Não podem os conselheiros ser responsabilizados pelos atos praticados pelos diretores (art. 158), que lhes sejam ocultados, inclusive pelos que não vierem a constar das contas da diretoria e das demonstrações financeiras. Apesar disso, Modesto Carvalhosa 110 destaca a situação dos “diretores de fato” dizendo que: as pessoas que exercitam irregularmente poderes e atribuições dos administradores, seja por delegação ilegal, seja por abuso ou excesso de mandato, são equiparados aos administradores no que respeita à responsabilidade (art. 158) A lei não estabelece hierarquia entre o conselho de administração e os diretores, “motivo pelo qual estes últimos não poderão se isentar da responsabilidade pela simples circunstância de estarem amparados por decisão do conselho de administração”111. De acordo com Ana 108 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 169 109 CARVALHOSA, Modesto. Op. Cit., 1998, Vol. 3, P. 161. 110 Ibidem, P. 162. 111 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 170 34 Frazão 112, “os membros do conselho não respondem pelos atos dos diretores, salvo se tiverem agido com culpa”. Quanto à assembleia geral, a lei escolheu por não definí-la, mas sim afirmar sua importância afirmando em seu art. 121 que ela é o órgão “primário, ou imediato, que investe os demais, elegendo os seus membros, elegendo os seus membros e podendo demití-los”113 (art. 122, II) e que, na dicção do art. 121, possui poderes para “decidir todos os negócios relativos ao objeto da sociedade e tomar resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento”. Segundo Roberto Barcellos de Magalhães a assembleia geral “teoricamente, pode ser considerada o poder supremo das sociedades anônimas”114. O problema é que era notório que este poder supremo ficava, em certos casos, nas mãos de poucos, denominados de “acionistas majoritários” no Decreto-Lei 2.627/40, que o exerciam com poucas exigências legais, caso compararmos com a figura do diretor. Exigiu-se do legislador que fosse criada a figura do acionista controlador, que se encontra disposta no art. 116 da lei das S/As. 112 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 170 113 COMPARATO, Fábio Konder, Op. Cit., 2008, P. 31. 114 MAGALHÃES, Roberto Barcellos. A nova Lei das Sociedades Anônimas. Apud SANTOS, Jurandir dos. Manual das Assembléias Gerais nas Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 1994. P. 16 35 CAPÍTULO 2 2 O PODER DE CONTROLE NA LEI DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS A palavra controle no português não significa apenas vigilância, verificação ou fiscalização. Atribuímos também à palavra “o ato ou poder de dominar, regular, guiar ou restringir”115. A disciplina estabelecida no art. 116 para a figura do acionista controlador é derivada especialmente desta segunda conotação ao apregoar que: Entende-se por acionista controlador a pessoa natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) É titular de direitos de sócio que lhe assegurem de modo permanente a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) Usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. A solução legislativa foi uma resposta para o cenário brasileiro de extrema concentração acioniária comprovado pela pesquisa de Dante Mendes Aldrighi e Alessandro Vinícius Marques de Oliveira 116 que afirma que 77,3% das companhias abertas pesquisadas possuem um acionista controlador. A intenção de regular tal poder fica clara na exposição justificativa dada ao art. 116 pelos 115 COMPARATO, Fábio Konder, Op Cit., 2008, P. 29. 116 ALDRIGHI, Dante Mendes; OLIVEIRA, Alessandro Vinícius Marques. The influence of ownership and control structures on the firm performance: evidence from Brazil. Social Science Research Network. 15 de março de 2007. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=972615. Acesso em: 07 de maio de 2012. 36 autores do projeto, AlfredoLamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira 117 , que afirmam: O art. 116 dá “status” próprio, no direito brasileiro, à figura do “acionista controlador”. Esta é a inovação em que a norma jurídica visa encontrar-se com a realidade econômica subjacente. Com efeito, é de todos sabido que as pessoas jurídicas têm o comportamento e a idoneidade de quem as controla, mas nem sempre o exercício desse poder é responsável, ou atingível pela lei, porque se oculta atrás do véu dos procuradores ou dos terceiros eleitos para administrar a sociedade. Ocorre que a empresa, sobretudo na escala que lhe impõe a economia moderna, tem poder e importância social de tal maneira relevantes na comunidade que os que a dirigem devem assumir a primeira cena na vida econômica, seja para fruir do justo reconhecimento pelos benefícios que geram, seja para responder pelos agravos a que dão causa. O tema cresce em importância quando se considera que o controlador, muitas vezes, é sociedade ou grupo estrangeiro, que fica, por força de sua origem, excluído até mesmo das sanções morais da comunidade. O poder de controle para Fábio Konder Comparato deve ser dividido entre o controle interno e o externo, sendo que naquele “o titular do controle atua no interior da sociedade (ab intus), lançando mão dos mecanismos de poder próprios da estrutura societária, notadamente a deliberação em assembleia”118, e neste “o controle pertence a uma ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, que não compõem quaisquer órgão da sociedade, mas agem de fora (ab extra)”119. O controle interno trata-se exatamente da figura do acionista controlador como está disposta no art. 116. Já o controle externo poderia ocorrer, segundo exemplo dado pelo referido autor, na hipótese de uma grande companhia extremamente endividada perante um banco que passa a se sujeitar às decisões deste em tudo o que for necessário para a reorganização empresarial, sendo mais conveniente para a instituição financeira “agir de fora do que assumir o controle acionário, ou provocar a falência da devedora”120. Nesta hipótese de controle externo, na lição de Fábio Konder Comparato, a titularidade desses poderes poderia se tornar meramente formal, com as decisões em assembleia se submetendo a 117 LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões Pedreira. A lei das S.A: Pressupostos, elaboração, aplicação. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. P. 229. 118 COMPARATO, Fábio Konder, Op. Cit., 2008, P. 48. 119 Ibidem, P. 48. 120 Ibidem, P. 39. 37 uma soberania externa 121 . Apesar disso, Modesto Carvalhosa 122 afirma que a lei 6.404 não prevê “qualquer responsabilidade do controlador externo” e que consequentemente, caberia aos controladores internos essa responsabilidade (disposta no art. 117). Na opinião de Modesto Carvalhosa 123, os controladores externos seriam “irresponsáveis perante a companhia, seus acionistas e terceiros em geral pela condução, de fato, da sociedade”. Segundo Modesto Carvalhosa 124 , o poder oligárquico conferido ao acionista controlador foi contrabalançado pela outorga aos acionistas minoritários de: uma série de direitos específicos de informação, fiscalização e de ação em face dos administradores e dos próprios controladores (arts. 105, 123, 124, 126, 133, 141, 157, 161). Esses direitos constituíam uma forma de compensar a retirada do direito de participação (art. 112) – ainda que minoritária – na discussão e deliberação da política da companhia, que se proporcionava na assembleia geral, através do voto, anteriormente à Lei n. 8.021, de 1990, que aboliu as ações ao portador, derrogando o art. 112, por incompatibilidade com o ordenamento vigente. 2.1 DEVERES DO ACIONISTA CONTROLADOR O legislador tratou de impor uma série de deveres ao acionista controlador para controlar o seu poder, consubstanciados no parágrafo único no art. 116, que preconiza que: O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Esta disposição legislativa foi influenciada pela corrente institucionalista que definia o interesse social, que é entendido como parâmetro que orienta a conduta dos órgãos 121 COMPARATO, Fábio Konder, Op. Cit., 2008, P. 39. 122 CARVALHOSA, Modesto, Op. Cit., 1998, Vol. 2, P. 436. 123 Ibidem, P. 436. 124 Ibidem, P. 421. 38 societários, ou, nas palavras de Calixto Salomão Filho 125, “a razão de ser das sociedades comerciais”. Tal discussão foi utilizada amplamente em diversos países, dentre elas a França e a Alemanha, para o início de responsabilização dos órgãos gestores 126 . A lei das S/As faz diversas menções à figura do interesse social. Quanto ao acionista controlador, há especialmente a disposição do art. 115, que trata do abuso do direito de voto e do conflito de interesses, afirmando que “o acionista deve exercer o direito de voto no interesse da companhia”. Trataremos de analisar inicialmente as correntes que definem o interesse social para depois adentrarmos de fato no estudo aprofundado dos deveres do acionista controlador, posto que tal compreensão é de suma importância para a definição da função social da sociedade anônima. 2.1.1 A DEFINIÇÃO DO INTERESSE SOCIAL Ao analisar a temática do interesse social, a doutrina expõe inicialmente a contraposição de duas correntes doutrinárias e suas ramificações: a teoria contratualista e a institucionalista. 2.1.1.1 A TEORIA CONTRATUALISTA A teoria contratualista foi desenvolvida com maior expressão na doutrina e jurisprudência italiana 127 e dispõe basicamente que o interesse social coincide com o interesse do grupo de sócios. Ana Frazão 128 atribui o surgimento de tal teoria à formação do conceito de personalidade jurídica das sociedades comerciais no século XIX. 125 SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 27. 126 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 60. 127 SALOMÃO FILHO, Calixto, Op. Cit., 2011, P. 28. 128 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 62 39 Apesar do Código Napoleônico apenas mencionar a existência de pessoas naturais 129 , a jurisprudência francesa foi de suma importância para o surgimento da personalidade jurídica das sociedades comerciais e das demais pessoas de direito privado, ao reconhecê-las em 1834 130 . Tal personalização fez com que houvesse a separação entre o patrimônio da empresa e dos sócios. De acordo com Ana Frazão 131 : A personalização ainda permitiu que as sociedades anônimas (i) delimitassem o seu campo de atuação a partir da noção de objeto social – o que os franceses chamam de “princípio da especialização” e (ii) recebessem, como sujeitos autônomos de direito, proteção semelhante à que o sistema jurídico conferia às pessoas naturais, inclusive para o fim de titularizarem diversos direitos para o exercício da atividade empresarial, dentre os quais o de propriedade. Não havia dúvidas da utilidade da personalização das sociedades comerciais, mas tal hipótese gerou várias dúvidas “quanto aos seus próprios pressupostos e finalidades”132. Ana Frazão133 afirma que Savigny se propôs a solver tal problema dizendoque as pessoas jurídicas “seriam entes fictícios, que não existiriam senão para fins jurídicos”. Ana Frazão134 arremata dizendo que “sendo uma mera ficção, dificilmente se poderia sustentar que a pessoa jurídica tivesse um interesse próprio, que transcendesse aos dos seus componentes”. Por tal razão, o contratualismo adviria dessa concepção. Na concepção do contratualismo, “a liberdade iniciativa, os direitos e o patrimônio social da sociedade anônima poderiam e deveriam ser utilizados apenas para o proveito dos acionistas”135. Essa visão, aliada com o entendimento da época do Estado liberal de que direitos como a 129 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 61. 130 Ibidem, P. 61. 131 Ibidem, P. 61 132 Ibidem, P. 62. 133 Ibidem, P. 62 134 Ibidem, P. 63. 135 Ibidem, P. 64. 40 propriedade eram considerados absolutos, fazia com que as sociedades empresárias “se dedicassem às suas finalidades econômicas em toda intensidade possível, sem que houvesse qualquer outro interesse que pudesse pautar suas condutas além da obtenção de lucros para os acionistas”136. De acordo com Calixto Salomão Filho 137 , há duas versões do contratualismo clássico: uma que apregoa que o interesse social se refere apenas ao grupo de sócios atuais, e outra que “inclui na categoria sócio não apenas os atuais como também os futuros”. Um dos partidários desta primeira corrente seria Pier Giusto Jaeger, que nas palavras de Calixto Salomão Filho 138 , considerava que o interesse social “não constitui um conceito abstrato, mas, sim, algo de concreto definível apenas quando comparado com o interesse do sócio para aplicação das regras sobre o conflito de interesses”. No pensamento de Calixto Salomão Filho, tal visão viria: a partir de sua concepção particular do contrato de sociedade: como o contrato social é de execução continuada e o interesse social é o interesse do grupo de sócios, aquele interesse social pode ser constantemente revisto e eventualmente desconsiderado de modo explícito quando se trata de decisão unânime dos sócios. A questão é que essa visão de Pier Giusto Jaeger foi inclusive revista por ele quarenta anos depois, onde ele identifica o interesse social como a busca para conseguir o shareholder value, ou seja, a maximização do valor de venda das ações do sócio 139 , consubstanciando o pensamento do chamado contratualismo moderno. Essa linha de raciocínio acarretaria apenas em um forte incentivo para a busca “desenfreada de aumento do valor de venda das ações por todos os agentes do mercado”140, em um 136 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 66. 137 SALOMÃO FILHO, Calixto, Op. Cit., 2011, P. 29. 138 Ibidem, P. 29. 139 JAEGER, Pier Giusto. Interesse sociale revisitato (quarant’ anni dopo). Apud SALOMÃO FILHO, Calixto. Ob. Cit., 2011, P. 31. 140 SALOMÃO FILHO, Calixto, Ob. Cit., 2011, P. 32. 41 encorajamento ímpar para a especulação. Tal perspectiva é dominante na doutrina e na prática societária americana, e de acordo com Calixto Salomão Filho 141 : é responsável, hoje, pela forte tendência à interpretação permissiva de regras contábeis, à mudança de regras contábeis ou até mesmo à maquiagem de balanços, fenômenos endêmicos e conhecidos na realidade societária americana, da qual o caso Enron e os escândalos com empresas de auditoria são apenas pequena parte, até agora visível. A definição de que o interesse social seria a maximização do valor de venda das ações do sócio tratava principalmente de aumentar a remuneração dos administradores, que nas empresas americanas “consistia basicamente de compra de ações”142. Ou seja, haveria um estímulo para a criação artificial de valor acionário, decorrente, segundo Fábio Konder Comparato 143, “dessas características societárias e não de falhas na legislação de mercado de capitais”. 2.1.1.2 A TEORIA INSTUTUCIONALISTA Por sua vez, a corrente institucionalista que se contrapôs ao contratualismo foi composta de várias vertentes, dentre elas, destaca-se o que foi denominado como institucionalismo publicista e o integracionista, ou organizativo. O institucionalismo publicista surgiu na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial e teve como expoente a doutrina do “Unternehmen an sich” ou “empresa em si” de Walther Rathenau 144 . Segundo Calixto Salomão Filho 145 , o termo Unternehmen teria o sentido de identificar uma “instituição não redutível ao interesse dos sócios”. Diante do abalo econômico sofrido pelo povo alemão, Walther Rathenau “identificava em 141 SALOMÃO FILHO, Calixto, Op. Cit., 2011, P. 32. 142 COMPARATO, Fábio Konder, Ob. Cit., 2008, P. 378. 143 Ibidem, P. 378. 144 SALOMÃO FILHO, Calixto, Op. Cit., 2011, P. 32. 145 Ibidem, P. 33. 42 cada grande sociedade um instrumento para o renascimento econômico do país, que interessaria cada vez mais ao Estado, a quem caberia o dever de proteção da empresa”146. Essa teoria trata de definir o interesse social como o interesse da empresa, de forma a abranger também as necessidades sociais, não reduzindo apenas o foco aos interesses dos acionistas 147 . Luigi Mengoni 148 esclarece que essa ruína financeira da Alemanha fez com que surgisse um grande interesse dos empresários para tentar barrar o crescimento exacerbado de capitais estrangeiros na indústria alemã e o consequente domínio estrangeiro da economia. A exaltação do poder dos controladores e dos administradores aliada com a “substituição dos fins genuinamente societários de maximização de lucros pelos fins imediatamente empresariais de produção a favor da recuperação da economia do país”149 foram uma forma de tentar atingir tal fim. A teoria de Walther Rathenau valorizou “papel do órgão de administração da sociedade por ações, visto como órgão neutro, apto à defesa do Unternehmensinteresse (interesse empresarial)”150, passando a ser “depositário e intérprete do interesse social”151 e diminuindo a importância da assembleia geral. A respeito desse aspecto da teoria de Walther Rathenau, Calixto Salomão Filho 152 afirma que: os críticos dessa teoria argumentam ser ilógico considerar a administração (Verwaltung) um órgão neutro de defesa do interesse social. Dada a sua estreita ligação aos interesses dos sócios majoritários, a autonomia e tendencial irresponsabilidade decorrente do recurso constante ao interesse social acaba funcionando frequentemente contra os interesses do sócio minoritário e no interesse do sócio controlador. 146 FRAZÃO, Ana, Op. Cit., 2011, P. 122. 147 Ibidem, P. 122. 148 MENGONI, Luigi. Apunti per uma revisiane dela teoria sul conflito di interessi. Apud CARVALHOSA, Modesto, Op. Cit., 1998, Vol. 2, P. 424. 149 CARVALHOSA, Modesto, Op. Cit., 1998, Vol. 2, P. 424. 150 SALOMÃO FILHO, Calixto, Op. Cit., 2011, P. 33. 151 CARVALHOSA, Modesto, Op. Cit., 1998, Vol. 2, P. 392. 152 SALOMÃO FILHO, Calixto, Op. Cit., 2011, P. 33. 43 A doutrina de Walther Rathenau influenciou a legislação alemã de 1937 que afirmava que “a direção tem poderes para dirigir a sociedade para o bem do estabelecimento e do seu pessoal e o bem comum do povo e do Reich”153, e se a diretoria for composta por um diretor ele se tornaria “a alma da empresa, o Führer”154. A essa previsão é que
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