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Sociedade e Cultura Roseane de Aguiar Lisboa Narciso Roseane de Aguiar Lisboa Narciso SOCIEDADE E CULTURA Belo Horizonte Novembro de 2013 COPYRIGHT © 2014 GRUPO ĂNIMA EDUCAÇÃO Todos os direitos reservados ao: Grupo Ănima Educação Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/98. Nenhuma parte deste livro, sem prévia autorização por escrito da detentora dos direitos, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravações ou quaisquer outros. Edição Grupo Ănima Educação Diretoria Pedro Luiz Pinto da Cunha Coordenação e Desenvolvimento de Novos Produtos EaD Cláudia Silveira da Cunha Coordenação de Produção de Materiais Patrícia Ferreira Alves Equipe EaD CONHEÇA A AUTORA Roseane de Aguiar Lisboa Narciso é graduada em Ciências Sociais pela UFMG, especialista em Psicodrama pelo Instituto Mineiro de Psicodrama Jacob Levy Moreno, mestre em Sociologia das Organizações pela UFMG e doutora em Ciências Sociais pela PUC Minas. Profissionalmente, atua há 15 anos em várias áreas. É consultora organizacional, professora no ensino superior e coordenadora de projetos de extensão universitária com foco em sustentabilidade e responsabilidade social. Bons estudos! APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA Estudar a sociedade em que vivemos é uma tarefa complexa, mas, ao mesmo tempo, encantadora. Nesta disciplina iremos percorrer os caminhos que levaram à compreensão da vida em grupo e analisar a vida em sociedade. Existem formas de vida diferenciadas na Terra, assim como diferentes formas de interação. Uma colméia de abelhas exemplifica uma forma de vida que, embora seja diferente da nossa, também se baseia em regularidades que ordenam a vida em grupo. Cada espécie desenvolve uma forma própria de convivência, pois não vivemos sozinhos: precisamos do outro para alcançar objetivos tanto de sobrevivência quanto de continuidade da vida. Portanto, vivemos em sociedade! A sociedade se transforma, se modifica e não permanece com padrões únicos de comportamento e valores. Nesse sentido, nós também mudamos e nos adaptamos às transformações sociais. Você já observou como o mundo contemporâneo passa por profundas transformações? E não são somente transformações tecnológicas, passamos também por mudanças de comportamento: os valores se modificam e, consequentemente, a relação entre indivíduos e entre indivíduo e sociedade também se altera. Torna-se imperativo refletir sobre as consequências dessas mudanças na sociedade, e a Sociologia emerge como possibilidade de aprofundar as reflexões sobre esse contexto. Nossa disciplina, Cultura e Sociedade, propõe conduzir essas reflexões a partir do entendimento da vida em sociedade e de suas formas de interação. Você perceberá que a Sociologia promove a formação de uma consciência crítica e um conhecimento mais sistemático a respeito dos problemas e questões relacionados à vida cotidiana. Caminharemos em direção ao conhecimento e ao entendimento de conceitos sociológicos, suas aplicações na vida social e nos diferentes grupos sociais. Veremos os principais temas relacionados ao pensamento dos clássicos da Sociologia (Durkheim, Marx e Weber), conhece remos o objeto e o papel da Sociologia e sua importância para o entendimento da vida em sociedade. UNIDADE 1 003 Introdução 004 Das formas básicas de sociedade à sociedade pós-industrial 005 O nascimento da sociologia 008 O desenvolvimento do pensamento sociológico 013 A sociologia positiva de Auguste Comte 017 Revisão 020 UNIDADE 2 021 Émile Durkheim e a sociologia 022 Émile Durkheim: a especificidade do objeto sociológico 023 Solidariedade social e o indivíduo sob a ótica de Émile Durkheim 029 Divisão do trabalho, anomia, solidariedade mecânica e orgânica 030 Revisão 036 UNIDADE 3 037 O método de análise de Karl Marx 038 O materialismo histórico 041 Produção e reprodução 043 Classes e estrutura social 045 A revolução marxista 047 Revisão 051 UNIDADE 4 052 Max Weber: relações sociais e dominação 053 Max Weber: ação social e relação social 055 Dominação e racionalidade 060 Burocracia 064 Revisão 069 5 6 7 8 UNIDADE 5 070 Transformações no mundo do trabalho e nas organizações 071 O trabalho na economia contemporânea 073 Grupos e organizações 080 Estrutura das organizações 083 Revisão 088 UNIDADE 6 089 Desigualdade Racial e Étnica 090 Raça e etnia: Significados sociais 093 Padrões de interação étnica e racial 098 Afrodescedência: Aspectos da cultura brasileira 101 Revisão 104 UNIDADE 7 107 Responsabilidade social, sustentabilidade e desafios contemporâneos 108 Enfoque dos stakeholders, responsabilidade social e sustentabilidade 110 Responsabilidade social nas organizações 117 Revisão 121 UNIDADE 8 122 A relação indivíduo-sociedade na teoria social contemporânea 123 Identidade e mudanças sociais 124 Sociologia e os meios de comunicação de massa 130 Revisão 138 REFERÊNCIAS 140 1UNIDADE unidade 1 004 SOCIEDADE E CULTURA INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DA SOCIEDADE Certamente você já observou quantas mudanças têm ocorrido em nossa sociedade e como elas modificam nosso modo de viver. Mas você já parou para pensar que essas mudanças não são de agora? São mudanças históricas que marcam nossa sociedade por conflitos, tensões e divisões sociais. Ficam então algumas perguntas: como chegamos até aqui? Qual rumo nossa sociedade tomará? FIGURA 1 - A evolução das idades Fonte: DANTAS, 2011, [Online]. unidade 1 005 SOCIEDADE E CULTURA Como a imagem demonstra, as mudanças ocorrem num processo histórico e trazem consequências diversas para o nosso modo de viver. Será que estamos preparados e/ou adaptados para tantas modificações? Começaremos, nesta unidade, a abordar tais mudanças e suas consequências. Convido você a percorrer tempos e lugares distantes, numa aventura intelectual que retoma sociedades pré-modernas e passa pelo desenvolvimento das formas de agrupamento social para chegarmos até o mundo contemporâneo, com suas transformações e modo de vida. Para esta viagem, coloque em sua bagagem um pouco de imaginação: a “imaginação sociológica”, que permite enxergar eventos diversos que refletem questões muito amplas. Essa imaginação é definida por C. Wright Mills como a capacidade de olhar as coisas de uma forma diferente daquela a que estamos acostumados. Significa ter uma visão mais ampla, olhar “por trás dos bastidores” (BERGER, 1986, p.45). Ela nos ajudará a compreender os fatos e acontecimentos e a perceber suas consequências para nossa vida prática. Além disso, possibilitará novas formas de atuação diante das mudanças pelas quais passamos. DAS FORMAS BÁSICAS DE SOCIEDADE À SOCIEDADE PÓS- INDUSTRIAL A sociedade passou por uma evolução sociocultural em que predominou a relação do indivíduo com o desenvolvimento tecnológico. Essa evolução vem desde os tipos básicos de sociedade, que conheceremos aqui e que nos ajudarão a compreender a história humana e a evolução da sociedade (DIAS, 2005). As formas básicas de sociedade existiram antes do industrialismo moderno. Inicialmente, havia a sociedade caçadora e coletora, que se sustentava pela caça, pesca e coleta de plantas comestíveis disponíveis na natureza. Em algumas partes do mundo, ainda existe esse tipo de sociedade, mas a maioria foi destruída ou absorvida pela expansãoda cultura ocidental (GIDDENS, 2005). FIGURA 2 - Colheita Fonte: Acervo Institucional. unidade 1 006 SOCIEDADE E CULTURA Os povos caçadores e coletores estabeleciam uma relação com a riqueza material muito diferente da que nós temos: poucos se interessavam em desenvolver esse tipo de riqueza, pois o foco se mantinha simplesmente no que necessitavam para seu sustento imediato, ou seja, para suprir suas necessidades básicas. Os valores religiosos eram mais importantes e, por isso, os rituais e cerimônias ocupavam lugar de destaque em sua cultura. Um aspecto interessante e bem diferente de nossa organização social é a divisão de atividades e posições: quase sempre os homens eram os caçadores e as mulheres cuidavam da coleta de plantas e alimentos, além de cuidar da esfera doméstica. Os homens também dominavam as posições públicas e cerimoniais. Fonte: Acervo Institucional Segundo nos informa Dias (2005), até aproximadamente 10 mil anos atrás, todos os seres humanos eram caçadores e coletores, mas existem ainda hoje, por exemplo, algumas tribos indígenas isoladas em nosso país. Alguns grupos caçadores e coletores passaram a criar animais domésticos e cultivar terras como forma de se sustentarem. Trata-se da transição para as sociedades pastoris e agrárias. FIGURA 3 - Funções das mulheres na esfera doméstica unidade 1 007 SOCIEDADE E CULTURA O homem deixa então de ser nômade e as primeiras aldeias aparecem com uma estrutura social mais complexa. As sociedades agrárias se desenvolveram com o uso de tecnologias como o arado, a roda, os sistemas de irrigação, a escrita, a metalurgia e os números, que significaram uma revolução no modo de viver. Já as sociedades pastoris surgiram quando os primeiros homens começaram a produzir alimento através do cultivo de plantas, utilizando ferramentas de mão, e também desenvolveram o pastoreio com animais domesticados. As sociedades agrárias são também conhecidas como civilizações não industriais ou sociedades tradicionais e perduraram até o século XIX (GIDDENS, 2005). Eram civilizações baseadas na agricultura, que concentravam o comércio e a manufatura em algumas cidades. FIGURA 4 - Irrigação Fonte: Acervo Institucional Fonte: Acervo Institucional FIGURA 5 - Preparo da terra para o plantio Essas sociedades, que eram fundamentadas no desenvolvimento das cidades, revelavam desigualdades pronunciadas de riqueza e poder e estavam associadas ao governo de reis e imperadores (GIDDENS, 2005, p.47) Essas formas de sociedade dominaram o mundo até dois séculos atrás. Por meio de vários processos históricos, foi desenvolvida e organizada a sociedade industrial. Com a Revolução Industrial, houve uma modificação na estrutura da sociedade, e as tarefas executadas pelo homem passaram a ser executadas por máquinas de forma mais rápida e com um custo menor. Como consequência, as mudanças aconteceram de forma ainda mais rápida, e os valores tradicionais, crenças e costumes foram também alterados. unidade 1 008 SOCIEDADE E CULTURA A população migrou para as cidades, houve a especialização profissional e as sociedades se tornaram mais complexas. Se nas sociedades primitivas a família tinha grande importância, nas sociedades industriais, ela perdeu sua importância e apareceu sob formas diferenciadas (DIAS, 2005). E não parou por aí! Chegamos até a sociedade pós-industrial, que muitos autores denominam como a “sociedade do conhecimento” ou “era da informação”, pois ela é produto das tecnologias que têm se desenvolvido pelo uso de dispositivos diversos que aplicam e disseminam a informação. Mas por que estamos percorrendo esse caminho? Porque nosso destino nesta unidade é conhecer e entender o surgimento da Sociologia como forma de compreender a vida em sociedade, e ela possui estreita relação com essas mudanças e com a industrialização. Vamos continuar? Agora vamos percorrer diferentes épocas da história da humanidade, nas quais houve mudanças no pensar e no agir do indivíduo em sociedade. O NASCIMENTO DA SOCIOLOGIA Vários acontecimentos históricos tiveram papel decisivo no processo de desenvolvimento da sociedade. E, historicamente, aprendemos que a partir do século XV é que os conceitos sobre o mundo foram se alterando. Foram acontecimentos que ultrapassaram séculos e que anunciaram uma nova era na história da humanidade. Foram mudanças de várias ordens, a exemplo da expansão da atividade marítima comercial e das cidades. Entre os séculos V e XV, na Europa, ocorreram várias mudanças, como a expansão marítima e comercial. Para saber um pouco sobre elas, precisamos ir até o período medieval, em que a identidade das pessoas era baseada no clã e na propriedade fundiária. Além disso, eram a nobreza e a igreja que detinham o saber e que determinavam a forma como as pessoas deviam viver. Com o fim da Idade Média, a propriedade fundiária acabou e, com ela, os clãs, o que modificou a identidade do sujeito social, que passa a se identificar com a nação e a ter uma conduta individualista. Isso significa que as pessoas deixam de se identificar com a propriedade ou com seu clã e passam a se identificar com o lugar em que vivem, que pode ser a cidade, o país ou o território. O movimento filosófico e artístico denominado Renascimento marcou a ruptura entre o período medieval e o mundo moderno, urbano e burguês. A denominação unidade 1 009 SOCIEDADE E CULTURA Renascimento se deve à comparação com a Idade Média, considerada a “idade das trevas”, pois nesse período as pessoas não tinham acesso ao conhecimento. As mudanças trazidas pelo Renascimento proporcionaram contato com outros povos e a proliferação de obras artísticas e filosóficas. Houve o renascer da cultura, da erudição e a ampliação do acesso às produções culturais. O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, ilustra o período conhecido como Renascimento, que representou o início da Revolução Científica, momento marcado pelo uso da razão como meio de chegar ao conhecimento. FIGURA 6 - Leonardo da Vinci. O Homem Vitruviano Fonte: MÉDIHAL [Online]. Antes do período renascentista, durante a Idade Média, a razão foi auxiliar da fé: a Igreja Católica a utilizava para manter seu poder e divulgar sua doutrina. Apenas ordens religiosas e elites tinham acesso ao saber filosófico; o restante da população não participava desse mundo. O que a Igreja dizia era verdade pura e absoluta. O Renascimento alterou esse cenário, pois o homem começou a compreender através de diversas literaturas e escritos dos renascentistas, que ele vivia em sociedade e que daí poderia advir diversas questões. Fato marcante foi a crise da Igreja que perdeu boa parte de seu poder devido às reformas protestantes, que questionam a atuação católica e elaboram novas concepções religiosas. É o início de uma nova postura do homem diante do conhecimento e da natureza. Nesse momento, é perceptível o enfraquecimento do pensamento católico e da tutela da Igreja, e o homem se vê livre para analisar a realidade em si mesmo e não fora de si. Ou seja, ele se percebe como parte da realidade. Desse modo, os acontecimentos passam a ser responsabilidade do próprio homem, que começa a assumir suas ações na sociedade. Já é uma grande mudança, não? Claro que ela não se deu rapidamente, mas à custa de muitas guerras, inquisições e unidade 1 010 SOCIEDADE E CULTURA perseguições religiosas.Tudo se passou num clima de fim de mundo para alguns e de profunda transição para outros. Todos viviam momentos de insegurança e instabilidade: era um renascimento para novas formas de viver e se organizar em sociedade, trazidas pelas possibilidades do pensar. Será que podemos afirmar que nesse momento da história a Sociologia já despontava? De acordo com alguns historiadores, a partir do Renascimento, começou a se formar uma mentalidade mais renovadora, contrária ao misticismo e ao conservadorismo da época feudal (COSTA, 2005). Nesse sentido, podemos, sim, afirmar que a Sociologia já emergia, mesmo que incipiente. O retorno ao saber e o prazer pelas descobertas sobre a sociedade foram o início do interesse pelas formas de convivência social. Na verdade, a Sociologia começa a ser pensada, mas não se torna ainda uma ciência. Por enquanto, ela é somente uma possibilidade de explicar fatos e acontecimentos. No século XVII a ciência progride e com ela a relação entre as leis e as coisas, interpretando e organizando as ideias do ponto de vista lógico-científico. Como consequência dos acontecimentos e “aprimoramentos” do Renascimento, desencadeia-se uma preocupação com as regras da organização da vida social. É uma preocupação com regras observáveis, possíveis de medir, comprováveis e que dão aos homens explicações para um novo mundo, onde imperava o racionalismo. Aprimoram-se as técnicas e os utensílios de medição, desenvolveram- se as universidades e demais instituições cientificas, e tanto a imprensa como os outros meios de comunicação espalharam o conhecimento a um número crescente de pessoas (COSTA, 2005, p.18) Imagine-se vivendo numa época em que os renascentistas, escritores e pensadores começam a elaborar novas ideias e a provocar reflexões em quem lia suas obras. Além deles, havia os pintores, que retratavam um homem livre. Trata-se de uma forma de pensar totalmente diferente daquela que imperava até o século XV. Posteriormente, vêm os novos conhecimentos e descobertas que modificam a forma de agir na vida social. As relações deixam de ser somente matéria religiosa e do senso comum e passam a ser interesse de obras científicas. Tudo isso significa uma mudança não somente na forma de pensar, mas também na maneira de agir. unidade 1 011 SOCIEDADE E CULTURA O período renascentista influenciou aspectos variados da vida em sociedade. Suas principais características foram: • Antropocentrismo: visão do homem como o centro do mundo, em oposição ao teocentrismo, em que Deus é o centro de tudo. O antropocentrismo afirma que o homem conduz o seu próprio destino. • Racionalismo: decorre do antropocentrismo por ser a valorização da racionalidade como grande atributo humano, ou seja, é a busca por um saber prático e por explicações lógicas. • Naturalismo: busca por leis gerais para explicar como a natureza funciona, tanto a natureza física como a natureza humana. • Individualismo: a individualidade passou a ser valorizada na tradição burguesa e moderna e as pessoas passaram a demonstrar suas habilidades para obter reconhecimento de outras pessoas. As características do período renascentista não podem ser tidas como radicalmente opostas ao período medieval. (FREITAS NETO, 2006). O Iluminismo também teve seu papel no século XVII, enquanto movimento liderado por intelectuais, pois concebeu novas ideias e passou a entender a sociedade com vida própria, funcionando de forma a depender de um gerenciamento, já que agora as pessoas começavam a ter acesso ao saber. Os fenômenos sociais passaram a ser identificados e o desenvolvimento do pensamento social passou a ser demonstrado nas mudanças econômicas, políticas e culturais, que se aceleraram a partir dessa época. Entretanto, surgiram problemas que os homens ainda não haviam experimentado. Os pensadores iluministas tinham posições contrárias aos absolutistas e, entre seus pressupostos, estava a defesa da liberdade e do progresso. Eles enfatizavam uma sociedade fundada na razão e no progresso da humanidade, o que conferia à sociedade um estado científico. Os indivíduos passaram a ser concebidos como dotados de razão, destinados à liberdade e à igualdade social. Por isso, deveriam se libertar dos laços tradicionais oriundos da Idade Média. Esse movimento foi fundamental para consolidar as bases necessárias para a Revolução Industrial, além da Inglesa e Francesa. Mas nosso olhar agora vai se direcionar para a Revolução Industrial, evento marcante na emergência da unidade 1 012 SOCIEDADE E CULTURA Sociologia enquanto ciência que estuda a vida em sociedade. A Revolução Industrial alterou o modo de produção, estimulou e provocou a competição por mercados internos e externos. Surge um novo sistema, o capitalista, baseado na acumulação e na propriedade privada. Seus principais atores foram a burguesia e o proletariado, produzindo prosperidade e pobreza, avanços e misérias. Foi uma revolução científico-tecnológica que alterou a estrutura social e criou novas formas de organização. Nesse período, um conjunto de invenções e inovações aceleraram a produção de bens de consumo, assegurando um crescimento econômico independente da agricultura. Como você pode observar, muitas coisas mudaram na sociedade até o momento atual, mas as desigualdades estruturais permaneceram, ou se agravaram. A Revolução Industrial significou o triunfo da indústria capitalista, alterou a estrutura social, criou novas formas de organização e modificou a cultura. Surge a produção em larga escala, novas formas de organização do trabalho e a mão de obra humana foi substituída pelo uso das máquinas, o que provocou também a divisão do trabalho: a esteira rolante tornou-se o ícone da produção em série. A ilustração Tempos Modernos (FIG. 7), de Charles Chaplin, exemplifica esse processo. FIGURA 7 - Cena simbólica do filme Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin Fonte: Núcleo de Educação a Distância (NEaD), Ănima, 2013. Também ocorreram mudanças culturais, como consequência das mudanças no trabalho. Evidenciaram-se papéis sociais distintos: o empresário, dono dos meios de produção e, os operários, que vendiam sua força de trabalho. A Sociologia surge num contexto em que os homens se viram diante da necessidade de compreender as profundas transformações que ocorriam. unidade 1 013 SOCIEDADE E CULTURA É possível afirmar que a Sociologia surge num momento em que as relações entre os homens passam a merecer conhecimentos traduzidos em linguagem e discurso científicos, que fossem próprios e que conferissem à sociedade moderna uma explicação sobre os fenômenos sociais que ocorriam. O desafio inicial da Sociologia foi compreender as alterações profundas que marcaram as sociedades e refletir sobre o comportamento dos indivíduos diante de tais mudanças (BOMENY; MEDEIROS, 2010). O termo Sociologia foi criado por Augusto Comte (1798-1857). O filósofo é considerado o pai da Sociologia. Comte defendia a ideia de que para uma sociedade funcionar corretamente, precisa estar organizada. Só assim alcançaria o progresso. Ele acreditava que o Iluminismo levaria os homens à desunião e, por isso, era preciso retomar o equilíbrio da sociedade e restabelecer a ordem das ideias e conhecimentos. Comte criou a filosofia positiva, correntecom grande expressão no século XIX. O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO É bem comum as pessoas ouvirem de seus parentes mais velhos afirmações como a seguinte: “A minha infância foi bem melhor que a sua. A gente brincava mais nas ruas, praticava mais esportes e tinha mais liberdade”. Você já se perguntou o porquê disso, ou seja, por que nossa condição de vida hoje parece tão diferente da dos nossos antepassados? Você já ficou sem respostas diante de outras perguntas como: Por que não podemos ter mais de um marido ou esposa? Como vai ser a vida de meu filho ou neto no futuro? Por que há tanta violência no nosso país? Por que algumas pessoas têm tanto dinheiro e outras vivem na miséria? Essas questões são o principal combustível da Sociologia, campo de estudo que busca compreender a vida humana, bem como a relação e o comportamento do homem em sociedade. Na maioria das vezes, nossa compreensão do mundo é construída a partir do que nos é familiar, ou seja, das circunstâncias pessoais – a relação com a família, amigos, no trabalho, no grupo religioso, no clube, entre outros grupos e espaços de convívio social. Nesse sentido, a Sociologia torna- se fundamental para ampliar nossa compreensão do comportamento do homem na sociedade. Essa consciência mais ampla foi descrita pelo sociólogo C. Wright Mills como imaginação sociológica. A imaginação sociológica nos permite compreender que nem sempre nossas unidade 1 014 SOCIEDADE E CULTURA considerações do que é certo e errado, bom e mal, verdadeiro e falso são como pensamos ser. Nossas vidas são influenciadas diretamente por fatores históricos e processos sociais. “Entender as maneiras sutis, porém complexas e profundas, em que nossas vidas individuais refletem os contextos de nossa experiência social é básico para a perspectiva sociológica.” (GIDDENS, 2005, p.19) A imaginação sociológica nos projeta para além de nossas experiências e observações pessoais e nos ajuda a compreender os assuntos e as situações de contexto público com maior amplitude. É como se observássemos o mundo com uma lente mais potente que nosso olhar habitual. O divórcio, por exemplo, embora seja inicialmente visto como um problema pessoal do indivíduo que vive essa experiência, é também o reflexo de um problema social mais amplo. Usando a imaginação sociológica podemos perceber que o aumento do número de divórcios redefine, na verdade, uma instituição fundamental na estrutura social: a família. Muitos lares hoje têm a mulher como a única responsável, inclusive financeiramente, pela criação dos filhos. Outros têm a figura de padrastos, madrastas, meios-irmãos e pais no segundo ou terceiro casamento. Outro exemplo é o desemprego. O que inicialmente parece uma tragédia pessoal para quem perde o trabalho e tem dificuldade para encontrar outro, é também reflexo de uma situação de incerteza e instabilidade no cenário econômico. Os jornais trazem notícias sobre o aumento do desemprego com frequência. No Brasil, segundo estimativas da Confederação Nacional das Indústrias (CNI), a maior preocupação do brasileiro está ligada diretamente ao emprego que, muitas vezes, é a única alternativa de renda familiar. A falta de emprego afeta o estado, o trabalhador e sua família, além de agravar os problemas sociais. O desemprego é um dos grandes fenômenos sociais do momento, especialmente devido ao incremento da globalização. O problema deixou de ser realidade apenas de países ditos emergentes e subdesenvolvidos e se alastrou em outras nações, até mesmo na Europa. unidade 1 015 SOCIEDADE E CULTURA A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTE COMTE Como já sabemos, as sociedades encontram-se em profundo caos social e era necessária uma ciência que fosse capaz de entender e reorganizar a sociedade. Auguste Comte (1758- 1857) foi um filósofo que sistematizou o pensamento sociológico através do Positivismo. Comte era considerado conservador e acreditava que o Iluminismo levaria os homens à desunião. Por isso, para retomar o equilíbrio da sociedade e restabelecer- se a ordem das ideias e conhecimentos, era necessário criar um conjunto de crenças comuns a todos os homens.. Ele criou a filosofia positiva, uma atuação da filosofia que pretendia auxiliar a ciência no entendimento de seus métodos e resultados. É importante deixarmos bem claro que a expressão “positiva” aqui não deve ser entendida em seu sentido comum. A palavra remete a uma forma de se diferenciar a filosofia do século XVIII. O Positivismo contestava as instituições sociais, ou seja, o Iluminismo , tão criticado por Comte. A filosofia positiva era uma reação ao Iluminismo e se preocupava em reorganizar a realidade. Nos trabalhos de Comte, a Sociedade e o positivismo aparecem muito ligados. A Sociologia seria o que ele denominou de “física social”, isto é, ela deveria utilizar os mesmos procedimentos das ciências naturais: observação, experimentação e comparação. Ao estabelecer esses parâmetros para o desenvolvimento da Sociologia, o Positivismo tenta oferecer uma orientação para a formação desse campo do conhecimento. Um dos pontos mais altos da filosofia positiva é a tentativa de unir o processo à ordem para Comte, esses dois elementos são necessários mutuamente para a construção de uma nova sociedade. Isso nos lembra alguma coisa? A nossa bandeira, com seu dizer: ‘Ordem e progresso”, mostra como o Positivismo foi aceito pelos republicanos brasileiros no século XIX. Outro aspecto importante no pensamento de Comte foi a formulação da Lei dos Três Estágios. Ele identificou tries momentos específicos do homem na busca pela compreensão do mundo: o teólogo. o metafísico e o positico, assim definidos unidade 1 016 SOCIEDADE E CULTURA FIGURA 8 - AUGUSTE COMTE Fonte: <http://pensadordelamancha.blogspot.com.br/2011/06/filosofia-positivista-de-augusto-comte.html>. Acesso em: 11/12/2012. • Estágio teológico - o pensamento sobre os fenômenos ocorridos no mundo são explicados por considerações sobrenaturais, religiosas e por Deus. • Estágio metafísico - as explicações sobrenaturais são substituídas pelo pensamento filosófico sobre a essência doas fenômenos. • Estágio positivo - “a ciência, ou a observação cuidadosa dos fatos empíricos, e o teste sistemático de teorias tornam-se modos dominantes para se acumular conhecimento” (TURNER, 1999. p. 4). Nesse estágio o conhecimento pode ser útil e melhorar a vida das pessoas Para Comte, essa seria a ordem da evolução do pensamento e da própria sociedade. E, quanto mais especializados os órgãos particulares da sociedade, mais evoluída ela seria. Por exemplo, quanto mais evoluído estiver o sistema de saúde em uma sociedade, mais harmonia social ela terá. Mas não basta somente um órgão estar harmonia, é necessário que os outros também estejam. E essa é a dificuldade em manter a ordem social. E, no Positivismo, a ordem social significa uma busca pela ordem e pelo progresso. Segundo Comte, havia um ritmo evolutivo e harmônico na sociedade que não poderia ser unidade 1 017 SOCIEDADE E CULTURA alterado bruscamente através de uma revolução, como estava acontecendo naquela época. Lembre-se de que estamos nos referindo a sociedade pós-revolução industrial! Para ele, as revoluções alteravam o ritmo da sociedade e nem sempre as alterações na ordem social conduziam ao progresso. Seu pensamento tem como fundamento a seguintefrase: “o amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim” o que significa que cada coisas, em seu devido lugar, conduzida para a perfeita orientação ética da vida social. Assim, Comte pode ser considerado o “pai” da Sociologia. MAIS SAIBA O nosso país assimilou o projeto de Comte, que pressupunha uma evolução ordeira da sociedade. Esse projeto era incompatível com revoluções e mudanças bruscas e, por isso, os ideais positivistas serviam para impulsionar a Proclamação da República. Em verdade, a influência positivista resultou em pensamentos diferentes no Brasil e também foi combinada com outras ideologias. O setor que mais demonstrou a presença da ideologia de Comte foi as Forças Armadas de onde saiu o movimento republicano e a ideia de adotar o lema “Ordem e Progresso”. Depois, varias medidas governamentais foram inspiradas pelo Positivismo, a exemplo da reforma educativa e da separação entre Igreja e Estado, em 1891. A filosofia de Comte tornou-se também um samba de Noel Rosa e Orestes Barbosa, intitulado “Positivismo”, que foi lançado em 1933, e termina com os seguintes versos: “O amor vem por princípio, a ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim/ Desprezaste esta lei de Auguste Comte/ E foste ser feliz longe de mim”. Assim, podemos ter uma noção o quanto nosso país foi influenciado pela filosofia comtiana. unidade 1 018 SOCIEDADE E CULTURA Considere, por exemplo, por que (...) decidiu estudar Sociologia? Talvez você seja um estudante de Sociologia relutante, que está cursando a disciplina apenas para satisfazer um requisito para uma carreira futura. Ou pode estar entusiasmado para conhecer mais sobre a sua sociedade e a disciplina da Sociologia. Seja qual for sua motivação, é provável que você tenha muita coisa em comum, sem necessariamente saber, com outras pessoas que também estudam Sociologia. Sua decisão privada reflete a sua posição dentro da sociedade. Será que as características seguintes se aplicam a você? Você é jovem? Branco? Tem um nível profissional? Já fez, ou ainda faz, algum trabalho esporádico para complementar sua renda? Você quer encontrar um bom emprego quando concluir sua formação, mas não se dedica especialmente a estudar? Você não sabe exatamente o que é a Sociologia, mas pensa que tem a ver com a maneira como as pessoas agem em grupos? Mais de três quartos das pessoas responderão sim a todas essas questões. Os estudantes universitários não são típicos da população como um todo, mas tendem a ter origens sociais mais privilegiadas. E suas posturas geralmente refletem aquelas de seus amigos e conhecidos. Nossas bases sociais têm muito a ver com o tipo de decisão que consideramos apropriada. Nenhuma ou poucas características se aplicam a você? Talvez você tenha vindo de um grupo de minoria ou em situação de pobreza. Talvez você seja de meia-idade ou idoso. Da mesma forma, outras conclusões provavelmente se aplicam. É provável que você tenha tido que batalhar para chegar onde está, talvez você tenha tido que superar reações hostis de amigos e outras pessoas quando disse a eles que pretendia estudar na faculdade ou talvez você esteja combinando o ensino superior com a maternidade em horário integral. (GIDDENS, 2005, p.21) O autor ressalta que, embora todos nós estejamos sujeitos à influência dos contextos sociais, o comportamento de ninguém é totalmente determinado por esses contextos. Temos nossa própria identidade. Cabe à Sociologia analisar o que a sociedade faz de nós e o que fazemos de nós mesmos e da sociedade. Na próxima unidade, continuaremos nossa viagem e teremos a oportunidade de conhecer o primeiro dos três principais pensadores clássicos da Sociologia e ver como suas teorias influenciam nosso cotidiano. unidade 1 019 SOCIEDADE E CULTURA MAIS PARA SABER Leia o tópico “Desenvolvendo uma perspectiva sociológica” no capítulo 1 do livro de Giddens, Sociologia (2005, p.24-25), sobre o ato de tomar uma xícara de café e saiba a quantidade enorme de coisas que podemos observar, do ponto de vista sociológico, sobre esse comportamento aparentemente desinteressante. FIGURA 9 - Pessoa tomando café Fonte: Acervo Institucional O consumo de café para cada brasileiro por ano é de quase 83 litros. O café é o alimento mais consumido diariamente por 78% da população acima de 10 anos. VOCÊ SABIA? O consumo per capita é maior na região Nordeste, seguido do Sudeste - 255 ml/dia ou 93 litros/dia x habitante x ano. Fonte: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDUSTRIA DE CAFÉ (ABIC), 2011. REVISÃO Nesta unidade, percorremos os seguintes aspectos ligados ao tema de nossa disciplina: • O desenvolvimento das sociedades e a transição da sociedade de caçadores e coletores para as sociedades pastoris e agrícolas, e depois para as sociedades industriais. • Na atual sociedade pós-industrial, os processos de mudança tornaram-se mais rápidos do que nos outros tipos de sociedade. • Alguns períodos históricos, como o Renascimento, o Iluminismo e a Revolução Industrial, trouxeram modificações na forma de ser e de estar no mundo, alteraram a percepção do sujeito social sobre si mesmo e sobre sua interferência nos acontecimentos sociais e políticos. unidade 1 020 SOCIEDADE E CULTURA • No contexto de inúmeras alterações e transformações históricas, a Sociologia emerge como a ciência que poderá explicar e reorganizar a convivência entre os indivíduos na sociedade. • A “imaginação sociológica” e como ela nos ajuda a enxergar eventos diversos num contexto mais amplo, olhar as coisas de uma forma diferente daquela a que estamos acostumados – do senso comum –, e ver “por trás dos bastidores”. 2UNIDADE unidade 2 022 SOCIEDADE E CULTURA ÉMILE DURKHEIM E A SOCIOLOGIA Na primeira unidade, iniciamos uma viagem que nos levou ao entendimento de como a sociedade passa por transformações desde seu início até a contemporaneidade. Muitos eventos marcaram esse processo e foram responsáveis pela mudança em nossos valores e comportamentos. Diante de tantas modificações históricas, políticas, sociais e culturais, nossos valores também foram se transformando e, como consequência, nosso relacionamento com outros indivíduos na sociedade. Pudemos acompanhar como a Sociologia surgiu enquanto ciência para nos ajudar a compreender as profundas alterações que marcaram as sociedades, explicar os fenômenos sociais e também propor uma reflexão sobre o comportamento dos indivíduos diante de tais mudanças. Nesta unidade, conheceremos Émile Durkheim, que figura dentre os clássicos da Sociologia. E o que são clássicos da Sociologia? Denominamos clássicos os primeiros pensadores que brotaram da agitação e das mudanças consequentes das Revoluções anteriores. Além de Durkheim, Karl Marx e Max Weber também são autores clássicos da Sociologia. Mas, conheceremos os dois últimos em unidades específicas. unidade 2 023 SOCIEDADE E CULTURA ÉMILE DURKHEIM: A ESPECIFICIDADE DO OBJETO SOCIOLÓGICO A Sociologia se tornou campo de conhecimento com métodos e objetos próprios graças aos autores clássicos e Durkheim teve papel imprescindível nesse processo. FIGURA 10 - Émile Durkheim Fonte: MÉDIHAL [Online] E quem foi Durkheim? Émile Durkheim nasceu no ano de 1858 e faleceu em 1917. Sua preocupação em relação à Sociologia era torná-la uma ciência com princípios e limites (COSTA, 2005). Durkheim não queria que a Sociologia ficasse relegada ao senso comum, ou seja, que ela se restringisse aos “achismos” nainterpretação da realidade social. Você já deve ter observado como os acontecimentos da vida social passam por diferentes interpretações e como as pessoas se arriscam a dar uma “opinião” sobre esses acontecimentos. Por exemplo, o escândalo político do “mensalão”: todas as pessoas têm uma “teoria” a esse respeito, sobre o que deve ser feito ou os motivos desse fato. Claro que todos têm o direito de opinar e temos nossos próprios pontos de vista. Mas, mesmo diante disso, observamos na mídia que alguns programas levam especialistas para analisar o acontecimento em destaque. E, sabe por quê? Exatamente para sair das concepções de senso comum e articular pensamentos e opiniões fundamentadas em análises políticas e/ou sociológicas. Daí diferenciarmos a opinião pública da opinião de especialistas. A charge abaixo exemplifica a diversidade de opiniões e interpretações sobre acontecimentos sociais e políticos. unidade 2 024 SOCIEDADE E CULTURA FIGURA 11 - Diversidade de interpretações Fonte: BLOG DO MESQUITA, 2012. Curiosamente, Durkheim não era um sociólogo, e sim um filósofo que contribuiu para que a Sociologia se tornasse uma disciplina acadêmica. Graças a ele, hoje podemos estudar a sociedade em que vivemos de uma forma ampla e consciente. Certamente você deve ter estranhado o fato de Durkheim ser filósofo! Sim, era formado em Filosofia, mas sua obra inteira foi dedicada à Sociologia. Nesse contexto, é importante dizer que Durkheim foi o primeiro professor universitário de Sociologia. Lembra-se de Auguste Comte? Apresentado na unidade anterior como o pai da Sociologia? Durkheim sofreu influência de seus pensamentos, pois se baseou no método positivo: a Sociologia deveria buscar a formulação de leis que pudessem estabelecer relações constantes entre fenômenos. Outro aspecto importante é que Durkheim valorizava o diálogo das Ciências Sociais com a História, Economia e Psicologia. Na busca pelo rigor científico para a Sociologia, Durkheim definiu como objeto de análise sociológica os fatos sociais. unidade 2 025 SOCIEDADE E CULTURA E o que são fatos sociais? Quando pensamos em fatos sociais, logo imaginamos que seja qualquer fato ocorrido na sociedade, não é assim? Pois para Durkheim, era diferente. Ele conceituou e diferenciou os fatos sociais dos acontecimentos ocorridos no contexto social. De acordo com Durkheim, “o fato social é experimentado pelo indivíduo como uma realidade independente e preexistente” (COSTA, 2005, P. 81). A força coercitiva dos fatos sociais se torna evidente pelas “sanções legais” ou “espontâneas” a que o indivíduo está sujeito quando tenta rebelar-se contra ela. “Legais” são as sanções prescritas pela sociedade, sob a forma de leis, nas quais se define a infração e se estabelece a penalidade correspondente. “Espontânea” são as que afloram como resposta a uma conduta considerada inadequada por um grupo ou por uma sociedade. Multas de trânsito, por exemplo, fazem parte das coerções legais, pois estão previstas e regulamentadas pela legislação que regula o tráfego de veículos e pessoas pelas vias públicas. Já os olhares de reprovação de que somos alvo quando comparecemos a um local com roupa inadequada constituem sanções espontâneas (COSTA, 2005, p. 81) Os fatos sociais são caracterizados por serem coercitivos, gerais e com existência própria, que significa serem independentes de manifestações individuais, ou seja, exteriores aos indivíduos. A coerção social, própria do fato social, leva os indivíduos a se conformarem com as regras da sociedade e os faz experimentar a força dela sobre si mesmos. A citação acima nos esclarece o poder das coerções sobre nossas vidas e nossos atos no dia a dia e exemplifica claramente como somos coagidos a agir de determinada maneira, muitas vezes de forma inconsciente, como no caso da roupa inadequada. Nesse exemplo, mesmo que não haja um código que fale sobre isso, os “olhares” conduzem os indivíduos “infratores” a agirem da forma esperada. Dizemos que um fato social é geral ou possui unidade 2 026 SOCIEDADE E CULTURA a característica de generalidade porque ele se repete em todos os indivíduos ou na maioria deles. Os acontecimentos demonstram com sua generalidade a sua natureza coletiva, a exemplo de acontecimentos comuns ao grupo e/ou costumes (COSTA, 2005). Formas de se comunicar numa sociedade são exemplos dessa generalidade. A terceira característica, a exterioridade, significa que eles existem e atuam independente da vontade dos indivíduos numa sociedade. EXEMPLO Nascemos e somos socializados com regras sociais, costumes e leis. “Não nos é dada a possibilidade de opinar ou escolher, sendo assim independentes de nós, de nossos desejos e vontades” (COSTA, 2005, p.83). Fatos sociais podem ser considerados como maneiras de agir, a exemplo de correntes de opinião. Você já observou na mídia como essas correntes nos contagiam e nos levam a pensar, e até mesmo a agir, de determinada forma? Nesse caso, são maneiras de agir externas que exercem uma força muito grande sobre cada um de nós. Como maneiras de agir, os fatos sociais são menos consolidados e nos levam a tomar decisões ou realizar fatos de acordo com a época ou momento. Essas maneiras de agir são consideradas cristalizadas, porque já existem e não podem ser modificadas, por exemplo, as formas jurídicas e os dogmas religiosos. Para Durkheim, as maneiras de agir são imperativas e levam os indivíduos a adotarem normas de conduta que se encontram fora deles. Isso significa que elas são uma realidade objetiva e possuem ascendência sobre os indivíduos numa sociedade. Portanto, os fatos sociais são maneiras de agir impostas pela sociedade para que nos comportemos de determinada forma. Essa imposição não é percebida assim por nós, porque ela é inconsciente. Para analisar os fatos sociais, Durkheim propôs um método específico para a Sociologia. Em sua obra “As Regras do Método Sociológico”, publicada em 1895, Durkheim propôs regras para que os fatos sociais sejam analisados cientificamente. Nessa publicação, Durkheim descreve em cada capítulo como deve ser o procedimento de um cientista social na observação dos fatos sociais. Tais regras somente foram publicadas depois que ele unidade 2 027 SOCIEDADE E CULTURA mesmo realizou alguns estudos, portanto o Método é baseado em sua própria prática. FIGURA 12 - Capa do livro “As regras do método sociológico” Fonte: Site “Livraria Loyola”. Lembra-se da preocupação desse clássico em conferir rigor científico à Sociologia e se diferenciar do senso comum? A partir dessa preocupação e em busca da objetividade, Durkheim estabeleceu um método de análise sociológica que trata cientificamente os fatos sociais, procurando uma visão diferenciada deles. O método de análise sociológica, segundo Durkheim, deveria se aproximar do método utilizado pelas ciências naturais. Como há diferenças entre as duas ciências, não seria a adoção completa do método das ciências naturais, porque os fatos examinados pela Sociologia são do reino social, diferenciando-se assim dos fenômenos da natureza. Dentre as regras propostas por Durkheim, a que mais se destaca é: “tratar os fatos sociais como coisas”. Para nosso propósito de estudo, não há necessidade de estudarmos as outras regras, por serem muito específicas da Sociologia. Considerar os fatos sociais como coisas é uma tarefa difícil, uma vez que os sociólogos lidam todo o tempo com a sociedade da qual fazem parte e acabamse misturando com eles. REFLEXÃO PARA Imagine uma investigação científica sobre a violência doméstica. O sociólogo, mesmo que não seja uma mulher, acaba se vendo um pouco misturado ao fato porque compõe e participa da sociedade. Seria difícil, portanto, manter-se “distante” do fato social e analisá- lo com clareza e objetividade. unidade 2 028 SOCIEDADE E CULTURA REFLEXÃO PARA Você sabe como identificar um fato social de outro fato qualquer na sociedade? Para que isso ocorra, segundo Durkheim, seria necessário afastar as pré-noções, definir as coisas pelas características que lhes sejam comuns e considera-las de maneira mais objetiva possível. O método de Durkheim propunha analisar os fatos sociais como coisas e vê-los como uma realidade externa, “evitando o envolvimento afetivo ou de qualquer outra espécie entre o cientista e seu objeto” (COSTA, 2005, p.83). Segundo ele, ver os fatos sociais como realidade externa era enxergar os fenômenos sociais como exteriores ao indivíduo. Isso significa que os fenômenos que acontecem na sociedade não partem da consciência de cada indivíduo, mas residem na sociedade. FIGURA 13 - O indivíduo na sociedade Fonte: Acervo Institucional Diante da dificuldade de se manter distante dos fatos sociais, Durkheim propunha que o cientista exercitasse a “dúvida metódica”, que significa se perguntar sempre sobre a veracidade e objetividade do fato social em questão. Nesse sentido, deve-se afastar a influência de seus desejos, interesses e preconceitos. Durkheim recomendava observar sua generalidade. Quer dizer, o cientista social deve buscar fatos repetitivos e gerais com características exteriores comuns. unidade 2 029 SOCIEDADE E CULTURA SOLIDARIEDADE SOCIAL E O INDIVÍDUO SOB A ÓTICA DE ÉMILE DURKHEIM A Sociologia não deveria somente analisar a sociedade. Deveria também encontrar e propor soluções para a vida social. Outra preocupação de Durkheim era saber por que os indivíduos se mantinham em sociedade. Para ele, temos dois tipos de consciência, como se existissem dois seres em cada indivíduo: a consciência coletiva e a consciência individual. Mas como seria isso na prática? A consciência coletiva é, em certo sentido, a forma moral e vigente na sociedade. Ela aparece como um conjunto de regras fortes e estabelecidas que atribuem valor e delimitam os atos individuais (COSTA, 2005,p.86) FIGURA 14 - Consciências individual e coletiva Fonte: Acervo Institucional unidade 2 030 SOCIEDADE E CULTURA DIVISÃO DO TRABALHO, ANOMIA, SOLIDARIEDADE MECÂNICA E ORGÂNICA Para Durkheim, a sociedade funciona como se fosse um organismo em que as diferentes partes cumprem papéis distintos e cada um existe em função do outro. Seria como o funcionamento do nosso corpo: cada órgão desempenha uma função e um existe em função do outro para termos um perfeito estado de saúde geral. Veja um exemplo dessa interdependência entre os indivíduos. O que liga e une os diferentes componentes numa sociedade é denominado de solidariedade, pois, segundo afirma Durkheim, essa divisão não se dá por vocação ou talento individuais. FIGURA 15 - Componentes numa sociedade Ao comparar as sociedades primitivas com as sociedades desenvolvidas, Durkheim observa que as sociedades primitivas são mais simples e, também, mais homogêneas com uma integração equilibrada entre suas partes. Nelas as tarefas se dividem por gênero ou idade. Exemplo: os homens caçam e as mulheres plantam e colhem. Fonte: Acervo Institucional unidade 2 031 SOCIEDADE E CULTURA FIGURA 16 - Divisão de tarefas Fonte: Acervo Institucional Esse tipo de divisão permanece mesmo quando pensamos, por exemplo, numa sociedade feudal, em que pode haver ofícios diferentes. Nesse caso, a liga que une os homens é chamada solidariedade mecânica porque não depende de uma escolha. A coesão é forte e, em geral, os indivíduos não se sentem sem direção, sem lugar no mundo. É como se o coletivo definisse o individual e o “sentido do nós” se tornasse mais forte que o “sentido do eu” (BOMENY, 2010). É por isso que nas sociedades de solidariedade mecânica qualquer crime é visto como ato contra toda a sociedade. O mal feito a um atinge a todos, porque representa uma ruptura com os elos de solidariedade que tão fortemente unem o grupo (...) fazer parte de um grupo, ser membro de uma corporação, pertencer a uma família, tudo isso é mais forte do que se apresentar como alguém por seu próprio destino, sua biografia. É o grupo que dá ao indivíduo a explicação de sua própria vida (BOMENY, 2010, p. 26) Mas, nem sempre foi assim e nem é assim em todas as sociedades: as sociedades primitivas permitiam esse contexto por serem sociedades fechadas com pouco movimento externo e, nesse caso, o coletivo era mais forte do que o indivíduo. No momento da Revolução Industrial, o cenário foi alterado: a população aumentou, a troca de mercadorias foi incrementada, assim como as formas de comunicação e as trocas de ideias entre unidade 2 032 SOCIEDADE E CULTURA as pessoas. Nesse contexto, a individualidade prevaleceu. Os indivíduos passaram a ter uma individualidade única, com personalidade e características individuais e um novo elo passou a predominar: a solidariedade orgânica (BOMENY, 2010). A solidariedade orgânica emerge quando os membros de um grupo são solidários porque existe uma interdependência entre eles e cada um atua numa esfera própria. Nesse sentido, a divisão do trabalho toma a conotação de responsável pela integração social e organiza a sociedade. Essa divisão do trabalho se refere à especialização, em que o processo produtivo é dividido em etapas e cada trabalhador atua numa etapa e não em toda a produção. Ela também é conhecida como especialização de funções econômicas porque extrapola o ambiente das fábricas e chega à sociedade na divisão do trabalho em setores ou profissões. FIGURA 17 - Divisão do trabalho Fonte: Acervo Institucional Também há a divisão relacionada “à segmentação da sociedade em diferentes esferas e ao surgimento de novas instituições, como o Estado, a escola e a prisão” (BOMENY, 2010, p. 26-27). Lembra-se da ideia da sociedade funcionando como um organismo vivo? Pois é, com essa especialização, os indivíduos passam a realizar tarefas especializadas para contribuir para o funcionamento desse organismo social. A sobrevivência se torna dependente de bens e serviços que podem ser oferecidos por outros. E isso passa a ligar os indivíduos uns aos outros com regras e princípios que possibilitam uma duração da sociedade. Mas, falamos anteriormente que, na sociedade pós-industrial, somos diferentes uns dos outros, lembra? E é exatamente por isso que precisamos ser solidários. Convivemos com regras e normas que orientam nossos comportamentos e, quando não as cumprimos, somos punidos. Quando as normas de uma sociedade se enfraquecem, ocorre o que Durkheim chamou de anomia. unidade 2 033 SOCIEDADE E CULTURA CONCEITO A anomia é uma desorganização da sociedade que enfraquece a integração dos indivíduos. Quando as regras sociais e os valores que guiam as condutas e legitimam as aspirações dos indivíduos se tornam incertos, perdem o seu poder ou, ainda tornam-se incoerentes ou contraditórios devido às rápidas transformações da sociedade; resulta daí um quadro de desarranjo social denominado anomia (DIAS, 2005, p. 114). EXEMPLO O crime organizado (tráfico de drogas, por exemplo) é um típico caso de anomia, porque as leis e normas prisionais não conseguem contê-lo mesmo quando os traficantes estão presos. Em geral, os indivíduosadotam condutas “anômicas” quando se veem sem referências e controles que possam organizar e limitar seus desejos e aspirações. Essas condutas são reconhecidas em nossa sociedade como condutas marginais, geralmente relacionadas à violência, visto que as normas do grupo deixam de dirigir o comportamento dos indivíduos. Não é um abandono total das regras da sociedade, mas um afastamento, uma violação das leis da sociedade. PRÁTICA APLICAÇÃO Vamos retomar o conceito de anomia para verificá-lo na prática? Exatamente por se mostrar um conceito diferenciado, é importante vê-lo no cotidiano para aumentar o nosso entendimento. Como vimos, anomia é um sentimento de ausência de normas e regras. Mas não podemos afirmar que seja sinônimo de ausência de lei mesmo quando aqueles indivíduos que demonstram uma conduta anômica violam a lei. Por exemplo, nos campos de concentração nazista, podemos afirmar que os prisioneiros viviam em condição de anomia, “[...] era como se um indivíduo anômico tivesse perdido o passado, não previsse qualquer futuro e vivesse somente no presente imediato, o qual parece ser nenhum lugar” (DIAS, 2005, p.114). Vejamos o texto a seguir para ilustrar esse exemplo dos campos de concentração nazista: unidade 2 034 SOCIEDADE E CULTURA As pessoas que sobreviveram aos campos de concentração nazistas testemunharam que, enquanto encarceradas, elas estavam em um estado que poderia ser considerado de extrema anomia. Ao entrarem nos campos, elas mantiveram os seus valores habituais, incluindo um sentimento de íntima identificação com seus camaradas sofredores. Eles se tratavam com compaixão, cooperavam para tapear os guardas e não se roubavam uns aos outros. Pouco a pouco, porém, algumas delas mudavam. Impelidas pela privação, saúde precária, tortura e ameaça de exterminação, elas passavam a violar as normas que prezavam grandemente à época da admissão. Algumas roubavam dos seus camaradas; algumas informavam sobre prisioneiros que tinham violado os regulamentos; outras buscavam privilégios especiais colaborando com os seus captores, de um modo ou de outro. Estes desertores se afastaram dos seus colegas prisioneiros, não tanto física como espiritual e psiquicamente. Eles sabiam que não pertenciam àquele mundo, mas não tinham nenhum outro mundo no qual participar. Eles abandonaram as normas às quais eles tinham anteriormente subscrito, mas eles não tinham nenhum sistema de normas substitutivas que fosse consistente, amplo ou conscientemente reorganizado e aceito. Não mais eram compassíveis em relação aos seus colegas, mas também não os odiavam. Eles simplesmente não tinham nenhum sentimento, assim dizendo, para com eles ou a respeito deles. O comportamento atual não era nem “bom” nem “ruim”, era simplesmente um comportamento de sobrevivência. Simplesmente era. (DRESLLER, 1990, p.160) Esse texto nos indica e exemplifica que a anomia significa o enfraquecimento das normas numa sociedade. Trata-se de desorganização da sociedade ou de um grupo social que acaba enfraquecendo a integração dos indivíduos. MAIS PARA SABER FATOS SOCIAIS Já falamos que Durkheim propunha um método específico para a Sociologia se tornar uma ciência objetiva e um dos pressupostos que ele propunha era tratar os fatos sociais como coisas. Essa é a primeira e a mais importante regra que um sociólogo deve seguir. Veja o que ele diz a esse respeito em sua obra “As Regras do Método Sociológico”: unidade 2 035 SOCIEDADE E CULTURA A proposição segundo a qual os fatos sociais devem ser tratados como coisas– proposição que está na base de nosso método – é das que têm provocado mais contradição. Consideram paradoxal e escandaloso que assimilássemos às realidades do mundo exterior as do mundo social. Era equivocar-se singularmente sobre o sentido e o alcance dessa assimilação, cujo objeto não é rebaixar as formas superiores do ser às formas inferiores, mas, ao contrário, reivindicar para as primeiras um grau de realidade menos igual ao que todos reconhecem nas segundas. Não dizemos, com efeito, que os fatos sociais são coisas materiais, embora de outra maneira. O que vem a ser uma coisa? A coisa se opõe à ideia assim como o que se conhece a partir de fora se opõe ao que se conhece a partir de dentro. É coisa todo objeto do conhecimento que não é naturalmente penetrável à inteligência, tudo aquilo de que não podemos fazer uma noção adequada por um simples procedimento de análise mental, tudo o que o espírito não pode chegar a compreender a menos que saia de si mesmo, por meio de observações e experimentações, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis aos menos visíveis e aos mais profundos. Tratar os fatos como coisas não é, portanto, classificá-las nesta ou naquela categoria do real; é observar diante deles uma atitude mental. É abordar seu estudo tomando como princípio que se ignora absolutamente o que eles são e que suas propriedades características, bem como as causas desconhecidas de que estas dependem, não podem ser descobertas pela introspecção, mesmo a mais atenta.” (DURKHEIM, 2007, p. XVII-XIX). As proposições de Durkheim provocaram acaloradas discussões na época e, por esse motivo, seu esforço em explicar o que significa tratar os fatos sociais como coisas, com o objetivo de esclarecer sua posição. Trata-se de uma atitude mental do sociólogo que o faz se comportar diante dos fatos da mesma maneira que qualquer cientista faria diante de seu objeto de estudo. É se considerar diante de “objetos” ignorados, assumindo um desconhecimento sobre os fatos a serem analisados. Como vimos, Durkheim foi um clássico da Sociologia que tentou explicar a sociedade caótica no século XIX, consequência das revoluções ocorridas. A fim de verificar um pouco da teoria de Durkheim aplicada às análises sociológicas em nossa sociedade, o blog Alma Prolixa é uma boa indicação. Disponível em: http://goo.gl/ cGDVor. unidade 2 036 SOCIEDADE E CULTURA Trata-se de um blog para publicação de resenhas, artigos e resumos sobre vários temas das Ciências Sociais, Teologia, Literatura e Arte. No artigo indicado, é abordada a perda de valores na sociedade, que pode nos levar a retrocessos de variadas formas. Ele também fala sobre a mídia e os efeitos colaterais do excesso de informações que recebemos e que muitas vezes dificultam o nosso discernimento entre o certo e o errado. Vale a pena a leitura. Além desse artigo, você irá verificar outros com temas interessantes e, às vezes, polêmicos. Não deixe de conferir! REVISÃO Nesta unidade, estudamos: • O objeto de estudo da Sociologia que, segundo Durkheim, são os fatos sociais e suas características: coercitividade, generalidade e exterioridade. • Os fatos sociais, que devem ser tratados como coisas e que o sociólogo deve afastar de suas noções prévias sobre o objeto a ser investigado. • As regras de Durkheim para a observação dos fatos sociais, mantendo uma postura objetiva em relação às suas características exteriores. • Os dois tipos de solidariedade. Aprendemos que tanto a solidariedade mecânica quanto a orgânica garantem a coesão social. • O conceito de divisão do trabalho e sua relação com a solidariedade mecânica e orgânica. • A anomia e a importância das regras e normas para o funcionamento da sociedade. 3UNIDADE unidade 3 038 SOCIEDADE E CULTURA O MÉTODO DE ANÁLISE DE KARL MARX Vamos começar esta Unidade observando a figura abaixo. FIGURA 18 - O mito de Platão Fonte: Acervo Institucional Essa imagem ilustra a Alegoria da Caverna escrita pelo filósofo Platãoem sua obra “A República”. Trata-se de um mito que exemplifica a possibilidade que temos de nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona e encontrar a luz da verdade. É um convite para nossa imaginação! unidade 3 039 SOCIEDADE E CULTURA Ilusoriamente, nós, indivíduos na sociedade, muitas vezes nos acorrentamos a falsas crenças e preconceitos e, com isso, nos mantemos inertes presos a poucas possibilidades, distantes da luz da verdade. Isso significa que vivemos muitas vezes alienados da realidade que nos cerca, percebendo o mundo de forma enganosa pelo senso comum. Abordaremos essa alienação da realidade nesta unidade, em que conheceremos o pensamento de Karl Marx. No campo científico, análogo ao Mito da Caverna de Platão, os diferentes teóricos trazem luz de forma variada sobre o mesmo objeto, pois as teorias iluminam peculiarmente a realidade, obtendo diferentes resultados e a partir de modelos teóricos particulares (COSTA, 2005). Na Unidade 1, abordamos o pensamento positivista de Auguste Comte e, na Unidade 2, conhecemos os pressupostos de Durkheim sobre a análise da sociedade. Nesta unidade, conheceremos o clássico da sociologia alemã: Karl Marx. Suas ideias são contrastantes com as ideias de Durkheim e também com as ideias de Auguste Comte. Marx foi extremamente envolvido em atividades políticas, o que o levou ao exílio na Grã-Bretanha. Lá, assistiu de perto o surgimento e aumento do número de fábricas e operários, o que intensificou seu interesse pelo movimento operário europeu e pelas ideias socialistas. Quem foi Karl Marx? Karl Marx (1818 – 1883) foi filósofo nascido na Alemanha, na cidade de Treves. Seu pensamento sintetizou diferentes preocupações filosóficas, políticas e científicas de sua época. Seu pensamento se expressa pela teoria do materialismo histórico que originou uma corrente de pensamento revolucionária do ponto de vista teórico e prático (COSTA, 2005). Apesar de seus escritos se concentrarem na maior parte na economia, Marx sempre se preocupou em relacioná-los com instituições sociais e suas obras apresentam, portanto, grandes reflexões sociológicas. Iniciaremos nosso estudo a partir do seu método de abordagem da vida social: o materialismo histórico. unidade 3 040 SOCIEDADE E CULTURA FIGURA 19 - Karl Marx Fonte: <http://goo.gl/LkYtp>. Acesso em 11/06/2013. os fatos econômicos são a base sobre a qual se apoiavam os outros nÍveis da realidade, como a política, a cultura, a arte e a religião. E, ainda, de que o conhecimento da realidade social deve se converter em um instrumento político, capaz de orientar os grupos e as classes sociais para a transformação da sociedade (DIAS, 2005, p.24). Na perspectiva marxista, a função da sociologia seria, portanto, contribuir para a realização de mudanças radicais na sociedade. Isso difere do que os positivistas propunham que era solucionar os problemas sociais e restabelecer a ordem social. Os positivistas se preocuparam com as questões relacionadas à manutenção da ordem na sociedade e concentram sua atenção na estabilidade social. O marxismo via a luta de classes como a realidade evidente na sociedade e, portanto, responsável pelas alterações sociais. Marx estudou a sociedade capitalista desde seus estágios iniciais de desenvolvimento e, por isso, sua teoria é fundamental para entendê-la. unidade 3 041 SOCIEDADE E CULTURA O MATERIALISMO HISTÓRICO Para ajudar a compreensão sobre o Materialismo Histórico, leia o exemplo abaixo. Certamente, você já passou pela situação de reencontrar alguém que não via há muitos anos. E, nesse reencontro, você ou a outra pessoa se observaram e perceberam algumas mudanças um no outro. Algumas características se mantiveram, mas outras se alteraram. Outra experiência é observar as modificações em nosso corpo, por exemplo, na passagem para a adolescência: algumas modificações são imperceptíveis e depois mais visíveis com o passar dos anos; outras se tornam visíveis em intervalos de tempo menores. Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo, o que torna possível tais modificações foi a chegada do “novo” em oposição ao “velho”. O que chega não é inteiramente diferente do que já estava antes. Por exemplo, o corpo de um adolescente não é totalmente diferente de um corpo de criança. Sempre existe uma identificação do velho com o novo mesmo diante de importantes transformações. Toda essa analogia é para entendermos que Marx também via a sociedade desta forma: uma composição entre o velho e o novo. Para ele, “a história da humanidade é a história desse embate constante entre o velho e o novo, entre os interesses dos que já foram e dos que ainda estão por vir”. (BOMENY; FREIRE-MEDEIROS, 2010). Ao pensar no desenvolvimento das sociedades, esse “embate” é entre os interesses dos que já foram e dos que estão por vir, em que os fatores econômicos são a principal fonte. Nesse sentido, o materialismo histórico é uma abordagem metodológica de análise da sociedade utilizada por Karl Marx, segundo a qual as principais fontes de mudança social estão nos fatores econômicos. A teoria marxista aponta a luta de classes como motor da história, ou seja, o que pode modificar a estrutura da sociedade. Fonte: Acervo Institucional FIGURA 20 - Burguesia e Proletariado EXEMPLO unidade 3 042 SOCIEDADE E CULTURA E isso tem total relação com o materialismo histórico, pois os sistemas sociais passam de um modo de produção a outro. Por exemplo, do modo de produção feudal a sociedade passou para o modo de produção capitalista a partir da industrialização. Essa transição ocorre, de acordo com Marx, através da revolução, como resultado das contradições econômicas. Fonte: Acervo Institucional FIGURA 21 - Transição do modo de produção feudal para o capitalista Hegel faz notar algures que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos se repetem por assim dizer uma segunda vez. Esqueceu-se de acrescentar: da primeira vez como tragédia, da segunda como farsa. Caussidière por Danton, Louis Blnac por Robespierre, a Montanha de 1848 a 1851 pela Montanha de 1793 a 1795, o sobrinho pelo tio (...) Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas sim nas condições diretamente determinadas ou herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa inexoravelmente no cérebro dos vivos. E mesmo quando estes parecem ocupados em transformar-se, a eles e as coisas, em criar algo de absolutamente novo, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que evocam com inquietação os espíritos do passado, que lhes tomam de empréstimo os seus nomes, as suas palavras de ordem, os seus costumes, para entrarem na nova cena da história sob esse disfarce venerável e com essas palavras emprestadas (...) (MARX, 1990, p.17) Neste trecho da obra “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx demonstra a concepção do materialismo histórico em que as relações materiais estabelecidas pelos homens e o modo como produzem seus meios de vida formam a base de todas as suas relações e constitui um modo determinado de vida, refletindo exatamente aquilo que são. unidade 3 043 SOCIEDADE E CULTURA Na sequência, Marx vislumbrava a suplantação do sistema capitalista por uma nova ordem instalada: uma sociedade sem divisão entre pobres e ricos. Essa mudança só seria possível por uma revolução em que a classe trabalhadora derrubasse ocapitalismo e abrisse as portas para um novo tipo de sociedade. Para essa revolução, Marx e Engels convocam os trabalhadores a romperem com o modo capitalista, em uma frase celebre: “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. Isso significa que Marx vislumbrava a possibilidade de uma sociedade que não seria dividida entre o monopólio do poder político e econômico por uma classe e, de outro lado, uma massa de indivíduos de uma classe menos favorecida. Assim, o sistema econômico se assentaria na posse comum, na igualdade, tornando a sociedade mais evoluída e eficaz do que a sociedade capitalista. Seria um modelo de sociedade denominado de socialista, descrito em sua obra “O Manifesto Comunista”, escrita em conjunto com Engels. Está claro o significado de materialismo histórico? Por exemplo, dependendo da forma como os homens se organizam para produzir, o pensamento e a consciência são decorrência da relação homem/natureza. Isso significa uma dependência das relações materiais estabelecidas por eles. É a relação homem/natureza que determina a forma como o indivíduo se relaciona com a sociedade e com outros indivíduos. Ou seja, a consciência e o pensamento do indivíduo são determinados por sua forma de produção. PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO Outros dois conceitos importantes na compreensão da Sociologia Marxista são o de produção e reprodução. Esses conceitos auxiliam no entendimento das carências dos indivíduos na produção de seus meios de vida, pois, para Karl Marx, o homem é sujeito que produz a si próprio em sua vida pela produção e manutenção de sua existência. Os homens produzem seus meios de vida em busca de sua sobrevivência e recriam a si próprios. Além disso, acabam reproduzindo sua espécie numa transformação contínua pela ação das sucessivas gerações. Assim, os seres humanos interagem com a natureza e com outros indivíduos dando origem à vida material (QUINTANEIRO, BARBOSA, OLIVEIRA, 1999). unidade 3 044 SOCIEDADE E CULTURA CONCEITO Produção é, portanto, a atividade em que os indivíduos recriam a si próprios e reproduzem sua espécie num processo transformado pela ação de suas sucessivas gerações. Marx considera que são as forças produtivas que constituem as condições materiais de toda a produção. O homem é o principal elemento das forças produtivas, sendo responsável por ligar a natureza, a técnica e os instrumentos. O desenvolvimento da produção vai determinar a combinação e o uso desses diversos elementos: recursos naturais, mão de obra disponível, instrumentos e técnicas produtivas. Essas combinações procuram atingir o máximo de produção em função do mercado existente. A cada forma de organização das forças produtivas corresponde uma determinada forma de relação de produção (COSTA, 2005, p.121). A premissa de análise sociológica marxista se fortalece com o conceito de produção, pois demonstra a existência de indivíduos que interagem com a natureza e com outros indivíduos, originando a vida material. Para Marx, o primeiro fato histórico é a produção dos meios que permitem a satisfação de suas necessidades, ou seja, a produção de sua própria vida material. Essa condição, segundo ele, é fundamental em toda a história e deve existir a fim de manter os homens vivos. FIGURA 22 - Produção do homem Fonte: Acervo Institucional unidade 3 045 SOCIEDADE E CULTURA As formas de satisfazer as necessidades são produções históricas que dependem do grau de civilização da sociedade. Com o desenvolvimento das formas de organização social, os homens vão buscando novas formas de produção, modificando-as com o tempo. Essas formas vão passando de geração a geração e é o que Marx chama de reprodução. O processo de produção e reprodução se dão, portanto, pelo trabalho. O trabalho para Marx é a atividade humana básica que constitui a história dos homens (QUINTANEIRO, BARBOSA, OLIVEIRA, 1999). CONCEITO O conceito de produção em Marx é uma forma de existência humana na vida social. A reprodução, que deriva da produção, se liga mais à vida social, porque está vinculada às relações sociais e ao desenvolvimento da sociedade. CLASSES E ESTRUTURA SOCIAL Você já observou como há desigualdade em nossa sociedade? Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/8tAM6>. Acesso em 04/01/2013. Isso acontece porque na sociedade capitalista, mesmo que as pessoas dependam umas das outras, a divisão do trabalho leva a uma hierarquia baseada na posse ou não dos meios de produção. É nesse ponto que a desigualdade social opõe os que têm muito e os que têm pouco. Então, como surgem as classes sociais? Marx demonstra em sua teoria sociológica que as classes sociais surgem dessa divisão do trabalho e estão vinculadas à circunstâncias históricas específicas que “possibilitam a apropriação privada das condições de produção” (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002, p.40). É dessa divisão do trabalho que emerge a classe operária (proletariado) e a classe capitalista FIGURA 23 - Desigualdade social unidade 3 046 SOCIEDADE E CULTURA (burguesia) que passam a protagonizar o drama histórico do capitalismo. Desse modo, a divisão de classes emerge a partir do processo de produção onde os indivíduos estabelecem entre si relações sociais para produzir e se reproduzir (QUINTANEIRO, 2002, p. 40). ATENÇÃO! É possível afirmar que, segundo Marx, a divisão das classes sociais não se vincula ao nível de renda ou origem dos rendimentos simplesmente, pois a renda não é um fator independente da produção, mas “uma expressão da parcela maior ou menor do produto a que um grupo de indivíduos pode ter direito em decorrência de sua posição na estrutura de classes” (QUINTANEIRO, 2002, p.41). A configuração básica de classes nos termos expostos (...) expressa-se, de maneira simplificada, num modelo dicotômico: de um lado, os proprietários ou possuidores dos meios de produção, de outro, os que não os possuem. Historicamente, essa polaridade apresenta- se de diferentes maneiras conforme as relações sociais e econômicas de cada formação social. Daí os escravos e patrícios, servos e senhores feudais, aprendizes e mestres, trabalhadores livres e capitalistas. (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002, p.41). Esse modelo de divisão de classes marxista, atualmente, é insuficiente para analisar as variações presentes em nossa sociedade, já que, ao observamos as desigualdades sociais e as classes sociais existentes, veremos uma variedade como classe A, B, C, D e por aí vai. O esquema marxista é um modelo puro de divisão de classes com consequências variadas para a vida em sociedade. Porém, esse esquema pode ser muito útil para identificar a configuração básica das classes, sua influência na dinâmica da sociedade e as relações entre classes sociais. Marx acreditava que a tendência era a separação entre o trabalho e os meios de produção de forma cada vez mais intensa. Essa separação iria concentrar e transformar os meios de produção de forma cada vez mais intensa em capital e o trabalho iria se transformar em trabalho assalariado. FIGURA 24 - Trabalho assalariado Fonte: Acervo Institucional unidade 3 047 SOCIEDADE E CULTURA Para o método de análise marxista, é pela luta de classes que mudanças estruturais principais são impulsionadas. Essa luta de classes é relacionada diretamente à superação das contradições existentes e é denominada na teoria marxista como o “motor da história” por representar a possibilidade de mudanças.
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