Buscar

Eagleton Fenomenologia Hermenêutica Teoria da recepção

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 24 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 24 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 24 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Capitulo II 
Fenomen%gia, hermeneutica, 
teoria da recepfiio 
Em 1918 a Europa estava em ruinas, devastada pela pior 
guerra da hist6ria. Na esteira daquela catastrofe, urna onda de 
revolw;oes sociais varreu 0 continente: os anos anteriores e 
subsequentes a 1920 testemunhariam 0 levante do movimen­
to ber!inense conhecido como Espartaco, a greve geral de 
Viena, a instalayao dos sovietes de trabalhadores em Munique 
e em Budapeste e ocupayoes em massa de fabricas por toda a 
It<ilia. Toda essa insurreiyao foi violentamente esmagada, mas 
a ordem social do capitalismo europeu havia sido abalada em 
suas raizes pela camificina da guerra e por suas turbulentas 
consequencias politicas. As ideologias das quais essa ordem 
habitualmente dependera, os valores culturais pelos quais era 
govemada, tambem se encontravam em estado de profimda 
agitayao. A ciencia parecia ter-se encolhido a uma posiyao es­
teril, a uma obsessao miope pela categorizayao de fatos; a fi­
losofia dividia-se entre 0 positivismo, de urn lado, e urn sub­
jetivismo indefensavel de outro; predominavam formas de 
relativismo e irracionalismo, e a arte refletia essa espantosa 
perda de referencias. Foi nesse contexto de crise ideol6gica 
generalizada, na verdade muito anterior ao advento da Pri­
meira Guerra Mundial, que 0 fil6sofo alemao Edmund Husser! IIII1 
procurou desenvolver urn novo metodo filos6fico que ofere­
cesse uma certeza absoluta a urna civilizayao que se desinte­
grava. Ele diria mais tarde, em A crise das ciencias europeias 
(1935), que se tratava de uma escolha entre a barbarie irracio­
CLC
Typewritten Text
CLC
Typewritten Text
CLC
Typewritten Text
Terry Eagleton. Teoria Literária: UmanullIntrodução. São Paulo: Martins Fontes, 2001null
76 TEORIA DA LITERA TURA: UMA INTRODUr;JO 
nal e 0 renascimento espiritual atraves de "urna ciencia do 
espirito absolutamente auto-suficiente". 
Husserl, como seu predecessor, 0 filosofo Rene Des­
cartes, comeyou a sua busca da certeza rejeitando proviso­
riamente 0 que chamou de "atitude natural" - a crenya man­
tida pelo homem com urn de born senso, de que os objetos 
existiam independentemente de nos mesmos no mundo ex­
terior, e de que nossa informayaO sobre eles era em geral 
digna de fe. Tal atitude aceitava sem discussao a possibilida­
de de conhecimento, quando era precisamente isso 0 que se 
discutia. Sobre 0 que, entao,poderemos ter certeza e ser c1a­
ros? Embora nao possamos ter certeza da existencia inde­
pendente das coisas, diz Husserl, podemos estar certos da 
maneira pela qual as vemos de imediato na consciencia, quer 
seja ilusoria a coisa real que estamos venda ou nao. Os obje­
tos podem ser considerados nao como coisas em si, mas 
como coisas postuladas, ou "pretendidas", pela consciencia. 
Toda consciencia e consciencia de algurna coisa: no pensa­
mento, tenho consciencia de que meu pensamento esta "vol­
tado para" algum objeto. 0 ato de pensar e 0 objeto do pen­
samento estao internamente relacionados, sao mutuamente 
dependentes. Minha consciencia nao e apenas urn registro 
passivo do mundo, mas constitui ativamente esse mundo, ou 
"pretende" faze-Io. Para terrnos certeza, entao, devemos pri­
meiro ignorar tudo, ou "colocar entre parenteses" qualquer 
coisa que esteja alem de nossa experiencia imediata; deve­
mos reduzir 0 mundo exterior apenas ao conteudo de nossa 
consciencia. 1sto, ou a chamada "reduyao fenomenologica", 
e a prime ira medida importante de Husserl. Tudo 0 que nao 
seja "imanente" a consciencia deve ser rigorosamente ex­
c1uido; todas as realidades devem ser tratadas como puros 
"fenomenos", em termos de como eles se apresentam em 
nossa mente, sendo este 0 unico dado absoluto do qual po­
demos partir. 0 nome dado por ele a esse metodo filosOfico 
77FENOMENOLOGIA , HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPr;JO 
_ fenomenologia - nasce de sua insistencia nesta postura. A 
fenomenologia e a ciencia dos fenomenos puros. 
Mas isso nao basta para resolver nossos problemas, pois 
talvez tudo 0 que encontremos, ao inspecionarrnos 0 conteu­
do de nossa mente, seja apenas urn fluxo aleatorio de feno­
menos, uma corrente caotica de consciencia, e dificilmente 
poderemos estabelecer sobre isso qualquer certeza. Os tipos 
de fenomenos "puros" que interessam a Husserl, porem, sao 
algo mais do que apenas os detalhes individuais aleatorios 
Sao urn sistema de essencias universais, pois a fenomenolo­
gia modifica cada objeto na imaginayao, ate descobrir 0 que 
ha de invariavel nele. 0 que se apresenta ao conhecimento 
fenomenologico nao e apenas, digamos, a experiencia do 
cifune ou a sensayao provocada pela cor verrnelha, e sim os 
tipos ou essencias universais dessas coisas: 0 ciume ou a cor 
verrnelha como tais. Compreender qualquer fenomeno de 
maneira total e pura, e apreender 0 que nele ha de essencial e 
imutavel. A palavra grega para tipo e eidos; por esta razao, 
Husserl fala de seu metodo como urna abstrayao "eidetica", 
acompanhada de sua reduyao fenomenol6gica. 
Tudo isso pode parecer intoleravelmente abstrato e 
irreal; e e, na verdade. Mas 0 objetivo da fenomenologia era, 
de fato, exatamente 0 oposto da abstrayao: era urn retorno 
ao concreto, a terra firme, sugerido pela famosa frase "De 
volta as coisas em si!". A filosofia havia se preocupado 
demais com conceitos, e muito pouco com os dados reais; 
assim, ela havia construido seus sistemas intelectuais extre­
mamente pesados sobre as mais precarias bases. A fenome­
nologia, tomando aquilo de que podiamos ter certeza expe­
rimentalmente, era capaz de oferecer a base para a edifica­
yaO de urn conhecimento autenticamente fidedigno. Ela 
podia ser uma "ciencia das ciencias", oferecendo urn meto­
do para 0 estudo de qualquer coisa: memoria, caixas de fos­
foros, matematica. Ela se ofere cia como nada menos do que 
usuario
Realce
78 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODU9AO 
uma ciencia da consciencia humana - a consciencia humana 
concebida nao apenas como a experiencia empirica de de­
terminadas pessoas, mas como as "estruturas profundas" da 
pr6pria mente. Ao contnirio das outras ciencias, ela nao 
indagava sobre esta ou aquela forma particular de conheci­
mento, mas sobre as condi~oes que tornavam possivel qual­
quer tipo de conhecimento, em primeiro lugar. Dessa forma 
- e como a filosofia de Kant, anterior a ela - era urn modo 
"transcendental" de investiga~ao; e 0 sujeito humano, ou a 
consciencia individual, objeto de sua preocupayao, era urn 
sujeito "transcendental". A fenomenologia examinava nao 
apenas 0 que por acaso se percebesse quando se olhasse para 
urn determinado coelho, mas a essencia universal dos coe­
lhos e 0 ato de percebe-los. Nao se tratava, em outras pala­
vras, de uma forma de empirismo, preocupado com a expe­
riencia aleat6ria, fragmentaria, de determinadas pessoas; 
tambem nao era uma especie de "psicologismo", interessa­
do apenas nos processos mentais observaveis ness as pes­
soas. Ela pretendia desvendar as estruturas da pr6pria cons­
ciencia e, ao mesmo tempo, desnudar fen6menos em si. 
Essa breve descriyao da fenomenologia deixa claro, ape­
sar de sua concisao, que se trata de uma forma de idealismo 
metodologico, que busca explorar uma abstrayao chamada 
"consciencia humana" e urn mundo de possibilidades puras. 
Mas se Husserl rejeitou 0 empirismo, 0 psicologismo e 0 
positivismo das ciencias naturais, tam bern achou que estava 
rompendo com 0 idealismo c1assico de urn pensador como 
Kant. Este fora incapaz de resolver 0 problema de como a 
mente pode efetivamente conhecer os objetos que the sao 
exteriores. A fenomenologia, ao pretender que a percepyao 
pura revela a essencia mesma das coisas, esperava superar tal 
ceticismo. 
Tudo isso parece estar muito longe de Leavis e da socie­
dade organica. Mas estara, realmente? Afinal de contas, 0 re-
FENOMENOLOGIA , HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEP9AO79 
tome as "coisas em si mesmas", a rejeiyao impaciente das 
teorias que nao tern raizes na vida "concreta", nao estao mui­
to longe da teoria ingenua, mimetica, de Leavis, de que a lin­
guagem poetica materializava a pr6pria essencia da realidade. 
Em urn periodo de importante crise ideologica, Leavis e 
Husser! voltam-se ambos para 0 consolo que encontram no 
concreto, no que pode ser conhecido pelas pulsayoes. E esse 
recurso as "coisas em si mesmas" envolve, em ambos os 
casos, urn irracionalismo total. Para Husser!, 0 conhecimento 
dos fenomenos e absolutamente certo, ou, como ele diz, "apo­
ditico", porque e intuitivo: nao posso duvidar dessas coisas, 
tal como nao posso duvidar de uma forte pancada no cranio. 
Para Leavis, certas formas de linguagem sao "intuitivamente" 
certas, vitais e criativas, e por mais que ele concebesse a criti­
ca como urna argumentayao corroborativa, nao havia, em ulti­
ma instancia, nenhurna vantagem em dizer isso. Alem do 
mais, ambos achavam que 0 que e intuido no ate de percepyao 
do fenomeno concreto e algo universal: 0 eidos para Husser!, 
a Vida para Leavis. Em outras palavras, eles nao vao alem da 
seguranya da sensayao imediata para desenvolver uma teoria 
"global": os fenomenos ja vern com uma teoria pronta. Tal 
teoria e, porem, autoritaria, ja que depende totalmente da 
intuiyao. Os fenomenos para Husser! nao precisam ser inter­
pretados, construidos desta ou daquela maneira, nurna argu­
menta~ao racional. Como certos julgamentos literarios, eles 
se impoem de maneira irresistivel, para usarmos urna palavra 
chave de Leavis. Nao e dificil ver a relayao entre esse dogma­
tismo - evidente em toda a carreira de Leavis - e urn desprezo 
conservador pela analise racional. Finalmente, podemos no­
tar como a teoria "intencional" da consciencia, defendida por 
Husser!, sugere que "ser" e "significar" estao sempre atados 
urn no outro. Nao ha objeto sem sujeito, e nao ha sujeito sem 
objeto. Objeto e sujeito, tanto para Husser! como para 0 fil6­
sofo ingles F. H. Bradley, que influenciou T. S. Eliot, sao real­
usuario
Realce
usuario
Realce
usuario
Realce
81 80 TEORlA DA LlTERATURA: UMA INTRODUC;J O 
mente as duas faces da mesma moeda. Numa sociedade em 
que os objetos parecem estar alienados, isolados dos objeti­
vos humanos, e os sujeitos human os estao, por conseguinte, 
mergulhados em urn isolamento ansioso, essa doutrina esem 
duvida consoladora. A mente e 0 mundo foram novamente 
reunidos - pelo menos, na mente. Leavis preocupa-se tam­
bern em solucionar a rivalidade prejudicial entre sujeitos e 
objetos, entre os homens e seus "ambientes naturais hurna­
nos", resultado da civiliza<;:ao de "massa". 
Se a fenomenologia assegurava, de urn lado, urn mundo 
cognoscivel, por outro estabelecia a centralidade do sujeito 
humano. Na verdade, ela prometia ser nada menos do que 
uma ciencia da propria subjetividade. 0 mundo eaquilo que 
postulo, ou que "pretendo" postular: deve ser apreendido 
em rela<;:ao a mim, como uma correla<;:ao de minha cons­
ciencia, e essa consciencia nao e apenas falivelmente empi­
rica, mas tambem transcendental. Era reconfortante desco­
brir isto a respeito de nos mesmos. 0 positivismo crasso da 
ciencia do sec . XIX amea<;:ara roubar 0 mundo de toda a 
subjetividade, e a filosofia kantiana docilmente seguira 0 
mesmo caminho; 0 curso da historia europeia, a partir de 
fins do sec. XIX, parecia lan<;:ar serias duvidas sobre a pre­
sun<;:ao tradicional de que 0 "homem" controlava seu desti­
no, a duvida de que ele ja nao era 0 centro criativo de seu 
mundo. Reagindo contra isto, a fenomenologia restabeleceu 
ao sujeito transcendental 0 seu trono. 0 sujeito deveria ser 
visto como a fonte e a origem de todo 0 significado: de fato 
ele nao era, em si, parte do mundo, ja que foi 0 responsavel 
pela existencia desse mundo. Nesse sentido, a fenomenolo­
gia recuperou e reformulou 0 velho sonho da ideologia bur­
guesa classica. Tal ideologia baseara-se na cren<;:a de que 0 
"homem" era, de alguma forma, anterior a sua historia e 
suas condi<;:oes sociais, que dele fluiram como a agua jorra 
de uma nascente. Como esse "homem" havia come<;:ado a 
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTlCA, TEORlA DA RECEPC;JO 
existir - se ele poderia ser produto de condi<;:oes sociais, 
bern como 0 produtor delas - nao era uma questao a ser ex a­
minada seriamente , Ao recentralizar 0 mundo no sujeito hu­
mano, portanto, a fenomenologia oferecia uma solu<;:ao ima­
ginaria a urn serio problema historico. 
Na esfera da critica literaria, a fenomenologia exerceu al­
guma influencia sobre os formalistas russos. Tal como 
Husserl separava entre parenteses 0 objeto real, para dedicar­
se ao ato de conhece-Io, tambem a poesia, para os forrnaiistas, 
isolava 0 objeto real e em lugar dele focalizava a maneira pela 
qual era percebido l . Mas a principal divida critica para com a 
fenomenologia e evidente na chamada escola critica de 
Genebra, que floresceu principalmente nas decadas de 1940 e 
1950, e cujos expoentes foram 0 belga Georges Poulet, os cri­
tic os sui<;:os Jean Starobinski e Jean Rousset, eo frances Jean­
Pierre Richard. A essa escola ligou-se tambem Emil Staiger, 
professor de alemao na Universidade de Zurique, e as prime i­
ras obras do critico americano J. Hillis Miller. 
A critica fenomenologica e a tentativa de se aplicar esse 
metodo as obras literarias. Como acontece no isolamento do 
objeto real feito por Husserl, 0 contexto historico concreto da 
obra literaria, seu autor, as condi<;:oes de produ<;:ao e a leitura 
sao ignorados. A critica fenomenologica visa a uma leitura 
totalmente "imanente" do texto, absolutamente imune a qual­
quer coisa fora dele. 0 proprio texto e reduzido a uma pura 
materializa<;:ao da consciencia do autor: todos os seus aspec­
tos estilisticos e semanticos sao percebidos como partes or­
ganicas de urn to do complexo, do qual a essencia unificado­
ra e a mente do autor. Para conhece-Ia, nao devemos nos 
referir a nada que sabemos sobre 0 autor - a critica biografi­
ca e proibida - mas tao-somente aos aspectos de sua cons­
ciencia que se manifestam na obra em si. Alem dis so, inte­
ressam-nos as "estruturas profundas" de sua mente, que po­
dem ser encontradas nas repeti<;:oes de temas e padroes de 
usuario
Realce
82 83 TEORlA DA LITERA TURA: UMA lNTRODUC;A-O 
imagens. Ao perceber essas estruturas, estamos apreendendo 
a maneira pela qual 0 autor "viveu" seu mundo, as relac;oes 
fenomenologicas entre ele, sujeito, e 0 mundo, objeto. 0 
"mundo" de uma obra liteniria nao e uma realidade objetiva, 
mas aquilo que em alemao se denomina Lebenswelt, a reali­
dade tal como organizada e sentida por urn sujeito indivi­
dual. A critica fenomenologica focaliza, tipicamente, a ma­
neira pela qual 0 autor sente 0 tempo ou 0 espac;o, ou a rela­
c;ao entre 0 eu e os outros, ou sua percepc;ao dos objetos 
materiais. Em outras palavras, as preocupac;oes metodologi­
cas da filosofia husser!iana freqiientemente tornam-se, na 
critica fenomenologica, 0 "conteudo" da literatura. 
Para perceber essas estruturas transcendentais, para pe­
netrar 0 interior da consciencia de urn escritor, a critica 
fenomenologica tenta obter a total objetividade e 0 comple­
to desinteresse. Ela deve se purgar de suas proprias predile­
c;oes, mergulhar empaticamente no "mundo" da obra e re­
produzir 0 mais exata e imparcialmente possivel 0 que nela 
encontra. Se vier a se ocupar de urn poema cristao, ela nao 
deve se interessar em formular juizos de valor sobre esta 
visao do mundo especifica, mas demonstrar 0 que tera sido, 
para 0 autor, "vive-Ia". Trata-se, em outras palavras, de urn 
modo de amilise totalmente acritica, destituida de avalia­
c;oes. A critica nao e considerada urna construc;ao, uma in­
terpretac;ao ativa da obra que envoIvera inevitavelmente os 
proprios interesses e tendencias do critico:e uma simples 
recepc;ao passiva do texto, uma transcric;ao pura de suas es­
sencias mentais. Uma obra Iiteniria deve constituir urn todo 
organico, e 0 mesmo deve acontecer com todas as obras de 
lim determinado autor. Buscando a unidade, a critica feno­
lIl\ ~ ll(ll()gica pode, assim, mover-se com elegancia entre tex­
1\1 :-/ ("I'ollologicamente distantes, tematicamente diferentes. E 
1111) I ipo de cd lica idealista, essencialista, anti-historica, for­
111 11 11 '1 111' (11'g;lllicis(a, uma forma de destilac;ao pura dos pon-
FENOMENOLOGIA, HER1\;fENEUTlCA, TEORlA DA RECEPC;AO 
tos ininteligiveis, preconceitos e limitac;oes da moderna teo­
ria liteniria como urn todo. 0 fato mais impressionante e 
notavel a seu respeito eela ter conseguido produzir alguns 
estudos criticos individuais (sobretudo os de Poulet, Richard 
e Starobinski) de considenivel valor. 
Para a critica fenomenologica, a linguagem de uma obra 
literaria pouco mais edo que uma "expressao" de seus signi­
ficados internos. Essa visao da Iinguagem, urn tanto indireta, 
remonta ao proprio Husserl. Nao ha realmente muito espac;o 
para a Iinguagem como tal na fenomenologia husser!iana. 
Ele fala de urna esfera de experiencia puramente particular 
ou interna; mas essa esfera e, na verdade, urna ficc;ao, ja que 
toda experiencia envolve a linguagem, e esta e inexoravel­
mente social. Pretender que tenho urna experiencia totalmen­
te particular e absurdo: eu nao seria capaz de ter uma expe­
riencia, em primeiro lugar, se ela nao ocorresse dentro dos 
termos de alguma forma de Iinguagem, na qual eu a pudesse 
identificar. Para Husser!, 0 que da significac;ao aminha ex­
periencia nao e a linguagem, mas 0 ato de perceber os feno­
menos particulares como universais - urn ato que deve ocor­
rer independentemente da propria linguagem. Em outras 
palavras, 0 significado e, para Husser!, algo que antecede a 
linguagem: esta e apenas uma atividade secundaria que da 
nomes a significados de que ja disponho. Como poderia eu 
possuir significados, sem ja possuir uma Iinguagem? Esta 
pergunta 0 sistema de Husser! e incapaz de responder. 
A caracteristica da "revoluc;ao lingtiistica" do sec. xx, 
de Saussure e Wittgenstein ate a teoria Iiteraria contempora­
nea, e 0 reconhecimento de que 0 significado nao eapenas 
alguma coisa "expressa" ou "refletida" na linguagem - ena 
realidade produzido por ela. Nao se trata de ja possuirmos 
significados, ou experiencia, que em seguida revestimos de 
palavras; so podemos ter os significados e as experiencias 
porque temos uma linguagem na qual eles se processam. 
usuario
Realce
usuario
Realce
84 TEORIA DA LITERA TURA. UMA INTRODUC;AO 
1sso sugere, alem do mais, que nossa experiencia como indi­
viduos e social em suas raizes, pois nao pode haver nada 
como uma linguagem particular, e imaginar uma linguagem 
e imaginar toda uma forma de vida social. A fenomenolo­
gia, em contrapartida, pretende manter certas experiencias 
internas "puras" livres das contamina<;oes sociais da lingua­
gem - ou alternativamente, ver a linguagem apenas como 
urn sistema conveniente de "fixar" significados formados 
independentemente dela. 0 proprio Husserl, numa frase re­
veladora, diz que a linguagem e "conforme it pura medida 
do que e visto em plena cJareza"2. Como seremos capazes de 
ver alguma coisa claramente, sem termos ao nosso dispor os 
recursos conceituais de uma linguagem? Consciente de que 
a linguagem constitui urn serio problema para a sua teoria, 
Husserl tenta resolver 0 dilema imaginando uma linguagem 
que seria puramente expressiva da consciencia - que estaria 
livre de qualquer onus de ter de indicar significados exterio­
res a nossas mentes, no momento de falar. A tentativa esta 
fadada ao fracasso: a {mica "linguagem" desse tipo, que se 
possa imaginar, seria puramente solitaria, manifesta<;oes in­
teriores que nada significariam3• 
Tal noc;:ao de uma linguagem solitaria, sem significa­
dos, imaculada pelo mundo exterior, e uma imagem pecu­
liarmente adequada it fenomenologia como tal. A despeito 
de todas as suas pretensoes de ter salvo 0 "mundo vivo", 
fruto da a<;ao e da experiencia humanas, das garras aridas da 
filosofia tradicional, a fenomenologia come<;a e termina 
como uma cabe<;a sem urn mundo. Ela promete dar terra fir­
me ao conhecimento humano, mas so pode faze-Io a urn alto 
custo: 0 sacrificio da pr6pria hist6ria humana. 1sso porque 
os significados humanos sao, num sentido profundo, indu­
bitavelmente hist6ricos: eles nao constituem uma intui<;ao 
da essencia universal daquilo que deve ser uma cebola, mas 
uma questao de rela<;oes praticas entre individuos sociais. 
85FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPC;AO 
Apesar de focalizar a realidade tal como experimentada, como 
Lebenswelt e nao como fato inerte, sua posi<;ao para com 0 
mundo segue contemplativa e divorciada da historia. A fe­
nomenologia procurou resolver 0 pesadelo da hist6ria mo­
derna retirando-se para uma esfera especulativa onde a cer­
teza eterna esta it espera; desta forma tornou-se, em suas 
reflexoes solitarias e alienadas, urn sintoma da pr6pria crise 
que pretendeu superar. 
o reconhecimento de que 0 significado e hist6rico foi 0 
que levou 0 mais conhecido discipulo de Husserl, 0 filosofo 
alemao Martin Heidegger, a romper com seu sistema de 
pensamento. Husserl come<;a com 0 sujeito transcendental; 
Heidegger rejeita esse ponto de partida, e parte da reflexao 
sobre a irredutivel "condi<;ao dada" da existencia humana, 
ou 0 Dasein, como ele a chama. Epor essa razao que sua 
obra e caracterizada, com freqiiencia, como "existencialis­
ta", em contraposi<;ao ao "essencialismo" impiedoso de seu 
mentor. Passar de Husserl para Heidegger e passar do terre­
. no do intelecto puro para uma filosofia que medita sobre a 
sensa<;ao de estar vivo. Enquanto a filosofia inglesa em 
geral contenta-se modestamente em investigar possibilida­
des e aspectos formais da filosofia, a principal obra de Hei­
degger, 0 ser e 0 tempo (1927) ocupa-se nada menos do que 
da questao do proprio ser - mais particularmente, do modo de 
ser que e especificamente humano. Tal existencia, argumen­
ta Heidegger, e em primeiro lugar sempre 0 ser-no-mundo: 
so somos sujeitos humanos porque estamos praticamente li­
gados ao nosso pr6ximo e ao mundo material, e essas rela­
c;:oes sao constitutivas de nossa vida, e nao acidentais a ela. 
o mundo nao e urn objeto que existe "fora de n6s", a ser 
analisado racionalmente, contrastado com urn sujeito con­
templativo: 0 mundo nUllca e algo do qual possamos sair e 
nos confrontarmos com ele. Surgimos, como sujeitos, de 
dentro de uma realidade que nunca podemos objetivar ple­
usuario
Realce
usuario
Realce
86 87 TEORJA DA LlTERATURA: UMA INTRODUC;AO 
namente, que abarca tanto "sujeito" quanta "objeto", que e 
inesgotavel em seus significados e que nos gera tanto quan­
to nos a geramos. 0 mundo nao e algo a ser dissolvido aLa 
Husser! em imagens mentais: ele possui uma existencia 
concreta, recaicitrante, que resiste aos nossos projetos, sen­
do que existimos simplesmente como parte dele. A entroni­
za<;ao do ego transcendental feito por Husser! e apenas a 
fase mais recente de urna filosofia racionalista do Ilusionis­
mo, pel a qual 0 "homem" marca imperiosamente 0 mundo 
com a sua propria imagem. Heidegger, ao contrario, afasta 
parcialmente 0 sujeito hurnano dessa posi<;ao imaginaria de 
dominio. A existencia hurnana e urn diaJogo com 0 mundo, e 
ouvir e urna atividade mais reverente do que falar. 0 conhe­
cimento humano afasta-se sempre, e move-se dentro, daquilo 
que Heidegger chama de "pre-entendimento". Antes de che­
garmos a pensar sistematicamente, ja partilhamos de urna 
quanti dade de pressupostos tacitos, obtidos de nossa liga<;ao 
pratica com 0 mundo, e a ciencia ou a teoria nunca sao mais 
do que abstra<;oes parciais dessaspreocupa<;oes concretas, 
como urn mapa e a abstra<;ao de urn terreno real. 0 entendi­
mento nao e, em primeiro lugar, urna "cogni<;ao" isolavel, urn 
ato particular que pratico, mas parte da propria estrutura da 
existencia hurnana. Isso porque minha vida s6 sera humana se 
eu me "projetar" constantemente para frente, reconhecendo e 
realizando possibilidades novas de ser; nunca sou puramente 
identico comigo mesmo, por assim dizer, mas urn ser sempre 
lan<;ado para frente, para alem de mim mesmo. Minha exis­
tencia nunca e algo que eu possa aprender como urn objeto 
conc1uido, mas sempre urna quesmo de possibilidades novas, 
algo sempre problematico. E isso equivale a dizer que 0 ser 
humano e constituido pel a historia, ou pelo tempo. 0 tempo 
nao e urn meio no qual nos movimentamos, como uma garra­
fa poderia se movimentar em urn rio; e a estrutura mesma da 
propria vida hurnana, algo de que sou feito , antes de ser algu-
FENOMENOLOGIA, HERMENt.UTICA, TEORJA DA RECEPC;AO 
rna coisa que posso medir. 0 entendimento, portanto, antes de 
ser urna quesmo de entendimento de alguma coisa em parti­
cular, euma dimensao do Dasein, a dinamica interior de mi­
nha constante autotranscendencia. 0 entendimento eradical­
mente historico; ele esta sempre relacionado com a situa<;ao 
concreta em que me encontrO, e que tento transcender. 
Se a existencia hurnana e constituida pelo tempo, e 
igualmente constituida pela linguagem. A linguagem para 
Heidegger nao e urn simples instrumento de comunica<;ao, 
urn recurso secundario para expressar "ideias": e a propria 
dimensao na qual se move a vida hurnana, aquilo que, por 
excelencia, faz 0 mundo ser. So hi "mundo" onde hi lingua­
gem, no sentido especificamente humano. Heidegger nao ve 
a linguagem principalmente em termos daquilo que pode­
riamos dizer: ela tern uma existencia propria, da qual os se­
res hurnanos chegam a participar, e so assim chegam a ser 
humanos. A linguagem sempre pre-existe ao sujeito indivi­
dual, tal como 0 proprio espa<;o no qual ele se desdobra; e 
ela contem a "verdade", menos no sentido de ser urn instru­
mento para a troca de informa<;ao exata do que no senti do de 
ser 0 lugar onde a realidade se "revela" , se entrega anossa 
contempla<;ao. Nesse sentido de linguagem, entendida como 
urn fato quase-objetivo, anterior a qualquer individuo em 
particular, 0 pensamento de Heidegger estabelece urn estrei­
to paralelo com as teorias do estruturalismo. 
Portanto, 0 ponto central do pensamento de Heidegger 
nao e 0 individuo, mas 0 proprio Ser. 0 erro da tradi<;ao me­
tafisica ocidental foi considerar 0 Ser como uma especie de 
entidade objetiva, e separa-lo nitidamente do sujeito; Hei­
degger busca, ao contrario , voltar ao pensamento pre-socra­
tico, anterior ao dualismo entre sujeito e objeto, e ver 0 Ser 
como abrangendo a ainbos, de alguma forma. 0 resultado 
des sa visao sugestiva, particularmente em suas ultimas obras, 
e uma espantosa subserviencia ante 0 misterio do Ser. A 
usuario
Realce
usuario
Realce
88 89 TEORIA DA LlTERATURA : UMA INTRODUC;AO 
racionalidade do Iluminismo, com a sua atitude impiedosa­
mente dominadora, instrumental, para com a Natureza, deve 
ser rejeitada em favor de se ouvir com humildade as estre­
las, os ceus e as florestas, atitude esta que, nas palavras acres 
de urn comentarista ingles, tern todas as marcas de "urn 
camp ones bestificado". 0 homem deve "dar lugar" ao Ser 
entregando-se total mente a ele; deve voltar-se para a terra, a 
mae inexaurivel, fonte primaria de todo significado. Hei­
degger, 0 filosofo da Floresta Negra, e mais urn expoente 
romantico da "sociedade organica", embora no seu caso os 
resultados dessa doutrina fossem muito mais sinistros do 
que no caso de Leavis. A exaltac;ao do campones, a degrada­
c;ao da razao em favor de urn "pre-entendimento" esponta­
neo, a celebrac;ao de uma passividade prudente - tudo isso, 
aliado acrenc;a de Heidegger em uma "autentica" vida-na­
morte, superior a vida das massas sem rosto, levou-o a 
apoiar abertamente Hitler em 1933. Foi urn apoio de pouca 
durac;ao, mas que, por tudo isto, estava implicito nos ele­
mentos de sua filosofia . 
o que tern valor nessa filosofia, entre outras coisas, e a 
sua insistencia em que 0 conhecimento teorico surge sempre 
de urn contexto de interesses sociais praticos. 0 modelo de 
Heidegger para urn objeto a ser conhecido e, significativa­
mente, urn instrumento: conhecemos 0 mundo nao atraves da 
contemplac;ao, mas como urn sistema de coisas inter-relacio­
nadas que, como urn martelo, estao "a mao"; elementos a 
serem usados em algurn projeto pratico. 0 conhecer esm pro­
fundamente relacionado com 0 fazer. Mas 0 outro aspecto 
dessa praticidade comum aos homens simples e urn misticis­
mo contemplativo: quando 0 martelo se quebra, quando dei­
xamos de contar com ele, sua familiaridade Ihe e arrancada e 
ele se nos revela em seu autentico ser. Urn martelo quebrado e 
mais ele mesmo do que urn martelo intacto. Heidegger parti­
Iha com os formalistas a convicc;ao de que a arte e uma desfa-
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPC;AO 
miliarizac;ao desse tipo: quando Van Gogh nos mostra urn par 
de sapatos de campones, ele os torn a estranhos, permitindo 
que se revele a sua "condic;ao de sapato", profundamente 
autentica. Na verdade, para 0 Heidegger da fase final so na 
arte essa verdade fenomenologica pode se manifestar, tal 
como para Leavis a literatura substitui urn modo de ser que a 
sociedade moderna supostamente perdeu. A arte, como a lin­
guagem, nao deve ser considerada como a expressao de urn 
sujeito individual: 0 sujeito e apenas 0 local, ou 0 meio, pelo 
qual a verdade do mundo se manifesta, e e essa verdade que 0 
lei tor de urn poema deve ouvir atentamente. Para Heidegger, 
a interpretac;ao literaria nao esta fundamentada na atividade 
humana; em primeiro lugar ela nao e algurna coisa que Jaze­
mos, mas algo que devemos deixar que acontec;a. Devemos 
nos abrir passivamente ao texto, submetendo-nos ao seu ser 
misteriosamente inesgomvel, deixando-nos interrogar por ele. 
N ossa postura perante a arte, em outras palavras, deve ter algo 
do servilismo defendido por Heidegger para 0 povo alemao 
frente ao Fuhrer. A tmica alternativa para 0 imperialismo da 
razao na sociedade industrial burguesa, ao que parece, e uma 
auto-abnegac;ao escravista. 
Dissemos que para Heidegger 0 entendimento e radi­
calmente historico, mas tal observac;ao exige algumas res­
salvas . 0 titulo de sua obra principal e 0 ser e 0 tempo , e 
nao 0 ser e a historia, e M uma diferenc;a significativa entre 
os do is conceitos. 0 "tempo" e, num certo sentido, uma no­
C;ao mais abstrata do que a historia: ele sugere 0 passar das 
estac;oes, ou a maneira pela qual posso experimentar a 
forma de minha vida pessoal, e nao as lutas das nac;oes, a 
criac;ao e 0 exterminio de populac;oes, ou a criac;ao e a des­
truic;ao de Estados. 0 "tempo", para Heidegger, continua a 
ser uma categoria essencialmente metafisica, de uma ma­
neira que a "historia", para outros pensadores, nao e. Cons­
titui uma derivac;ao daquilo que realmente fazemos, e e isso, 
usuario
Realce
usuario
Realce
usuario
Realce
90 
91 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODUC;AO 
no meu entender, que "historia" significa. Esse tipo de his­
toria concreta nao interessa a Heldegger: na verdade, ele faz 
uma distinyao entre Histoire, que significa aproximadamen­
te "0 que acontece", e Geschichte, que e "0 que acontece" 
experimentado como autenticamente significativo. Minha 
propria historia pessoal so e autenticamente significativa se 
aceito a responsabilidade pel a minha propria existencia, 
assumo minhas possibilidades futuras e vivo constantemen­
te consciente de minha morte futura. Isso pode ser verdade, 
ou nao; mas nao parece ter relevancia imediata para a 
maneira pel a qual vivo "historicamente",no senti do de estar 
ligado a determinados individuos, a relayoes sociais concre­
tas e a instituiyoes reais. Tudo isso, visto das alturas oIimpi­
cas da prosa vigorosamente esoterica de Heidegger, parece 
realmente insignificante. Para ele, a "verdadeira" historia e 
uma historia voltada para 0 interior, "autentica" ou "existen­
cial" - 0 controle do medo e do nada, uma atitude resoluta 
para com a morte, uma "reuniao" de minhas foryas - que 
funciona na realidade como urn substituto da historia, em 
seus sentidos mais pniticos e comuns. Como disse 0 critico 
hUngaro Georg Lukacs, a famosa "historicidade" de Hei­
degger de fato nao se distingue de a historicidade. 
Por fim, ao historicizar as verdades etemas, estaticas, 
de Husser! e da tradiyao metafisica ocidental, Heidegger 
nao consegue derruba-Ias. Em lugar disso, ele estabelece 
urn tipo diferente de metafisica - 0 proprio Dasein. Sua obra 
representa tanto uma fuga da historia quanta urn encontro 
com ela; 0 mesmo se pode dizer do fascismo, de quem se 
enamorou. 0 fascismo e uma tentativa desesperada, urn re­
curso derradeiro por parte do capitalismo monopolista para 
eliminar as contradiyoes que se tomaram intoleraveis; e ele 
o faz em parte oferecendo toda uma alternativa historica, uma 
narrativa de sangue, solo de raya "autentica", a sublimayao 
da morte e da abnegayao, 0 Reich que durani mil anos. Nao 
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTfCA, TEORlA DA RECEPC;A-O 
estamos dizendo que a filosofia de Heidegger seja, no todo, 
apenas uma justificativa 10gica do fascismo, mas sim que 
ela oferece uma soluyao imaginaria para a crise da historia 
moderna, tal como 0 fascismo oferecia outra, e que ambos 
tern alguns aspectos em comum. 
Heidegger descreve seu empreendimento filosOfico co­
mo uma "hermeneutica do Ser": e a palavra "hermeneutic a" 
significa a ciencia ou a arte da interpretayao. 0 modelo filo­
sOfico de Heidegger e geralmente considerado uma "feno­
menologia hermeneutica", para distingui-Ia da "fenomeno­
logia transcendental" de Husserl e de seus seguidores. Ele 
recebe esse nome porque se baseia em questoes de interpre­
tayao historica e nao na consciencia transcendental4 • A pala­
vra "hermeneutica" limitava-se originalmente ainterpreta­
yao das escrituras sagradas, mas no sec. XIX ela teve seu 
ambito ampliado, passando a compreender 0 problema da 
interpretayao textual como urn todo. Os dois "hermeneutas" 
mais famosos que antecederam a Heidegger foram os pen­
sadores alemaes Schleiermacher e Dilthey; seu mais famoso 
sucessor e0 modemo filosofo alemao Hans-Georg Gadamer. 
o estudo central de Gadamer, Verdade e metoda (1960), co­
loca-nos na arena de problemas que nunca deixaram de ator­
mentar a modema teoria literaria. Qual 0 sentido de urn 
texto literano? Que relevancia tern para esse sentido a inten­
yao do autor? Poderemos compreender obras que nos sao 
cultural e historicamente estranhas? E possivel 0 entendi­
mento "objetivo", ou todo entendimento erelativo it nossa 
propria situayao historica? Veremosque ha muito mais co i­
sas em jogo nessas questoes do que apenas a "interpretayao 
liteniria" . 
Para Husser!, 0 significado era urn "objeto intencio­
nal", entendido este como algo nao redutivel aos atos psico­
logicos de quem fala ou ouve, nem como algo completa­
mente independente desses processos mentais. 0 significa­
usuario
Realce
usuario
Realce
92 93 TEORIA DA LITERATURA : UMA INTRODU(:A-O 
do nao era objetivo no sentido em que uma cadeira 0 e; de 
outra parte, tambem nao era simplesmente subjetivo. Era 
uma especie de objeto "ideal", no sentido de que podia ser 
expresso de varias maneiras, embora continuasse a ter 0 
mesmo significado. Segundo tal interpretayao, 0 significa­
do ou sentido de uma obra literaria e fixado de uma vez por 
todas: ele e identico a qualquer "objeto mental" que 0 autor 
teve em mente, ou "pretendeu" ter no momento de escrever. 
Com efeito, essa e a posiyao adotada pelo hermeneuta 
americano E. D. Hirsch Jr., cuja obra principal, Validity in 
Intelpretation (A validade da interpretayao), de 1967, tem 
uma divida consideravel para com a fenomenologia husser­
liana. Para Hirsch, 0 fato de 0 significado de uma obra ser 
identico ao que 0 autor entendeu por ela no momento de es­
crever, nao implica uma unica interpretayao do texto. Pode 
haver varias interpretayoes diferentes e validas, mas todas 
elas devem se situar dentro do "sistema de expectativas e 
probabilidades tipicas" que 0 sentido do autor permitir. Hirsch 
tambem nao nega que uma obra literaria possa "significar" 
diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes epo­
cas. Mas isso, diz ele, e antes uma questao da "significayao" 
da obra do que do seu "sentido". 0 fato de que eu possa 
apresentar 0 Macbeth de sone a torna-lo relevante para a 
guerra nuclear nao altera 0 fato de que isto nao seja 0 que a 
peya "quer dizer", do ponto de vista de Shakespeare. As sig­
nificayoes variam ao longo da historia, ao passo que os sen­
tidos permanecem constantes; os autores dao sentido as suas 
obras, ao passo que os leitores lhes atribuem significayoes. 
Ao identificar 0 sentido de um texto com aquilo que 0 
autor entendeu por ele, Hirsch nao presume que tenhamos 
sempre aces so as intenyoes do autor. Ele pode estar morto, 
ou pode ter esquecido 0 que queria dizer. Segue-se que por 
vezes podemos chegar a interpretayao "correta" de um tex­
to, mas nunca estaremos em condiyoes de sabe-lo. Isso nao 
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORlA DA RECEP(:AO 
preocupa Hirsch, desde que seja mantida a sua posiyao basi­
ca - a de que 0 sentido literario e absoluto e imutavel, resis­
tente a mudanya historica. Ele pode sus ten tar essa posiyao 
basica porque sua teoria do senti do, como a de Husserl, e 
pre-lingiiistica. 0 sentido e algo que 0 autor quer; e um ato 
mental, espiritual, que e entao "fixado" para todo 0 sempre 
atraves de uma serie particular de sinais materiais. Trata-se 
de uma questao de consciencia e nao de palavras. De que 
consiste exatamente essa consciencia sem palavras, 0 autor 
nao deixa claro. Talvez 0 leitor possa fazer aqui uma expe­
riencia, erguendo os olhos do livro por um momenta e "que­
rendo dizer" alguma coisa, silenciosamente, em sua cabeya. 
o que voce "quis dizer"? E isto foi diferente das palavras 
com as quais voce formulou a resposta a esta minha pergun­
ta? Acreditar que 0 significado consiste de palavras acresci­
das de um ato de desejar ou intencionar, destituido de pala­
vras, e como acreditar que todas as vezes que abro a porta 
"de propos ito", pratico um ato silencioso de desejar, en­
quanta a abro. 
Ha problemas obvios na tentativa de determinar 0 que 
esta se passando na cabeya de alguem, para depois pretender 
que e esse 0 significado de um escrito. Muitas coisas podem 
estar se passando na cabeya do autor no momenta em que 
ele escreve. Hirsch aceita isso, mas nao acha que essas coi­
sas devem ser confundidas com 0 "significado verbal". Para 
sustentar essa teoria, porem, ele e obrigado a reduzir, de 
forma bastante drastica, tudo 0 que 0 autor poderia ter dese­
jado dizer aquilo que chama de "tipos" de significado, cate­
gorias de significado que pod em ser manipuladas, nas quais 
o texto pode ser enquadrado, simplificado e separado pelo 
critico. Nosso interesse por um texto so pode, dessa forma, 
ser 0 interesse por essas amp las tipologias de significado, 
das quais foram cuidadosamente banidas todas as particula­
ridades. 0 critico deve buscar reconstruir 0 que Hirsch cha­
94 TEORIA DA LITERA TURA: UMA INTRODU(:AO 
rna de "genero intrinseco" de urn texto, entendendo por isso, 
de mane ira aproximada, as convenyoes gerais e as maneiras 
de ver que poderiam ter govemado os significados pretendi­
dos pelo autor no momento de escrever. Nao teremos muito 
mais do que isso anossa disposiyao: seria sem duvida im­
possivel recuperarexatamente 0 que Shakespeare quis dizer 
com "cream-fac'd loon", por isso temos de nos contentar 
com 0 que ele poderia ter pensado, de urn modo geral. Todos 
os detalhes particulares de uma obra seriam govemados por 
essas generalidades. Se isso faz justiya ao detalhe, acom­
plexidade e anatureza conflitiva das obras literarias, e urn 
outro problema. Para atribuir urn significado permanente a 
uma obra, salvando-a dos danos da historia, a critica tern de 
policiar seus detalhes potencialmente ancirquicos, en qua­
drando-os de volta na composiyao do significado "tipico". 
Sua posiyao para com 0 texto e autoritaria e juridica: qual­
quer coisa que nao possa ser enquadrada no "significado 
provavelmente pretendido pelo autor" e bruscamente rejei­
tada, e tudo que permanece dentro desse significado fica ri­
gorosamente subordinado a essa unica intenyao govemante. 
o significado inalteravel das Sagradas Escrituras foi preser­
vado; 0 que fazemos com ele, como 0 usamos, e apenas uma 
questao secunmria de "significayao". 
o objetivo de todo esse policiamento e a proteyao da 
propriedade privada. Para Hirsch, 0 significado do autor e 0 
que ele pretendeu que fosse, e nao deve ser roubado ou in­
vadido pelo leitor. 0 significado do texto nao deve ser so­
cializado, nao deve se transformar em propriedade publica 
de seus varios leitores: pertence exclusivamente ao autor, 
que deve ter direitos exclusivos sobre a sua utilizayao, mes­
mo depois de morto. Curiosamente, Hirsch admite que seu 
ponto de vista e bastante arbitrario. Nao ha nada na nature­
za do proprio texto que leve 0 leitor a interpreta-Io de acor­
do com 0 significado pretendido pelo autor: mas acontece 
9SFENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEP(:AO 
que se nao respeitarmos tal significado, nao teremos qual­
quer "norma" de interpretayao, e correremos 0 risco de 
abrir as comportas da anarquia critica. Como a maioria dos 
regimes autoritarios, a teoria hirschiana e incapaz de justi­
ficar racionalmente os seus proprios val ores dominantes. 
Em principio nao ha mais razao para se preferir 0 significa­
do pretendido pelo autor do que ha para se preferir a leitura 
sugerida pelo critico de cabelos mais curtos ou de pes 
maiores. A defesa que Hirsch faz do significado objetivado 
pelo autor assemelha-se as defesas de escrituras de terras 
que comeyam acompanhando 0 processo de transferencia 
legal no decorrer de seculos, e acabam admitindo que se es­
se processo fosse suficientemente recuado no tempo, aca­
baria por demonstrar que os titulos de posse foram conse­
guidos atraves de lutas. 
Mesmo que os criticos tivessem acesso a intenyao do 
autor, poderia isso dar ao texto literario urn significado de­
terminado? E se pedissemos uma explicayao acerca do sig­
nificado das intenyoes do autor, e em seguida uma explica­
yao acerca dessas intenyoes, e assim por diante? A seguran­
ya so e possivel, no caso, se os significados pretendidos pelo 
autor forem aquilo que Hirsch acha que sao: puros e solidos 
fatos "identicos a si mesmos", que podem ser usados de ma­
neira irretorquivel para se interpretar 0 livro. Mas essa e 
uma maneira extremamente dubia de considerar qualquer 
tipo de significado. Os significados nao sao tao estaveis e 
claros quanta Hirsch acredita, mesmo os professados pelo 
autor _ e a razao pela qual isso nao acontece, como ele nao 
quer reconhecer, que sao produtos da linguagem, que sem­
pre possui algo de escorregadio. Edificil saber 0 que teria 
sido uma intenyao "pura" , ou exprimir urn significado 
"puro"; so por considerar 0 significado como algo a parte da 
linguagem e que Hirsch pode acreditar nessas quimeras. A 
intenyao de urn autor e, em si mesma, urn "texto" complexo, 
usuario
Realce
96 
TEORIA DA LITERA TURA.· UMA INTRODUC;AO 
que pode ser debatido, traduzido e interpretado de varias 
maneiras, como qualquer outro. 
A distin<;:ao que Hirsch faz entre "significado" e "sig­
nifica<;ao" e valida, num sentido obvio. E improvavel que 
Shakespeare acreditasse estar escrevendo sobre a guerra 
nuclear. Quando Gertrudes descreve Hamlet como "gor­
do", ela provavelmente nao quer dizer que ele tern excesso 
de peso, como os leitores modernos poderiam ser levados a 
pensar. Mas 0 carMer de absoluto na distin<;:ao de Hirsch 
certamente e insustentavel. Simplesmente nao e possivel 
estabelecer uma distin<;:ao tao completa entre "0 que 0 texto 
significa" e 0 que "ele significa para mim". Minha explica­
<;:ao daquilo que Macbeth poderia ter significado nas condi­
<;oes culturais de sua epoca continua a ser a minha explica­
<;:ao, inevitavelmente influenciada por minha propria lin­
guagem e por meus pontos de referencia cultural. Jamais 
poderei sair de mim mesmo e de tudo isso, e chegar a co­
nhecer, de alguma forma objetiva absoluta, 0 que Shakes­
peare tinha realmente em mente. Qualquer ideia semelhan­
te de objetividade absoluta e uma ilusao. Hirsch nao busca 
essa certeza absoluta, em grande parte porque sa be que 
nao a po de alcanvar: tern de se contentar em reconstituir a 
"provavel" inten<;:ao do autor. Mas ele nao leva em devida 
conta 0 fato de que essa reconstitui<;:ao so pode ser feita 
dentro de suas estruturas de significado e de percep<;:ao his­
toricamente condicionadas. Na verdade, esse "historicis­
mo" e0 pr6prio alvo de sua polemica. Como Husser!, por­
tanto, ele oferece uma forma de conhecimento que e atem­
poral e sublimemente desinteressada. 0 fato de Sua pr6pria 
obra estar longe de ser desinteressada, 0 fato de ele acredi­
tar estar protegendo 0 significado imutavel das obras lite­
nirias contra certas ideologias contemporaneas, e 0 unico 
fator que nos poderia levar a ver com desconfian<;:a essas 
pretensoes. 
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPC;AO 97 
o alvo visado firmemente por Hirsch e a hermeneutic a 
de Heidegger, Gadamer e outros. Para ele, a insistencia des­
ses pensadores em que 0 significado e sempre hist6rico abre 
as portas ao relativismo completo, segundo 0 qual uma obra 
literaria pode significar uma coisa na segunda-feira e outra 
na sexta. E interessante especular 0 porque de Hirsch ter 
considerado tao inaceitavel essa possibilidade; mas para 
conter 0 impeto relativista, ele volta a Husser! e argumenta 
que 0 significado e inalteravel porque e sempre 0 ato inten­
cional de uma pessoa, num determinado momenta do 
tempo. S6 existe urn aspecto, bastante 6bvio, no qual isso e 
falso. Se digo ao leitor, em certas circunstancias: "Feche a 
porta", e depois que ele a fechou, acrescento com impacien­
cia: "Eu quis dizer abra a janela, e claro!", 0 lei tor teria toda 
a razao em responder que as palavras "Feche a porta" signi­
ficam 0 que significam, qualquer que tenha sido 0 sentido 
que lhes pretendi atribuir. Isso nao quer dizer que nao se 
pudessem imaginar contextos nos quais "Feche a porta" sig­
nificasse alguma coisa totalmente diferente do seu sentido 
habitual. Tal frase poderia ser uma mane ira metaf6rica de 
dizer "Wio negocie mais". 0 sentido da frase, como qual­
quer outro, nao esta fixado de modo imutavel: com bastante 
engenhosidade, poderiamos provavelmente inventar contex­
tos nos quais ela poderia significar mil coisas diferentes. 
Mas se um vendaval estivesse varrendo a sal a e eu estivesse 
vestido apenas com urn cal<;:ao de banho, 0 significado das 
palavras seria provavelmente claro, dentro da situa<;:ao; e a 
menos que eu tivesse cometido um lapso verbal ou tido uma 
inexplicavel falta de aten<;:ao, seria inutil pretender que eu 
"realmente" tivesse tido a inten<;ao de dizer "Abra a janela". 
Esse e um exemplo claro no qual 0 significado de minhas 
palavras nao e determinado pelas minhas inten<;:oes particu­
lares - uma situa<;:ao na qual nao posso pretender que mi­
nhas palavras signifiquem qualquer coisa, como 0 Humpty­
98 
TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODUC;:XO 
Dumpty, de Alice, erroneamenteachava possive!. 0 signifi­
cado da linguagem e uma questao social: ha urn sentido real 
no qual a linguagem pertence aminha sociedade antes de 
pertencer a mim. 
Foi isso que Heidegger compreendeu, e que Hans-Georg 
Gadamer desenvolve em Verdade e metoda. Para ele, 0 sig­
nificado de uma obra liteniria nao se esgota nunca pelas in­
tenc;oes do seu autor; quando a obra passa de urn contexto 
historico para outro, novos significados podem ser dela 
extraidos, e e provavel que eles nunca tenham sido imagina­
dos pelo seu autor ou pelo publico contemporaneo dele. 
Hirsch de certa forma admitia isso, mas relegava aesfera da 
"significac;ao"; para Gadamer, a instabilidade e parte do 
carater da propria obra. Toda interpretac;ao e situacional, 
modelada e limitada pelos criterios historicamente relativos 
de uma determinada cultura; nao ha possibilidade de se co­
nhecer 0 texto literario "como ele e". Eesse ceticismo que 
Hirsch acha desanimador na hermeneutica heideggeriana, e 
contra 0 qual empreende sua ac;ao de retaguarda. 
Para Gadamer, toda a interpretac;ao de uma obra do pas­
sado consiste num dialogo entre 0 passado e 0 presente. 
Ante essa obra, ouvimos com prudente passividade heideg­
geriana a sua voz nao familiar, permitindo que ela questione 
nossas preocupaC;oes atuais; mas aquilo que a obra nos "diz" 
dependera, por sua vez, do tipo de perguntas que somos ca­
pazes de the fazer, dependera de nosso ponto de vista na his­
toria. Dependera tam bern de nossa capacidade de reconsti­
tuir a "pergunta" para a qual a obra e uma "resposta", pois a 
obra e tambem urn dialogo com a sua propria historia. Todo 
entendimento e produtivo: e sempre urn "entendimento di­
ferente", a realizac;ao de urn novo potencial do texto, uma 
visao diferente dele. 0 presente so e compreensivel em fun­
c;ao do passado, com 0 qual forma uma viva continuidade; e 
o passado e sempre apreendido de nosso ponto de vista par-
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA , TEORIA DA RECEPC;:XO 99 
cial dentro do presente. 0 entendimento ocorre quando nos­
so "horizonte" de significados e suposic;oes historicas se 
"funde" com 0 "horizonte" dentro do qual a propria obra 
esta colocada. Nesse momento, entramos no mundo estra­
nho do artificio, ao mesmo tempo em que 0 situamos em 
nosso proprio mundo, chegando a urn entendimento mais 
completo de nos mesmos. Em lugar de "deixar 0 lar", obser­
va Gadamer, nos "chegamos ao lar" . 
Edificil ver porque Hirsch considera tudo isso tao de­
sanimador. Ao contnirio, tudo parece muito faci!. Gadamer 
pode igualmente entregar-se a si e aliteratura, aos ventos da 
historia, porque essas folhas espalhadas por fim acabarao 
sempre chegando em casa - e chegarao porque sob toda his­
toria, abrangendo silenciosamente 0 passado, 0 presente e 0 
futuro, flui uma essencia unificadora conhecida como "tra­
diC;ao". Como T. S. Eliot achava, todos os textos "validos" 
pertencem a essa tradic;ao, que fala tanto atraves da obra do 
passado que contemplo como fala por meu intermedio no 
ato da contemplac;ao "valida". Passado e presente, sujeito e 
objeto, 0 estranho e 0 intimo, estao assim seguramente uni­
dos por urn Ser que os abrange a ambos. Gadamer nao se 
preocupa com a possibilidade de que nossos preconceitos 
culturais tacitos, ou "pre-entendimentos", venham a preju­
dicar a recepC;ao da obra liteniria do passado, ja que esses 
pre-entendimentos nos vern da propria tradic;ao, da qual a 
obra literaria e parte. 0 preconceito e urn fator positivo, e 
nao negativo: foi 0 iluminismo, que sonhava com urn conhe­
cimento totalmente desinteressado, que levou ao modemo 
"preconceito contra 0 preconceito". Os preconceitos criati­
vos, que se opoem aos preconceitos efemeros e deformado­
res, sao os que surgem da tradiC;ao enos colocam em contato 
com ela. A autoridade da propria tradic;ao, ligada anossa 
auto-reflexao diligente, determinani quais de nossos pre­
conceitos sao legitimos, e quais os que nao 0 sao - tal como 
102 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODUC;:AO 
com essa enfase tradicionalista, temos uma outra: a suposi­
ryao de que as obras de literatura formam uma unidade "or­
ganica". 0 metodo hermeneutico procura encaixar cad a ele­
mento de Um texto num todo completo, num processo co­
mumente conhecido como "circulo hermeneutico": as ca­
racteristicas individuais sao ininteligiveis em termos da 
totalidade do contexto, e a totalidade do contexto torna-se 
inteligivel por meio das caracteristicas individuais. Em qual 
a hermeneutica nao considera a possibilidade de que as 
obras litenirias sejam difusas, incompletas e intemamente 
contradit6rias, embora muitas razoes nos levem a Supor 
7 
iss0 Vale notar que E. D. Hirsch, com toda a sua antipatia• 
pel os conceitos organicistas romanticos, tambem partilha 
do preconceito de que os textos litenirios sao todos integra­
dos, e integrados logicamente: a unidade da obra esta na 
intenryao generalizada do autor. Nao ha, de fato, razao pel a 
qual 0 autor nao possa ter varias intenryoes mutuamente con­
tradit6rias, ou um motivo pelo qual sua intenryao nao possa 
ter sido um tanto autocontradit6ria, mas Hirsch nao examina 
essas possibilidades. 
A mais recente manifestaryao da hermeneutica na Ale­
manha e conhecida como a "estetica da recepryao", ou "teo­
ria da recepryao"; ao contrario de Gadamer, ela nao se con­
centra exclusivamente em obras do passado. A teoria da re­
cepryao examina 0 papel do leitor na literatura e, como tal, e 
algo bastante novo. De forma muito sumaria, poderiamos 
periodizar a hist6ria da moderna teoria liteniria em tres fa­
ses: uma preocuparyao com 0 autor (romantismo e sec. 
XIX); uma preocuparyao exc1usiva com 0 texto (Nova Criti­
ca) e uma acentuada transferencia da aten((ao para 0 leitor, 
nos ultimos anos. 0 lei tor sempre foi 0 menos privilegiado 
desse trio - estranhamente, ja que sem ele nao haveria textos 
literarios. Estes textos nao existem nas prateleiras das estan­
tes: sao processos de significa((ao que s6 se materializam na 
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTlCA, TEORIA DA RECEPC;:AO 103 
pratica da leitura. Para que a literatura aconte((a, 0 lei tor e 
tao vital quanta 0 autor. 
o que esta em pauta, no ato da leitura? Tomemos, 
quase que literal mente ao acaso, as duas primeiras frases de 
um romance: " - 0 que voce acha do novo casal? Os Hane­
mas, Piet e Angela, se despiam." (John Updike, Couples.) 
o que achamos dis so? Talvez estranhemos, por urn mo­
mento, a evidente falta de ligaryao entre as duas frases, ate 
percebermos que se trata de uma conven((ao literaria pela 
qual podemos atribuir uma fala direta a uma personagem, 
mesmo que isso nao esteja dito explicitamente no texto. 
Percebemos que uma personagem, provavelmente Piet ou 
Angela Hanema, diz a frase inicial. Mas por que supomos 
isso? A frase precedida de travessao pode nao ter sido pro­
nunciada, pode ser um pensamento, ou uma pergunta que 
alguma outra pessoa tenha feito, ou uma especie de epigra­
fe na abertura do romance. Talvez seja dirigida a Piet e An­
gela Hanema por algurna outra pessoa, ou por uma sub ita 
voz vinda do ceu. Uma das razoes pelas quais esta ultima 
solu((ao parece improvavel e a de que a questao e um tanto 
coloquial para uma voz vinda do ceu; poderiamos saber, 
tamhem, que Updike e em geral um autor realista, que nao 
adota habitualmente esses recursos. Mas os textos de urn 
escritor nao formam necessariamente um todo coerente, e 
talvez seja imprudente confiar muito nessa suposi((ao. E 
improvavel, por motivos realistas, que a pergunta seja feita 
por um cora de pessoas falando em unissono, e pouco. 
improvavel que seja feita por alguma outra pessoa que nao 
Piet ou Angela Hanema, ja que ficamos sabendo no mo­
mento seguinte que eles estao se despindo, e podemos su­
por que talvez sejam casados, e que os casais, pelo menos 
em nosso suburbio de Birmingham, nao costurnam despir­
se nafrente de terceiros, qualquer que seja 0 seu comporta­
mento individual. 
usuario
Realce
104 
TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODU9A-O 
Provavelmente ja fizemos toda uma serie de dedu90es 
ao lermos essas frases . Podemos deduzir, por exemplo, que 
o "casal" mencionado seja urn homem e uma mulher, embo­
ra nada, ate agora, nos mostre que nao se trata de duas mu­
lheres ou de dois filhotes de tigres. Podemos Supor que quem 
faz a pergunta nao e capaz de ler a mente, pois nesse caso 
nao haveria necessidade de perguntar. Podemos suspeitar 
que 0 autor da pergunta preza os jufzos do perguntado, em­
bora ainda nao exista urn contexto suficiente amplo para 
determinarmos se a pergunta e tensa ou agressiva. A expres­
sao "os Hanemas", ao que supomos, provavelmente e urn 
aposto gramatical it expressao "Piet e Angela", para indicar 
que esse e 0 seu sobrenome, 0 que constitui born indicio de 
que sejam casados. Mas nao podemos afastar a possibilida­
de de que haja urn grupo de pessoas chamadas Hanemas, 
alem de Piet e Angela, e talvez toda uma tribo com esse 
nome, e que todos estao se despindo juntos num enorme re­
cinto. 0 fato de Piet e Angela terem 0 mesmo sobrenome 
nao confirma a suposi9ao de serem marido e mulher: podem 
ser pessoas particularmente liberadas ou incestuosas: irmao 
e irma, pai e filha ou mae e filho. Fizemos, porem, a suposi­
9ao de que se estao despindo frente a frente, embora nada 
nos tenha informado ainda que a pergunta nao foi gritada de 
urn quarto para outro, ou de uma cabana de praia para outra. 
Talvez Piet e Angela sejam crian9as pequenas, embora a 
sofistica9ao relativa da pergunta tome improvavel tal hip6­
tese. A maioria dos leitores achara, ja agora, que Piet e 
Angela Hanema sao urn casal, e que estao se despindo em 
seu quarto, depois de algum acontecimento, provavelmente 
uma festa, na qual urn novo casal esteve presente, mas nada 
disso e realmente dito. 
o fato de serem essas as duas primeiras frases do ro­
mance significa, e claro, que muitas dessas perguntas serao 
respondidas it medida que formos lendo. Mas 0 processo de 
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEP9AO 105 
especulac;;ao e deduc;;ao a que somos levados pel a nossa igno­
rancia e, no caso, simplesmente urn exemplo mais intenso e 
dramatico daquilo que fazemos sempre que lemos. Com a 
continuac;;ao da leitura, encontraremos muitos outros proble­
mas, que s6 podem ser resolvidos com novas suposic;;oes. 
Ficaremos sabendo dos/atos que essas duas frases nao reve­
lam, mas ainda assim teremos de interpreta-Ios de maneira 
questionavel. A leitura do comec;;o do romance de Updike 
nos envolve num volume surpreendente de trabalho, em 
grande parte inconsciente: embora raramente percebamos, 
estamos sempre formulando hip6teses construtivas sobre 0 
significado do texto. 0 lei tor estabelece conexoes impJici­
tas, preenche lacunas, faz deduc;;oes e comprova suposic;;oes 
- e tudo isso significa 0 uso de urn conhecimento tacito do 
mundo em geral e das convenc;;oes literarias em particular. 0 
texto, em si, realmente nao passa de uma serie de "dicas" 
para 0 lei tor, convites para que ele de sentido a urn trecho de 
linguagem. Na terminologia da teoria da recepC;;ao, 0 lei tor 
"concretiza" a obra literaria, que em si mesma nao passa de 
uma cadeia de marcas negras organizadas numa pagina. 
Sem essa constante participa9ao ativa do leitor, nao haveria 
obra literaria. Para a teoria da recep9ao, qualquer obra, por 
mais s6lida que parec;;a, compoe-se na realidade de "hiatos", 
tal como 0 sao os quadros para a fisica modema - 0 hiato, 
por exemplo, entre a primeira e a segunda frases de Couples, 
que 0 leitor deve preencher com uma conexao inexistente. A 
obra cheia de "indeterminac;;oes", elementos que, para terem 
efeito, dependem da interpretac;;ao do leitor, e que podem ser 
interpretados de varias maneiras, provavelmente conflitan­
tes entre si. 0 paradoxo disso e que quanto mais informac;;ao 
a obra transrnitir, mais indeterminada ela se tomara. As 
"secretas bruxas negras da meia-noite", de Shakespeare, 
num certo sentido limitam 0 tipo de bruxas de que trata, tor­
nam-nas mais determinadas; contudo, por serem esses tres 
106 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODU9AO 
qualificativos muito sugestivos, eles provocam reaC;oes dife­
rentes em diferentes leitores; 0 texto em si tambem se tor­
nou menos determinado, ao se tentar torna-Io mais preciso. 
Para a teoria da recepC;ao, e sempre dinamico, um movi­
mento complexo que se desdobra no tempo. A obra literaria 
existe apenas como algo que 0 teorico polones Roman In­
garden chama de uma serie de schemata, ou direc;oes gerais, 
que 0 leitor deve tornar realidade. Para isso, ele abordani a 
obra com certos "pre-entendimentos", um vago contexto de 
crenc;as e expectativas dentro dos quais as varias caracteris­
ticas da obra serao avaliadas. Com a continuac;ao do proces­
so de leitura, porem, essas expectativas serao modificadas 
pelo que ficarmos sabendo, e 0 circulo hermeneutico - pas­
sando da parte ao todo e retomando aparte - comeC;ara a se 
solucionar. Esforc;ando-se por estabelecer um senso coeren­
te a partir do texto, 0 leitor selecionara e organizara seus ele­
mentos em todos coerentes, exc1uindo alguns e destacando 
outros, "concretizando" certos itens, de certas maneiras; ten­
tara manter juntas as diferentes perspectivas da obra, ou pas­
sara de uma perspectiva a outra, para criar uma "ilusao" in­
tegrada. Aquilo que ficamos sabendo na pagina I desapare­
cera e sera resumido na memoria, talvez para ser condicio­
nado de maneira radical pelas informac;oes que receberemos 
mais tarde. A leitura nao e urn movimento linear progressi­
YO , uma questao meramente cumulativa: nossas especula­
c;oes iniciais geram urn quadro de referencias para a inter­
pretac;ao do que vern a seguir, mas 0 que vern a seguir pode 
transformar retrospectivamente 0 nosso entendimento origi­
nal, ressaltando certos aspectos e colocando outros em se­
gundo plano. A medida que prosseguimos a leitura, deixa­
mos de lado suposic;oes, revemos crenc;as, fazemos dedu­
c;oes e previsoes cada vez mais complexas; cada frase abre 
urn horizonte que e confirmado, questionado ou destruido 
pela frase seguinte. Lemos simultaneamente para tras e para 
FENOMENOLOGIA. HERMENEUTlCA. TEORIA DA RECEP9AO 107 
frente, prevendo e recordando, talvez conscientes de outras 
concretizac;oes possiveis do texto que a nossa leitura negou. 
Alem do mais, toda essa complicada atividade e realizada 
em muitos niveis ao mesmo tempo, pois 0 texto tern "segun­
dos e primeiros pIanos", diferentes pontos de vista narrati­
vos, camadas alternativas de significado, entre as quais nos 
movemos constantemente. 
Wolfgang Iser, da chamada Escola de Constancia da 
estetica da recepc;ao, cujas teorias ora examinamos em gran­
de parte, fala, em 0 ata da leitura (1978), das "estrategias" 
adotadas pelos textos e dos "repertorios" de temas e alusoes 
familiares que eles encerram. Para 1er, precisamos estar fa­
miliarizados com as tecnicas e convenc;oes literarias adota­
das por uma determinada obra; devemos ter certa com­
preensao de seus "codigos", entendendo-se por isso as re­
gras que govemam sistemativamente as maneiras pelas quais 
ela expressa seus significados. Lembramos 0 aviso do metro 
de Londres de que falamos na introduc;ao: "Cachorros de­
vern ser carregados na escada rolante". Para compreender 
esse aviso, tenho de fazer muito mais do que simplesmente 
ler as palavras uma apos a outra. Preciso saber, por exemplo, 
que essas palavras pertencem ao que poderia ser chamado 
de "codigo de referencia" - que 0 aviso nao e apenas algo 
decorativo para distrair os passageiros, mas refere-se ao 
comportamento de caes e passageiros reais, numa escada 
rolante real. Devo mobilizar meu conhecimento social geral 
para reconhecer que 0 avisofoi colocado ali pelas autorida­
des, que essas autoridades tern 0 poder de punir os trans­
gressores, que eu, fazendo parte do publico, estou implicita­
mente sendo avisado, e nada disso e evidente nas palavras 
do catiaz, em si . Ou seja, tenho de recorrer a celios codigos 
e contextos sociais para compreende-Io adequadamente. 
Mas tambem tenho de colocar esse conhecimento em corre­
lac;ao com certos codigos e convenc;oes de leitura - conven­
usuario
Realce
108 TEORIA DA L/TERATURA.· UMA INTRODUC;AO 
c,:oes que me dizem que "a escada rolante" significa esta es­
cada rolante e nao alguma outra no Paraguai, que "devem 
ser carregados" significa "ser carregados agora", e assim 
por diante. Devo reconhecer que 0 "genero" do aviso e de tal 
ordem que se torn a altamente improvavel que a ambigiiida­
de de que falei na Introduc,:ao tenha sido realmente "inten­
cional". Nao e facil distinguir entre os codigos "social" e 
"Iiterario", no caso: a concretizac,:ao da "escada rolante" co­
mo "esta escada", a adoc,:ao de uma convenc,:ao de leitura que 
elimina a ambigiiidade, depende em si de toda uma rede de 
conhecimentos sociais. 
Portanto, compreendo 0 aviso interpretando-o em ter­
mos de certos codigos que parecem adequados; mas para 
Iser nao e isso 0 que acontece ao se ler Iiteratura. Se houves­
se uma perfeita adequac,:ao entre os c6digos que governavam 
as obras Iiterarias e os codigos que aplicamos a sua interpre­
tac,:ao, toda literatura seria tao pouco inspiradora quando 0 
aviso no metro londrino. Para Iser, a obra literaria mais efi­
ciente e aquela que forc,:a 0 leitor a uma nova consciencia 
critica de seus c6digos e expectativas habituais. A obra 
interroga e transforma as crenc,:as implicitas com as quais a 
abordamos, "desconfirma" nossos habitos rotineiros de per­
cepc,:ao e com isso nos forc,:a a reconhece-los, pela primeira 
vez, como real mente sao. Em lugar de simplesmente refor­
c,:ar as percepc,:oes que temos, a obra literaria, quando vaIio­
sa, violenta ou transgride esses modos normativos de ver e 
com isso nos ensina novos codigos de entendimento. Existe 
aqui urn paralelo com os formalistas russos: no ato da leitu­
ra, nossas suposic,:oes convencionais sao "desfamiliariza­
das", objetificadas a ponto de poderrnos critica-las, e com 
isso, reve-Ias. Se modificamos 0 texto com nossas estrate­
gias de leitura, ele simultaneamente nos modi fica: como os 
objetos de urn experimento cientifico, ele pode dar uma 
"resposta" imprevisivel as nossas "perguntas". Toda a fun-
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORlA DA RECEPC;AO 109 
c,:ao da leitura e, para urn critico como Iser, levar-nos a uma 
autoconsciencia mais profunda, catalisar uma visao mais 
critic a de nossas proprias identidades. Ecomo se aquilo que 
lemos, ao avanc,:armos por urn livro, seja nos mesmos. 
A teoria da recepc,:ao de Iser baseia-se, de fato, em uma 
ideologia liberal humanista: na convicc,:ao de que na leitura 
devemos ser flexiveis e ter a mente aberta, preparados para 
questionar nossas crenc,:as e deixar que sejam modificadas. 
AWls dessa posic,:ao esta a influencia da hermeneutica gada­
meriana, com sua fe naquele autoconhecimento enriqueci­
do, que nasce de urn encontro com 0 nao-familiar. Mas 0 
humanismo liberal de Iser, como a maioria dessas doutrinas, 
e menos liberal do que parece a primeira vista. Ele diz que 
urn leitor com fortes compromissos ideologicos provavel­
mente sera urn leitor inadequado, ja que tern menos probabi­
lidade de estar aberto aos poderes transformativos das obras 
literarias. Isso deixa implicito que para sofrermos uma 
transformac,:ao as maos do texto, devemos em primeiro lugar 
ter convicc,:oes muito provisorias. 0 linico leitor adequado ja 
teria de ser urn liberal: 0 ato de ler produz a especie de sujei­
to humano que esse ato tambem pressupoe. Isso e paradoxa I 
ainda sob urn outro aspecto: se nossas convicc,:oes forem as­
sim tao superficiais, seu questionamento e subversao pelo 
texto nao serao realmente muito significativos. Em outras 
palavras, nada de muito importante tera acontecido. 0 leitor 
nao tera sido radicalmente modificado, mas simplesmente 
devolvido a si mesmo, como urn sujeito mais completamen­
te liberal. Tudo, em relac,:ao ao sujeito lei tor, e passivel de 
questionamento no ato da leitura, exceto que tipo de sujeito 
(liberal) e1e e: esses limites ideologicos nao podem ser criti­
cados de modo algum, po is todo 0 modelo ruiria. Nesse sen­
tido, a pluralidade e a abertura do processo de leitura sao 
possiveis porque pressupoem urn certo tipo de unidade fe­
chada que sempre pennanece: a unidade do sujeito leitor, 
usuario
Realce
usuario
Realce
usuario
Realce
usuario
Realce
110 TEORIA DA LITERATURA. UMA INTRODU(:AO 
que e violada e transgredida apenas para ser devolvida, de 
modo mais completo, a si mesma. Como acontece em Ga­
darner, podemos incursionar por territ6rio estrangeiro por­
que secretamente estamos sempre em nosso pr6prio territ6­
rio. 0 tipo de leitor que a literatura afetara mais profunda­
mente e 0 que ja esta equipado com a capacidade e as rea­
<;oes "adequadas"; aquele que e eficiente em operar certas 
tecnicas de critica e reconhecer certas conven<;oes literarias. 
Mas este e precisamente 0 tipo de leitor que menos precisa 
ser atingido. Tal leitor e "transformado" desde 0 inicio, e 
esta pronto a arriscar-se a novas transforma<;oes, exatamen­
te por esta razao. Para ler "eficientemente" a literatura, 
devemos exercer certas capacidades criticas, que sempre 
sao definidas de mane ira problematica. Mas sao precisa­
mente essas capacidades que a "literatura" nao podera colo­
car em questao, porque a sua existencia depende delas. Aquilo 
que definimos como obra "literaria" estara sempre relacio­
nada de perto com aquilo que consideramos tecnicas criticas 
"adequadas": uma obra "literana" significara, aproximadamen­
te, a obra que pode ser utilmente esc1arecida por esses metodos 
de indaga<;ao. Mas nesse caso, 0 circulo hermeneutico e real­
mente um circulo vicioso: aquilo que obtemos da obra de­
pendera em grande parte daquilo que primeiramente nela 
colocamos, e nao ha muito espa<;o aqui para qualquer "ques­
tionamento" profundo do leitor. Iser parece evitar esse circu­
10 vicioso ressaltando 0 poder que a literatura tern de romper 
e transfigurar os c6digos do leitor; mas isso, em si, como ja 
dissemos, supoe implicitamente 0 mesmo tipo de leitor "dado" 
que ela espera criar pela leitura. 0 circuito fechado entre 0 
leitor e a obra reflete a condi<;ao fechada da institui<;ao aca­
demica da Literatura, a qual s6 podem concorrer certos 
tipos de textos e de leitores. 
As doutrinas do eu unificado e do texto fechado subli­
nham sub-repticiamente, a abertura evidente de grande par-
FENOMENOLOGIA, HERMENEUTlCA, TEORIA DA RECEP(:AO 111 
te da teoria da recep<;ao. Roman Ingarden, em The Literary 
Work ofArt, de 1931, supoe dogmaticamente que as obras 
literarias formam todos organicos, e que 0 lei tor, completan­
do-lhes as "indetermina<;oes", completa tambem essa har­
monia. 0 leitor deve ligar os diferentes segmentos e cama­
das da obra de uma mane ira "adequada", asemelhan<;a dos 
livros infantis que trazem figuras para serem coloridas de 
acordo com as instru<;oes do fabricante. Para Ingarden, 0 
texto ja vern com as suas indetermina<;oes, e 0 leitor deve 
concretiza-lo "corretamente". Isso limita bastante a ativida­
de do leitor, reduzindo-o por vezes a pouco mais do que uma 
especie de "pau para toda a obra" literario, capaz de com­
pletar qualquer indetermina<;ao. Iser muito mais liberal, 
concedendo ao lei tor urn maior grau de participa<;ao no 
texto: diferentes leitores tern liberdade de concretizar a obra 
de diferentes maneiras, e nao ha uma unica interpreta<;ao 
correta que esgote 0 seu potencial semantico. Essa generosi­
dade, porem, e condicionada por uma instru<;aorigorosa: 0 
leitor deve construir 0 texto de modo a toma-lo internamen­
te coerente. 0 modelo de leitura de Iser e fundamental mente 
funcionalista: as partes devem ser capazes de se adaptar 
coerentemente ao todo. Na verdade, atras desse preconceito 
arbitrario esta a influencia da psicologia da Gestalt, preocu­
pada em integrar as percep<;oes isoladas num to do inteligi­
vel. Tal preconceito e tao pro fun do nos criticos modernos, 
que e dificil ve-lo exatamente como uma predile<;ao doutri­
naria, nao menos defensavel e controversa do que qualquer 
outra. Nao ha absolutamente necessidade de supor que a 
obra literaria seja, ou deva ser, urn todo harmonioso, e mui­
tos atritos sugestivos e colisoes de significados devem ser 
"processados" pela critica literaria, para dar-lhe esse aspec­
to de todo. Iser acha que Ingarden e urn pouco "organicista" 
demais em suas interpreta<;oes textuais, e aprecia as obras 
modemistas, multiplas, em parte porque elas nos tornam 
usuario
Realce
"-,, 
112 TEORJA DA LfTERATURA : UMA INTROD UC;AO 
mais autoconscientes quanta ao trabalho de interpreta-las. 
Ao mesmo tempo, porem, a "abertura" da obra e algo a ser 
gradualmente eliminado, a medida em que 0 lei tor passa a 
construir uma hip6tese de trabalho capaz de explicar e tor­
nar mutuamente coerentes 0 maior numero possivel dos ele­
mentos dessa obra. 
As indeterminac;:oes textuais apenas nos estimulam a 
aboli-las, substitui-las por urn significado estavel. Na ex­
pressao reveladoramente autoritaria de Iser, elas devem ser 
"normalizadas", ou seja, domesticadas e sujeitadas a uma 
firme estrutura de sentido. 0 lei tor, ao que parece, empe­
nha-se tanto em lutar com 0 texto quanta em interpreta-lo, 
esforc;:ando-se para fixar 0 seu potencial "polissemantico" 
anarquico em urna estrutura controlavel. Iser fala aberta­
mente da "reduc;:ao" desse potencial polissemico a algurna 
forma de ordem - uma maneira curiosa, poderiamos pensar, 
de urn critico "pluralista" falar. Se isso nao for feito, 0 sujei­
to lei tor unificado sera prejudicado, tomar-se-a incapaz de 
voltar a si mesmo como uma entidade bern equilibrada, na 
terapia "autocorretiva" da leitura. 
Esempre born testar uma teoria literaria, fazendo-se a 
seguinte pergunta: como ela se comportaria em relac;:ao ao 
Finnegans Wake, de Joyce? A resposta, no caso de Iser, teria 
de ser: nao muito bern. Ele ocupa-se, confessadamente, do 
Ulysses, de Joyce, mas seu principal interesse critico esta na 
ficc;:ao realista a partir do sec. XVIII, e ha maneiras pelas 
quais se pode fazer com que 0 Ulysses se adapte a esse mo­
delo. Seria a opiniao de Iser, segundo a qual a literatura mais 
valida perturb a e transgride os c6digos existentes, aplicavel 
aos leitores contemporiineos de Romero, Dante ou Spenser? 
Nao sera esse ponto de vista 0 de um liberal europeu de 
hoje, para quem "sistemas de pensamento" precisam ter urna 
certa conotac;:ao negativa, e nao positiva, e que portanto vol­
tara os olhos para 0 tipo de arte que pareya solapa-los? Nao 
FENOMENOLOGfA, HERMENEUTfCA, TEORJA DA RECEPC; AO 113 
tera uma boa parte da literatura "valida" precisamente con­
firmado, e nao refutado, os c6digos de sua epoca? Localizar 
o poder da arte principalmente na negac;:ao - na transgressao 
e na desfamiliarizac;:ao - e, tanto para Iser quanto para os 
formalistas, deixar implicita uma atitude definida para com 
os sistemas social e cultural de nossa propria epoca, atitude 
essa que, no liberalismo moderno, equivale a suspeitar dos 
sistemas de pensamento como tais. 0 fato de que isso seja 
possivel e testemunho eloqiiente do esquecimento a que 0 
liberalismo relegou urn determinado sistema de pensamento 
aquele que sustenta a sua pr6pria posic;:ao . 
Para compreender os !imites do humanismo liberal de 
Iser, podemos contrasta-lo rapidamente com outro te6rico 
da recepc;:ao, 0 critico frances Roland Barthes. A abordagem 
que Barthes faz em Le plaisir du texte, de 1973, e a que mais 
se difere da abordagem de Iser: a diferenc;:a, para usarmos 
uma expressao comum, compara-se aquela existente entre 
urn hedonista frances e urn raciona!ista alemao. Enquanto 
Iser se concentra sobretudo na obra realista, Barthes oferece 
uma explicayao bastante contrastante da leitura ao enfocar 0 
texto modemista, que dissolve todos os significados preci­
sos num jogo livre de palavras, que parece desfazer os siste­
mas de pensamento repressivos com uma incessante oscila­
c;:ao da linguagem. Esse texto exige menos uma atitude "her­
meneuta" do que uma "er6tica": ja que nao ha meios de 
fixa-lo num determinado sentido, 0 leitor simplesmente se 
entrega a tantalizante variac;:ao dos signos, aos brilhos pro­
vocativos dos significados que aparecem e desaparecem. 
Colhido nessa danc;:a exuberante da linguagem, deliciando­
se com a tessitura das palavras em si, 0 lei tor conhece 
menos os prazeres bastante objetivos de construir um siste­
ma coerente, de combinar os elementos textuais com maes­
tria para criar um eu unitario, do que as emoyoes masoquis­
tas dos sentimentos fragmentados e dispersos pelos emara­
usuario
Realce
TEORIA DA LlTERATURA: UMA INTRODU(:A-O 114 
nhados da propria obra. Assim, a leitura parece urn labora­
torio e mais urn boudoir. Longe de devolver 0 leitor a si 
mesmo, recuperando finalmente 0 eu que 0 ato da leitura 
colocou em duvida, 0 texto modernista detona a identidade 
cultural segura do leitor, numajouissance que, para Barthes, 
e ao mesmo tempo uma benyao da leitura e urn orgasmo 
sexual. 
A teoria de Barthes, como 0 leitor podeni ter suspeita­
do, nao esta livre de problemas. Ha algo urn tanto perturba­
dor nesse hedonismo indulgente de vanguarda, num mundo 
em que a tantos faltam nao apenas livro, mas comida. Se 
Iser nos oferece urn modelo "normativo", sombrio, que teria 
o potencial ilimitado da linguagem, Barthes nos apresenta 
uma experiencia privada, a-social , essencialmente anarqui­
ca, que talvez nao seja senao 0 inverso da prime ira. Ambos 
os criticos revel am uma aversao liberal pelo pensamento sis­
tematico, ambos ignoram, cada qual a seu modo, a posiyao 
do leitor na historia. E claro que os leitores nao se en con­
tram com os textos no vacuo: todos os leitores estao social e 
historicamente situados, e a maneira pela qual interpretam 
as obras literarias sera profundamente condicionada por 
esse fato. Iser tern consciencia da dimensao social da Jeitu­
ra, mas prefere concentrar-se sobretudo em seus aspectos 
"esteticos". Urn dos membros da Escola de Constancia, cuja 
consciencia historica e mais aguda, e Hans Robert Jauss 
que, ao jeito de Gadamer, procura situar a obra liten'tria num 
"horizonte" historico, 0 contexto dos significados culturais 
dentro dos quais ela foi produzida, para em seguida explorar 
as relayoes variaveis entre ela e os "horizontes", tambem 
variaveis, dos seus leitores histOricos. 0 objetivo dessa obra 
e produzir urn novo tipo de hist6ria literaria, centralizada 
nao nos autores, influencias e tendencias literarias, mas na 
literatura, tal como definida e interpretada pelos seus varios 
momentos de "recepyao" historica. As obras literarias, em si 
FENOMENOLOGIA , HERMENEUTfCA, TEORIA DA RECEP(:AO 115 
mesmas, nao permanecem constantes, enquanto as suas in­
terpretayoes se modificam; os proprios textos e tradiyoes 
literarias sofrem modificayoes ativas, de acordo com os va­
rios "horizontes" historicos nos quais elas sao recebidas. 
Urn estudo historico mais detalhado da recepyao litera­
ria e Qu 'est-ce que la litterature?, escrita por Jean-Paul 
Sartre, em 1948. Esse livro deixa claro que a recepyao de 
uma obra nunc a e apenas urn fato "exterior" a ela, uma 
questao contingencial de resenhas e vendas nas livrarias. E 
uma dimensao construtiva da propria obra. Todo texto lite­
rario e construido a partir de urn certo sentimento em rela­
yao ao seu publico

Outros materiais