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Capitulo II Fenomen%gia, hermeneutica, teoria da recepfiio Em 1918 a Europa estava em ruinas, devastada pela pior guerra da hist6ria. Na esteira daquela catastrofe, urna onda de revolw;oes sociais varreu 0 continente: os anos anteriores e subsequentes a 1920 testemunhariam 0 levante do movimen to ber!inense conhecido como Espartaco, a greve geral de Viena, a instalayao dos sovietes de trabalhadores em Munique e em Budapeste e ocupayoes em massa de fabricas por toda a It<ilia. Toda essa insurreiyao foi violentamente esmagada, mas a ordem social do capitalismo europeu havia sido abalada em suas raizes pela camificina da guerra e por suas turbulentas consequencias politicas. As ideologias das quais essa ordem habitualmente dependera, os valores culturais pelos quais era govemada, tambem se encontravam em estado de profimda agitayao. A ciencia parecia ter-se encolhido a uma posiyao es teril, a uma obsessao miope pela categorizayao de fatos; a fi losofia dividia-se entre 0 positivismo, de urn lado, e urn sub jetivismo indefensavel de outro; predominavam formas de relativismo e irracionalismo, e a arte refletia essa espantosa perda de referencias. Foi nesse contexto de crise ideol6gica generalizada, na verdade muito anterior ao advento da Pri meira Guerra Mundial, que 0 fil6sofo alemao Edmund Husser! IIII1 procurou desenvolver urn novo metodo filos6fico que ofere cesse uma certeza absoluta a urna civilizayao que se desinte grava. Ele diria mais tarde, em A crise das ciencias europeias (1935), que se tratava de uma escolha entre a barbarie irracio CLC Typewritten Text CLC Typewritten Text CLC Typewritten Text Terry Eagleton. Teoria Literária: UmanullIntrodução. São Paulo: Martins Fontes, 2001null 76 TEORIA DA LITERA TURA: UMA INTRODUr;JO nal e 0 renascimento espiritual atraves de "urna ciencia do espirito absolutamente auto-suficiente". Husserl, como seu predecessor, 0 filosofo Rene Des cartes, comeyou a sua busca da certeza rejeitando proviso riamente 0 que chamou de "atitude natural" - a crenya man tida pelo homem com urn de born senso, de que os objetos existiam independentemente de nos mesmos no mundo ex terior, e de que nossa informayaO sobre eles era em geral digna de fe. Tal atitude aceitava sem discussao a possibilida de de conhecimento, quando era precisamente isso 0 que se discutia. Sobre 0 que, entao,poderemos ter certeza e ser c1a ros? Embora nao possamos ter certeza da existencia inde pendente das coisas, diz Husserl, podemos estar certos da maneira pela qual as vemos de imediato na consciencia, quer seja ilusoria a coisa real que estamos venda ou nao. Os obje tos podem ser considerados nao como coisas em si, mas como coisas postuladas, ou "pretendidas", pela consciencia. Toda consciencia e consciencia de algurna coisa: no pensa mento, tenho consciencia de que meu pensamento esta "vol tado para" algum objeto. 0 ato de pensar e 0 objeto do pen samento estao internamente relacionados, sao mutuamente dependentes. Minha consciencia nao e apenas urn registro passivo do mundo, mas constitui ativamente esse mundo, ou "pretende" faze-Io. Para terrnos certeza, entao, devemos pri meiro ignorar tudo, ou "colocar entre parenteses" qualquer coisa que esteja alem de nossa experiencia imediata; deve mos reduzir 0 mundo exterior apenas ao conteudo de nossa consciencia. 1sto, ou a chamada "reduyao fenomenologica", e a prime ira medida importante de Husserl. Tudo 0 que nao seja "imanente" a consciencia deve ser rigorosamente ex c1uido; todas as realidades devem ser tratadas como puros "fenomenos", em termos de como eles se apresentam em nossa mente, sendo este 0 unico dado absoluto do qual po demos partir. 0 nome dado por ele a esse metodo filosOfico 77FENOMENOLOGIA , HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPr;JO _ fenomenologia - nasce de sua insistencia nesta postura. A fenomenologia e a ciencia dos fenomenos puros. Mas isso nao basta para resolver nossos problemas, pois talvez tudo 0 que encontremos, ao inspecionarrnos 0 conteu do de nossa mente, seja apenas urn fluxo aleatorio de feno menos, uma corrente caotica de consciencia, e dificilmente poderemos estabelecer sobre isso qualquer certeza. Os tipos de fenomenos "puros" que interessam a Husserl, porem, sao algo mais do que apenas os detalhes individuais aleatorios Sao urn sistema de essencias universais, pois a fenomenolo gia modifica cada objeto na imaginayao, ate descobrir 0 que ha de invariavel nele. 0 que se apresenta ao conhecimento fenomenologico nao e apenas, digamos, a experiencia do cifune ou a sensayao provocada pela cor verrnelha, e sim os tipos ou essencias universais dessas coisas: 0 ciume ou a cor verrnelha como tais. Compreender qualquer fenomeno de maneira total e pura, e apreender 0 que nele ha de essencial e imutavel. A palavra grega para tipo e eidos; por esta razao, Husserl fala de seu metodo como urna abstrayao "eidetica", acompanhada de sua reduyao fenomenol6gica. Tudo isso pode parecer intoleravelmente abstrato e irreal; e e, na verdade. Mas 0 objetivo da fenomenologia era, de fato, exatamente 0 oposto da abstrayao: era urn retorno ao concreto, a terra firme, sugerido pela famosa frase "De volta as coisas em si!". A filosofia havia se preocupado demais com conceitos, e muito pouco com os dados reais; assim, ela havia construido seus sistemas intelectuais extre mamente pesados sobre as mais precarias bases. A fenome nologia, tomando aquilo de que podiamos ter certeza expe rimentalmente, era capaz de oferecer a base para a edifica yaO de urn conhecimento autenticamente fidedigno. Ela podia ser uma "ciencia das ciencias", oferecendo urn meto do para 0 estudo de qualquer coisa: memoria, caixas de fos foros, matematica. Ela se ofere cia como nada menos do que usuario Realce 78 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODU9AO uma ciencia da consciencia humana - a consciencia humana concebida nao apenas como a experiencia empirica de de terminadas pessoas, mas como as "estruturas profundas" da pr6pria mente. Ao contnirio das outras ciencias, ela nao indagava sobre esta ou aquela forma particular de conheci mento, mas sobre as condi~oes que tornavam possivel qual quer tipo de conhecimento, em primeiro lugar. Dessa forma - e como a filosofia de Kant, anterior a ela - era urn modo "transcendental" de investiga~ao; e 0 sujeito humano, ou a consciencia individual, objeto de sua preocupayao, era urn sujeito "transcendental". A fenomenologia examinava nao apenas 0 que por acaso se percebesse quando se olhasse para urn determinado coelho, mas a essencia universal dos coe lhos e 0 ato de percebe-los. Nao se tratava, em outras pala vras, de uma forma de empirismo, preocupado com a expe riencia aleat6ria, fragmentaria, de determinadas pessoas; tambem nao era uma especie de "psicologismo", interessa do apenas nos processos mentais observaveis ness as pes soas. Ela pretendia desvendar as estruturas da pr6pria cons ciencia e, ao mesmo tempo, desnudar fen6menos em si. Essa breve descriyao da fenomenologia deixa claro, ape sar de sua concisao, que se trata de uma forma de idealismo metodologico, que busca explorar uma abstrayao chamada "consciencia humana" e urn mundo de possibilidades puras. Mas se Husserl rejeitou 0 empirismo, 0 psicologismo e 0 positivismo das ciencias naturais, tam bern achou que estava rompendo com 0 idealismo c1assico de urn pensador como Kant. Este fora incapaz de resolver 0 problema de como a mente pode efetivamente conhecer os objetos que the sao exteriores. A fenomenologia, ao pretender que a percepyao pura revela a essencia mesma das coisas, esperava superar tal ceticismo. Tudo isso parece estar muito longe de Leavis e da socie dade organica. Mas estara, realmente? Afinal de contas, 0 re- FENOMENOLOGIA , HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEP9AO79 tome as "coisas em si mesmas", a rejeiyao impaciente das teorias que nao tern raizes na vida "concreta", nao estao mui to longe da teoria ingenua, mimetica, de Leavis, de que a lin guagem poetica materializava a pr6pria essencia da realidade. Em urn periodo de importante crise ideologica, Leavis e Husser! voltam-se ambos para 0 consolo que encontram no concreto, no que pode ser conhecido pelas pulsayoes. E esse recurso as "coisas em si mesmas" envolve, em ambos os casos, urn irracionalismo total. Para Husser!, 0 conhecimento dos fenomenos e absolutamente certo, ou, como ele diz, "apo ditico", porque e intuitivo: nao posso duvidar dessas coisas, tal como nao posso duvidar de uma forte pancada no cranio. Para Leavis, certas formas de linguagem sao "intuitivamente" certas, vitais e criativas, e por mais que ele concebesse a criti ca como urna argumentayao corroborativa, nao havia, em ulti ma instancia, nenhurna vantagem em dizer isso. Alem do mais, ambos achavam que 0 que e intuido no ate de percepyao do fenomeno concreto e algo universal: 0 eidos para Husser!, a Vida para Leavis. Em outras palavras, eles nao vao alem da seguranya da sensayao imediata para desenvolver uma teoria "global": os fenomenos ja vern com uma teoria pronta. Tal teoria e, porem, autoritaria, ja que depende totalmente da intuiyao. Os fenomenos para Husser! nao precisam ser inter pretados, construidos desta ou daquela maneira, nurna argu menta~ao racional. Como certos julgamentos literarios, eles se impoem de maneira irresistivel, para usarmos urna palavra chave de Leavis. Nao e dificil ver a relayao entre esse dogma tismo - evidente em toda a carreira de Leavis - e urn desprezo conservador pela analise racional. Finalmente, podemos no tar como a teoria "intencional" da consciencia, defendida por Husser!, sugere que "ser" e "significar" estao sempre atados urn no outro. Nao ha objeto sem sujeito, e nao ha sujeito sem objeto. Objeto e sujeito, tanto para Husser! como para 0 fil6 sofo ingles F. H. Bradley, que influenciou T. S. Eliot, sao real usuario Realce usuario Realce usuario Realce 81 80 TEORlA DA LlTERATURA: UMA INTRODUC;J O mente as duas faces da mesma moeda. Numa sociedade em que os objetos parecem estar alienados, isolados dos objeti vos humanos, e os sujeitos human os estao, por conseguinte, mergulhados em urn isolamento ansioso, essa doutrina esem duvida consoladora. A mente e 0 mundo foram novamente reunidos - pelo menos, na mente. Leavis preocupa-se tam bern em solucionar a rivalidade prejudicial entre sujeitos e objetos, entre os homens e seus "ambientes naturais hurna nos", resultado da civiliza<;:ao de "massa". Se a fenomenologia assegurava, de urn lado, urn mundo cognoscivel, por outro estabelecia a centralidade do sujeito humano. Na verdade, ela prometia ser nada menos do que uma ciencia da propria subjetividade. 0 mundo eaquilo que postulo, ou que "pretendo" postular: deve ser apreendido em rela<;:ao a mim, como uma correla<;:ao de minha cons ciencia, e essa consciencia nao e apenas falivelmente empi rica, mas tambem transcendental. Era reconfortante desco brir isto a respeito de nos mesmos. 0 positivismo crasso da ciencia do sec . XIX amea<;:ara roubar 0 mundo de toda a subjetividade, e a filosofia kantiana docilmente seguira 0 mesmo caminho; 0 curso da historia europeia, a partir de fins do sec. XIX, parecia lan<;:ar serias duvidas sobre a pre sun<;:ao tradicional de que 0 "homem" controlava seu desti no, a duvida de que ele ja nao era 0 centro criativo de seu mundo. Reagindo contra isto, a fenomenologia restabeleceu ao sujeito transcendental 0 seu trono. 0 sujeito deveria ser visto como a fonte e a origem de todo 0 significado: de fato ele nao era, em si, parte do mundo, ja que foi 0 responsavel pela existencia desse mundo. Nesse sentido, a fenomenolo gia recuperou e reformulou 0 velho sonho da ideologia bur guesa classica. Tal ideologia baseara-se na cren<;:a de que 0 "homem" era, de alguma forma, anterior a sua historia e suas condi<;:oes sociais, que dele fluiram como a agua jorra de uma nascente. Como esse "homem" havia come<;:ado a FENOMENOLOGIA, HERMENEUTlCA, TEORlA DA RECEPC;JO existir - se ele poderia ser produto de condi<;:oes sociais, bern como 0 produtor delas - nao era uma questao a ser ex a minada seriamente , Ao recentralizar 0 mundo no sujeito hu mano, portanto, a fenomenologia oferecia uma solu<;:ao ima ginaria a urn serio problema historico. Na esfera da critica literaria, a fenomenologia exerceu al guma influencia sobre os formalistas russos. Tal como Husserl separava entre parenteses 0 objeto real, para dedicar se ao ato de conhece-Io, tambem a poesia, para os forrnaiistas, isolava 0 objeto real e em lugar dele focalizava a maneira pela qual era percebido l . Mas a principal divida critica para com a fenomenologia e evidente na chamada escola critica de Genebra, que floresceu principalmente nas decadas de 1940 e 1950, e cujos expoentes foram 0 belga Georges Poulet, os cri tic os sui<;:os Jean Starobinski e Jean Rousset, eo frances Jean Pierre Richard. A essa escola ligou-se tambem Emil Staiger, professor de alemao na Universidade de Zurique, e as prime i ras obras do critico americano J. Hillis Miller. A critica fenomenologica e a tentativa de se aplicar esse metodo as obras literarias. Como acontece no isolamento do objeto real feito por Husserl, 0 contexto historico concreto da obra literaria, seu autor, as condi<;:oes de produ<;:ao e a leitura sao ignorados. A critica fenomenologica visa a uma leitura totalmente "imanente" do texto, absolutamente imune a qual quer coisa fora dele. 0 proprio texto e reduzido a uma pura materializa<;:ao da consciencia do autor: todos os seus aspec tos estilisticos e semanticos sao percebidos como partes or ganicas de urn to do complexo, do qual a essencia unificado ra e a mente do autor. Para conhece-Ia, nao devemos nos referir a nada que sabemos sobre 0 autor - a critica biografi ca e proibida - mas tao-somente aos aspectos de sua cons ciencia que se manifestam na obra em si. Alem dis so, inte ressam-nos as "estruturas profundas" de sua mente, que po dem ser encontradas nas repeti<;:oes de temas e padroes de usuario Realce 82 83 TEORlA DA LITERA TURA: UMA lNTRODUC;A-O imagens. Ao perceber essas estruturas, estamos apreendendo a maneira pela qual 0 autor "viveu" seu mundo, as relac;oes fenomenologicas entre ele, sujeito, e 0 mundo, objeto. 0 "mundo" de uma obra liteniria nao e uma realidade objetiva, mas aquilo que em alemao se denomina Lebenswelt, a reali dade tal como organizada e sentida por urn sujeito indivi dual. A critica fenomenologica focaliza, tipicamente, a ma neira pela qual 0 autor sente 0 tempo ou 0 espac;o, ou a rela c;ao entre 0 eu e os outros, ou sua percepc;ao dos objetos materiais. Em outras palavras, as preocupac;oes metodologi cas da filosofia husser!iana freqiientemente tornam-se, na critica fenomenologica, 0 "conteudo" da literatura. Para perceber essas estruturas transcendentais, para pe netrar 0 interior da consciencia de urn escritor, a critica fenomenologica tenta obter a total objetividade e 0 comple to desinteresse. Ela deve se purgar de suas proprias predile c;oes, mergulhar empaticamente no "mundo" da obra e re produzir 0 mais exata e imparcialmente possivel 0 que nela encontra. Se vier a se ocupar de urn poema cristao, ela nao deve se interessar em formular juizos de valor sobre esta visao do mundo especifica, mas demonstrar 0 que tera sido, para 0 autor, "vive-Ia". Trata-se, em outras palavras, de urn modo de amilise totalmente acritica, destituida de avalia c;oes. A critica nao e considerada urna construc;ao, uma in terpretac;ao ativa da obra que envoIvera inevitavelmente os proprios interesses e tendencias do critico:e uma simples recepc;ao passiva do texto, uma transcric;ao pura de suas es sencias mentais. Uma obra Iiteniria deve constituir urn todo organico, e 0 mesmo deve acontecer com todas as obras de lim determinado autor. Buscando a unidade, a critica feno lIl\ ~ ll(ll()gica pode, assim, mover-se com elegancia entre tex 1\1 :-/ ("I'ollologicamente distantes, tematicamente diferentes. E 1111) I ipo de cd lica idealista, essencialista, anti-historica, for 111 11 11 '1 111' (11'g;lllicis(a, uma forma de destilac;ao pura dos pon- FENOMENOLOGIA, HER1\;fENEUTlCA, TEORlA DA RECEPC;AO tos ininteligiveis, preconceitos e limitac;oes da moderna teo ria liteniria como urn todo. 0 fato mais impressionante e notavel a seu respeito eela ter conseguido produzir alguns estudos criticos individuais (sobretudo os de Poulet, Richard e Starobinski) de considenivel valor. Para a critica fenomenologica, a linguagem de uma obra literaria pouco mais edo que uma "expressao" de seus signi ficados internos. Essa visao da Iinguagem, urn tanto indireta, remonta ao proprio Husserl. Nao ha realmente muito espac;o para a Iinguagem como tal na fenomenologia husser!iana. Ele fala de urna esfera de experiencia puramente particular ou interna; mas essa esfera e, na verdade, urna ficc;ao, ja que toda experiencia envolve a linguagem, e esta e inexoravel mente social. Pretender que tenho urna experiencia totalmen te particular e absurdo: eu nao seria capaz de ter uma expe riencia, em primeiro lugar, se ela nao ocorresse dentro dos termos de alguma forma de Iinguagem, na qual eu a pudesse identificar. Para Husser!, 0 que da significac;ao aminha ex periencia nao e a linguagem, mas 0 ato de perceber os feno menos particulares como universais - urn ato que deve ocor rer independentemente da propria linguagem. Em outras palavras, 0 significado e, para Husser!, algo que antecede a linguagem: esta e apenas uma atividade secundaria que da nomes a significados de que ja disponho. Como poderia eu possuir significados, sem ja possuir uma Iinguagem? Esta pergunta 0 sistema de Husser! e incapaz de responder. A caracteristica da "revoluc;ao lingtiistica" do sec. xx, de Saussure e Wittgenstein ate a teoria Iiteraria contempora nea, e 0 reconhecimento de que 0 significado nao eapenas alguma coisa "expressa" ou "refletida" na linguagem - ena realidade produzido por ela. Nao se trata de ja possuirmos significados, ou experiencia, que em seguida revestimos de palavras; so podemos ter os significados e as experiencias porque temos uma linguagem na qual eles se processam. usuario Realce usuario Realce 84 TEORIA DA LITERA TURA. UMA INTRODUC;AO 1sso sugere, alem do mais, que nossa experiencia como indi viduos e social em suas raizes, pois nao pode haver nada como uma linguagem particular, e imaginar uma linguagem e imaginar toda uma forma de vida social. A fenomenolo gia, em contrapartida, pretende manter certas experiencias internas "puras" livres das contamina<;oes sociais da lingua gem - ou alternativamente, ver a linguagem apenas como urn sistema conveniente de "fixar" significados formados independentemente dela. 0 proprio Husserl, numa frase re veladora, diz que a linguagem e "conforme it pura medida do que e visto em plena cJareza"2. Como seremos capazes de ver alguma coisa claramente, sem termos ao nosso dispor os recursos conceituais de uma linguagem? Consciente de que a linguagem constitui urn serio problema para a sua teoria, Husserl tenta resolver 0 dilema imaginando uma linguagem que seria puramente expressiva da consciencia - que estaria livre de qualquer onus de ter de indicar significados exterio res a nossas mentes, no momento de falar. A tentativa esta fadada ao fracasso: a {mica "linguagem" desse tipo, que se possa imaginar, seria puramente solitaria, manifesta<;oes in teriores que nada significariam3• Tal noc;:ao de uma linguagem solitaria, sem significa dos, imaculada pelo mundo exterior, e uma imagem pecu liarmente adequada it fenomenologia como tal. A despeito de todas as suas pretensoes de ter salvo 0 "mundo vivo", fruto da a<;ao e da experiencia humanas, das garras aridas da filosofia tradicional, a fenomenologia come<;a e termina como uma cabe<;a sem urn mundo. Ela promete dar terra fir me ao conhecimento humano, mas so pode faze-Io a urn alto custo: 0 sacrificio da pr6pria hist6ria humana. 1sso porque os significados humanos sao, num sentido profundo, indu bitavelmente hist6ricos: eles nao constituem uma intui<;ao da essencia universal daquilo que deve ser uma cebola, mas uma questao de rela<;oes praticas entre individuos sociais. 85FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPC;AO Apesar de focalizar a realidade tal como experimentada, como Lebenswelt e nao como fato inerte, sua posi<;ao para com 0 mundo segue contemplativa e divorciada da historia. A fe nomenologia procurou resolver 0 pesadelo da hist6ria mo derna retirando-se para uma esfera especulativa onde a cer teza eterna esta it espera; desta forma tornou-se, em suas reflexoes solitarias e alienadas, urn sintoma da pr6pria crise que pretendeu superar. o reconhecimento de que 0 significado e hist6rico foi 0 que levou 0 mais conhecido discipulo de Husserl, 0 filosofo alemao Martin Heidegger, a romper com seu sistema de pensamento. Husserl come<;a com 0 sujeito transcendental; Heidegger rejeita esse ponto de partida, e parte da reflexao sobre a irredutivel "condi<;ao dada" da existencia humana, ou 0 Dasein, como ele a chama. Epor essa razao que sua obra e caracterizada, com freqiiencia, como "existencialis ta", em contraposi<;ao ao "essencialismo" impiedoso de seu mentor. Passar de Husserl para Heidegger e passar do terre . no do intelecto puro para uma filosofia que medita sobre a sensa<;ao de estar vivo. Enquanto a filosofia inglesa em geral contenta-se modestamente em investigar possibilida des e aspectos formais da filosofia, a principal obra de Hei degger, 0 ser e 0 tempo (1927) ocupa-se nada menos do que da questao do proprio ser - mais particularmente, do modo de ser que e especificamente humano. Tal existencia, argumen ta Heidegger, e em primeiro lugar sempre 0 ser-no-mundo: so somos sujeitos humanos porque estamos praticamente li gados ao nosso pr6ximo e ao mundo material, e essas rela c;:oes sao constitutivas de nossa vida, e nao acidentais a ela. o mundo nao e urn objeto que existe "fora de n6s", a ser analisado racionalmente, contrastado com urn sujeito con templativo: 0 mundo nUllca e algo do qual possamos sair e nos confrontarmos com ele. Surgimos, como sujeitos, de dentro de uma realidade que nunca podemos objetivar ple usuario Realce usuario Realce 86 87 TEORJA DA LlTERATURA: UMA INTRODUC;AO namente, que abarca tanto "sujeito" quanta "objeto", que e inesgotavel em seus significados e que nos gera tanto quan to nos a geramos. 0 mundo nao e algo a ser dissolvido aLa Husser! em imagens mentais: ele possui uma existencia concreta, recaicitrante, que resiste aos nossos projetos, sen do que existimos simplesmente como parte dele. A entroni za<;ao do ego transcendental feito por Husser! e apenas a fase mais recente de urna filosofia racionalista do Ilusionis mo, pel a qual 0 "homem" marca imperiosamente 0 mundo com a sua propria imagem. Heidegger, ao contrario, afasta parcialmente 0 sujeito hurnano dessa posi<;ao imaginaria de dominio. A existencia hurnana e urn diaJogo com 0 mundo, e ouvir e urna atividade mais reverente do que falar. 0 conhe cimento humano afasta-se sempre, e move-se dentro, daquilo que Heidegger chama de "pre-entendimento". Antes de che garmos a pensar sistematicamente, ja partilhamos de urna quanti dade de pressupostos tacitos, obtidos de nossa liga<;ao pratica com 0 mundo, e a ciencia ou a teoria nunca sao mais do que abstra<;oes parciais dessaspreocupa<;oes concretas, como urn mapa e a abstra<;ao de urn terreno real. 0 entendi mento nao e, em primeiro lugar, urna "cogni<;ao" isolavel, urn ato particular que pratico, mas parte da propria estrutura da existencia hurnana. Isso porque minha vida s6 sera humana se eu me "projetar" constantemente para frente, reconhecendo e realizando possibilidades novas de ser; nunca sou puramente identico comigo mesmo, por assim dizer, mas urn ser sempre lan<;ado para frente, para alem de mim mesmo. Minha exis tencia nunca e algo que eu possa aprender como urn objeto conc1uido, mas sempre urna quesmo de possibilidades novas, algo sempre problematico. E isso equivale a dizer que 0 ser humano e constituido pel a historia, ou pelo tempo. 0 tempo nao e urn meio no qual nos movimentamos, como uma garra fa poderia se movimentar em urn rio; e a estrutura mesma da propria vida hurnana, algo de que sou feito , antes de ser algu- FENOMENOLOGIA, HERMENt.UTICA, TEORJA DA RECEPC;AO rna coisa que posso medir. 0 entendimento, portanto, antes de ser urna quesmo de entendimento de alguma coisa em parti cular, euma dimensao do Dasein, a dinamica interior de mi nha constante autotranscendencia. 0 entendimento eradical mente historico; ele esta sempre relacionado com a situa<;ao concreta em que me encontrO, e que tento transcender. Se a existencia hurnana e constituida pelo tempo, e igualmente constituida pela linguagem. A linguagem para Heidegger nao e urn simples instrumento de comunica<;ao, urn recurso secundario para expressar "ideias": e a propria dimensao na qual se move a vida hurnana, aquilo que, por excelencia, faz 0 mundo ser. So hi "mundo" onde hi lingua gem, no sentido especificamente humano. Heidegger nao ve a linguagem principalmente em termos daquilo que pode riamos dizer: ela tern uma existencia propria, da qual os se res hurnanos chegam a participar, e so assim chegam a ser humanos. A linguagem sempre pre-existe ao sujeito indivi dual, tal como 0 proprio espa<;o no qual ele se desdobra; e ela contem a "verdade", menos no sentido de ser urn instru mento para a troca de informa<;ao exata do que no senti do de ser 0 lugar onde a realidade se "revela" , se entrega anossa contempla<;ao. Nesse sentido de linguagem, entendida como urn fato quase-objetivo, anterior a qualquer individuo em particular, 0 pensamento de Heidegger estabelece urn estrei to paralelo com as teorias do estruturalismo. Portanto, 0 ponto central do pensamento de Heidegger nao e 0 individuo, mas 0 proprio Ser. 0 erro da tradi<;ao me tafisica ocidental foi considerar 0 Ser como uma especie de entidade objetiva, e separa-lo nitidamente do sujeito; Hei degger busca, ao contrario , voltar ao pensamento pre-socra tico, anterior ao dualismo entre sujeito e objeto, e ver 0 Ser como abrangendo a ainbos, de alguma forma. 0 resultado des sa visao sugestiva, particularmente em suas ultimas obras, e uma espantosa subserviencia ante 0 misterio do Ser. A usuario Realce usuario Realce 88 89 TEORIA DA LlTERATURA : UMA INTRODUC;AO racionalidade do Iluminismo, com a sua atitude impiedosa mente dominadora, instrumental, para com a Natureza, deve ser rejeitada em favor de se ouvir com humildade as estre las, os ceus e as florestas, atitude esta que, nas palavras acres de urn comentarista ingles, tern todas as marcas de "urn camp ones bestificado". 0 homem deve "dar lugar" ao Ser entregando-se total mente a ele; deve voltar-se para a terra, a mae inexaurivel, fonte primaria de todo significado. Hei degger, 0 filosofo da Floresta Negra, e mais urn expoente romantico da "sociedade organica", embora no seu caso os resultados dessa doutrina fossem muito mais sinistros do que no caso de Leavis. A exaltac;ao do campones, a degrada c;ao da razao em favor de urn "pre-entendimento" esponta neo, a celebrac;ao de uma passividade prudente - tudo isso, aliado acrenc;a de Heidegger em uma "autentica" vida-na morte, superior a vida das massas sem rosto, levou-o a apoiar abertamente Hitler em 1933. Foi urn apoio de pouca durac;ao, mas que, por tudo isto, estava implicito nos ele mentos de sua filosofia . o que tern valor nessa filosofia, entre outras coisas, e a sua insistencia em que 0 conhecimento teorico surge sempre de urn contexto de interesses sociais praticos. 0 modelo de Heidegger para urn objeto a ser conhecido e, significativa mente, urn instrumento: conhecemos 0 mundo nao atraves da contemplac;ao, mas como urn sistema de coisas inter-relacio nadas que, como urn martelo, estao "a mao"; elementos a serem usados em algurn projeto pratico. 0 conhecer esm pro fundamente relacionado com 0 fazer. Mas 0 outro aspecto dessa praticidade comum aos homens simples e urn misticis mo contemplativo: quando 0 martelo se quebra, quando dei xamos de contar com ele, sua familiaridade Ihe e arrancada e ele se nos revela em seu autentico ser. Urn martelo quebrado e mais ele mesmo do que urn martelo intacto. Heidegger parti Iha com os formalistas a convicc;ao de que a arte e uma desfa- FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPC;AO miliarizac;ao desse tipo: quando Van Gogh nos mostra urn par de sapatos de campones, ele os torn a estranhos, permitindo que se revele a sua "condic;ao de sapato", profundamente autentica. Na verdade, para 0 Heidegger da fase final so na arte essa verdade fenomenologica pode se manifestar, tal como para Leavis a literatura substitui urn modo de ser que a sociedade moderna supostamente perdeu. A arte, como a lin guagem, nao deve ser considerada como a expressao de urn sujeito individual: 0 sujeito e apenas 0 local, ou 0 meio, pelo qual a verdade do mundo se manifesta, e e essa verdade que 0 lei tor de urn poema deve ouvir atentamente. Para Heidegger, a interpretac;ao literaria nao esta fundamentada na atividade humana; em primeiro lugar ela nao e algurna coisa que Jaze mos, mas algo que devemos deixar que acontec;a. Devemos nos abrir passivamente ao texto, submetendo-nos ao seu ser misteriosamente inesgomvel, deixando-nos interrogar por ele. N ossa postura perante a arte, em outras palavras, deve ter algo do servilismo defendido por Heidegger para 0 povo alemao frente ao Fuhrer. A tmica alternativa para 0 imperialismo da razao na sociedade industrial burguesa, ao que parece, e uma auto-abnegac;ao escravista. Dissemos que para Heidegger 0 entendimento e radi calmente historico, mas tal observac;ao exige algumas res salvas . 0 titulo de sua obra principal e 0 ser e 0 tempo , e nao 0 ser e a historia, e M uma diferenc;a significativa entre os do is conceitos. 0 "tempo" e, num certo sentido, uma no C;ao mais abstrata do que a historia: ele sugere 0 passar das estac;oes, ou a maneira pela qual posso experimentar a forma de minha vida pessoal, e nao as lutas das nac;oes, a criac;ao e 0 exterminio de populac;oes, ou a criac;ao e a des truic;ao de Estados. 0 "tempo", para Heidegger, continua a ser uma categoria essencialmente metafisica, de uma ma neira que a "historia", para outros pensadores, nao e. Cons titui uma derivac;ao daquilo que realmente fazemos, e e isso, usuario Realce usuario Realce usuario Realce 90 91 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODUC;AO no meu entender, que "historia" significa. Esse tipo de his toria concreta nao interessa a Heldegger: na verdade, ele faz uma distinyao entre Histoire, que significa aproximadamen te "0 que acontece", e Geschichte, que e "0 que acontece" experimentado como autenticamente significativo. Minha propria historia pessoal so e autenticamente significativa se aceito a responsabilidade pel a minha propria existencia, assumo minhas possibilidades futuras e vivo constantemen te consciente de minha morte futura. Isso pode ser verdade, ou nao; mas nao parece ter relevancia imediata para a maneira pel a qual vivo "historicamente",no senti do de estar ligado a determinados individuos, a relayoes sociais concre tas e a instituiyoes reais. Tudo isso, visto das alturas oIimpi cas da prosa vigorosamente esoterica de Heidegger, parece realmente insignificante. Para ele, a "verdadeira" historia e uma historia voltada para 0 interior, "autentica" ou "existen cial" - 0 controle do medo e do nada, uma atitude resoluta para com a morte, uma "reuniao" de minhas foryas - que funciona na realidade como urn substituto da historia, em seus sentidos mais pniticos e comuns. Como disse 0 critico hUngaro Georg Lukacs, a famosa "historicidade" de Hei degger de fato nao se distingue de a historicidade. Por fim, ao historicizar as verdades etemas, estaticas, de Husser! e da tradiyao metafisica ocidental, Heidegger nao consegue derruba-Ias. Em lugar disso, ele estabelece urn tipo diferente de metafisica - 0 proprio Dasein. Sua obra representa tanto uma fuga da historia quanta urn encontro com ela; 0 mesmo se pode dizer do fascismo, de quem se enamorou. 0 fascismo e uma tentativa desesperada, urn re curso derradeiro por parte do capitalismo monopolista para eliminar as contradiyoes que se tomaram intoleraveis; e ele o faz em parte oferecendo toda uma alternativa historica, uma narrativa de sangue, solo de raya "autentica", a sublimayao da morte e da abnegayao, 0 Reich que durani mil anos. Nao FENOMENOLOGIA, HERMENEUTfCA, TEORlA DA RECEPC;A-O estamos dizendo que a filosofia de Heidegger seja, no todo, apenas uma justificativa 10gica do fascismo, mas sim que ela oferece uma soluyao imaginaria para a crise da historia moderna, tal como 0 fascismo oferecia outra, e que ambos tern alguns aspectos em comum. Heidegger descreve seu empreendimento filosOfico co mo uma "hermeneutica do Ser": e a palavra "hermeneutic a" significa a ciencia ou a arte da interpretayao. 0 modelo filo sOfico de Heidegger e geralmente considerado uma "feno menologia hermeneutica", para distingui-Ia da "fenomeno logia transcendental" de Husserl e de seus seguidores. Ele recebe esse nome porque se baseia em questoes de interpre tayao historica e nao na consciencia transcendental4 • A pala vra "hermeneutica" limitava-se originalmente ainterpreta yao das escrituras sagradas, mas no sec. XIX ela teve seu ambito ampliado, passando a compreender 0 problema da interpretayao textual como urn todo. Os dois "hermeneutas" mais famosos que antecederam a Heidegger foram os pen sadores alemaes Schleiermacher e Dilthey; seu mais famoso sucessor e0 modemo filosofo alemao Hans-Georg Gadamer. o estudo central de Gadamer, Verdade e metoda (1960), co loca-nos na arena de problemas que nunca deixaram de ator mentar a modema teoria literaria. Qual 0 sentido de urn texto literano? Que relevancia tern para esse sentido a inten yao do autor? Poderemos compreender obras que nos sao cultural e historicamente estranhas? E possivel 0 entendi mento "objetivo", ou todo entendimento erelativo it nossa propria situayao historica? Veremosque ha muito mais co i sas em jogo nessas questoes do que apenas a "interpretayao liteniria" . Para Husser!, 0 significado era urn "objeto intencio nal", entendido este como algo nao redutivel aos atos psico logicos de quem fala ou ouve, nem como algo completa mente independente desses processos mentais. 0 significa usuario Realce usuario Realce 92 93 TEORIA DA LITERATURA : UMA INTRODU(:A-O do nao era objetivo no sentido em que uma cadeira 0 e; de outra parte, tambem nao era simplesmente subjetivo. Era uma especie de objeto "ideal", no sentido de que podia ser expresso de varias maneiras, embora continuasse a ter 0 mesmo significado. Segundo tal interpretayao, 0 significa do ou sentido de uma obra literaria e fixado de uma vez por todas: ele e identico a qualquer "objeto mental" que 0 autor teve em mente, ou "pretendeu" ter no momento de escrever. Com efeito, essa e a posiyao adotada pelo hermeneuta americano E. D. Hirsch Jr., cuja obra principal, Validity in Intelpretation (A validade da interpretayao), de 1967, tem uma divida consideravel para com a fenomenologia husser liana. Para Hirsch, 0 fato de 0 significado de uma obra ser identico ao que 0 autor entendeu por ela no momento de es crever, nao implica uma unica interpretayao do texto. Pode haver varias interpretayoes diferentes e validas, mas todas elas devem se situar dentro do "sistema de expectativas e probabilidades tipicas" que 0 sentido do autor permitir. Hirsch tambem nao nega que uma obra literaria possa "significar" diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes epo cas. Mas isso, diz ele, e antes uma questao da "significayao" da obra do que do seu "sentido". 0 fato de que eu possa apresentar 0 Macbeth de sone a torna-lo relevante para a guerra nuclear nao altera 0 fato de que isto nao seja 0 que a peya "quer dizer", do ponto de vista de Shakespeare. As sig nificayoes variam ao longo da historia, ao passo que os sen tidos permanecem constantes; os autores dao sentido as suas obras, ao passo que os leitores lhes atribuem significayoes. Ao identificar 0 sentido de um texto com aquilo que 0 autor entendeu por ele, Hirsch nao presume que tenhamos sempre aces so as intenyoes do autor. Ele pode estar morto, ou pode ter esquecido 0 que queria dizer. Segue-se que por vezes podemos chegar a interpretayao "correta" de um tex to, mas nunca estaremos em condiyoes de sabe-lo. Isso nao FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORlA DA RECEP(:AO preocupa Hirsch, desde que seja mantida a sua posiyao basi ca - a de que 0 sentido literario e absoluto e imutavel, resis tente a mudanya historica. Ele pode sus ten tar essa posiyao basica porque sua teoria do senti do, como a de Husserl, e pre-lingiiistica. 0 sentido e algo que 0 autor quer; e um ato mental, espiritual, que e entao "fixado" para todo 0 sempre atraves de uma serie particular de sinais materiais. Trata-se de uma questao de consciencia e nao de palavras. De que consiste exatamente essa consciencia sem palavras, 0 autor nao deixa claro. Talvez 0 leitor possa fazer aqui uma expe riencia, erguendo os olhos do livro por um momenta e "que rendo dizer" alguma coisa, silenciosamente, em sua cabeya. o que voce "quis dizer"? E isto foi diferente das palavras com as quais voce formulou a resposta a esta minha pergun ta? Acreditar que 0 significado consiste de palavras acresci das de um ato de desejar ou intencionar, destituido de pala vras, e como acreditar que todas as vezes que abro a porta "de propos ito", pratico um ato silencioso de desejar, en quanta a abro. Ha problemas obvios na tentativa de determinar 0 que esta se passando na cabeya de alguem, para depois pretender que e esse 0 significado de um escrito. Muitas coisas podem estar se passando na cabeya do autor no momenta em que ele escreve. Hirsch aceita isso, mas nao acha que essas coi sas devem ser confundidas com 0 "significado verbal". Para sustentar essa teoria, porem, ele e obrigado a reduzir, de forma bastante drastica, tudo 0 que 0 autor poderia ter dese jado dizer aquilo que chama de "tipos" de significado, cate gorias de significado que pod em ser manipuladas, nas quais o texto pode ser enquadrado, simplificado e separado pelo critico. Nosso interesse por um texto so pode, dessa forma, ser 0 interesse por essas amp las tipologias de significado, das quais foram cuidadosamente banidas todas as particula ridades. 0 critico deve buscar reconstruir 0 que Hirsch cha 94 TEORIA DA LITERA TURA: UMA INTRODU(:AO rna de "genero intrinseco" de urn texto, entendendo por isso, de mane ira aproximada, as convenyoes gerais e as maneiras de ver que poderiam ter govemado os significados pretendi dos pelo autor no momento de escrever. Nao teremos muito mais do que isso anossa disposiyao: seria sem duvida im possivel recuperarexatamente 0 que Shakespeare quis dizer com "cream-fac'd loon", por isso temos de nos contentar com 0 que ele poderia ter pensado, de urn modo geral. Todos os detalhes particulares de uma obra seriam govemados por essas generalidades. Se isso faz justiya ao detalhe, acom plexidade e anatureza conflitiva das obras literarias, e urn outro problema. Para atribuir urn significado permanente a uma obra, salvando-a dos danos da historia, a critica tern de policiar seus detalhes potencialmente ancirquicos, en qua drando-os de volta na composiyao do significado "tipico". Sua posiyao para com 0 texto e autoritaria e juridica: qual quer coisa que nao possa ser enquadrada no "significado provavelmente pretendido pelo autor" e bruscamente rejei tada, e tudo que permanece dentro desse significado fica ri gorosamente subordinado a essa unica intenyao govemante. o significado inalteravel das Sagradas Escrituras foi preser vado; 0 que fazemos com ele, como 0 usamos, e apenas uma questao secunmria de "significayao". o objetivo de todo esse policiamento e a proteyao da propriedade privada. Para Hirsch, 0 significado do autor e 0 que ele pretendeu que fosse, e nao deve ser roubado ou in vadido pelo leitor. 0 significado do texto nao deve ser so cializado, nao deve se transformar em propriedade publica de seus varios leitores: pertence exclusivamente ao autor, que deve ter direitos exclusivos sobre a sua utilizayao, mes mo depois de morto. Curiosamente, Hirsch admite que seu ponto de vista e bastante arbitrario. Nao ha nada na nature za do proprio texto que leve 0 leitor a interpreta-Io de acor do com 0 significado pretendido pelo autor: mas acontece 9SFENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEP(:AO que se nao respeitarmos tal significado, nao teremos qual quer "norma" de interpretayao, e correremos 0 risco de abrir as comportas da anarquia critica. Como a maioria dos regimes autoritarios, a teoria hirschiana e incapaz de justi ficar racionalmente os seus proprios val ores dominantes. Em principio nao ha mais razao para se preferir 0 significa do pretendido pelo autor do que ha para se preferir a leitura sugerida pelo critico de cabelos mais curtos ou de pes maiores. A defesa que Hirsch faz do significado objetivado pelo autor assemelha-se as defesas de escrituras de terras que comeyam acompanhando 0 processo de transferencia legal no decorrer de seculos, e acabam admitindo que se es se processo fosse suficientemente recuado no tempo, aca baria por demonstrar que os titulos de posse foram conse guidos atraves de lutas. Mesmo que os criticos tivessem acesso a intenyao do autor, poderia isso dar ao texto literario urn significado de terminado? E se pedissemos uma explicayao acerca do sig nificado das intenyoes do autor, e em seguida uma explica yao acerca dessas intenyoes, e assim por diante? A seguran ya so e possivel, no caso, se os significados pretendidos pelo autor forem aquilo que Hirsch acha que sao: puros e solidos fatos "identicos a si mesmos", que podem ser usados de ma neira irretorquivel para se interpretar 0 livro. Mas essa e uma maneira extremamente dubia de considerar qualquer tipo de significado. Os significados nao sao tao estaveis e claros quanta Hirsch acredita, mesmo os professados pelo autor _ e a razao pela qual isso nao acontece, como ele nao quer reconhecer, que sao produtos da linguagem, que sem pre possui algo de escorregadio. Edificil saber 0 que teria sido uma intenyao "pura" , ou exprimir urn significado "puro"; so por considerar 0 significado como algo a parte da linguagem e que Hirsch pode acreditar nessas quimeras. A intenyao de urn autor e, em si mesma, urn "texto" complexo, usuario Realce 96 TEORIA DA LITERA TURA.· UMA INTRODUC;AO que pode ser debatido, traduzido e interpretado de varias maneiras, como qualquer outro. A distin<;:ao que Hirsch faz entre "significado" e "sig nifica<;ao" e valida, num sentido obvio. E improvavel que Shakespeare acreditasse estar escrevendo sobre a guerra nuclear. Quando Gertrudes descreve Hamlet como "gor do", ela provavelmente nao quer dizer que ele tern excesso de peso, como os leitores modernos poderiam ser levados a pensar. Mas 0 carMer de absoluto na distin<;:ao de Hirsch certamente e insustentavel. Simplesmente nao e possivel estabelecer uma distin<;:ao tao completa entre "0 que 0 texto significa" e 0 que "ele significa para mim". Minha explica <;:ao daquilo que Macbeth poderia ter significado nas condi <;oes culturais de sua epoca continua a ser a minha explica <;:ao, inevitavelmente influenciada por minha propria lin guagem e por meus pontos de referencia cultural. Jamais poderei sair de mim mesmo e de tudo isso, e chegar a co nhecer, de alguma forma objetiva absoluta, 0 que Shakes peare tinha realmente em mente. Qualquer ideia semelhan te de objetividade absoluta e uma ilusao. Hirsch nao busca essa certeza absoluta, em grande parte porque sa be que nao a po de alcanvar: tern de se contentar em reconstituir a "provavel" inten<;:ao do autor. Mas ele nao leva em devida conta 0 fato de que essa reconstitui<;:ao so pode ser feita dentro de suas estruturas de significado e de percep<;:ao his toricamente condicionadas. Na verdade, esse "historicis mo" e0 pr6prio alvo de sua polemica. Como Husser!, por tanto, ele oferece uma forma de conhecimento que e atem poral e sublimemente desinteressada. 0 fato de Sua pr6pria obra estar longe de ser desinteressada, 0 fato de ele acredi tar estar protegendo 0 significado imutavel das obras lite nirias contra certas ideologias contemporaneas, e 0 unico fator que nos poderia levar a ver com desconfian<;:a essas pretensoes. FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEPC;AO 97 o alvo visado firmemente por Hirsch e a hermeneutic a de Heidegger, Gadamer e outros. Para ele, a insistencia des ses pensadores em que 0 significado e sempre hist6rico abre as portas ao relativismo completo, segundo 0 qual uma obra literaria pode significar uma coisa na segunda-feira e outra na sexta. E interessante especular 0 porque de Hirsch ter considerado tao inaceitavel essa possibilidade; mas para conter 0 impeto relativista, ele volta a Husser! e argumenta que 0 significado e inalteravel porque e sempre 0 ato inten cional de uma pessoa, num determinado momenta do tempo. S6 existe urn aspecto, bastante 6bvio, no qual isso e falso. Se digo ao leitor, em certas circunstancias: "Feche a porta", e depois que ele a fechou, acrescento com impacien cia: "Eu quis dizer abra a janela, e claro!", 0 lei tor teria toda a razao em responder que as palavras "Feche a porta" signi ficam 0 que significam, qualquer que tenha sido 0 sentido que lhes pretendi atribuir. Isso nao quer dizer que nao se pudessem imaginar contextos nos quais "Feche a porta" sig nificasse alguma coisa totalmente diferente do seu sentido habitual. Tal frase poderia ser uma mane ira metaf6rica de dizer "Wio negocie mais". 0 sentido da frase, como qual quer outro, nao esta fixado de modo imutavel: com bastante engenhosidade, poderiamos provavelmente inventar contex tos nos quais ela poderia significar mil coisas diferentes. Mas se um vendaval estivesse varrendo a sal a e eu estivesse vestido apenas com urn cal<;:ao de banho, 0 significado das palavras seria provavelmente claro, dentro da situa<;:ao; e a menos que eu tivesse cometido um lapso verbal ou tido uma inexplicavel falta de aten<;:ao, seria inutil pretender que eu "realmente" tivesse tido a inten<;ao de dizer "Abra a janela". Esse e um exemplo claro no qual 0 significado de minhas palavras nao e determinado pelas minhas inten<;:oes particu lares - uma situa<;:ao na qual nao posso pretender que mi nhas palavras signifiquem qualquer coisa, como 0 Humpty 98 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODUC;:XO Dumpty, de Alice, erroneamenteachava possive!. 0 signifi cado da linguagem e uma questao social: ha urn sentido real no qual a linguagem pertence aminha sociedade antes de pertencer a mim. Foi isso que Heidegger compreendeu, e que Hans-Georg Gadamer desenvolve em Verdade e metoda. Para ele, 0 sig nificado de uma obra liteniria nao se esgota nunca pelas in tenc;oes do seu autor; quando a obra passa de urn contexto historico para outro, novos significados podem ser dela extraidos, e e provavel que eles nunca tenham sido imagina dos pelo seu autor ou pelo publico contemporaneo dele. Hirsch de certa forma admitia isso, mas relegava aesfera da "significac;ao"; para Gadamer, a instabilidade e parte do carater da propria obra. Toda interpretac;ao e situacional, modelada e limitada pelos criterios historicamente relativos de uma determinada cultura; nao ha possibilidade de se co nhecer 0 texto literario "como ele e". Eesse ceticismo que Hirsch acha desanimador na hermeneutica heideggeriana, e contra 0 qual empreende sua ac;ao de retaguarda. Para Gadamer, toda a interpretac;ao de uma obra do pas sado consiste num dialogo entre 0 passado e 0 presente. Ante essa obra, ouvimos com prudente passividade heideg geriana a sua voz nao familiar, permitindo que ela questione nossas preocupaC;oes atuais; mas aquilo que a obra nos "diz" dependera, por sua vez, do tipo de perguntas que somos ca pazes de the fazer, dependera de nosso ponto de vista na his toria. Dependera tam bern de nossa capacidade de reconsti tuir a "pergunta" para a qual a obra e uma "resposta", pois a obra e tambem urn dialogo com a sua propria historia. Todo entendimento e produtivo: e sempre urn "entendimento di ferente", a realizac;ao de urn novo potencial do texto, uma visao diferente dele. 0 presente so e compreensivel em fun c;ao do passado, com 0 qual forma uma viva continuidade; e o passado e sempre apreendido de nosso ponto de vista par- FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA , TEORIA DA RECEPC;:XO 99 cial dentro do presente. 0 entendimento ocorre quando nos so "horizonte" de significados e suposic;oes historicas se "funde" com 0 "horizonte" dentro do qual a propria obra esta colocada. Nesse momento, entramos no mundo estra nho do artificio, ao mesmo tempo em que 0 situamos em nosso proprio mundo, chegando a urn entendimento mais completo de nos mesmos. Em lugar de "deixar 0 lar", obser va Gadamer, nos "chegamos ao lar" . Edificil ver porque Hirsch considera tudo isso tao de sanimador. Ao contnirio, tudo parece muito faci!. Gadamer pode igualmente entregar-se a si e aliteratura, aos ventos da historia, porque essas folhas espalhadas por fim acabarao sempre chegando em casa - e chegarao porque sob toda his toria, abrangendo silenciosamente 0 passado, 0 presente e 0 futuro, flui uma essencia unificadora conhecida como "tra diC;ao". Como T. S. Eliot achava, todos os textos "validos" pertencem a essa tradic;ao, que fala tanto atraves da obra do passado que contemplo como fala por meu intermedio no ato da contemplac;ao "valida". Passado e presente, sujeito e objeto, 0 estranho e 0 intimo, estao assim seguramente uni dos por urn Ser que os abrange a ambos. Gadamer nao se preocupa com a possibilidade de que nossos preconceitos culturais tacitos, ou "pre-entendimentos", venham a preju dicar a recepC;ao da obra liteniria do passado, ja que esses pre-entendimentos nos vern da propria tradic;ao, da qual a obra literaria e parte. 0 preconceito e urn fator positivo, e nao negativo: foi 0 iluminismo, que sonhava com urn conhe cimento totalmente desinteressado, que levou ao modemo "preconceito contra 0 preconceito". Os preconceitos criati vos, que se opoem aos preconceitos efemeros e deformado res, sao os que surgem da tradiC;ao enos colocam em contato com ela. A autoridade da propria tradic;ao, ligada anossa auto-reflexao diligente, determinani quais de nossos pre conceitos sao legitimos, e quais os que nao 0 sao - tal como 102 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODUC;:AO com essa enfase tradicionalista, temos uma outra: a suposi ryao de que as obras de literatura formam uma unidade "or ganica". 0 metodo hermeneutico procura encaixar cad a ele mento de Um texto num todo completo, num processo co mumente conhecido como "circulo hermeneutico": as ca racteristicas individuais sao ininteligiveis em termos da totalidade do contexto, e a totalidade do contexto torna-se inteligivel por meio das caracteristicas individuais. Em qual a hermeneutica nao considera a possibilidade de que as obras litenirias sejam difusas, incompletas e intemamente contradit6rias, embora muitas razoes nos levem a Supor 7 iss0 Vale notar que E. D. Hirsch, com toda a sua antipatia• pel os conceitos organicistas romanticos, tambem partilha do preconceito de que os textos litenirios sao todos integra dos, e integrados logicamente: a unidade da obra esta na intenryao generalizada do autor. Nao ha, de fato, razao pel a qual 0 autor nao possa ter varias intenryoes mutuamente con tradit6rias, ou um motivo pelo qual sua intenryao nao possa ter sido um tanto autocontradit6ria, mas Hirsch nao examina essas possibilidades. A mais recente manifestaryao da hermeneutica na Ale manha e conhecida como a "estetica da recepryao", ou "teo ria da recepryao"; ao contrario de Gadamer, ela nao se con centra exclusivamente em obras do passado. A teoria da re cepryao examina 0 papel do leitor na literatura e, como tal, e algo bastante novo. De forma muito sumaria, poderiamos periodizar a hist6ria da moderna teoria liteniria em tres fa ses: uma preocuparyao com 0 autor (romantismo e sec. XIX); uma preocuparyao exc1usiva com 0 texto (Nova Criti ca) e uma acentuada transferencia da aten((ao para 0 leitor, nos ultimos anos. 0 lei tor sempre foi 0 menos privilegiado desse trio - estranhamente, ja que sem ele nao haveria textos literarios. Estes textos nao existem nas prateleiras das estan tes: sao processos de significa((ao que s6 se materializam na FENOMENOLOGIA, HERMENEUTlCA, TEORIA DA RECEPC;:AO 103 pratica da leitura. Para que a literatura aconte((a, 0 lei tor e tao vital quanta 0 autor. o que esta em pauta, no ato da leitura? Tomemos, quase que literal mente ao acaso, as duas primeiras frases de um romance: " - 0 que voce acha do novo casal? Os Hane mas, Piet e Angela, se despiam." (John Updike, Couples.) o que achamos dis so? Talvez estranhemos, por urn mo mento, a evidente falta de ligaryao entre as duas frases, ate percebermos que se trata de uma conven((ao literaria pela qual podemos atribuir uma fala direta a uma personagem, mesmo que isso nao esteja dito explicitamente no texto. Percebemos que uma personagem, provavelmente Piet ou Angela Hanema, diz a frase inicial. Mas por que supomos isso? A frase precedida de travessao pode nao ter sido pro nunciada, pode ser um pensamento, ou uma pergunta que alguma outra pessoa tenha feito, ou uma especie de epigra fe na abertura do romance. Talvez seja dirigida a Piet e An gela Hanema por algurna outra pessoa, ou por uma sub ita voz vinda do ceu. Uma das razoes pelas quais esta ultima solu((ao parece improvavel e a de que a questao e um tanto coloquial para uma voz vinda do ceu; poderiamos saber, tamhem, que Updike e em geral um autor realista, que nao adota habitualmente esses recursos. Mas os textos de urn escritor nao formam necessariamente um todo coerente, e talvez seja imprudente confiar muito nessa suposi((ao. E improvavel, por motivos realistas, que a pergunta seja feita por um cora de pessoas falando em unissono, e pouco. improvavel que seja feita por alguma outra pessoa que nao Piet ou Angela Hanema, ja que ficamos sabendo no mo mento seguinte que eles estao se despindo, e podemos su por que talvez sejam casados, e que os casais, pelo menos em nosso suburbio de Birmingham, nao costurnam despir se nafrente de terceiros, qualquer que seja 0 seu comporta mento individual. usuario Realce 104 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODU9A-O Provavelmente ja fizemos toda uma serie de dedu90es ao lermos essas frases . Podemos deduzir, por exemplo, que o "casal" mencionado seja urn homem e uma mulher, embo ra nada, ate agora, nos mostre que nao se trata de duas mu lheres ou de dois filhotes de tigres. Podemos Supor que quem faz a pergunta nao e capaz de ler a mente, pois nesse caso nao haveria necessidade de perguntar. Podemos suspeitar que 0 autor da pergunta preza os jufzos do perguntado, em bora ainda nao exista urn contexto suficiente amplo para determinarmos se a pergunta e tensa ou agressiva. A expres sao "os Hanemas", ao que supomos, provavelmente e urn aposto gramatical it expressao "Piet e Angela", para indicar que esse e 0 seu sobrenome, 0 que constitui born indicio de que sejam casados. Mas nao podemos afastar a possibilida de de que haja urn grupo de pessoas chamadas Hanemas, alem de Piet e Angela, e talvez toda uma tribo com esse nome, e que todos estao se despindo juntos num enorme re cinto. 0 fato de Piet e Angela terem 0 mesmo sobrenome nao confirma a suposi9ao de serem marido e mulher: podem ser pessoas particularmente liberadas ou incestuosas: irmao e irma, pai e filha ou mae e filho. Fizemos, porem, a suposi 9ao de que se estao despindo frente a frente, embora nada nos tenha informado ainda que a pergunta nao foi gritada de urn quarto para outro, ou de uma cabana de praia para outra. Talvez Piet e Angela sejam crian9as pequenas, embora a sofistica9ao relativa da pergunta tome improvavel tal hip6 tese. A maioria dos leitores achara, ja agora, que Piet e Angela Hanema sao urn casal, e que estao se despindo em seu quarto, depois de algum acontecimento, provavelmente uma festa, na qual urn novo casal esteve presente, mas nada disso e realmente dito. o fato de serem essas as duas primeiras frases do ro mance significa, e claro, que muitas dessas perguntas serao respondidas it medida que formos lendo. Mas 0 processo de FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORIA DA RECEP9AO 105 especulac;;ao e deduc;;ao a que somos levados pel a nossa igno rancia e, no caso, simplesmente urn exemplo mais intenso e dramatico daquilo que fazemos sempre que lemos. Com a continuac;;ao da leitura, encontraremos muitos outros proble mas, que s6 podem ser resolvidos com novas suposic;;oes. Ficaremos sabendo dos/atos que essas duas frases nao reve lam, mas ainda assim teremos de interpreta-Ios de maneira questionavel. A leitura do comec;;o do romance de Updike nos envolve num volume surpreendente de trabalho, em grande parte inconsciente: embora raramente percebamos, estamos sempre formulando hip6teses construtivas sobre 0 significado do texto. 0 lei tor estabelece conexoes impJici tas, preenche lacunas, faz deduc;;oes e comprova suposic;;oes - e tudo isso significa 0 uso de urn conhecimento tacito do mundo em geral e das convenc;;oes literarias em particular. 0 texto, em si, realmente nao passa de uma serie de "dicas" para 0 lei tor, convites para que ele de sentido a urn trecho de linguagem. Na terminologia da teoria da recepC;;ao, 0 lei tor "concretiza" a obra literaria, que em si mesma nao passa de uma cadeia de marcas negras organizadas numa pagina. Sem essa constante participa9ao ativa do leitor, nao haveria obra literaria. Para a teoria da recep9ao, qualquer obra, por mais s6lida que parec;;a, compoe-se na realidade de "hiatos", tal como 0 sao os quadros para a fisica modema - 0 hiato, por exemplo, entre a primeira e a segunda frases de Couples, que 0 leitor deve preencher com uma conexao inexistente. A obra cheia de "indeterminac;;oes", elementos que, para terem efeito, dependem da interpretac;;ao do leitor, e que podem ser interpretados de varias maneiras, provavelmente conflitan tes entre si. 0 paradoxo disso e que quanto mais informac;;ao a obra transrnitir, mais indeterminada ela se tomara. As "secretas bruxas negras da meia-noite", de Shakespeare, num certo sentido limitam 0 tipo de bruxas de que trata, tor nam-nas mais determinadas; contudo, por serem esses tres 106 TEORIA DA LITERATURA: UMA INTRODU9AO qualificativos muito sugestivos, eles provocam reaC;oes dife rentes em diferentes leitores; 0 texto em si tambem se tor nou menos determinado, ao se tentar torna-Io mais preciso. Para a teoria da recepC;ao, e sempre dinamico, um movi mento complexo que se desdobra no tempo. A obra literaria existe apenas como algo que 0 teorico polones Roman In garden chama de uma serie de schemata, ou direc;oes gerais, que 0 leitor deve tornar realidade. Para isso, ele abordani a obra com certos "pre-entendimentos", um vago contexto de crenc;as e expectativas dentro dos quais as varias caracteris ticas da obra serao avaliadas. Com a continuac;ao do proces so de leitura, porem, essas expectativas serao modificadas pelo que ficarmos sabendo, e 0 circulo hermeneutico - pas sando da parte ao todo e retomando aparte - comeC;ara a se solucionar. Esforc;ando-se por estabelecer um senso coeren te a partir do texto, 0 leitor selecionara e organizara seus ele mentos em todos coerentes, exc1uindo alguns e destacando outros, "concretizando" certos itens, de certas maneiras; ten tara manter juntas as diferentes perspectivas da obra, ou pas sara de uma perspectiva a outra, para criar uma "ilusao" in tegrada. Aquilo que ficamos sabendo na pagina I desapare cera e sera resumido na memoria, talvez para ser condicio nado de maneira radical pelas informac;oes que receberemos mais tarde. A leitura nao e urn movimento linear progressi YO , uma questao meramente cumulativa: nossas especula c;oes iniciais geram urn quadro de referencias para a inter pretac;ao do que vern a seguir, mas 0 que vern a seguir pode transformar retrospectivamente 0 nosso entendimento origi nal, ressaltando certos aspectos e colocando outros em se gundo plano. A medida que prosseguimos a leitura, deixa mos de lado suposic;oes, revemos crenc;as, fazemos dedu c;oes e previsoes cada vez mais complexas; cada frase abre urn horizonte que e confirmado, questionado ou destruido pela frase seguinte. Lemos simultaneamente para tras e para FENOMENOLOGIA. HERMENEUTlCA. TEORIA DA RECEP9AO 107 frente, prevendo e recordando, talvez conscientes de outras concretizac;oes possiveis do texto que a nossa leitura negou. Alem do mais, toda essa complicada atividade e realizada em muitos niveis ao mesmo tempo, pois 0 texto tern "segun dos e primeiros pIanos", diferentes pontos de vista narrati vos, camadas alternativas de significado, entre as quais nos movemos constantemente. Wolfgang Iser, da chamada Escola de Constancia da estetica da recepc;ao, cujas teorias ora examinamos em gran de parte, fala, em 0 ata da leitura (1978), das "estrategias" adotadas pelos textos e dos "repertorios" de temas e alusoes familiares que eles encerram. Para 1er, precisamos estar fa miliarizados com as tecnicas e convenc;oes literarias adota das por uma determinada obra; devemos ter certa com preensao de seus "codigos", entendendo-se por isso as re gras que govemam sistemativamente as maneiras pelas quais ela expressa seus significados. Lembramos 0 aviso do metro de Londres de que falamos na introduc;ao: "Cachorros de vern ser carregados na escada rolante". Para compreender esse aviso, tenho de fazer muito mais do que simplesmente ler as palavras uma apos a outra. Preciso saber, por exemplo, que essas palavras pertencem ao que poderia ser chamado de "codigo de referencia" - que 0 aviso nao e apenas algo decorativo para distrair os passageiros, mas refere-se ao comportamento de caes e passageiros reais, numa escada rolante real. Devo mobilizar meu conhecimento social geral para reconhecer que 0 avisofoi colocado ali pelas autorida des, que essas autoridades tern 0 poder de punir os trans gressores, que eu, fazendo parte do publico, estou implicita mente sendo avisado, e nada disso e evidente nas palavras do catiaz, em si . Ou seja, tenho de recorrer a celios codigos e contextos sociais para compreende-Io adequadamente. Mas tambem tenho de colocar esse conhecimento em corre lac;ao com certos codigos e convenc;oes de leitura - conven usuario Realce 108 TEORIA DA L/TERATURA.· UMA INTRODUC;AO c,:oes que me dizem que "a escada rolante" significa esta es cada rolante e nao alguma outra no Paraguai, que "devem ser carregados" significa "ser carregados agora", e assim por diante. Devo reconhecer que 0 "genero" do aviso e de tal ordem que se torn a altamente improvavel que a ambigiiida de de que falei na Introduc,:ao tenha sido realmente "inten cional". Nao e facil distinguir entre os codigos "social" e "Iiterario", no caso: a concretizac,:ao da "escada rolante" co mo "esta escada", a adoc,:ao de uma convenc,:ao de leitura que elimina a ambigiiidade, depende em si de toda uma rede de conhecimentos sociais. Portanto, compreendo 0 aviso interpretando-o em ter mos de certos codigos que parecem adequados; mas para Iser nao e isso 0 que acontece ao se ler Iiteratura. Se houves se uma perfeita adequac,:ao entre os c6digos que governavam as obras Iiterarias e os codigos que aplicamos a sua interpre tac,:ao, toda literatura seria tao pouco inspiradora quando 0 aviso no metro londrino. Para Iser, a obra literaria mais efi ciente e aquela que forc,:a 0 leitor a uma nova consciencia critica de seus c6digos e expectativas habituais. A obra interroga e transforma as crenc,:as implicitas com as quais a abordamos, "desconfirma" nossos habitos rotineiros de per cepc,:ao e com isso nos forc,:a a reconhece-los, pela primeira vez, como real mente sao. Em lugar de simplesmente refor c,:ar as percepc,:oes que temos, a obra literaria, quando vaIio sa, violenta ou transgride esses modos normativos de ver e com isso nos ensina novos codigos de entendimento. Existe aqui urn paralelo com os formalistas russos: no ato da leitu ra, nossas suposic,:oes convencionais sao "desfamiliariza das", objetificadas a ponto de poderrnos critica-las, e com isso, reve-Ias. Se modificamos 0 texto com nossas estrate gias de leitura, ele simultaneamente nos modi fica: como os objetos de urn experimento cientifico, ele pode dar uma "resposta" imprevisivel as nossas "perguntas". Toda a fun- FENOMENOLOGIA, HERMENEUTICA, TEORlA DA RECEPC;AO 109 c,:ao da leitura e, para urn critico como Iser, levar-nos a uma autoconsciencia mais profunda, catalisar uma visao mais critic a de nossas proprias identidades. Ecomo se aquilo que lemos, ao avanc,:armos por urn livro, seja nos mesmos. A teoria da recepc,:ao de Iser baseia-se, de fato, em uma ideologia liberal humanista: na convicc,:ao de que na leitura devemos ser flexiveis e ter a mente aberta, preparados para questionar nossas crenc,:as e deixar que sejam modificadas. AWls dessa posic,:ao esta a influencia da hermeneutica gada meriana, com sua fe naquele autoconhecimento enriqueci do, que nasce de urn encontro com 0 nao-familiar. Mas 0 humanismo liberal de Iser, como a maioria dessas doutrinas, e menos liberal do que parece a primeira vista. Ele diz que urn leitor com fortes compromissos ideologicos provavel mente sera urn leitor inadequado, ja que tern menos probabi lidade de estar aberto aos poderes transformativos das obras literarias. Isso deixa implicito que para sofrermos uma transformac,:ao as maos do texto, devemos em primeiro lugar ter convicc,:oes muito provisorias. 0 linico leitor adequado ja teria de ser urn liberal: 0 ato de ler produz a especie de sujei to humano que esse ato tambem pressupoe. Isso e paradoxa I ainda sob urn outro aspecto: se nossas convicc,:oes forem as sim tao superficiais, seu questionamento e subversao pelo texto nao serao realmente muito significativos. Em outras palavras, nada de muito importante tera acontecido. 0 leitor nao tera sido radicalmente modificado, mas simplesmente devolvido a si mesmo, como urn sujeito mais completamen te liberal. Tudo, em relac,:ao ao sujeito lei tor, e passivel de questionamento no ato da leitura, exceto que tipo de sujeito (liberal) e1e e: esses limites ideologicos nao podem ser criti cados de modo algum, po is todo 0 modelo ruiria. Nesse sen tido, a pluralidade e a abertura do processo de leitura sao possiveis porque pressupoem urn certo tipo de unidade fe chada que sempre pennanece: a unidade do sujeito leitor, usuario Realce usuario Realce usuario Realce usuario Realce 110 TEORIA DA LITERATURA. UMA INTRODU(:AO que e violada e transgredida apenas para ser devolvida, de modo mais completo, a si mesma. Como acontece em Ga darner, podemos incursionar por territ6rio estrangeiro por que secretamente estamos sempre em nosso pr6prio territ6 rio. 0 tipo de leitor que a literatura afetara mais profunda mente e 0 que ja esta equipado com a capacidade e as rea <;oes "adequadas"; aquele que e eficiente em operar certas tecnicas de critica e reconhecer certas conven<;oes literarias. Mas este e precisamente 0 tipo de leitor que menos precisa ser atingido. Tal leitor e "transformado" desde 0 inicio, e esta pronto a arriscar-se a novas transforma<;oes, exatamen te por esta razao. Para ler "eficientemente" a literatura, devemos exercer certas capacidades criticas, que sempre sao definidas de mane ira problematica. Mas sao precisa mente essas capacidades que a "literatura" nao podera colo car em questao, porque a sua existencia depende delas. Aquilo que definimos como obra "literaria" estara sempre relacio nada de perto com aquilo que consideramos tecnicas criticas "adequadas": uma obra "literana" significara, aproximadamen te, a obra que pode ser utilmente esc1arecida por esses metodos de indaga<;ao. Mas nesse caso, 0 circulo hermeneutico e real mente um circulo vicioso: aquilo que obtemos da obra de pendera em grande parte daquilo que primeiramente nela colocamos, e nao ha muito espa<;o aqui para qualquer "ques tionamento" profundo do leitor. Iser parece evitar esse circu 10 vicioso ressaltando 0 poder que a literatura tern de romper e transfigurar os c6digos do leitor; mas isso, em si, como ja dissemos, supoe implicitamente 0 mesmo tipo de leitor "dado" que ela espera criar pela leitura. 0 circuito fechado entre 0 leitor e a obra reflete a condi<;ao fechada da institui<;ao aca demica da Literatura, a qual s6 podem concorrer certos tipos de textos e de leitores. As doutrinas do eu unificado e do texto fechado subli nham sub-repticiamente, a abertura evidente de grande par- FENOMENOLOGIA, HERMENEUTlCA, TEORIA DA RECEP(:AO 111 te da teoria da recep<;ao. Roman Ingarden, em The Literary Work ofArt, de 1931, supoe dogmaticamente que as obras literarias formam todos organicos, e que 0 lei tor, completan do-lhes as "indetermina<;oes", completa tambem essa har monia. 0 leitor deve ligar os diferentes segmentos e cama das da obra de uma mane ira "adequada", asemelhan<;a dos livros infantis que trazem figuras para serem coloridas de acordo com as instru<;oes do fabricante. Para Ingarden, 0 texto ja vern com as suas indetermina<;oes, e 0 leitor deve concretiza-lo "corretamente". Isso limita bastante a ativida de do leitor, reduzindo-o por vezes a pouco mais do que uma especie de "pau para toda a obra" literario, capaz de com pletar qualquer indetermina<;ao. Iser muito mais liberal, concedendo ao lei tor urn maior grau de participa<;ao no texto: diferentes leitores tern liberdade de concretizar a obra de diferentes maneiras, e nao ha uma unica interpreta<;ao correta que esgote 0 seu potencial semantico. Essa generosi dade, porem, e condicionada por uma instru<;aorigorosa: 0 leitor deve construir 0 texto de modo a toma-lo internamen te coerente. 0 modelo de leitura de Iser e fundamental mente funcionalista: as partes devem ser capazes de se adaptar coerentemente ao todo. Na verdade, atras desse preconceito arbitrario esta a influencia da psicologia da Gestalt, preocu pada em integrar as percep<;oes isoladas num to do inteligi vel. Tal preconceito e tao pro fun do nos criticos modernos, que e dificil ve-lo exatamente como uma predile<;ao doutri naria, nao menos defensavel e controversa do que qualquer outra. Nao ha absolutamente necessidade de supor que a obra literaria seja, ou deva ser, urn todo harmonioso, e mui tos atritos sugestivos e colisoes de significados devem ser "processados" pela critica literaria, para dar-lhe esse aspec to de todo. Iser acha que Ingarden e urn pouco "organicista" demais em suas interpreta<;oes textuais, e aprecia as obras modemistas, multiplas, em parte porque elas nos tornam usuario Realce "-,, 112 TEORJA DA LfTERATURA : UMA INTROD UC;AO mais autoconscientes quanta ao trabalho de interpreta-las. Ao mesmo tempo, porem, a "abertura" da obra e algo a ser gradualmente eliminado, a medida em que 0 lei tor passa a construir uma hip6tese de trabalho capaz de explicar e tor nar mutuamente coerentes 0 maior numero possivel dos ele mentos dessa obra. As indeterminac;:oes textuais apenas nos estimulam a aboli-las, substitui-las por urn significado estavel. Na ex pressao reveladoramente autoritaria de Iser, elas devem ser "normalizadas", ou seja, domesticadas e sujeitadas a uma firme estrutura de sentido. 0 lei tor, ao que parece, empe nha-se tanto em lutar com 0 texto quanta em interpreta-lo, esforc;:ando-se para fixar 0 seu potencial "polissemantico" anarquico em urna estrutura controlavel. Iser fala aberta mente da "reduc;:ao" desse potencial polissemico a algurna forma de ordem - uma maneira curiosa, poderiamos pensar, de urn critico "pluralista" falar. Se isso nao for feito, 0 sujei to lei tor unificado sera prejudicado, tomar-se-a incapaz de voltar a si mesmo como uma entidade bern equilibrada, na terapia "autocorretiva" da leitura. Esempre born testar uma teoria literaria, fazendo-se a seguinte pergunta: como ela se comportaria em relac;:ao ao Finnegans Wake, de Joyce? A resposta, no caso de Iser, teria de ser: nao muito bern. Ele ocupa-se, confessadamente, do Ulysses, de Joyce, mas seu principal interesse critico esta na ficc;:ao realista a partir do sec. XVIII, e ha maneiras pelas quais se pode fazer com que 0 Ulysses se adapte a esse mo delo. Seria a opiniao de Iser, segundo a qual a literatura mais valida perturb a e transgride os c6digos existentes, aplicavel aos leitores contemporiineos de Romero, Dante ou Spenser? Nao sera esse ponto de vista 0 de um liberal europeu de hoje, para quem "sistemas de pensamento" precisam ter urna certa conotac;:ao negativa, e nao positiva, e que portanto vol tara os olhos para 0 tipo de arte que pareya solapa-los? Nao FENOMENOLOGfA, HERMENEUTfCA, TEORJA DA RECEPC; AO 113 tera uma boa parte da literatura "valida" precisamente con firmado, e nao refutado, os c6digos de sua epoca? Localizar o poder da arte principalmente na negac;:ao - na transgressao e na desfamiliarizac;:ao - e, tanto para Iser quanto para os formalistas, deixar implicita uma atitude definida para com os sistemas social e cultural de nossa propria epoca, atitude essa que, no liberalismo moderno, equivale a suspeitar dos sistemas de pensamento como tais. 0 fato de que isso seja possivel e testemunho eloqiiente do esquecimento a que 0 liberalismo relegou urn determinado sistema de pensamento aquele que sustenta a sua pr6pria posic;:ao . Para compreender os !imites do humanismo liberal de Iser, podemos contrasta-lo rapidamente com outro te6rico da recepc;:ao, 0 critico frances Roland Barthes. A abordagem que Barthes faz em Le plaisir du texte, de 1973, e a que mais se difere da abordagem de Iser: a diferenc;:a, para usarmos uma expressao comum, compara-se aquela existente entre urn hedonista frances e urn raciona!ista alemao. Enquanto Iser se concentra sobretudo na obra realista, Barthes oferece uma explicayao bastante contrastante da leitura ao enfocar 0 texto modemista, que dissolve todos os significados preci sos num jogo livre de palavras, que parece desfazer os siste mas de pensamento repressivos com uma incessante oscila c;:ao da linguagem. Esse texto exige menos uma atitude "her meneuta" do que uma "er6tica": ja que nao ha meios de fixa-lo num determinado sentido, 0 leitor simplesmente se entrega a tantalizante variac;:ao dos signos, aos brilhos pro vocativos dos significados que aparecem e desaparecem. Colhido nessa danc;:a exuberante da linguagem, deliciando se com a tessitura das palavras em si, 0 lei tor conhece menos os prazeres bastante objetivos de construir um siste ma coerente, de combinar os elementos textuais com maes tria para criar um eu unitario, do que as emoyoes masoquis tas dos sentimentos fragmentados e dispersos pelos emara usuario Realce TEORIA DA LlTERATURA: UMA INTRODU(:A-O 114 nhados da propria obra. Assim, a leitura parece urn labora torio e mais urn boudoir. Longe de devolver 0 leitor a si mesmo, recuperando finalmente 0 eu que 0 ato da leitura colocou em duvida, 0 texto modernista detona a identidade cultural segura do leitor, numajouissance que, para Barthes, e ao mesmo tempo uma benyao da leitura e urn orgasmo sexual. A teoria de Barthes, como 0 leitor podeni ter suspeita do, nao esta livre de problemas. Ha algo urn tanto perturba dor nesse hedonismo indulgente de vanguarda, num mundo em que a tantos faltam nao apenas livro, mas comida. Se Iser nos oferece urn modelo "normativo", sombrio, que teria o potencial ilimitado da linguagem, Barthes nos apresenta uma experiencia privada, a-social , essencialmente anarqui ca, que talvez nao seja senao 0 inverso da prime ira. Ambos os criticos revel am uma aversao liberal pelo pensamento sis tematico, ambos ignoram, cada qual a seu modo, a posiyao do leitor na historia. E claro que os leitores nao se en con tram com os textos no vacuo: todos os leitores estao social e historicamente situados, e a maneira pela qual interpretam as obras literarias sera profundamente condicionada por esse fato. Iser tern consciencia da dimensao social da Jeitu ra, mas prefere concentrar-se sobretudo em seus aspectos "esteticos". Urn dos membros da Escola de Constancia, cuja consciencia historica e mais aguda, e Hans Robert Jauss que, ao jeito de Gadamer, procura situar a obra liten'tria num "horizonte" historico, 0 contexto dos significados culturais dentro dos quais ela foi produzida, para em seguida explorar as relayoes variaveis entre ela e os "horizontes", tambem variaveis, dos seus leitores histOricos. 0 objetivo dessa obra e produzir urn novo tipo de hist6ria literaria, centralizada nao nos autores, influencias e tendencias literarias, mas na literatura, tal como definida e interpretada pelos seus varios momentos de "recepyao" historica. As obras literarias, em si FENOMENOLOGIA , HERMENEUTfCA, TEORIA DA RECEP(:AO 115 mesmas, nao permanecem constantes, enquanto as suas in terpretayoes se modificam; os proprios textos e tradiyoes literarias sofrem modificayoes ativas, de acordo com os va rios "horizontes" historicos nos quais elas sao recebidas. Urn estudo historico mais detalhado da recepyao litera ria e Qu 'est-ce que la litterature?, escrita por Jean-Paul Sartre, em 1948. Esse livro deixa claro que a recepyao de uma obra nunc a e apenas urn fato "exterior" a ela, uma questao contingencial de resenhas e vendas nas livrarias. E uma dimensao construtiva da propria obra. Todo texto lite rario e construido a partir de urn certo sentimento em rela yao ao seu publico
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