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A psicanálise e discussão entre normal e patológico

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A psicanálise e a discussão sobre o normal e o patológico 
Rosane Zétola Lustoza
Endereço: Rua Goiás, 1777 apt. 307 
Centro – Londrina – PR
CEP: 86020-410
e-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br
Professora Adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
O princípio de Broussais, caro à medicina do século XIX, estabelece uma
continuidade entre o normal e o patológico. O normal corresponderia à característica
cuja ocorrência em uma população é a mais freqüente, situada a uma eqüidistância dos
casos extremos. Desse modo a diferença entre fenômenos normais e patológicos não
passaria de uma variação quantitativa, o estado patológico sendo um simples
prolongamento, quantitativamente variado, do estado normal, sob a forma de uma
propriedade que está presente em excesso ou em falta. Foi inspirado nesse princípio que
Nietzsche, por exemplo, pôde dizer que “O valor de todos os estados mórbidos consiste
no fato de mostrarem, com uma lente de aumento, certas condições que (...) são
dificilmente visíveis no estado normal” (NIETZSCHE conforme citado por
CANGUILHEM, 1978, p. 25)
Encontramos às vezes em Freud formulações bem próximas desse enunciado,
ampliando sua extensão para o campo da psicopatologia. Uma clara tentativa de aplicar
esse princípio à psicanálise é encontrada ainda na corrente culturalista. Em “A
personalidade neurótica de nosso tempo” (HORNEY, 1966, p. 16), Karen Horney
pondera que o diagnóstico deve sempre fazer apelo aos padrões mais freqüentes em uma
determinada cultura. Um homem em nossa cultura aterrorizado ante a aproximação de
uma mulher menstruada seria neurótico, ao passo que em muitas tribos primitivas este é
um medo corrente. Entre nós, seria psicótica uma pessoa que falasse com seu finado
avô, ao passo que em algumas tribos ter visões com ancestrais é corriqueiro. Portanto,
seriam normais as condutas mais freqüentes em um determinado grupo, anormais
aquelas que se afastam dos seus padrões.
1
A aplicação do princípio de Broussais à clínica foi bastante criticada por
Canguilhem em sua obra “O normal e o patológico”. Ainda que suas conclusões tenham
sido extraídas para a doença orgânica, estenderemos alguns desses raciocínios para a
clínica psi. 
1º. O princípio de Broussais usualmente exige o uso de critérios qualitativos que
o complementem. Por exemplo, embora a cárie seja freqüente na população, não
ousaríamos afirmar que ela é saudável. Do mesmo modo há características que são raras
mas que nem por isso ousaríamos afirmar que são doentias, como é o caso de muitas
mutações.
Isso quer dizer que é impossível definir uma doença baseada num critério
puramente quantitativo, sendo necessário apelar para o discurso do sujeito sobre sua
doença, a idéia que ele tem de um estado ideal que ele gostaria de atingir e que a doença
o impede de alcançar. Daí Canguilhem valorizar a tese de R. Leriche segundo o qual “A
saúde é a vida correndo no silêncio dos órgãos” e “A doença é aquilo que perturba os
homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que
os faz sofrer” (CANGUILHEM, 1978, p. 67). A inclusão do testemunho do sujeito e do
discurso que ele tem sobre seu sofrimento atesta que a detecção do patológico é
inseparável de uma avaliação valorativa que o sujeito faz sobre o funcionamento do seu
corpo. 
Alguém poderia contrariar essa tese lembrando o caso, bastante comum, em que
o paciente chega ao médico sentindo-se bem e declarando querer apenas realizar um
check-up de rotina, mas acaba saindo do consultório com a notícia de que está doente.
Não seria essa um exemplo que ilustra com perfeição como a objetividade do fato
patológico se impõe por si própria, a despeito ou até mesmo contra aquilo que o
paciente pensa sobre si? Não é o que pensa Canguilhem: pois para que uma situação
como essa ocorra é necessária uma condição anterior, a saber, que alguns pacientes
afetados mas inicialmente assintomáticos tenham posteriormente sofrido com os
transtornos causados pela evolução da doença; só assim torna-se possível sua
identificação e portanto os ulteriores esforços para a sua detecção precoce. “A anomalia
só é conhecida pela ciência se tiver sido, primeiro, sentida na consciência, sob a forma
de um obstáculo ao exercício das funções, sob a forma de perturbação ou nocividade”
(CANGUILHEM, 1978, p. 104). Só que não existe algo que seja uma perturbação em
2
si, a perturbação só pode ser concebida quando a relacionamos à idéia de uma finalidade
a ser alcançada, finalidade que a doença perturbou. Patologia implica então “valor”.
Para Canguilhem, de fato é impossível fazer um diagnóstico em medicina sem
fazer apelo a uma informação clínica prévia, a saber, o testemunho do sujeito sobre o
seu sofrimento. Em física, por exemplo, jamais poderíamos falar em patologia, somente
nas ciências da vida, pois a patologia envolve uma referência a um estado do organismo
considerado preferível ou desejável pelo sujeito, problema que evidentemente não se
coloca para uma máquina.
O problema é que para Canguilhem a necessidade de usar um critério qualitativo
não serve simplesmente para tornar mais objetiva a noção da patologia. Pelo contrário,
tal fato denuncia a impossibilidade de uma definição puramente objetiva do fato
patológico. Este juízo de valor não pode ser universalizado, transformado em uma
norma a ser seguida, sob o risco de cairmos num regime normatizante, ou seja, a norma
acaba ganhando um sentido disciplinar de padrão a ser seguido, sendo anormais os que
desviam desse padrão.
2º. Para Canguilhem, não há como, simplesmente consultando uma curva
normal, decidir a partir de qual limite um desvio em relação à média torna-se anormal.
Não há qualquer critério quantitativo permitindo traçar uma fronteira entre um desvio
pequeno e aceitável e outro que seria patológico. “A estatística não oferece nenhum
meio para decidir se um desvio é normal ou anormal” (CANGUILHEM, 1978, p. 121).
Mesmo que aleguemos que o anormal é o que desvia muito, por possuir uma certa
propriedade em excesso ou em falta, é óbvio que não há como definir com precisão o
que seria esse “muito”ou “pouco”. Como diria Koyré, estamos aqui no terreno pré-
científico do mais-ou-menos. 
3º. A patologia não é anormal, no sentido de um afastamento ou ausência da
norma, mas simplesmente outra forma de regulação. Tal norma de funcionamento só se
torna negativa quando acarretar uma dificuldade ou impossibilidade para o organismo
em atingir os objetivos e fins a que se propõe. “Isto significa que, em matéria de norma
biológica, é sempre o indivíduo que devemos tomar como ponto de referência, porque,
como diz Goldstein, determinado indivíduo pode se encontrar à altura dos deveres
resultantes do meio que lhe é próprio, em condições orgânicas que, para um outro
indivíduo, seriam inadequadas para o cumprimento desses deveres”(CANGUILHEM,
1978, p. 144) O patológico não será então estabelecido pela comparação do indivíduo
3
com outros indivíduos, mas pela comparação do individuo com ele mesmo, ou entre o
que ele consegue fazer numa situação e é incapaz de fazer em outra. Canguilhem ilustra
este ponto com o caso de uma mulher que só descobriu que tinha hipotensão quando a
levaram para passar férias na montanha. Como ninguém é obrigado a viver em altas
altitudes, ela só veria nisso um problema se um dia viver naquele meio se tornasse
inevitável. 
Fica evidente nesse caso que o sujeito se deparou com uma limitação de seuorganismo: uma flutuação do meio revelou-lhe uma incapacidade que ele até então
desconhecia. Tal forma de vida é patológica por não possuir recursos para lidar com tais
transformações. 
Se a doença tem sua normatividade própria, faz algum sentido ainda postularmos
uma distinção entre a saúde e a doença? Sim, pois ainda que a doença seja uma norma
de vida, ela é “uma norma inferior, no sentido que não tolera nenhum desvio das
condições em que é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma”.
(CANGUILHEM, 1978, p. 146) Ou seja, a patologia não é uma ausência de regra ou
diminuição da regra, mas um funcionamento inferior. 
O ponto capital de que não devemos nos desviar é: estipular um estado como
inferior a outro é inseparável de uma avaliação que o indivíduo faz de qual seria o
funcionamento desejável de seu corpo, o que torna impossível isolar no plano
inteiramente objetivo o fato patológico.
Das considerações acima podemos algumas conseqüências para o diagnóstico
em psicanálise: 
A noção de psicopatologia é inseparável de um juízo de valor. Tal juízo de valor
não deve jamais ser buscado nos padrões culturais do grupo, em detrimento dos valores
do sujeito, sob pena de cairmos em uma normatização. Isso evitaria o equívoco de
Karen Horney, quando ela diz que, por exemplo, as mulheres em nossa cultura sofrem
por estar envelhecendo, são normais, ao passo que seriam anormais os homens com a
mesma queixa. O diagnóstico deve tomar como referência a avaliação que o próprio
sujeito faz de si mesmo, sem recorrer a critérios valorativos que lhe são exteriores.
Desse modo, tanto o homem quanto a mulher que se sentem mal por envelhecer devem
ser acolhidos pelo analista e respeitados em seu padecer. 
As críticas ao princípio de Broussais devem ser estendidas ao campo das
psicopatologias, não fazendo sentido postularmos uma diferença de grau entre o normal
4
e o patológico. A postulação de uma diferença de grau entre normalidade, neurose e
psicose, como se fossem termos situáveis num continuum, coloca um grave problema:
pois qual o limite a partir do qual uma característica psicológica torna-se intensa demais
e se torna “doentia”? A partir de que critério podemos avaliar que o doente deixou de
ser neurótico e tornou-se predominantemente psicótico? Basta dizer que, por exemplo,
na psicose uma característica qualquer (o narcisismo, para citar uma) tornou-se
exacerbada? Qual o parâmetro que nos permitiria determinar o que é exacerbado e o que
se mantém dentro dos limites de intensidade aceitáveis? Acompanhando a linha de
raciocínio de Canguilhem, podemos concluir que a resposta a tais perguntas é
impossível, pois não é possível definir normal e o patológico com base num critério
objetivo. 
As psicopatologias devem então ser entendidas como diferentes regimes de
funcionamento psíquico, diferentes formas de lidar com o real da castração. A neurose e
a psicose não são um desvio ou afastamento da regra, por isso o esforço de Lacan em
demonstrar que são sujeitos que agem conforme regras de funcionamento.Em “De uma
questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”(1955-56/ 1998) Lacan chega
a dizer que a psicose é uma “ordem do sujeito”. Não é uma desorganização psíquica ou
um caos, ela tem uma inteligibilidade própria, ainda que muito distinta da norma
neurótica. Como diz Soler, “essa tese lacaniana implica a igualdade do psicótico e
daquele que o estuda, sem que o analista seja padre nem médico” (SOLER, 2002, p.
13). Significa ainda que “a psicose pode nos ensinar algo quanto ao que Lacan chama
de ordem si sujeito”. (SOLER, 2002, p. 13). 
Por isso entendo ser capital a referência de Lacan ao Nome do Pai como
princípio que dá inteligibilidade aos fenômenos tanto na neurose quanto na psicose. Sob
a forma de sua presença ou de sua ausência, esse princípio permite explicar as lógicas
de funcionamento que particularizam ambas as estruturas. 
O Nome-do-Pai é uma instância capaz de integrar os acontecimentos no interior
de um “horizonte da compreensão” para o sujeito, uma espécie de chave de leitura
permitindo-lhe decifrar o sentido de seu mundo (ou ao menos supor que pode fazê-lo).
A instância paterna nos oferece a perspectiva a partir da qual o mundo aparece como
coerente e dotado de sentido, um ponto de vista graças ao qual os elementos dispersos
passam a ser reunidos num campo interpretativo comum. Mas o valor operativo do
Nome-do-Pai não se limita ao campo do significante, sua atuação tem incidências
também sobre o campo do gozo. Isso já foi bastante explorado por Freud, o papel do pai
5
como instância proporcionando uma barreira aos excessos do gozo, fornecendo ao
sujeito um anteparo ou contenção contra as exigências de Eros e Tânatos. Barreira que
nunca drena inteiramente o gozo, é verdade, pois deixa escapar uma compensação sob a
forma do mais-gozar... Mas ainda assim cumpre uma função de limitação do gozo.
Podemos deduzir o que a ausência dessa função comporta de conseqüências. O gozo já
não estará aí circunscrito, ele aparecerá de modo avassalador. No caso da esquizofrenia
o gozo aparece disperso, atomizado, ilocalizado; ao passo que na paranóia esse gozo
avassalador aparece concentrado no lugar do Outro. Quanto ao significante,
encontramos, como conseqüência da ausência de uma instância que amarre e sustente a
significação, um vazio de significação. Vazio que emerge como um enigma para o
psicótico, que tem certeza que esse vazio lhe concerne: “certeza que isso tem
siginificação, inerente ao significante.” (SOLER, 2007, p. 101).
BIBLIOGRAFIA
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de janeiro, Ed. Forense
Universitária, 1978.
HORNEY, K. A personalidade neurótica de nosso tempo. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1966.
LACAN, J. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” in
Escritos. Rio de Janeiro, JZE, 1955-56/1998.
SOLER, C. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro, JZE, 2007.
 
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