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A letra: Comunicação e Expressão

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1
jorge bacelar
universidade da beira interior
a letra:
comunicação e expressão
2
A Letra: Comunicação e Expressão
Série - Estudos em Comunicação
Direcção: António Fidalgo
Capa e Arranjo Gráfico: Jorge Bacelar
Execução Gráfica: Serviços Gráficos da Universidade da Beira Interior
Tiragem: 500 exemplares
Covilhã, 1998
Depósito Legal Nº 129826/98
ISBN - 972-9209-66-9
3
3
5
7
1 1
12
21
26
30
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42
43
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73
74
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81
82
83
84
89
90
91
92
97
107
113
117
119
122
Índice
Nota prévia
Introdução
A Racionalização do Alfabeto
Caligrafia
As formas da Tipografia
Os primeiros tempos da Tipografia
De Plantin a Bodoni
Raízes da Tipografia contemporânea
Ligações com a vanguarda artística
De Constable a Kandinsky
Impressionismo
Post-impressionismo e expressionismo
Fauvismo
Art-Nouveau
Cubismo
Futurismo
Da Evolução à Revolução
A Irracionalidade (Dada)
Surrealismo
Arte não-figurativa
Descobrir a ordem no caos
A vanguarda Russa
Arte pela Arte / Arte pela Sociedade
El Lissitszky e Alexandr Rodchenko
Theo van Doesburg
Piet Zwart
O Ponto fulcral - Bauhaus
Origem
A Ideia
Tipografia na Bauhaus
Johannes Itten
Laszló Moholy-Nagy
Herbert Bayer
Joost Schmidt
El Lissitszky e van Doesburg
O Fim e o (re)Começo
A Nova Tipografia
Meios Electrónicos e Formas Tipográficas
Conclusão
Bibliografia
Glossário
Índice onomástico
4
A Letra: Comunicação e Expressão
Peço-vos que imaginem, perante vós, uma garrafa de vinho
e duas taças - uma de ouro maciço, lavrada com a filigrana mais requintada;
a outra do cristal mais fino e transparente - os verdadeiros apreciadores de vinho
escolherão, a meu ver, a taça de cristal, porque nela tudo está pensado
para revelar, e não para esconder, a beleza do seu conteúdo.
Beatrice Warde, The Crystal Goblet, Londres, 1955
(cit. por McLEAN, Tipography, Londres, 1980)
A Robert Heinlein, Paul Klee e Rolando Sá Nogueira
por me terem ensinado a olhar com fascínio para o mundo.
A ti, para que não penses que o dedico a outra...
(Almada Negreiros)
5
Nota prévia
Era intenção deste projecto desenvolver uma
investigação sobre a evolução estética dos signos
tipográficos (letras, números e caracteres especiais),
avaliando-a através de referências contemporâneas
nas artes plásticas. Mas, para justificar a invenção
da tipografia, há que descrever o Renascimento nas
suas vertentes históricas, filosóficas, sociais e
económicas. Para compreender a opção de
Gutenberg em copiar literalmente o desenho da
caligrafia gótica, haveria que recuar um milénio na
nossa História para traçar o desenvolvimento da
caligrafia e da letra decorada nos scriptoria
monásticos, a sua estética própria, as características
formais desenvolvidas localmente devido ao
isolamento, às guerras territoriais e à miscigenação
de tribos “bárbaras” com a civilização romana em
declínio. Seria necessário passar pela normalização
imposta por Carlos Magno na caligrafia e na
produção de documentos. Eventualmente seria
necessário recuar ainda mais, até Roma, onde nasce
um desenho de letra que ainda hoje é utilizado,
bastando para tal observar as letras maiúsculas
presentes nesta página, descendentes directas das
formas gravadas na pedra dos monumentos
romanos...
Foi portanto necessária a imposição de limites, pois
corria-se o risco de embarcar numa viagem
interminável, tantas são as ramificações que cada
assunto permite, os motivos de fascínio e pistas de
investigação em cada época ou autor. E os limites
ficaram assim bastante mais estreitos no aspecto
temporal: de meados do século passado até à
fundação das bases da tipografia contemporânea.
6
A Letra: Comunicação e Expressão
Desde o período romântico até Jan Tschichold, com
o estabelecimento e divulgação dos princípios
operativos e estéticos do design tipográfico, após o
desmantelamento da Bauhaus pelos nazis.
Existe uma ideia subjacente (talvez preconceituosa)
à investigação proposta: a tipografia reflecte as
tendências das artes plásticas, influenciando-as por
seu turno. É essa suposição que se pretende
confirmar, seguindo esta premissa: cada época
possui as suas características históricas, económicas,
sociais, religiosas, filosóficas, que condicionam
todos os campos da actividade humana. A pintura
tem sido vulgarmente utilizada pelos historiadores
como padrão para confirmar e ilustrar as suas teses.
E a tipografia? O desenho das letras, a forma dos
livros, o arranjo das páginas, não estarão igualmente
condicionados por esses mesmos factores? Não
poderão contribuir igualmente para uma com-
preensão mais lata da época? Daí a hipótese da
existência dum paralelismo entre a evolução das
escolas pictóricas e da estética tipográfica.
Produção e comércio do livro.
Xilogravura, 1491
7
Introdução
No início era o pictograma.
Poderia iniciar-se desta forma uma História da
Comunicação Não Verbal. Desde que o Homem
descobre a possibilidade de estabelecer registos que
o transcendam no tempo, que lhe sobrevivam,
passando testemunhos de conquistas e derrotas,
angústias e alegrias, temores de deuses e demónios.
Sobre os mais diversos suportes, com as mais
diversas formas e instrumentos, evoluindo no
conteúdo, abstractizando-se. Distanciando-se cada
vez mais da forma primordial.
Mas há um e outro refluxo. E se o pictograma é
reapropriado uma e outra vez pelas artes plásticas,
o fonograma, descendente distante, adquire uma
dimensão estética impensada pelos seus inventores.
A letra deixa de ser unidimensional, de poder
expressar apenas um som, de estar submetida a um
conjunto rígido de regras. Pode tornar-se veículo de
significados múltiplos, universalmente reconhe-
cidos, ou código secreto, cuja chave é exclusiva do
seu autor.
É neste intervalo, limitado a um tempo de algumas
décadas, que se fará este levantamento sobre a evolução
formal dos signos tipográficos. Desde o seu
constrangimento à rígida norma gramatical, até à sua
emancipação, por parte das vanguardas artísticas do
princípio do nosso século, libertando-os do seu
significado meramente fonético, extraíndo-os do
alinhamento das palavras e das frases, convulsionando
as páginas dos livros e dos jornais.
Pretende-se encontrar uma linha de coincidências, de
inter-relações entre as correntes estéticas que marcaram
8
A Letra: Comunicação e Expressão
as artes plásticas e a evolução do design gráfico,
nomeadamente ao nível do desenho de letra. Apesar de
se tratar de mundos diversos, de questões técnicas
divergentes, existe algo em comum entre a pintura e as
artes gráficas: comunicação visual.
Pressupondo a existência dessa linha de influências
recíprocas entre a tipografia e a pintura, seguir-se-á
um fio condutor baseado no tempo cronológico:
iniciando-o em Gutenberg, terminando em Jan
Tschichold, uma espécie de apóstolo da Bauhaus e da
tipografia moderna, incidindo uma maior atenção no
período de cerca de 100 anos, desde o surgimento da
pintura romântica e dos primeiros jornais diários, ao
fim da Bauhaus e do estabelecimento do design gráfico
como disciplina de comunicação, pois é neste período
da nossa História recente que a comunicação visual é
elevada à categoria de ciência, passando a desempenhar
um papel fulcral na cultura contemporânea,
constituindo um dos pilares da Civilização da Imagem.
E essa hipotética linha de intersecção, de influências
recíprocas, teria o seu início no preciso momento da
invenção da imprensa, em meados dos século XV.
Os primeiros tipos teriam sido desenhados, gravados,
fundidos e utilizados por Gutenberg na sua
publicação inicial, supostamente uma Bíblia de 42
linhas, terminada em 1456. 0 invento de Gutenberg
consistiu em grande parte na integração de várias
tecnologias disponíveis na época (gravação com
punçãode aço, moldagem e fundição em matriz
metálica ou de areia, prensagem mecânica, tintagem
e impressão xilográficas), com a criação de um
sistema de fundição de letras individuais que
poderiam ser combinadas num número infindável de
sequências1. Este sistema passou a constituir a base
mecânica da impressão (Silveira, 1985).
1- O princípio de impressão de
letras e imagens a partir
duma superficie em relevo já
era conhecida e aplicada
desde a antiguidade. Contudo,
esta tecnologia confinava-se à
produção de estampas
com motivos religiosos
e cartas de jogar.
9
Os desenhos de letra baseados nos manuscritos
medievais, foram gravados, fundidos e utilizados nos
primeiros 50 anos de existência da imprensa. Alguns
dos desenvolvimentos técnicos alcançados nesta
primeira fase, viriam a tornar-se nas bases de
alfabetos tipográficos ainda hoje em uso, não
obstante as modificações estruturais sofridas com
o desenvolvimento da fotomecânica e da foto-
composição. Por exemplo, as letras negras gravadas
por Gutenberg, continuaram a ser utilizadas
praticamente sem alterações na Alemanha, até
meados do século passado. Mas existem outros
desenhos tipográficos primitivos que, reflectindo
igualmente sensibilidades medievais acabariam por
ser abandonados, sendo hoje tão estranhos e
invulgares aos nossos olhos como as letras
manuscritas que lhes deram origem. É o caso do
primeiro alfabeto gravado em Inglaterra por Wiliam
Caxton, baseado numa letra negra Inglesa, que
ostenta um aspecto muito mais grosseiro e
desagradável, se comparado com os tipos huma-
nísticos seus contemporâneos, tipos estes que viriam
a determinar por muito tempo as normas estéticas
dos caracteres de imprensa.
A dificuldade e o extremo trabalho necessário para a
produção de tipos, condicionaria a proliferação de
estilos e corpos, que só se tornaria viável com o
aumento do número de gravadores, impressores e
desenhadores treinados para este novo ofício.
Letra negra Inglesa, de Williarn
Caxton, 1477
Caracteres Humanísticos, de
Aldus Manutius, Veneza, 1475
Introdução
1 0
A Letra: Comunicação e Expressão
Contudo, estimam-se entre 8 e 10 milhões de volu-
mes produzidos até 1500, ou seja, menos de 50 anos
após a conclusão da primeira obra impressa (Drucker,
1995).
O princípio inventado por Gutenberg permitiu imitar
a escrita manuscrita, conseguindo a transformação
desta numa escrita mecanizada. A forma tipográfica
adquire, a partir da sua origem e do seu constante
confronto e coexistência com a escrita manuscrita,
uma permanente tendência cursiva no seu sistema
normalizado. Daqui surge uma oposição típica entre
cursividade e normalização, entre a pulsão
individualizante e a norma socializante, entre a
individualidade2, e os códigos sociais que facilitam a
comunicação (Blanchard et al, 1992).
A imprensa será para a caligrafia o que a fotografia é
para o desenho: uma imitação mecanizada do acto
manual de traçar, escrever, desenhar ou pintar. Por
isso, a industrialização converterá a tipografia na
grande difusora da mensagem escrita. A tipografia
começa no Ocidente com a imprensa gutenberguiana
e situa os pontos chave do seu desenvolvimento
sucessivamente na Alemanha, Itália e França, com
as letras Gótica, Humanística e Romana Moderna.
Após Gutenberg, a tipografia seria reinventada
inúmeras vezes: os tipógrafos tentariam perma-
nentemente ajustar um sistema mecânico à
evolução da escrita manual. Desde que se iniciou
a multiplicação dos caracteres, de início artesa-
nalmente (sobre madeira e, mais tarde, sobre
metal), e depois de forma industrial, as tradições
da escrita (ou das escritas) estabeleceram uma
série de referências sobre as formas da tipografia.
Destas referências extraíram inspiração os
sucessivos criadores. Obtiveram-se assim formas
2 - Por individualidade, neste
contexto, entenda-se não só a
grafologia dos indivíduos,
mas também a dos povos
 e das épocas.
1 1
alteradas, modificações e simplificações, numa
série de evoluções e involuções, marcando
percursos para futuros diferentes ou para um
regresso ao passado.
A Racionalização do Alfabeto
É pacífica a ideia de que a invenção da imprensa
trouxe alguma normalização à escrita alfabética. No
entanto, deveremos ter em conta que a própria escrita
continuou a diversificar-se formalmente, à medida
que as suas funções se especializavam. A palavra
impressa é apenas uma das áreas do território mais
vasto das formas escritas produzidas no Renas-
cimento. Tal como na Idade Média, em que as
tradições da gravação em pedra subsistiram em
simultâneo com o desenvolvimento de métodos
altamente diferenciados, tanto para a produção de
textos manuscritos, como para uso em documentos
da actividade secular, também no Renascimento
essas tradições foram mantidas, reinterpretadas de
acordo com as necessidades das diversas áreas da
actividade humana servidas pela linguagem escrita.
Gutenberg ficaria relacionado com a imitação da
chamada letra gótica, que se empregava na sua época
e região. Aldus Manutius, entre outros, situa-se no
período da escrita latina cursiva, “descoberta” pelos
humanistas e utilizada nas chancelarias (ministérios
e repartições oficiais do Vaticano) até aos começos
do século XVI. Adoptada e adaptada dos grafismos
romanos, a capital monumental das inscrições
lapidares e a capital rústica, formaram o esqueleto
original, sendo esta tipografia a que mais tempo
prevaleceu como norma estética, persistindo ainda
hoje em grande medida por todo o mundo ocidental.
Introdução
1 2
A Letra: Comunicação e Expressão
A Didot caberia a criação do primeiro sistema de medida
de corpos de letra, o ponto didot, sistema que ainda
hoje vigora em todo o mundo ocidental3 (Blanchard et
al, 1992). Bodoni estabeleceria finalmente um sistema
conceptual que auto-nomizaria o desenho tipográfico
da caligrafia, imprimindo aos signos tipográficos um
carácter de rigor e formalismo mecânico, reflexo da
racionalidade cada vez mais presente na produção
tipográfica.
Caligrafia
O milénio compreendido entre a queda do Império
Romano e a invenção da Imprensa testemunhou o
desenvolvimento da escrita, tanto como efectivo
meio de comunicação, como na sua vertente
decorativa. Fortemente localizada no contexto das
actividades da Igreja, nomeadamente nos
mosteiros, a caligrafia também se desenvolveu nos
domínios do poder secular.
3- A tipografia anglo-saxónica
desenvolveu um sistema de
medidas alternativo ao ponto
Didot, no qual se utiliza o
ponto pica como unidade de
medida. No entanto, o ponto
Didot coexistiu com este
sistema até à universalização
dos sistemas de edição
electrónica, vindo a cair em
desuso, desde então.
Tipografias gótica (fragmento
da Biblia de Gutenberg),
humanística (“Opera... nella
qualle si insegna a scribere”,
Aldus Manutius, Veneza, 1554)
e bodoniana (“Manuale
Tipografico” de Bodoni, 1818)
1 3
Neste período, várias escritas adquiriram identidades
gráficas próprias, assim como se desenvolveram
formas altamente sofisticadas de decoração,
transformando as formas das letras iniciais em
ornamentos visuais de grande beleza e variedade.
Apesar de individualizadas, as formas escritas na
Europa da Idade Média derivam todas da mesma
fonte Romana, vindo a ser gradualmente modificadas
por influências diversas. No entanto, a decoração
das letras iniciais revela a presença de influências
anteriores a Roma, oriundas nomeadamente das artes
metalúrgicas de tribos que migraram para a Europa
Setentrional ainda antes da era Cristã.
À medida que o Império Romano declinava, o papel
da escrita foi apropriado pelos monges, passando
os scriptoria monásticos a ser os centros de maior
produção de escrita durante esta época (com o
estabelecimento, entre 400 e 900 d.C., de mosteiros
por todo o continente Europeu e Ilhas Britânicas),
aí se garantindo a perpetuação do saber atravésda
cópia e iluminação de manuscritos. A escrita só
voltaria aos domínios da vida secular com o
desenvolvimento das universidades, a partir do
século XII.
As mudanças foram ocorrendo, adaptando-se
a escrita às transformações sociais. A escrita
mudou de campo: das inscrições monumentais,
da poesia clássica, do registo de textos legais
e históricos, para a cópia de textos religiosos
e clássicos no seio das comunidades religiosas.
Estas transformações foram acompanhadas
por algumas inovações técnicas: o vellum
(vel ino) subst i tuiu o pergaminho como
suporte material e o codex (folhas agrupadas
em livros) substituiu definitivamente os rolos.
Introdução
1 4
A Letra: Comunicação e Expressão
As capitais monumentais, concebidas para
inscrições na pedra, foram substituídas por
configurações gráficas originadas pelo uso da pena
em vez do cinzel.
Três formas de escrita foram legadas por Roma: a
capital monumental, que se degradou na sua
adaptação à escrita manual, a capital rústica,
originada pela escrita a pincel ou estilete, cuja
adaptação à forma caligráfica foi muito mais fácil e
imediata, e a uncial4, escrita cursiva latina, ainda de
configuração maiúscula, que seria a fonte donde viria
a derivar a maior parte da produção caligráfica medie-
val. Surgiram igualmente novas formas cursivas,
provenientes dos grafismos rápidos da escrita à pena,
caracterizando-se por uma simplificação gráfica dos
caracteres. Este cursivo, tal como outras escritas de
chancelaria produzidas por uma escrita rápida, era
muito utilizado em documentos oficiais que não
requeriam o carácter grandioso dos desenhos de letra
utilizados para as gravações lapidares (Ansel-
mo,1991). No entanto, cada escriba possuia o seu
próprio sistema de notação gráfica, o que
provocava enormes dificuldades na interpretação
dos registos.
Finalmente, a divisão dos elementos ao longo do
texto passa a ser visualmente marcada de modo a
Caracteres unciais
4- o termo uncial é atribuído a
uma declaração de S. Jerónimo,
no século IV, condenando a
utilização nos manuscritos de
caracteres excessivamente
grandes, com a altura de uma
polegada, que os tornava
ineficazes e deselegantes
(Drucker, 1992). Do termo
latino para polegada, uncia,
derivou uncial.
1 5
que títulos, inícios de frase, conclusões e
comentários se organizem espacialmente, indiciados
por diferentes tamanhos e desenhos, num grau de
maior complexidade do que era praticável nas
inscrições monumentais.
No século IV existiam mosteiros por toda a Itália e
Sul de França, onde formatos romanos como a uncial
e a meia-uncial tiveram o seu desenvolvimento. No
século seguinte as tradições célticas emergiram,
interligando-se com o estabelecimento do Cris-
tianismo na Irlanda. Com a expansão para Inglaterra,
a escrita viria a sofrer novas influências de origem
Anglo-Saxónica. Nos inicios do século VII estavam já
estabelecidos scriptoria por todo o Norte da Europa.
Sendo locais muito sensíveis dos mosteiros, estavam
muitas vezes instalados em torreões fortificados ou
em zonas interiores, em busca de uma maior invul-
nerabilidade em caso de ataque5.
Em meados do século IV uma forma modificada,
conhecida como meia-uncial, surgiu no sul da
Europa, ganhando rapidamente popularidade. Foi
este o primeiro alfabeto a apresentar uma minúscula
regularizada, vindo a tornar-se norma para toda a
produção escrita referente aos assuntos da Igreja por
todo o continente (Drucker, 1995).
Nos séculos IV e V, aproveitando a desagregação
do Império, movimentos migratórios de tribos não
romanizadas iam ganhando terreno e, das misturas
culturais provenientes da sua fixação, emergiram
entidades política, social e culturalmente isoladas.
A consequente diversidade cultural exarcebaria a
diferenciação das formas escritas de tal modo que
em vez de traçar uma simples linha de evolução,
seria necessário fazer referência às escritas de
localidades específicas, povos e períodos históricos.
5 - O valor atribuido aos livros
era de tal modo elevado, que o
roubo de um manuscrito era
considerado um crime grave.
Os copistas por vezes
invectivavam os potenciais
ladrões, gravando maldições
nos manuscritos:
“Se alguém levar este livro,
que sinta a morte, que seja
frito em óleo fervente, que as
doenças e as febres tombem
sobre ele, que seja quebrado
na roda e enforcado. Amén.”
(Drucker 1995: 94)
Introdução
1 6
A Letra: Comunicação e Expressão
Enquanto a uncial romana e a meia-uncial se
estabeleciam e desenvolviam nos Estados Italianos,
foi nas Ilhas Britânicas que estas formas adquiriram
características de excepção e um grau de sofisticação
estética inultrapassadas na escrita medieval. É de notar
que a Irlanda nunca fizera parte do Império Romano,
tendo a escrita latina entrado no território com os
missionários cristãos. Aí introduzida, a meia-uncial
rapidamente evoluiu para um estilo regional, conhecido
como uncial artificial, com uma elaboração formal
muito mais cuidada.
Entre os séculos VI e IX os monges Irlandeses
trabalharam num relativo isolamento das influências
continentais (e mesmo Britânicas), desenvolvendo
uma forma escrita que atingiria o seu apogeu por
volta do ano 800, com a produção de obras como o
Livro de Kells. Neste livro estão presentes os
elementos plásticos que caracterizaram o estilo
Hiberniano (Irlandês). Nesta forma caligráfica, fez-
-se uma utilização sistemática de ligações entre letras,
definindo-se um formato original com sarifos densos,
quase triangulares, proporcionando aos caracteres uma
sugestão de movimento fluído e gracioso
(Meehan,1994). A flexibilidade dos copistas perante
a forma dos caracteres permitiu-lhes modificar a
sua aparência (enquanto letras individuais ou
mesmo enquanto palavras) sem grandes
constrangimentos, de modo a poderem acomodá-
las com elegância dentro dos limites da página. Não
condicionados por fórmulas que impusessem
sequências lineares, os copistas deram largas à sua
criatividade, descobrindo processos originais para
o tratamento gráfico dos textos. Além das
complexas soluções descobertas para a resolução
dos problemas impostos pelo tratamento dos
1 7
textos, as páginas do Livro de Kells contêm
algumas das mais elaboradas iluminuras jamais
produzidas.
Entretanto, o desenvolvimento de escritas locais na
Europa nos séculos V e VI reflectia a contínua
redistribuição do poder, as sucessivas vagas de
invasão e as alterações na composição cultural das
diferentes regiões. No final do século V o primeiro
rei dos francos, Clovis, consolidou as tribos
estabelecidas ao longo do Reno, constituindo o reino
Merovíngio. A escrita de livro Merovíngia que surgiu
nesses territórios passou a constituir a norma da
Livro de Kells. Evangelho
segundo S. Lucas, pormenor do
folio 250v.
Introdução
1 8
A Letra: Comunicação e Expressão
escrita dos francos. Esta caligrafia caracterizava-se
pelas suas verticais muito pronunciadas, formas
tortuosas, ramificações e convulsões gráficas. Um dos
problemas que estes documentos viriam a provocar
no futuro, seria o da extrema dificuldade na sua
interpretação, pois para além dos já referidos
grafismos intrincados que os caracterizavam, muitos
copistas ignoravam o seu significado por não
dominarem o latim, limitando-se a reproduzir os textos
que tinham perante si por simples observação visual.
O período seguinte de relativa estabilidade e unidade
na escrita europeia surgiu nos finais do século VIII,
com a consolidação do poder de Carlos Magno,
estabelecendo uma unidade administrativa nos
domínios políticos e culturais. Em 789, a minúscula
Carolíngia foi instituída por decreto e floresceu, como
instrumento e como signo desta ordem política,
mantendo-se como padrão de escrita por toda a
Europa, até cerca do ano 1000 (Drucker, 1995).
As minúsculas carolíngias denotavam claras influências
Romanas, nomeadamente no formatoda meia-uncial,
influências essas que teriam sido deliberadamente
marcadas e promovidas pelo próprio Carlos Magno,
no sentido de demonstrar que o seu poder e o seu
reinado derivavam em linha recta da antiga ordem
Romana. Esta continuidade seria ainda mais enfatizada
pela adopção do desenho das capitulares quadradas
romanas como norma para a titulação dos manuscritos
carolíngios.
Ainda nesta fase de normalização da escrita, foram
determinadas as proporções verticais das letras,
eliminando-se os exageros estilísticos dos seus
ascendentes e descendentes (porções da letra que
ultrapassam as linhas que delimitam a altura do
seu corpo), através do estabelecimento duma
Escrita Merovíngia
1 9
estrutura de orientação e contenção do texto, composta
por quatro linhas horizontais (Wilson, 1991). O
resultado final foi um desenho de letra que viria a
influenciar os calígrafos Italianos dos séculos XV
e XVI, atraídos pela sua clareza, legibilidade e
elegância, bem como pela aura clássica que possuía
e transmitia. Os modelos destes primeiros
calígrafos do Renascimento, por seu lado
influenciariam o desenho dos primeiros tipos
fundidos em Itália. Através desta linhagem, a
minúscula carolíngia teve uma influência marcante
no design de muitas caracteres tipográficos ainda
hoje em uso.
No fim do século IX o império de Carlos Magno
começaria a desintegrar-se, devido tanto aos conflitos
internos entre os seus descendentes, como devido
às incursões agressivas de várias tribos em migração.
Vikings, no norte, Magiares, vindos da Ásia Central,
a leste, e a pressão dos Árabes por todo o
Mediterrâneo, Palestina e Península Ibérica, contri-
buiriam decisivamente para o restabelecimento do
caos na Europa.
Apesar da persistência da escrita carolíngia durante
algum tempo, em meados do século XI a diversidade
tinha reassumido o terreno das formas escritas. Nos
Minúsculas Carolíngias
Introdução
2 0
A Letra: Comunicação e Expressão
séculos XII e XIII, com a fundação das primeiras
Universidades em vários pontos da Europa e, em
consequência, com o ressurgir de uma cultura laica,
a escrita deixa de ser património quase exclusivo
das ordens religiosas. A maior procura de textos,
por um público cada vez mais vasto e exigente
(nobres, professores e estudantes das Un-
versidades), contribui para o surgimento de um
novo ofício, o de amanuense, que se torna cada vez
mais importante e difundido, sobrevivendo até
muito tempo depois da invenção da imprensa com
caracteres móveis. Estes escribas laicos organizaram
oficinas (chegando mesmo a constituir corporações)
onde cada exemplar do livro a copiar era dividido
em cadernos distribuídos a diversos copistas de
modo a suprimir um pouco a lentidão dos processos
de cópia, acelerando a sua produção (McMurtrie,
1965). A pesquisa de novas técnicas para acelerar
o processo reprodutivo torna-se rapidamente numa
exigência, dada a crescente procura de livros por
uma sociedade que descobre o valor e a necessidade
de instrumentos idóneos para o seu
desenvolvimento cultural. E são estas exigências e
estas experiências organizativas que vão criando o
cenário para o surgimento de um dos maiores
inventos da História: a imprensa de caracteres
móveis.
Mesmo após a aparição e consolidação deste
invento, devido à normalização estabelecida com a
fundição dos tipos de imprensa, os copistas e os
amanuenses não desapareceram, continuando em
linha paralela com a imprensa de caracteres móveis,
concorrendo com ela, influenciando-a formalmente,
estabelecendo e desenvolvendo a caligrafia como
forma autónoma de arte.
2 1
As formas da Tipografia
No Ocidente existem dois grandes grupos
tipográficos: os Latinos (conhecidos como
Antiqua, na tradição anglo-saxónica) e os Góticos
(Letra negra ou Inglesa antiga). Cada um está
subdividido em numerosas famílias, que frequen-
temente não apresentam fronteiras claramente
definidas.
O desenvolvimento das formas tipográficas que
mais nos dizem respeito começou em Roma. A
escrita Romana com formas básicas provenientes
do quadrado, triangulo e círculo, era realizada em
letras capitais. Estas, enriquecidas por entradas
posteriores - G, J, K, U, W, X, Y e Z - quando
reduzidas à sua estrutura, apresentam um ritmo
visual único e agradável, independentemente da
sequência l inear em que se encontrem
organizadas.
Esta escrita, originalmente utilizada apenas na
gravação em pedra, foi entrando noutros
domínios, passando a ser registada diariamente
em tábuas de cera, adaptando-se ao instrumento
de escrita utilizado, o estilete, bem como à
velocidade de registo que este permitia. A escrita
foi-se tornando cada vez mais estenográfica.
Quando a pena de ganso passou a ser utilizada,
assim como o papiro e o velino adoptados como
materiais de escrita, surgiram as capitais rústicas.
Geralmente apresentavam-se inclinadas devido à
velocidade a que podiam ser escritas. As capitais
rústicas corriam (do Latim currere): daqui provém
a designação de cursivas às letras que imitam a
escrita caligráfica. São igualmente a fonte dos tipos
classificados como itálicos, pois a sua primeira
Introdução
2 2
A Letra: Comunicação e Expressão
versão surge em Itália, criada pelo impressor
veneziano Aldus Manutius em l501.
A escrita dos primeiros séculos do Cristianismo era
a uncial, derivada do arredondamento do desenho
das antigas capitais Romanas. Nem as rústicas nem
as unciais possuíam letras minúsculas. Apenas
existiam algumas tentativas para melhorar a sua
legibilidade pelo recurso aos ascendentes ou
descendentes. A primeira tentativa de construção de
um alfabeto com maiúsculas e minúsculas verifica-
se com a meia-uncial, onde existem variações na escala
dos caracteres, no sentido de obter contraste e
hierarquia entre as letras grandes (maiúsculas) e as
pequenas (minúsculas).
Com o renascimento científico no reinado de Carlos
Magno, a preocupação com a preservação e uso da
palavra escrita teve novo incremento. Era necessária
uma forma de escrita que fosse fácil de produzir e
ler. Desenvolveu-se então uma caligrafia a partir da
uncial e da meia-uncial com uma grande variedade de
formas, tanto rectilíneas como redondas, que podia
ser rapidamente produzida com uma pena de ganso.
Trata-se da primeira escrita a apresentar uma
minúscula normalizada e com um desenho próprio,
independente do formato da maiúscula corres-
pondente.
No norte da Europa, o período gótico influenciaria
igualmente as formas caligráficas, que se tornariam
ponteagudas, quebradas e esguias, originando assim
a letra negra, fonte de uma das duas grandes famílias
tipográficas ocidentais.
A classificação de formas caligráficas e tipográficas
é um campo em que calígrafos, designers tipo-
gráficos, gravadores, pintores, editores e estudiosos
de várias áreas do saber devotaram a sua atenção ao
2 3
longo dos séculos, com graus de sucesso variáveis.
Nenhum sistema foi estabelecido, apesar dos
esforços para encontrar uma classificação aceitável
universalmente. Uma situação semelhante ocorre
na classificação das artes: os mesmos estilos e
períodos foram baptizados com nomes diversos,
épocas distintas numa classificação, uniformizadas
noutra, provocando a desorientação e o erro.
Sem entrar em detalhes profundos, os caracteres
tipográficos em uso na nossa época podem ser assim
caracterizados:
A primeira família, os caracteres latinos (ou
romanos), tem três classes:
1 - Veneziana, incorrecta mas tradicionalmente
conhecida como Medieval. Representativos desta
classe são os caracteres de Garamond, Aldus
Manutius e Jenson, desenhados e utilizados nos
séculos XV e XVI. As maiúsculas deste período
reproduzem as inscrições em pedra feitas mais de
mil anos antes em Roma. Os pés, diagonais e
sarifos, que foram acrescentados no século VII às
letras pequenas, devido ao grafismo dos aparos de
pena manipulados numa posição oblíqua ao plano
de escrita,evoluiram gradualmente até à sua fixação
definitiva em tipo metálico.
2 - Romana Antiga, que surge no período barroco.
Os exemplos mais marcantes provêm das
tipografias de Janson, Caslon, Baskerville e
Fournier, caracterizados pelo reforço do contraste
entre bastões e filetes, bem como do aumento da
variedade de formas de letra, possíveis com as
técnicas de gravura em chapa de cobre.
3 - Romana Moderna, o formato do período
neoclássico, utilizado até à época Vitoriana. Os
Introdução
2 4
A Letra: Comunicação e Expressão
nomes mais representativos são os de Bodoni e
Didot. Muitas versões destas Romanas Modernas
foram feitas até às primeiras décadas do século
XIX, mantendo-se algumas delas ainda em uso,
transformadas e adaptadas aos gostos e tecnologias
actuais.
Surge então outra grande familia tipográfica de
caracteres lineares, mas morfologicamente
descendente da latina, conhecida com designações
tão diversas como Gótica, Grotesca, Egípcia,
Italiana ou Clarendon. Estes nomes pouco ou nada
têm a ver com as características morfológicas desta
família, devendo-se a fantasias e tradições surgidas
no meio tipográfico. Pode ser subdividida em duas
classes:
- Lineares Sans-Sarif, cujas linhas uniformemente
finas reflectem a estrutura dos caracteres latinos.
Eram escritas ou desenhadas com um aparo
redondo.
- Lineares com sarifos, à semelhança da classe an-
terior que se caracteriza pela (quase) uniformidade
na espessura dos seus traços, mas que possui
sarifos. As Egípcias apresentam sarifos com a
mesma espessura das linhas estruturais, sendo
caracterizadas pela sua ortogonalidade, sem
arredondamentos nas intersecções. A Italiana (que
nada tem a ver com os tipos itálicos), é legível e
tolerável apenas em palavras isoladas. Tem linhas
horizontais e sarifos densos, contrastando com a
ligeireza das verticais. As Clarendon, diferem das
Egípcias pela diferença de espessura entre bastões
e sarifos, bem como pelo seu arredondamento nos
pontos de intersecção com a estrutura do caractere.
Os tipos Cursivos desenvolvidos a partir dos
textos escritos nas Chancelarias, bem como pelo
2 5
interesse por eles demonstrado no Renascimento,
tiveram um período de cerca de dois séculos a partir
da invenção da imprensa em que se podiam considerar
uma família tipográfica autónoma. Ao longo do
tempo foram perdendo essa autonomia, passando
actualmente a ser apenas variantes de qualquer classe
tipográfica. A sua função resume-se à diferenciação
de partes do texto (citações e destaques).
Por último, os tipos de Fractura, Góticos ou Letra
Negra, estão a ser cada vez mais postos de parte.
No tempo de Gutenberg, em meados do século XV,
a Letra Negra Estreita ou Escrita de Livro era o
padrão em vigor em quase toda a Europa. As curvas
das letras eram decompostas em pequenos segmentos
lineares originados pelo aparo cortado em bisel,
originando páginas com uma textura notável, mas de
difícil leitura.
Desde o início da tipografia que os artistas gráficos
(tipógrafos, gravadores, designers) têm feito inú-
meras experiências no campo da concepção e
desenvolvimento de novos desenhos tipográficos.
No nosso século, essas tentativas são inúmeras,
veiculando na maior parte dos casos mais o cunho
do seu autor do que propriamente uma inovação
marcante, seja nas características formais, seja na
eficácia e legibilidade do tipo. Muitas demonstraram,
com o passar dos anos, ter tanta qualidade como as
antigas, enquanto a maioria simplesmente se
desvaneceu, dado se limitarem a ser forma sem
conteúdo, simples ecos de modas.
A letra n em sete variações de
tipo redondo. Da esquerda para
a direita: Veneziana (também
chamada Medieval), Romana
Antiga, Romana Moderna,
Sans Sarif (ou Grotesca),
Egípcia, Italiana e Clarendon.
Introdução
2 6
A Letra: Comunicação e Expressão
Os primeiros tempos da Tipografia
No princípio do século XV os livros eram
inteiramente manuscritos. Apesar de se utilizar ainda
o pergaminho ou o velino (pele de vitela
especialmente tratada), o uso do papel, feito de
desperdícios e trapos de linho, era cada vez mais
comum.
O comércio de livro já existia, e a sua manufactura
estava, como já foi referido, organizada em
rudimentares linhas de produção. No entanto, o livro
continuava muito longe de ser um objecto de uso
quotidiano. Dada a situação quase universal de
analfabetismo, os conhecimentos continuavam a
transmitir-se oralmente, sendo os eruditos abastados,
instituições eclesiásticas e algumas casas da alta
nobreza, os únicos que poderiam dar-se ao luxo da
sua compra, pois um simples livro de papel poderia
custar até dez vezes o salário de um operário
qualificado. Mas a instrução ia-se alargando,
fundavam-se Universidades, e era imperioso
descobrir um método de produzir livros mais
eficiente e rápido do que a reprodução manual de
cada uma das suas letras.
Gutenberg, ourives de ofício, sabia como fundir
objectos metálicos, moedas, por exemplo, como
cunhar ou estampar letras ou imagens no metal. A
sua ideia consistia no estabelecimento de um
processo de mecanizar a produção de livros,
adoptando estas técnicas para copiar os seus textos.
Ignora-se como ou quando concebeu a ideia de fundir
caracteres metálicos individuais, combináveis em
palavras que, uma vez impressas, seriam
desmontadas para reorganizar os caracteres em no-
vas palavras que seriam de novo impressas. O
2 7
Introdução
importante é que essa ideia foi levada à prática,
provocando assim uma das maiores mudanças na
história da humanidade.
Gutenberg teve a visão de conjugar todas as técnicas
e matérias primas já existentes e ao seu dispor,
acrescentando-lhes o conceito inovador do caractere
móvel. O papel e o velino que existiam em quantidade
suficiente, tintas, prensas de madeira utilizadas para
o linho e as uvas, modelos para copiar com uma
caligrafia de grande regularidade, bem como os
conhecimentos de metalurgia e de ourivesaria que
possuía, constituíram os ingredientes necessários
para pôr em marcha a sua ideia.
Gutenberg tinha também a sensatez necessária para
saber que o êxito do seu invento dependia da total
verosimilhança entre o produto impresso e o livro
manuscrito. Para o conseguir, teve de cunhar e fundir
várias versões dos mesmos caracteres, bem como
diferentes ligações entre letras, de modo a poder
imitar todas as variações do manuscrito escolhido
para reproduzir. Fundiu assim uma familia
tipográfica que ultrapassava os trezentos tipos,
número exorbitante, se comparado com uma qualquer
família tipográfica moderna que, com caixa alta, caixa
baixa e caracteres especiais, em pouco ultrapassará
os cinquenta tipos.
O processo de fundição dos caracteres consistia numa
sequência de operações iniciada com a gravação de
cada letra ou sinal em relevo num bloco de aço,
originando os punções correspondentes a cada
caractere. Estampando estes punções num bloco de
metal mais maleável, obtinham-se as matrizes, que
por sua vez eram aperfeiçoadas até se transformarem
no molde final. Nestes moldes era vertida uma liga
metálica que tinha de responder aos seguintes
Algumas das cerca de 300
letras e ligações alternativas
necessárias para simular as
páginas manuscritas.
2 8
A Letra: Comunicação e Expressão
quesitos: permitir uma fusão fácil, uma fluidez
uniforme do metal dentro do molde e uma resistência
ao desgaste que permitisse pressioná-lo inúmeras
vezes contra o velino ou o papel, mantendo a nitidez
do desenho inicial. Esta liga era composta por
chumbo, antimónio (que aumenta a dureza e reforça
os filetes) e estanho (que impede a oxidação e
facilita a fusão do chumbo), e a sua fórmula
manteve-se praticamente inalterada até ao advento
da fotocomposição (McLean, 1980).
No capítulo da impressão, Gutenberg constatou
que a melhor tinta era uma mistura de óleo de linhaça
e de pigmentos utilizada pelos pintores de óleos.
É de referir que a sua qualidade,no que respeita à
densidade dos negros e indelebilidade, nunca foi
superada.
Gutenberg compôs a sua Bíblia com caracteres cujo
desenho imitava a caligrafia que a Igreja do Norte
da Europa utilizava para produzir as suas Bíblias
e missais6. Trata-se de uma letra classificada como
gótica negra ou gótica de forma (Fioravanti, 1983).
Tem um desenho esguio, rectilíneo, praticamente
sem curvas, mais desenhada que escrita. O seu
formato, para além das semelhanças morfológicas
com a arquitectura da Europa Setentrional, seria
motivado pela necessidade de colocar em cada linha
o maior número possível de letras, dado o custo do
velino e do papel (McLean,1980). Quanto à sua
legibilidade, o mínimo que se pode dizer é que é
deficiente. Os caracteres não são suficientemente
diferenciados entre si: o n, por exemplo, é
composto por dois ii e o m por três, fazendo com
que combinações como mni se tornassem
confusas. Mas a legibilidade não ocupava grande
espaço entre as preocupações dos copistas
6- A Bíblia de 42 linhas é
considerada o primeiro livro
impresso no ocidente: a sua
realização foi uma tarefa tão
imensa e onerosa que terá
provavelmente sido a causa da
ruína de Gutenberg. Consta de
1286 páginas no formato
290 x 409 mm, repartidas em
dois volumes.
Calcula-se que os exemplares
realmente impressos por
Gutenberg rondassem os
duzentos, sendo cerca de trinta
sobre velino. Dos 48
exemplares conhecidos (36
sobre papel e 12 sobre velino),
só 21 estão completos
(McMurtrie, 1965).
2 9
Introdução
medievais. Esta caligrafia formal permitia realizar
páginas muito densas, com uma textura muito
característica. O que se perdia em legibilidade,
ganhava-se em beleza.
Enquanto a letra gótica, nas suas diversas
variantes, seria o tipo mais utilizado na Alemanha
até meados do nosso século, os estudiosos
humanistas da Itália do século XV preferiam os
caracteres redondos; os impressores que
protagonizaram a expansão da tipografia a todos
os cantos da Europa, iam fundindo famílias de
caracteres copiadas das caligrafias que os seus
Página da Biblía de 42 linhas
de Gutenberg
3 0
A Letra: Comunicação e Expressão
clientes preferiam. Nas obras dos impressores
que, tendo ultrapassado os Alpes, se iam fixando
cada vez mais para sul, pode verificar-se a
substituição da gótica negra pela redonda (ou
humanística). Numa outra direcção geográfica,
Inglaterra, a imprensa também se expandia. Em
1476 já aí se encontrava, pela mão de William
Caxton. Todos os tipos utilizados por Caxton
eram variantes da gótica negra, ou adaptações da
caligrafia medieval anglo-saxónica, que originariam
a letra negra inglesa. Gradualmente, os
impressores ingleses foram adoptando os critérios
estéticos seguidos em França, abandonando a
gótica, substituindo-a pela redonda (Fioravanti,
1983).
De Plantin a Bodoni
No princípio do século XVI, os livros impressos
começavam a tornar-se objectos verdadeiramente
autónomos, e não meras cópias de manuscritos.
O que não aconteceu sem oposição: os copistas,
vendo no avanço da imprensa uma séria ameaça
para o seu ofício, cerraram fileiras, tentando lançar
a suspeita sobre a legitimidade dum processo que
pretendia reproduzir a palavra de Deus sem a
intervenção do Homem. Havia igualmente repulsa
da parte de alguns bibliófilos, que declaravam
jamais admitir a presença dum livro impresso na
sua biblioteca (McLean, 1980). Ao princípio
lenta e cautelosamente, e depois cada vez mais
depressa, o progresso da imprensa praticamente
acabou com o ofício de copista; só então houve
liberdade e terreno para se estabelecerem
convenções e características próprias. A portada
3 1
Introdução
(ou página de rosto), que quase nunca existira nos
manuscritos, tornou-se norma. Geralmente era aí
impressa a marca e o nome do impressor (que era
cumulativamente, o editor). Foi desenhada a
cursiva em Itália (motivo por que também foi
conhecida por itálica), inspirada na caligrafia rápida
usada na produção de documentos nas cancelarias
do Vaticano e das Cortes (daí ser igualmente
conhecida como Chanceleresca). A cursiva tornou-
-se rapidamente numa alternativa tipográfica para
os caracteres redondos, já que tinha a vantagem
de ser simultaneamente compacta e elegante,
mantendo-se como família tipográfica autónoma
durante cerca de dois séculos, vindo a transformar-
se gradualmente no que é hoje, uma variação da
redonda.
A mais antiga representação
conhecida de uma
prensa tipográfica.
Xilogravura, com a marca
de um impressor francês
(Josse Bade, sécs. XV e XVI).
3 2
A Letra: Comunicação e Expressão
Neste mesmo período verificou-se que já não havia
necessidade de decorar manualmente os livros
impressos, pois as técnicas de gravação e impressão
com chapa de cobre ou aço já estavam perfeitamente
conhecidas e dominadas.
Entre os impressores-editores do século XVI, o mais
célebre terá sido Plantin, que estabeleceu uma oficina
que se manteve em actividade por mais de 300 anos.
Plantin estabeleceu algumas das características formais
do desenho tipográfico em França que viriam a
influenciar toda a produção livreira na Europa
Ocidental nos séculos seguintes. Nesta casa editora
ter-se-ia dado início à colaboração regular entre
artistas plásticos e gráficos. Rubens, por exemplo,
desenhava e gravava portadas em chapa de cobre para
as edições de Plantin (Drucker, 1995).
Nas artes plásticas deste século verifica-se a
solidificação dos princípios filosóficos do Renas-
cimento. O fascínio pelas civilizações clássicas, o ideal
humanista tendente a tornar o Homem na medida de
todas as coisas, a procura da verdade pelo estudo com
o abandono gradual do dogma religioso. Até ao
surgimento do capitalismo moderno e do estado
absoluto, as imagens eram escassas, tinham um
carácter único, o seu preço (mesmo para as de pior
qualidade) era elevado, eram concebidas como
instrumento didáctico ou político de uso colectivo
(igrejas e edifícios públicos) e, em qualquer caso,
apenas as classes dominantes podiam deter, a título
privado, um grande número de imagens para uso e
fruição particular.
Esta situação adquire novo aspecto no fim do período
medieval. Por um lado, o sistema feudal começou a
ser ultrapassado pelo moderno Estado centralizado,
graças a um complexo movimento social que traria
3 3
Introdução
consigo o fim da servidão da gleba e o crescimento
das cidades. O aumento da circulação monetária
permitiria, sobretudo nalgumas regiões, iniciar um
movimento expansionista para a indústria e o
comércio. O descobrimento de novos territórios e
de novas vias comerciais, incrementando o
crescimento geral da riqueza traria consequencias
psicológicas notáveis, de que se pode destacar o
desenvolvimento do individualismo. Coincidindo
com a aparição do capitalista, o industrial ou o
comerciante independentes, que triunfam a título
exclusivamente pessoal, de um modo similar ao do
general ou do escritor, o artista, produtor de imagens,
afirma mais do que nunca a sua posição privilegiada
na tentativa de alcançar a independência
relativamente às antigas mas ainda poderosas
corporações profissionais. No seu campo de acção,
o antigo repertório temático (iconografia religiosa) é
ampliado graças à importância que é atribuida à
mitologia e à história clássica, sabiamente utilizadas
em função dos interesses do cliente. Por outro lado,
outros géneros menos comuns até então, como o
retrato ou a paisagem, testemunham a crescente
importância dada ao indivíduo e a progressiva
utilização figurativa do meio natural (ruínas,
paisagens ideais). Sem sair do campo da arte
tradicional, é de salientar que as inovações nas
técnicas pictóricas e escultóricas contribuiram de
modo significativo para aumentar a “densidade
iconográfica” (Ramirez, 1976:23). A pintura
sobre madeira, de pequeno formato e custo, em
comparação com o fresco, seria quase abandonada
graçasaos novos suportes como o cobre e, sobretudo,
o linho. Com este último puderam obter-se grandes
formatos, facilidade de transporte dado o seu
reduzido peso e consideráveis reduções nos custos.
3 4
A Letra: Comunicação e Expressão
O pintor não precisava agora de sair do seu atelier e
podia executar, graças a uma adequada racionalização
do seu trabalho (que incluia em muitos casos a
participação de vários ajudantes e aprendizes), um
número de obras muito superior num reduzido prazo
de tempo. O óleo, que manteria durante séculos uma
supremacia indiscutível, proporcionaria imensas
possibilidades pela sua facilidade de trabalho, poder
de cobertura e subtileza e brilho resultantes. Os
quadros tornaram-se mais baratos e muitos sectores
da baixa nobreza e da burguesia nascente passaram a
rodear-se de imagens de si próprios, de familiares
ou de acontecimentos célebres da história, da religião,
dos mitos ou da natureza. Nos Países Baixos
surgiram mercados abertos de imagens pintadas,
iniciando um processo de separação entre o artista e
o comprador, que culminaria com a total
dessacralização da imagem.
A linearidade que caracterizava as relações sociais e
culturais da Idade Média desaparece no
Renascimento, em que estas relações se tornam cada
vez mais complexas. A imprensa de caracteres móveis
surgiu e difundiu-se a uma velocidade vertiginosa.
Com ela surgem os autores de todos os géneros,
graças aos quais a consagração, contestação e/ou
proposição de novos valores sociais, passando pelas
prensas, será difundida. No campo da arte, este novo
meio de produção intelectual assumirá um papel
ambíguo e contraditório: por um lado permitirá a
exaltação da vida e da obra de grandes artistas,
divulgando sobre eles opiniões críticas e valorações,
numa escala sem possibilidades de comparação com
a capacidade de produção e difusão dos produtores
de imagens. Enquanto o que se afirmava sobre uma
imagem poderia chegar a um público virtualmente
3 5
Introdução
ilimitado, essa mesma imagem, dado o seu carácter
de obra única (passível de cópia mas não de
repetição), ficava necessariamente reservada à
contemplação por um ínfimo grupo populacional, o
que permitia a manutenção da “aura” de certas obras,
criando-se assim mitos e hábitos de percepção icónica
fortemente impregnados de “literatura”. Por outro
lado, o livro foi o principal veículo de difusão de
outras imagens, o motor de uma verdadeira
democratização da imagem, antecedendo os modernos
mass-media. Esta função foi possível graças à gravura
nas suas diversas aplicações: incorporada nos
frontispícios, vinhetas e caixilhos decorativos, nas
ilustrações interiores em inúmeros tratados literários
ou científicos. Com estes paradoxos e contradições,
o livro e os conteúdos por si veiculados serão
porventura responsáveis por algumas das
ambiguidades e insuficiências das noções sobre arte
que herdamos.
No campo específico da tipografia e da caligrafia,
surgiram tratados sobre a construção de
alfabetos baseados nos mesmos princípios da
Em cima: Albrecht Dürer,
construção de maiúsculas, 1525
Ao lado: Alfabeto de Leonardo
da Vinci e Fra Luca Pacioli,
C.1540
3 6
A Letra: Comunicação e Expressão
razão que nortearam o pensamento dos estudiosos
da época.
Albrecht Dürer e Leonardo da Vinci, entre outros,
deixaram o seu contributo neste campo, influenciando
o desenho de caracteres tipográficos e o ressur-
gimento de uma tradição caligráfica que entrara em
declínio com o surgimento da imprensa.
Os livros Franceses do século XVII, decorados com
ornamentos tipográficos, ilustrações e margens
xilogravadas, estabeleceram padrões para o design
de livros que se mantiveram em vigor até ao fim da
tipografia metálica. Alguns nomes, como Estienne,
Geoffrey Tory, Garamond, Granjon, deixaram nesta
época a sua marca na história da tipografia.
O gosto pelo excesso ornamental e estilístico do
Barroco marca fortemente o panorama das artes
plásticas deste período, sendo a imprensa (nomea-
damente a francesa) um espelho desse fascínio pelo
ornamento. Um grande impulso é dado com a criação
da Imprimerie Royale, uma espécie de editora do
Estado que, com a participação da Academie des
Sciences, desenvolve um projecto para a criação de
um tipo oficial, exclusivo da casa real, as Romains
du Roi (McLean, 1980), que se tornaria a curto prazo
no padrão estético de praticamente toda a produção
tipográfica na Europa.
No século XVIII, a tipografia sofre novos
desenvolvimentos, agora na Grã-Bretanha, que se
liberta das influências francesas do século anterior,
tentando estabelecer padrões próprios. Dois nomes
marcantes dessa evolução são William Caslon e John
Baskerville, autores de várias famílias de caracteres
ainda hoje em uso, bem como de um estilo editorial
muito próprio (poder-se-ia dizer Britânico), clás-
sico, sóbrio, sem ilustrações ou ornamentos de
De Imitatione Christi
Imprimerie Royale, 1640
T e K de Geoffrey Tory,
baseados nas proporções humanas
(Champfleury, 1529)
3 7
Romana Moderna
(Catálogo de Didot, 1800)
Introdução
qualquer espécie. A arte de imprimir e os
cuidados nos acabamentos das suas edições faz
com que os seus livros sejam referenciados pelos
seus nomes e não pela obra ou autor neles
impressos. Os tipos romanos de Caslon
baseavam-se no desenho produzido pelas plumas
caligráficas de aparo quadrado: deslocando-se
lateralmente, a linha é fina, movendo-se para
baixo, grossa. Esta variação de espessuras
provoca um efeito sobre as letras redondas como
o e e o o, conhecida na tipografia como
modulação oblíqua (Wilson,1991).
No século XVIII, também chamado século das
Luzes ou da Razão, os caracteres tipográficos
abandonariam as ligações que ainda mantinham
com a escrita caligráfica, convertendo-se em
formas autónomas sujeitas a desenvolvimentos
tanto formais como intelectuais. Foi um francês,
Firmin Didot, que deu esse passo, criando a
romana moderna, com uma modulação vertical
(perpendicular à linha de escrita) e cujos remates,
ou sarifos, são filiformes. Apesar de se tratar de
uma solução intelectual e teoricamente lógica,
nunca foi muito popular entre os tipógrafos
anglo-saxónicos, que preferiram continuar na linha
estabelecida por Caslon e Baskerville. No entanto
em França, e nos restantes países da Europa me-
ridional, os tipos modernos foram adoptados
rapidamente para quase todo o material de leitura.
Estes tipos de Didot pareceriam no século XVIII
tão lógicos e racionais como os tipos lineares para
os modernistas dos anos vinte do nosso século.
Este conceito das romanas modernas teria o seu
desenvolvimento final com o tipógrafo italiano
Giambattista Bodoni. Os seus tipos foram-se
3 8
A Letra: Comunicação e Expressão
Alfabeto tipográfico de Bodoni
tornando gradualmente mais formais, rígidos e
geométricos,
 “(...) engrossando os traços grossos, adelgaçando
os finos. Tão perfeitos eram estes caracteres nos
seus detalhes, que conferiam aos livros um estilo
tão oficial como uma coroação e tão frio como os
vizinhos Alpes”.
(McLean,1980:22).
Neste período as artes plásticas refletem o retomar
das ideias Renascentistas, abandonando os excessos
do Barroco e do Rococó, retratando situações do
presente cronológico através de alegorias e
referências morais da cultura greco-romana,
utilizadas pelos poderes surgidos da Revolução
Francesa tanto para ilustrar a ruptura com o antigo
regime, como para apresentar didacticamente um
modelo a seguir nos novos tempos. Modelo que se
imporia nas artes, no vestuário, no mobiliário, na
organização social e política. Estas transformações
radicais abririam fendas nas estruturas mentais da
sociedade europeia, algumas com séculos de
existência, levando-as à sua desintegração e
originando uma sucessão de revoluções de cariz
ideológico e cultural que ainda hoje não terminaram.
Uma destas fendas surge com a ideia de considerar
odireito à informação e à cultura, em algo tão uni-
versal e sagrado como o direito ao alimento e à
cidadania.
Para cumprir este ideal democrático, a imprensa
seria o veículo de eleição, pois permitiria
reproduzir em milhares de exemplares as ideias, as
notícias e as descobertas que cada vez mais
rapidamente se produziam. Surgem assim os
jornais, os folhetos, os cartazes, que, numa
cadência cada vez mais acentuada vão conquis-
3 9
Introdução
tando um espaço na sociedade ocidental, vindo a
ser a curto prazo algo tão essencial à existência,
como o pão e a liberdade, tal como tinham postulado
os revolucionários em França. Naturalmente que o
súbito incremento na produção e no consumo de
materiais impressos teria custos ao nível da
qualidade: a tipografia começou a perder
gradualmente os padrões de excelência que a
nortearam desde a sua génese, respondendo apenas
a critérios de rapidez, rentabilidade e de resposta
aos níveis mais banais de gosto provenientes da
sociedade burguesa em expansão nos grandes
centros urbanos.
4 0
A Letra: Comunicação e Expressão
Paul Klee, “E”, 1919
4 1
Raízes da tipografia contemporânea
As raizes da tipografia contemporanea estão mais
ligadas à poesia, arquitectura e pintura da primeira
metade do século XX, do que a qualquer grande
mudança tecnológica sentida na indústria gráfica. O
período do grande salto em frente, um tempo com
cerca de 20 anos que separa a tipografia moderna da
tipografia clássica teria o seu início com a publicação
do Manifesto Futurista em 1909.
O desenvolvimento da fotografia, de novas forças
políticas e sociais, novas atitudes filosóficas,
contribuíram igualmente para o estabelecimento de
novas atitudes que viriam a estabelecer as bases
operativas do design de comunicação.
Invenções, guerras, colapsos económicos, revoluções
políticas, mudaram não só a aparência das coisas,
mas também violentaram valores tidos como
absolutos até então. Tradições anteriormente
respeitadas e veneradas tornaram-se incómodas ou,
pior ainda, obstáculos ao progresso e à adaptação ao
novo mundo que se formava.
O advento do automóvel em 1885, da telefonia sem
fios e do cinema em 1895, das máquinas voadoras
em 1903 e de um inúmero rol de inventos e
descobertas científicas, em contraste com as chacinas
das guerras e o avolumar da miséria e da doença, fez
surgir o sentimento que “deve existir outro modo”.
Era um tempo de revolução, tanto cultural como
política. E se as forças que directamente afectavam
a tipografia neste período foram as vanguardas
poéticas, a arquitectura e a pintura, estas, por seu
lado, eram afectadas pelos fenómenos tecnológicos,
económicos, sociais e políticos que estavam então
em curso. Na segunda metade do século XIX, as
4 2
A Letra: Comunicação e Expressão
transformações sentidas na tipografia e no design
tipográfico ligavam-se às novas tecnologias de
fundição, composição e impressão. Em contrapartida.
não havia surpresas de nível visual. O período seguinte
(1880-1920) foi, pelo contrário, uma época de
fomento artístico que afectou as artes e o design de
um modo irreversível.
As ligações com a vanguarda artística
O que poderão ter Picasso, Mondrian ou Kandinsky,
por exemplo, a ver com o design de novos tipos ou
com a escolha e aplicação de ilustrações e letterings
no projecto de um cartaz ou de uma brochura?
Artistas plásticos, arquitectos e poetas do fim do
século XIX e início do século XX, desenvolveram
novos processos para a representação das relações
espaciais, das formas, texturas e cores. O seu trabalho
inovador, apresentando imagens e palavras de modos
inéditos, era contagioso: os desenhadores de
caracteres aperceberam-se das novas correntes
artísticas, leram os novos poetas, viram as novas
pinturas, abrindo os seus olhos e as suas mentes
para novas ideias, e o seu espírito criativo e perícia
técnica foram estimulados para aplicar esta lufada
de ar fresco no seu trabalho. A influência das belas-
artes não era tão subtil e remota como isso: poetas
como Guillaume Apollinaire, pintores como El
Lissitzky ou Theo van Doesburg, arquitectos como
Henry van de Velde descobriram possibilidades
insuspeitas nos elementos tipográficos existentes,
aplicando-os de modo inovador. Além disso, havia
um convívio estreito entre os criadores artísticos e
tipográficos, com a consequente permuta de ideias e
saberes. Os designers tipográficos estavam a
4 3
Raízes da Tipografia Contemporânea
aprender a não depender de formulários estabelecidos,
desenvolvendo soluções originais, surgidas de
necessidades concretas, levantadas por problemas
especificos de comunicação.
De Constable a Kandinsky
Desde o Renascimento até meados do século XIX, os
assuntos tradicionais da pintura, frequentemente
heróicos ou religiosos, baseavam-se no respeito aos
códigos clássicos da composição, na exaltação da
técnica pictórica e do saber-fazer, no uso de paletas
de cores harmoniosas, perspectivas correctas e bom
desenho. Se na arte existiu sempre algo de abstracto,
manteve-se sempre dentro de limites muito restritos.
Nos meados do século XIX o mecenato das artes pelo
Estado, pela Igreja e pela aristocracia entrou em
declínio, e os artistas tornaram-se, ou antes, foi-lhes
possível tornarem-se mais subjectivos.
Os retratos e paisagens que caracterizavam muita da
produção da época foram marcados pelos trabalhos
de Corot e Millet, em França, e, em Inglaterra, de
Constable e Turner, entre outros, que apesar de
representarem a natureza de um modo muito realista,
imprimiam algo de poético no resultado final. Estes
autores foram classificados como românticos, pela
interpretação dramática, por vezes inquietante que
faziam da natureza. Pela perspectiva actual, a sua
distância da representação convencional é
praticamente nula.
A partir de 1870, os pintores tornaram-se mais
ousados, mais subjectivos no modo de ver e
representar a realidade. Os impressionistas como
Monet, Pissarro, Renoir serão porventura os nomes
mais marcantes dessa viragem.
4 4
A Letra: Comunicação e Expressão
As paisagens de Monet, muitas vezes representando o
mesmo cenário em diversos momentos do dia, revelavam
as suas sensações perante as variações de aspecto dos
objectos provocadas por diferentes luminosidades.
Pintavam-se impressões pessoais e não apenas
paisagens. Uma nova emoção, uma vitalidade subjectiva,
gráfica e espiritual, ia emergindo dos seus trabalhos. A
pintura impressionista marcou a primeira grande
fractura com os tradicionais valores pictóricos, já velhos
de séculos.
Impressionismo
Uma interpretação mais livre do tema
Renoir, Pissarro, Monet usaram os seus pincéis mais
livremente do que era então regra. Faziam manchas
de cor ao acaso. Desenhavam contornos que não
correspondiam necessariamente ao objecto que
estavam a pintar. Mas formavam, no fim, relações
coerentes entre as partes que constituíam as suas
pinturas. O olhar concentrava-se nas características
físicas do objecto e nas impressões de cor dele
provenientes. Modificavam então a representação
do óbvio com a finalidade de obterem os efeitos
visuais de textura, cor e sentimento que pretendiam
exprimir e partilhar. Mas a sua ruptura com a
representação tradicional foi ainda mais longe:
libertaram-se gradualmente das normas da
perspectiva cónica, recorrendo a dois ou mais pontos
de fuga numa mesma composição, ou, de forma ainda
mais extrema, representando o tema dum modo
bidimensional, anulando a perspectiva. No que diz
respeito à composição, existem também sinais de
mudança, recorrendo à organização assimétrica do
campo. A cor, para além da já referida característica
4 5
Raízes da Tipografia Contemporânea
emocional, passa a ser um elemento dinâmico da obra:
liberta-se da sua função de preencher os contornos
dos objectos (desenho pintado), transbordando dos
mesmos. Nem todas as folhas têm o mesmo verde.
As sombraspossuem cor. A iluminação artificial
(primeiro a gás e depois eléctrica) tem também as
suas características cromáticas e psicológicas. Os
impressionistas aperceberam-se delas e das suas
potencialidades para a obtenção de certas atmosferas
nocturnas e decadentes. As pinceladas passam a ser
deliberadamente marcadas e a superfície deixa de ser
plana. O objecto representado torna-se menos nítido,
obrigando o espectador a observar não só a história,
mas também a superfície da pintura.
Se hoje o seu trabalho é aceite e admirado, nem
sempre assim foi. Se hoje há gente (alguns de nós
também) que reage negativamente à arte gerada por
computador ou às pinturas de Pollock ou Mother-
well, também os apreciadores de arte rejeitaram os
Impressionistas quando eles se apresentaram
publicamente, rejeitando os seus trabalhos. De
qualquer modo, apesar da recusa quase geral, o
movimento vingou, abrindo à actividade artística
percursos até então impensados.
Post-Impressionismo e Expressionismo:
Cada vez mais longe do realismo absoluto
Um maior afastamento do acto de pintar
meramente aqui lo que os o lhos vêem,
caracterizou as obras dos Expressionistas
Alemães, bem como de Van Gogh, Cézanne e
Gauguin. Seurat desenvolveu uma técnica de
aplicação das tintas através de pontos de cor pura,
em vez das pinceladas convencionais. Van Gogh
4 6
A Letra: Comunicação e Expressão
e Gauguin utilizaram massas de cor saturadas e
vibrantes, trazendo uma vivacidade e intensidade
emocional sem precedentes à pintura. As suas
imagens tinham origem tanto na sua imaginação como
naquilo que os seus sentidos continuavam a captar
do exterior. Do mesmo modo, Cézanne, esforçando-
-se para representar algo para além do real,
procurando uma clareza estrutural nas suas pinturas,
ignorou muitas vezes as leis da perspectiva e reduziu
formas naturais a figuras geométricas simples. Novos
padrões e tramas espaciais caracterizavam muitas
das suas paisagens e naturezas mortas. Os últimos
trabalhos de Cézanne mostravam as primeiras linhas
do cubismo. O modo livre com que interpretava a
forma humana, marcaram as correntes seguintes,
Fauves e Cubistas, que tiveram em Cézanne um
percursor7.
No início deste século existia na Europa uma
considerável desilusão com os modos de vida e as
instituições anteriormente aceites. O descrédito
abatia-se por toda a parte. Em 1905, a fé na sociedade
e os slogans do progresso estavam de tal modo
deteriorados, que interrogações sobre todos os
aspectos e todas as coisas da vida, todos os valores
sociais, as relações humanas e as artes, tiveram campo
para se colocar.
Van Gogh, nos seus primeiros trabalhos,
assemelhava-se a Courbet, um realista romântico.
Posteriormente, algumas paisagens manifestavam
tendências impressionistas. Finalmente, em Arles,
o seu trabalho entrou em território virgem: Van Gogh
foi um dos primeiros a olhar (e a ver) para além da
superfície aparente das coisas, remodelando a
realidade. Ele queria criar imagens que fossem “mais
reais que a própria realidade” (Kandinsky, 1910:84).
7 - As distorções da forma
humana em Cézanne, teriam
derivado dos seus estudos de El
Greco. O domínio das verticais
e o alongamento dos corpos são
exemplos de distorção, não
para obter efeitos dramáticos,
mas para compensar a visão
distorcida provocada pela
altura elevada em que os
painéis eram colocados, sobre
os altares. Vistos do chão, e
portanto de um ponto de vista
não frontal, a distorção
desaparece em grande medida.
De qualquer modo, as
reproduções fotográficas dos
trabalhos de El Greco, teriam
dado a Cézanne a percepção do
poder expressivo que pode
residir na distorção.
4 7
Raízes da Tipografia Contemporânea
Van Gogh e outros artistas não só misturavam
imagens soltas de cenários diferentes, retratos e
naturezas-mortas, com aquilo que os seus olhos de
facto observavam no sentido de obter um quadro
melhor estruturado, como se questionavam se a
superfície aparente das coisas seria o limite para a
total expressão da realidade. Não podendo
satisfazer-se com o mero registo daquilo que viam,
passaram a expressar nas suas pinturas aquilo que
sentiam acerca do objecto ou do momento retratado.
As emoções e paixões pessoais passaram a ter
direito de cidadania nas suas telas. A subjectividade
ia ganhando terreno nos seus trabalhos. O
Expressionismo na pintura tomou tantas formas
quantos os pintores, que trouxeram as suas atitudes
sociais e paixões pessoais para o seu trabalho.
Linhas elegantes e requintadas eram substituídas
por traços grosseiros e massas de cor agressivas
que, reverberando umas contra as outras,
substituíram a harmonia plástica e cromática pelo
drama visual, inquietante e perturbador. Muitos
destes autores foram influenciados pelo exotismo
expressivo dos povos de que o mundo ocidental ia
tomando conhecimento, graças às expedições e à
exploração crescente dos territórios ultramarinos,
que se exprimiam com cores fortes e contrastantes,
em que as linhas e os planos sugeriam, mais do que
definiam, a realidade visível . Para os
Expressionistas, cor e forma não descreviam apenas
um objecto, mas transportavam uma emoção.
Este percurso de Constable a Kandinsky acabava
de transpor mais um marco.
O Expressionismo implica a recusa da depuração,
do refinamento. É uma simplificação da linguagem
e do conteúdo que pretende muitas vezes interpretar
4 8
A Letra: Comunicação e Expressão
as novas atitudes sociais perante a vida, transpondo
círculos mais vastos do que os dos artistas e dos
apreciadores da arte.
Fauvismo
Um grupo de pintores Franceses entre 1904 e 1908
foi ainda mais longe na distorção das formas e na
utilização das cores puras. Foram chamados Fauves,
animais selvagens. Apesar de ter durado pouco
tempo como movimento, o seu impacto foi notável.
Outros artistas, nomeadamente Kandinsky, perante
os trabalhos de Rouault, Braque ou Matisse, viram
nessa altura despertar os seus sentidos para o uso
inovador das dissonâncias cromáticas. Para entender
a amplitude do impacto social das atitudes destes
artistas, deveremos ter em conta que escritores,
músicos, filósofos, em muitos países nesta mesma
época, passavam por metamorfoses idênticas. As
ideias antigas estavam em permanente mutação,
sendo muitas vezes literalmente eliminadas. O
espírito que dominava estas mudanças permanentes
de atitude influenciava igualmente todos os outros
modos de vida: não apenas nas artes, mas na
sociedade em geral, nas suas facetas económicas,
políticas, científicas e tecnológicas. E, naturalmente,
em todas as disciplinas aplicadas da arte, como a
arquitectura, o design gráfico e tipográfico.
Antes de passar ao estudo mais detalhado das
evoluções sentidas na tipografia, continuemos a
seguir o percurso dos movimentos artísticos neste
século. Há que ter em conta que tipógrafos e designers,
desde meados do século passado até ao dia de hoje,
sempre se mantiveram atentos aos movimentos das
Artes Plásticas, sendo permanentemente influen-
4 9
Raízes da Tipografia Contemporânea
ciados por eles. Uma mente, uma vez aberta a uma
nova ideia, nunca mais regressa à sua condição ante-
rior, e os desenvolvimentos das Belas Artes abriam
as mentes dos que se dedicavam à comunicação e às
artes aplicadas.
Hoje, quando um designer tipográfico escolhe um
tipo de letra, controlando a sua espessura, forma,
corpo e cor, posicionando elementos tipográficos e
pictóricos relativamente uns aos outros e ao plano
onde vão ser impressos, manipulando espaços vazios
e blocos de texto e imagem, está, na realidade a
compor um cenário de equilíbrios e desequilíbrios,
de formas e linhas, tons e cores, tensões e harmonias.
As linhas sóbrias e contidas de alguns designs, o
dinamismo e a vibração de outros, o imenso
manancial de elementos tipográficos e pictóricos
disponíveis, bem como critérios estéticos e
operativos existentes devem muito àslições
aprendidas com vários movimentos artísticos deste
século.
Art-Nouveau
A arte como decoração
Alguns artistas do período de 1890-1910
fizeram evoluir os seus trabalhos noutro sentido.
Onde os impressionistas e expressionistas
usavam como referente a imagem realista como
partida para o retratar de uma reacção emocional
perante o tema, os artistas da Arte Nova focaram
a sua atenção nas facetas decorativas do assunto
ou do modelo. A Arte Nova infiltrou-se em todas
as artes aplicadas, incluindo a arquitectura, o
design de objectos, artes do fogo, têxtil,
encadernação, artes gráficas e design tipográfico.
5 0
A Letra: Comunicação e Expressão
Era o ressurgir do estilo barroco numa perspectiva
romântica. Linhas entrelaçadas e formas florais
tornaram-se comuns. As entradas para o Metro de
Paris, de Hector Guimard, as jóias de René Lalique,
a arquitectura de António Gaudi, o logotipo da
Coca-Cola, os posters de Alphonse Mucha e Tou-
louse-Lautrec, são alguns exemplos de como a Arte
Nova influenciou e influencia ainda, muitos aspectos
da nossa vida e ambiente.
Nos Estados Unidos, o período da Arte Nova
coincidiu (e de algum modo estimulou) o
desenvolvimento de novos meios de publicidade,
como os painéis laterais dos autocarros, posters,
outdoors, catálogos e direct-mailings.
A Arte Nova inspirou-se num emaranhado de fontes
desde a caligrafia japonesa às formas ondulantes das
pinturas de Van Gogh, dos ornamentos célticos ao
estilo barroco, passando ainda pelas cores planas e
contornos estilizados das obras de Gauguin. Orna-
mentação e linhas sinuosas eram parte integrante do
design, e não meros elementos adicionais da
composição. Este período marcou a transição do pas-
sado, caracterizado pela representação clássica das
formas, para os movimentos experimentais do início
deste século.
Os designers gráficos e tipográficos que participaram na
Arte Nova (em todas as suas variantes regionais) tinham
formação de belas-artes, sendo igualmente sensíveis às
Exemplos de desenho de letra
da Arte Nova (Henri van de
Velde, pormenor da capa do livro
“Assim falava Zaratustra”
e titulagem de um
projecto de arquitectura
de Joseph Maria Olbrich, c.1900)
5 1
Raízes da Tipografia Contemporânea
Pablo Picasso,
Les Demoiselles d’Avignon,
1907
condicionantes e às necessidades da impressão
artística. Fazendo a ponte entre as belas-artes e a
indústria gráfica, foram responsáveis pela melhoria
da qualidade das ilustrações e do design tipográfico,
numa época em que a comunicação se tornava
rapidamente massiva.
Cubismo
Outra divergência de monta com a pintura realista,
foi o surgimento do cubismo nos primeiros anos
deste século. Tratava-se de um processo de
representação de objectos (portanto não totalmente
abstracto) de um modo diferente. A realidade tridi-
mensional passava a ser interpretada pela
decomposição dos planos em que se situava e dos
volumes que a compunham, ignorando
deliberadamente as regras Renascentistas da
perspectiva.
Em Les Demoiselles d ‘Avignon, obra emblemática
deste movimento, são fundamentalmente visíveis as
linhas, as lâminas de cor sugerindo volumes, mas no
fim, visualizamos um grupo de mulheres e seremos
capazes de as individualizar. O resultado é, portanto,
uma abstracção parcial. A evolução do cubismo
levada a cabo por Picasso, Braque, Juan Gris, entre
outros, marcava mais um fortíssimo corte com os
quatro séculos de tradição de representação picto-
rial Renascentista.
Os Impressionistas modificaram a pura representação
figurativa, pela introdução de novos processos de
manipulação da luz e da cor; os Post-Impressionistas
e Expressionistas avançaram um passo ao
distorcerem os conceitos clássicos da forma real e
da perspectiva para obterem o desejado efeito
5 2
A Letra: Comunicação e Expressão
artístico e expressivo. Os autores da Arte Nova
concentraram-se sobretudo nos aspectos decorativos
do objecto representado. Mas o objecto não deixava
ainda de ser óbvio e linearmente interpretado. No
cubismo8, a técnica e o estilo sobrepuseram-se ao
objecto. Os pintores cubistas, fortemente
influenciados pelas estilizações geométricas das
esculturas africanas e igualmente por Cézanne, que
gozava então de um considerável prestígio e
ascendente sobre os novos pintores vanguardistas,
desenvolveram finalmente um processo de
representação de formas inventadas que resulta da
análise e justaposição dos planos de um objecto visto
de diferentes pontos de vista, e da construção de uma
pintura, criando ritmos e relações formais à medida
que os planos se vão compondo, substituindo,
reforçando. Não é arte fotográfica. Envolve o
espectador, desafiando-o a interpretar aquilo que vê.
Outra importante faceta do Cubismo, no que
concerne a este estudo, foi a atribuição às Letras,
aos Números, às Notações Musicais e a outros
caracteres tipográficos a importância de formas
visuais concretas, e não de meros símbolos fonéticos
ou aritméticos, passíveis de manipulação e
interpretação, tal como um corpo humano ou uma
árvore.
O Futurismo
O Futurismo marcou finalmente a ruptura
definitiva com as tradições clássicas, levando a
arquitectura, a escultura, a pintura e a literatura
a um novo nível de interpretação e representação
da realidade, conseguindo igualmente subverter e
aniquilar o conservadorismo que ainda persistia no
8 - A expressão cubismo
teria sido usada pela primeira
vez em 1907, quando
Matisse viu um quadro de
Braque, “Casas em
l’Estaque”, falando
depreciativamente em
“pequenos cubos”.
Esta observação teria inspirado
Apollinaire a baptizar
este estilo como cubismo.
Georges Braque,
Statue d’Epouvante, 1913
5 3
Raízes da Tipografia Contemporânea
design tipográfico. Para muitos artistas do século
XIX (como para a maioria das pessoas), a
realidade era essencialmente estática, inalterável.
Mas as alterações ao pensamento social que
estavam em curso, as desilusões com a
existência, com os governos e com os modos
estabelecidos de fazer as coisas, afectaram a
percepção da realidade como algo inerte, e,
consequentemente, a percepção da sociedade
sofreu igual mutação. O terreno para a
proliferação de novas tendências artísticas, de
novos processos de interpretação da realidade,
estava pronto a dar frutos abundantes. Um
desses frutos foi o surgimento do design de
comunicação.
Os Futuristas ignoraram as limitações da
tipografia metálica e da impressão de texto. A
ortogonalidade estava banida. Tipos em qualquer
ângulo, cor e corpo eram o novo modelo. E isto
muito antes do desenvolvimento das actuais
técnicas de fo tocomposição ou edição
electrónica. No design futurista o mote era
provocar o choque e o contraste, em corpos de
letra, nos ângulos em que as palavras e as frases
eram colocadas, na distribuição aparentemente
aleatória de letras, números e outros caracteres
tipográficos pela superfície da página.
Na tentativa de expressar sensações, de evocar
ideias, a legibilidade e a clareza, assim como a
ordenação gráfica, deram lugar ao ritmo, entoação
e ênfase. Por vezes letras enormes eram
utilizadas como focos visuais, enquanto linhas
de caracteres oblíquas faziam a ligação entre
blocos de texto, no sentido de proporcionar
ritmo visual e continuidade de leitura.
5 4
A Letra: Comunicação e Expressão
De qualquer modo existia ordem no aparente caos.
Filippo Tommaso Marinetti escreveu na revista
Lacerba:
“Estou a fazer uma revolução tipográfica que é
dirigida, acima de tudo, contra a idiota e doentia
noção do livro de poemas, feito em papel artesanal,
no seu estilo do século XVI, decorado com vinhetas,
Minervas e Apolos, capitulares, ornamentos florais
e vegetais e com os seus numerais romanos. Um
livro deve ser a expressão futurista do pensamento
futurista. Melhor ainda: a minha revolução é, en-
tre outras coisas, contra a chamada harmonia
tipográfica da página

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