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Os Contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau Maria Isabel de Magalhii.es Papaterra Limongi De urn modo geral, o termo Contratua- lismo designa toda teoria que pensa que a origem da sociedade e do poder politico esta num contrato, urn acordo tacito ou explfcito entre aqueles que aceitam fazer parte dessa sociedade e se submeter a esse poder. Embora nao se trate de uma posi<;ao estritamente moderna, nem res- trita as filosofias de Hobbes, Locke e Rous- seau, o Contratualismo adquiriu o estatuto de urn movimento te6rico ou corrente de pensamento precisamente com esses au- tores. Quando alguem contemporanea- social, tal como se encontra em Locke, Rousseau e Kant", logo em seguida puxa uma nota indicando que nao estava se es- quecendo de Hobbes, mas que o deixara deliberadamente de lado. Ele tern de fazer isso, ja que, como os autores citados, Hobbes e urn e o primeiro dos contratualistas. 0 fato de que Rawls f~a esse recorte no interior do Contratualismo indica o quanto e problematico referir-se a ele, como fizemos, nos termos de uma tradi- (:dO, movimento te6rico ou corrente de pensamento. Diferentes tradi<;oes - libe- mente se declara urn contratualista ral, absolutista, democratica, jusnaturalis- refere-se ou filia-se a eles. Assim, quando ta, juspositivista- perpassam o Contratua- Rawls (2000, p. 12) declara que sua teoria lismo. E, nao obstante, M algo como o da justi<;a prolonga a "teoria do contrato Contratualismo, urn ponto em comum que , ~ ~I i ·l ~ 'I I 'i i I = - = .. Manual de Alosofia Politica une Hobbes, Locke e· Rousseau. Se esses autores nao partilham dos mesmos ideais politicos e das mesmas tradi~oes, partilhqm por certo de uma sinta:&e comum, para fa- zer uso de uma expressao de Matteucci, no verbete Contratualismo do Dicionario de politica editado por ele, Bobbio e Pasqui- no. Segundo o autor, os contratualistas sao assim chamados porque "aceitam a mesma sintaxe", a saber, a "da necessidade de basear as relac;oes sociais e politicas num instrumento de racionaliza~ao, o di- reito, ou de ver no pacto a condic;ao formal da existencia juridica do Estado" (BOB- BIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2010, p. 279). Observemos mais de perto o que esta em jogo nessa sintaxe. A tese de que a origem da sociedade politica esta num contrato implica que a so- ciedade politica e urn artificio, isto e, uma forma de associa~ao a que os homens m'io sao conduzidos pelo movimento natural de suas paixoes e na qual nao estao desde sempre inseridos de maneira espontanea ou irrefletida (como a familia, por exem- plo), mas uma comunidade que os homens resolvem instituir voluntariamente, na me- dicta em que tern razoes e motivos para isso. Nesse sentido, a distin~ entre urn estado de natureza e urn estado civil e central no Contratualismo. Ela indica o momenta an- terior e 0 posterior a instituic;ao do corpo politico e permite que se retire de uma des- cri~ao do estado de natureza as razoes e os motivos que explicam essa institui~ao. Alem disso, a tese contratualista implica que a politica se funda sobre uma relac;ao juridica. Pois, o contrato, que da inicio a associac;ao politica, e urn ato juri- dico (trata-se de uma figura do direito privado romano) pelo qual as partes con- tratantes estabelecem direitos e deveres reciprocos. Para o Contratualismo, a so- ciedade politica nao apenas se funda sobre uma relac;ao juridica, como se distingue das outras formas de comunidade precisa- mente por isso. Na busca do fundo jurfdico sobre o qual se assentam as relac;oes politicas, o Contratualismo prolonga, a seu modo, a tradic;ao do direito natural, que remonta a Aristoteles e aos estoicos, e que entre os modernos e encabec;ada por autores como Grotius e Pufendorf, que influenciaram di- retamente os contratualistas aqui em questiio. A noc;iio de urn direito Uus) na- tural aponta para a existencia de certos padroes ou criterios de legitimac;iio das re- lac;oes politicas que preexistem a essas mesmas relac;oes ou que niio dependem di- retamente delas para se fazer valer. A no- c;ao de contrato aponta tambem para isso, mas de urn modo particular. Por meio dela se pensa esse subsolo jurfdico da politica nos termos especificos de urn contrato: e a relac;ao contratual, niio a natureza, que oferece os padroes e criterios de legitima~iio das relac;oes poH- ticas, instituidas por ela. Serao legitimas as instituic;oes que estiverem de acordo t ~· ; ... ~ ~ ·0 'L 1 1i ~ ~ ~ i ·It com os seus termos- dai por que seja fun- damental conhece-los bern, como procura- ram fazer os contratualistas, cada urn a seu modo. 0 decisivo no modo contratua- lista de pensar o fundo juridico da politica e a ideia de que a estrutura jurfdica do cor- po politico lhe e coextensiva, isto e, que 0 .corpo politico reside precisamente no con- junto das relac;oes de direito e deveres es- tabelecidas pelo contrato. E isso o que esta em jogo no moderno conceito de Estado, que substitui as expressoes classicas, como polis ou civitas (cidade), para de- signar a forma de associac;ao especifica- mente politica. 0 Estado se define como urn conjunto de relac;oes de poder pensa- das e legitimadas em termos de direitos e deveres. Os autores contratualistas contri- buiram diretamente para a formac;ao des- se conceito. 0 ponto de partida de todos eles e a ideia de que o poder politico ou as relac;oes de poder de natureza polftica podem e de- vern ser legitimadas pelo recurso a noc;ao de contrato. 0 pressuposto comum e o de que o poder politico, para que seja legitimo, possa ser pensado como se tivesse sido instituido por urn ato contratual, mesmo que efetiva- mente talvez niio tenha sido. 0 pressuposto e 0 de que 0 poder politico e por natureza legitimavel, urn pressuposto que prolonga e especifica a tradic;ao jusnaturalista classica, sem duvida predominante, mas que niio e a tinica a partir da qual se pensou a politica. Assim como entre os modernos houve quem Os Contratualistas .. procurasse desmontar a noc;ao de direito natural1 ou que criticasse o recurso a ideia de contrato, 2 ha, entre as filosofias contem- poraneas, alem daquelas q1!-e reivindicam sua filiac;iio ao Contratualismo, outras que apontam para os limites dessa noc;iio quan- do se trata de pensar as relac;oes de poder contemponlneas.3 0 que se poe em ques- tiio, nessas criticas, e justamente o pressu- posto, que alicerc;a o Contratualismo, de que o poder politico possa e deva ser cap- turado por urn esquemajurfdico e ser, nes- se sentido, perfeitamente legitimavel. Ao assumir isso, nao se trata para os contratualistas de dizer que toda forma de poder e legftima ou passive! de legiti- mac;ao, mas que o poder so e propriamente politico, so e 0 poder da cidade, se puder ser legitimado pelo contrato, se puder ser pensado como se tivesse sido institufdo por ele. Pois, sem contrato, nao ha cidade, e as relac;oes de poder que se dao fora des- se esquema niio sat'. propriamente politicas. 0 poder politico e, assim, senao aquele que efetivamente foi fundado por contrato, o que se pode pensar ter sido. A ressalva e fundamental. Ela indica que as relac;oes politicas niio estiio sendo pensadas pelos contratualistas nos termos das relac;oes efetivas de poder que os homens tern uns com os outros, mas nos termos de como '- Por exemplo, Pascal (1994). '· Por exemplo, "Do contrato original" (Hume, 1973). '· Por exempto, Foucault (2005). .I.:. ,, :I ' 't l' .I l ~ ! " t ' ' f ·I II I i ~~ t i t: '' t i ' I liD Manual de FilosofiaPolitica devem ser pensadas para que se adequem a certo conceito de politica. Isso e explicito em Rousseau, que lan~a milo da ideia de contrato e conceitua a politica a partir dela, ao mesmo tempo que faz uso de todo o seu talento litenirio para mostrar que as instituic;:oes politicas do seu tempo e as relac;:oes de poder histo- ricamente constitufdas nilo se ajustam a esse conceito. Ao pensar a politica a partir do contrato, Rousseau a pensa do ponto de vista de como ela deveria ser, nilo de como ela e. Seu ponto de vista e normative, nilo descritivo. Retrato de Jean-Jacques Rousseau, por Maurice Quentin de La Tour, 1753. Museu Antoine Lecuyer, Saint-Quentin. 0 ponto de vista normative e comum a todos os contratualistas, ainda que a sua adoc;:ilo implique, entre eles, diferentes graus de idealiza~ilo da politica. Enquanto comprometer com a tese de que nenhum poder de fato corresponde a ideia de como o poder politico deve ser. Em Rousseau, o contrato opera como uma ideia a partir da qual medimos o grau de !egitimidade das instituic;:oes hist6ricas, em contraposic;:ilo ao modo como elas de fato silo. E como uma ideia reguladora que Kant, a partir de Rousseau, pensara o contrato, insistindo no desnivel entre os pianos normativo e descritivo. Assim, urn aspecto fundamental das teorias contratualistas e que elas operam no nivel de uma ficc;:ao, de urn como se. Esse e urn tra~o distintivo do modo como o Contratualismo pensou a questilo da legi- tima~ii.o da politica, a sua questao funda- mental. Ao recorrer a noc;:ao de contrato, nenhum dos contratualistas pretendeu descrever como de fato se originaram as instituic;:oes politicas, mas como se pode pensar que elas tenham se originado par~ que possam ser consideradas legitimas ou para que possam se legitimar. 0 esquema do contrato pode ou nii.o se aplicar as insti- tuic;:oes efetivas, legitimando-as ou nao. Seja la como for, o importante e que o es- quema de legitimac;:ao nao e retirado de uma descric;:ao das instituic;:oes concretas e hist6ricas, mas da ideia de contrato to- Hobbes pensa poder legitimar com sua teo- mada como urn ensjictionis, urn ente fie- ria do contrato qualquer poder de fato ins~ ticio. Dizer que o contrato e urn ens jictio- tituido e Locke pensa que alguns sao legiti- nis nilo implica dizer que ele e irreal, mas maveis e outros nao, Rousseau parece se que goza de uma realidade pr6pria, que e a ~ t-.;- ""' <:', i Os Contratualistas lliii realidade juridica enquanto pertencente Tambem para Maquiavel a hist6ria ao plano da ideia e do pensamento. efetiva tern uma importancia decisiva. Nao Esse modo de pensar contrasta com - s6 de Roma, mas de todo exemplo hist6ri- . urn outro, que consiste em retirar da hist6- ria os principios normativos da polftica, tal co ele procura retirar alguma li~ao, sendo a hist6ria importante para ele nao apenas como faz Cicero, por exemplo. Como os porque fornece exemplos e regras para a contratualistas, Cicero considera que a ac;:ilo polftica, mas porque perfaz a subs- vida politica funda-se sobre o consenti- tancia mesma da polftica. A polftica e, para mento comum acerca do justo. Segundo Maquiavel, uma atividade concreta, inseri- ele, "a republica e a coisa do povo" e o povo da em circunstancias particulares e con- "a reuniao de uma multidilo de individuos tingentes, entre as quais se procura orde- associados em virtude de urn acordo sobre o direito (juris consensu) e de uma co- munidade de interesses" (CiCERO, 2002, I, xxv). A fundac;:ao do corpo politico e, desse modo, pensada nos termos de urn acordo em torno do que e justo. Esse acor- do, porem, nao tern a forma e a estrutura juridica de urn contrato. Trata-se de urn acordo ou consentimento tacito em torno de certos valores e principios comuns de conviv€mcia. Alem disso, trata-se de urn acordo efetivo e nao de urn como se. Trata- -se do acordo que certos homens fizeram em tais e tais circunstancias hist6ricas, mais precisamente, o acordo que os roma- nos fizeram no momento da fundac;:ao de Roma e os acordos que a este se somaram ao Iongo da hist6ria romana. Pois e Roma, enquanto uma Cidade concreta e hist6ri- ca, o ponto de partida de Cicero para pen- sar a politica e suas formas de legitimac;:ao. 0 juris consensus de que ele nos fala nilo nar, com maior ou menor sucesso, uma vida comum. Para Maquiavel, como para Cicero, a politica tern uma natureza hist6- rica. Pois bern, nao e assim que a veem os contratualistas. Folha de rosto da edi~o de 1762 de 0 contrato social ou Princfpios de Direito Polt1ico. de Jean-Jacques Rousseau. Hobbes, mesmo que profundamente e, portanto, urn ens jictionis e nao tern a interessado na hist6ria, tendo traduzido forma juridic a de urn contrato. para o ing!E!s a Hist6ria da guerra do l lml Manual de Filosofia Polltica Peloponeso, de Tucidides, e tendo escrito uma hist6ria da guerra civil inglesa no Behemoth, nao pensa que se possa retirar dela o conhecimento da politica, muito me- nos que a politica tenha uma natureza his- t6rica. Ele pretende fazer da politica uma ciencia racional e do corpo politico urn construto da razao, o que quer dizer que tanto o conhecimento quanto a a\!aO politi- ca dependem da percep\!aO de certas rela- G5es necessarias e universais entre as ideias, pois e nisso o que consiste a razao, segundo o modelo matematico a partir do qual foi pensada nos quadros do racionalis- - a definiGao da vontade dos contratantes - pode-se retirar dele, como consequencia, os direitos e deveres das partes .contratan- tes, analiticamente embutidos nas defini- G6es das vontades que compoem o contra- to. E, assim como seria uma contradic;ao afirmar que 0 triangulo tern tres angulos e que a soma de seus angulos equivale a 70°, e urn absurdo declarar a vontade de uma certa maneira e agir de modo contrario as ac;oes que estao imbricadas nessa defini- c;ao. Hobbes considera que a injustic;a, que consiste para ele no nao cumprimento dos contratos, e uma forma de contradic;ao !6- mo cartesiano, com o qual a filosofia de gica. Segundo ele, "assim como se conside- Hobbes manteve estreitas relaG6es. A his- ra absurdo contradizer aquilo que inicial- t6ria nao oferece senao rela\!5es contin- gentes e particulares. Dela se podem retirar apenas conjecturas, nao uma ciencia, que vern a ser urn discurso em que se encadeiam proposi\!5es segundo relaG6es necessarias. A matematica e uma ciencia exem- plar. Nela, parte-se de defini\!6es bern construidas das quais se retiram conse- quencias necessarias. Assim, por exemplo, uma figura como o triangulo e definida como uma figura de tres angulos e dessa definic;ao se retira a consequencia de que a soma de seus angulos e 180° (HOBBES, 1974). A conclusao vale necessaria e uni- versalmente para todo triangulo porque esta analiticamente contida na definic;ao. Do mesmo modo se pode proceder na poli- tica, de acordo com Hobbes. Partindo-se do contrato, que e uma forma de definic;ao mente se sustentou, assim tambem no mundo se chama injustic;a e injuria desfa- zer voluntariamente aquilo que inicialmen- te se tinha feito" (HOBBES, 1974, p. 83). E enquanto urn calculo racional dessa natureza, urn calculo pelo qual se retiram consequencias necessarias de definiG6es previamente assumidas, como se faz nama- tematica, que Hobbes pensa a politica. A politica enquanto ciencia, cujos principios ele se pretende o primeiro a expor, consiste no calculo dos deveres e direitos que se se- guem do ato contratual instituidor do corpo politico. Trata-se assim de uma ciencia que, como as matematicas, se constr6i num es- paGO !6gico,nao hist6rico. Dois e dois sao quatro ontem, hoje e sempre. Do mesmo modo, certos deveres se seguem dos termos de urn contrato: sub specie aeternitatis. Pode-se assim conhecer a estrutura juridico-racional da sociedade polftica a partir da ideia de como pode ter sido o contrato de sua instituiGao, de urn modo tal que essa estrutura permanece valida e igual a si mesma, independentemente do que os homens tenham feito ou deixado de fazer e de como compreendam os princi- pios e as razoes que os engajam na vida politica. Sejam quais forem de fato as mo- tivaG5es dos homens, seja la como tenham se constituido as relaG6es de poder entre eles, o contrato permite pensar, indepen- dentemente de qualquer experiencia em- Os Contratualistas liD Locke parece considerar o contrato como uma realidade hist6rica, nao como uma ficGao juridica, ao modo de Hobbes. No entanto, as consideraG6es de Lo- cke sobre a hist6ria tern urn carater margi- nal no argumento contratualista do Segun- do tratado. Provavelmente os parigrafos em que elas sao desenvolvidas (os paragra- fos 100 a 122, capitulo VIII) foram escritos e acrescentados posteriormente a composi- c;ao original da obra, como aponta P. Las- lett, seu editor. Elas desempenham urn pa- pel polemico: trata-se de responder a urn autor, Filmer, que, tomando o contrato pirica e qualquer saber hist6rico, quais como uma realidade hist6rica, pensa poder deveriam ter sido essas motivac;oes e como retirar da hist6ria argumentos que derru- devem ser essas relac;oes. Eis a natureza do contrato enquanto uma realidade de pensamento e urn ente de razao. Mas isso que se aplica a Hobbes aplica-se de maneira geral ao Contratua- lismo? Locke parece considerar o contrato de urn modo diverso, ao se dedicar a res- ponder longamente, no Segundo tratado sabre o governo, duas objec;oes de ordem hist6rica, dirigidas por Robert Filmer' as suas teses contratualistas. Filmer objeta que 1. nao se encontram exemplos de ho- mens em estado de natureza; e que 2. todos os homens ji nascem sob a vigencia de urn determinado governo. Em sua resposta, •· Robert Filmer e autor de 0 Patriarca, ou o poder natural dos reis, obra que Locke se dedica a refutar no primeiro dos Dais tratados sabre o govemo. bern a tese contratualista. Mas os argu- mentos hist6ricos que Locke contrapoe aos de Filmer nao fazem parte do nucleo do seu proprio argumento a favor do Contratualis- mo. Que o argumento de Locke nao seja fundamentalmente hist6rico, mostra-o o conteudo mesmo das suas considerac;oes hist6ricas, no dialogo com Filmer. Contra a objec;ao de que nao se en- contram exemplos de homens do estado de natureza, Locke se refere a Roma e Ve- neza enquanto dois exemplos hist6ricos da "uniao de varios homens livres e indepen- dentes uns dos outros, entre os quais nao havia nenhuma superioridade ou sujeic;ao naturais" (LOCKE, 2005, p. 474). E assim que a literatura republicana que remonta a Cicero trata dos exemplos de Roma e Dl Manual de Filosofia Polftica Venez.a, como duas repUblicas que se fun- que o que legitima e funda a autoiidade dos daram por meio de urn consentimento de primeiros governantes (que, segundo a con- seus cidadaos em torno de certas institui- cessao, provavelmente eram os patriarcas) e c;oes fundamentais, consentimento este o consentimento dos homens que o obede- que se supunha ter ocorrido num determi- cern, mesmo que estes jamais tenham para- nado momento da hist6ria. Sendo assim, nao ha como negar que, antes da fundac;ao dessas republicas, o que se tinha ( embora nao se tenham registros desse momento hist6rico) eram homens vivendo num esta- do de natureza. Acrescente-se a isso, diz Locke, os relatos dos via,jantes acerca dos habitantes da America, onde, parece, vive- -se sem nenhum govemo. Locke, porem, apresenta esses exemplos com uma ressal- va: "embora urn argumento baseado no que foi, em vez de naquilo que deveria por direito ser, nao tenha muita forc;a" (LO- CKE, 2005, p. 475). A ressalva e fundamental. Ela dara cauc;ao para a concessao que ele fani a se- guir a seu adversario, ao admitir que, em boa parte das vezes, os governos tiveram inicio, nao do consentimento expresso, como nos casas das republicas supracita- das, mas na autoridade natural do pai (LO- CKE, 2005). Essa tese- a tese patriarcalis- ta - e justamente aquela defendida por Filmer em 0 Patriarca e que Locke pre- tende rebater nos IJois trotadas sabre a gaverna. 0 que Locke concede a Filmer e que os governos podem ate efetivamente ter nascido dessa maneira na maior parte das vezes, mas, justamente, essa concessao de ordem hist6rica nao invalida a tese de do para pensar nas razoes pelas quais aca- taram essa autoridade. 0 importante e que, se em algum momento vierem a se pergun- tar por essas razoes, como fizeram os ingle- ses em func;ao da crise de legitimidade que abalou a monarquia inglesa na segunda me- tade do seculo XVII, encontrariam no con- sentimento uma resposta, de modo que urn governo historicamente constituido como o de Jaime II, que, na visao de Locke, preten- deu se furtar ao consentimento e fundar sua autoridade alhures, deve ser destituido, como de fato ocorreu na Revoluc;ao Gloria- sa, o contexto ideol6gico em que se inscre- vem os Dais tmtadas. Como Hobbes, Locke fundamenta o direito politico, nao na hist6ria, mas na ra- zao, entendida como urn conjunto de rela- c;oes necessarias entre as ideias. E numa relac;ao dessa ordem que consiste para ele o direito natural, na medida em que pode ser conhecido pela razao. Segundo ele, as ideias de pessaa, trabalha e prapriedade estao relacionadas entre si de modo a evi- denciar que cada urn e por natureza pro- prietario de certos bens. Pais cada homem tern direito sabre a propria pessoa, no sen- tido de que sua pessoa pertence s6 a ele e a mais ninguem; logo, cada urn tern direito tambem ao produto do trabalho realizado :£ ><:"· ::_.;., ~~ '7 ~ &;: •. por sua pessoa, uma vez que, pelo traba- lho, mistura-se alga de seu as coisas da natureza, que sao assim transformadas em sua propriedade (LOCKE, 2005). 0 direito a propriedade e nessa medida estabelecido pela simples considerac;ao das relac;oes in- ternas existentes entre as ideias de pes- soa, trabalho e prapriedade, relac;oes tao necessarias quanta 2 e 2 sao 4. Tambem para Locke as relac;oes matematicas sao modelo de racionalidade. E, na medida em que obedece a esse modelo, o direito natu- ral pode ser perfeitamente estabelecido e conhecido pela razao. E para assegurar esse direito que, se- gundo Locke, os homens instituem o go- verna civil. Pois, se no inicio da hist6ria, sem que fosse preciso a mediac;ao de ne- nhum governo, a propriedade de cada urn era respeitada e o direito natural se mos- trava suficiente para regular a vida em co- mum dos homens, como tempo, conforme as relac;oes de propriedade foram se tor- nando mais complexas e controversias surgiram a seu respeito, foi preciso criar urn governo que as regulasse, garantindo que se dessem em conformidade com o di- reito natural. E assim que Locke, como Hobbes, pensa o contrato: como urn ens jictianis - tudo se passa como se os ho- mens tivessem instituido o governo visan- do garantir o direito a propriedade. Mas, a diferenc;a de Hobbes, Locke estabelece uma relac;ao entre essa ficc;ao e a hist6ria da humanidade, pais e, segundo ele, num Os Contratualistas ll!lil certo momenta da hist6ria, no mornento em que as relac;oes de propriedade atingi- ram urn determinado grau de complexida- de, que os homens se viram na necessida- de de pensar suas relac;oes reciprocas apartir do conhecimento das relac;oes ra- cionais que perfazem o direito natural e politico. 0 mesmo ocorre em Rousseau, para quem igualmente importa relacionar o es- quema racional do contrato aos fatos da hist6ria humana, procurando identificar na hist6ria as razoes pelas quais os homens devem pensar e normatizar suas relac;oes politicas segundo a ideia do contrato. Pode- -se dizer que para Locke e Rousseau o con- trato, guardando seu estatuto de ente fictf- cio, esta numa certa relac;ao com a hist6ria. A diferenc;a esta em que, para Locke, a refe- rencia ao contra to permite aos homens reen- contrar a racionalidade perdida de suas rela- c;oes primitivas, enquanto para Rousseau, a referenda ao contrato e o que permite ins- taurar a racionalidade e a moralidade que as relac;oes humanas nunca tiveram e que s6 podem ter, como veremos, por meio do contrato. No Discursa sobre a origem e os jundamentas da desigualdade entre os homens, Rousseau conta a hist6ria da hu- manidade nos termos de uma sucessao de acasos, de eventos que nao podem ser compreendidos como se tivessem sido conduzidos pela vontade e pela razao hu- mana, na medida em que sao contrarios ao ! I I ll!II Manual de Filosofia Politica que se pode pensar .ser essa vontade. Que homern pode querer se p(}r sob grilhoes e perder sua liberdade, que e o que Rousseau entende que os homens fizeram ao se sub- meterem aos governos efetivamente existentes? "Os hornens nasceram livres e por toda parte se veern sob grilhoes" (ROUSSEAU, 2006, I, 1). Sendo assirn, entendendo-se a hist6ria da forrnac;ao dos governos nos termos da hist6ria da domi- nac;ao e da desigualdade entre os homens, a hist6ria nao e e nunca foi racional. Racio- nal e a sociedade que os homens podern formar em acordo com as suas vontades, que e precisarnente 0 que se pretende des- crever por referencia a noc;ao de contrato. A perspectiva adotada por Rousseau o leva a estabelecer quase que urna incorn- patibilidade entre a hist6ria efetiva e a ideia do contrato. Pois a hist6ria nao carni- nha para se ajustar ao esquema juridico do contrato. Fazer esse ajuste seria como tro- car os trilhos sobre os quais corre o carro da hist6ria com ele em andarnento, urn problema que nao se coloca para Hobbes e Locke, para os quais a estrutura juridica e a-h1st6rica do contrato se aplica, sem re- sistencias, as relac;aes hist6ricas e efeti- vas. Para Rousseau, porem, essa aplicac;ao resta problernatica, urn problema que sera depois explorado por Kant, ao fazer do contrato uma ideia reguladora, que os ho- rnens devern manter no horizonte, como urn fim a que buscarn e para o qual diri- gern as suas ac;oes, ainda que talvez jamais venharn a alcanc;a-lo. 0 que importa do ponto de vista kantiano nao e resolver como afinal se pode conformar a hist6ria ao direito deduzido da ideia do contrato, mas que essa ideia oferec;a princfpios nor- mativos para a ac;ao polftica. . Eis entao o que esta ernjogo nasinta- xe contratualista: o contrato e urn esque- ma juridico que, aplicado as relac;oes de poder entre os hornens, permite legitirna- -las e racionaliza-las. No entanto, quando se fala em Contratualisrno, nao se pensa apenas nessa sintaxe comum as filosofias de Hobbes, Locke e Rousseau. Pensa-se tambern no debate vivo e pungente que se estabeleceu entre elas, urn debate curioso ja que os charnados contratualistas nao se reconhecem enquanto grupo, nao se fi- liam explicitamente uns ao outros, mas, ao contrario, fazem uso de urna mesma sinta- xe para se criticarern uns aos outros. Locke nao cita nominalrnente Hob- bes, que nao e 0 seu interlocutor privile- giado, e sim Filmer, nos Dois Tratados. Mas, evidenternente, a obra de Hobbes esta no subsolo dessa obra, nao apenas por causa da sintaxe contratualista, mas por- que, assim como as teses realistas de Fil- mer, corn ela tambem se rebate as de Hob- bes. Na discussao constitucional que dividiu a Inglaterra ern dois partidos, o partido do Rei e o do Parlamento, Hobbes e Filmer estao do lado do Rei (ainda que por carninhos rnuito diversos), Locke esta ,. ,, ,, -~ do !ado do Parlarnento. Locke e Hobbes sao, assim, inirnigos politicos. Rousseau, por sua vez, critica explicitamente a con- cepc;ao hobbesiana do estado de natureza (ROUSSEAU, 2005) e se refere ao pacto tal como concebido por Hobbes - o pacto pelo qual se institui urn governo tendo em vista a seguranc;a no gozo da propriedade - como urn passo na hist6ria da desigual- dade, pelo qual os ricos fizeram de uma usurpac;ao (a propriedade) urn direito, e deste direito urn instrumento de sujeic;ao dos pobres (ROUSSEAU, 2005). Com isso, Rousseau nao apenas critica Hobbes, como poe em cheque a tese lockeana de que a propriedade e urn direito natural. 0 quan- to nao teria ganho a humanidade, racioci- na ele, se os homens nao tivessem aceito o ato pelo qual alguem "tendo cercado urn terreno, atreveu-se a dizer: isso e meu" (ROUSSEAU, 2005, p. 203). Pode-se dizer que a mesma sintaxe correspondem diferentes orientac;oes poli- ticas entre os expoentes do Contratualismo (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2010). Porem, mais importante do que reconhecer que do Contratualismo se fizerarn diferen- tes usos politicos e perceber que 0 que cha- mamos de Contratualismo se consolidou na forma de urn debate real e concreto, que o Contratualismo nao e, portanto, urna posi- c;ao abstrata, estanque, a qual podernos aderir de urn ponto vista filos6fico e politi- camente neutros, mas certo fundo cornurn a determinadas teorias politicas, que trava- Os Contratualistas .. ram urn rico debate entre si e se contrapu- serarn umas as outras. Ou seja, cabe olhar para o Contratua- lismo menos como urn r6tulo aderente as filosofias que partilham da ideia do con- trato e mais como urn terrno que designa certa discussao levada a cabo por determi- nados pensadores dos seculos XVII e XVIII em torno do conteudo jurfdico-racional da polftica. Neste, como em tantos outros de- bates da hist6ria da filosofia, o sentido dos termos nao e univoco. Nao apenas o termo contrato altera significativamente de fun- c;ao e sentido, como tambern outras noc;oes fundamentais a ele correlatas, como von- tade, liberdade, direito, bern como a pro- pria politica. Daf por que convenha por vezes colocar os "ismos" de !ado para ob- servar como o seu conteudo se constr6i a · partir das filosofias que o animam. Assim, tendo falado da sintaxe comum aos con- tratualistas, tratemos agora, na medida do possivel, desse debate que os une num feixe de remissoes reciprocas e distorc;oes de sentido. *** Uma tese fundamental do Contratua- lismo de Hobbes e a de que o contrato s6 e capaz de fundar o corpo politico enquanto urn sistema de direitos e deveres, se for sustentado por urn poder soberano. Esse poder da cauc;ao ao contrato, que s6 e vali- do na condic;ao de haver esse poder. Hobbes f . " I "I i I f ! t I ,, ! i '' I ! Dl Manual de Filosofia Politica retira essa conclusciQ de uma teoria geral do contrato, exposta no cap. XIV do Leviatd. Segundo a defmic;ao de Hobbes, o tern boas raz5es para desconfiarem uns dos outros. A func;ao do gove'rno, ou, mais precisamente, do poder do Estado e ga- contrato e um ato voluntario pelo qual se rantir que as partes cumpram os contra- efetua uma transfere~cia mutua de direito tos, coagindo "aqueles que de outra ma- (HOBBES, 1974). Dizer que o contrato e neira violariam a sua fe" (HOBBES, 1974, urn ato voluntario significa dizer que se es- p. 86). Des sa maneira, o poder do Estado pera dele algum bern, jaque urn ato volun- se apresenta como condic;ao da validade tario se define, precisamente, por ser urn dos contratos. Servindo de fiador aos con- ato pelo qual se visa a urn bern. Isso signifi- tratos, ele confere validade a esses· atos ca que urn contrato do qual nao se pode que, de outro modo, nao poderiam ser pen- esperar nenhum bern nao e urn contrato, e mesmo que ele tenha sido celebrado, as pa- lavras que o celebram sao ocas e nao criam obrigac;ao: o contrato e nulo. Desse modo, "[ ... ] ninguem pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela tor~ta para tirar- ·lhe a vida, dado que e impossivel admitir que par meio disso vise algum beneficia pr6prio" (HOBBES. 1974, p. 84). Pela mesma razao, "quando se faz urn pacto em que ninguem cumpre imediata- mente sua parte e uns confiam nos outros ( ... ), qualquer suspeita razoavel torna nulo esse pacto" (HOBBES, 1974, p. 86). A ra- zao esta em que ninguem pode esperar al- gum beneficia em celebrar urn contrato sem garantia de reciprocidade. Donde ne- nhum contrato e valido sem a garantia de que o outro cumprira a sua parte. Hobbes acrescenta a essas teses reti- radas de uma teoria do contrato a tese de que, no estado de natureza, antes da insti- tuic;ao de um governo comum, os homens sados como voluntaries, nao instituindo obrigac;ao e nao passando de urn amontoa- do de palavras, proferidas em vao. Urn con- trato nessas condic;5es seria como uma rna definic;ao da vontade, da qual nao se pode retirar analiticamente nenhuma obrigac;ao como consequencia. Assim, os contratos s6 instituem obrigac;5es no interior do Estado, em vir- tude do seu poder de coac;ao. Hobbes en- contra uma bela formula para exprimir essa ideia- os pactos, sem a espada, nao · passam de conversajiada5 - e retira dai a justificativa para o contrato politico: ele e o contrato por meio do qual se institui o poder que da cauc;ao aos contratos cele- brados, validando-os e possibilitando a criac;ao de vinculos jurfdicos e obrigac;5es a partir das quais os homens passam a re- gular a sua conduta. Assim, se os homens '- Segundo a sugestao de tradu~o de Bento Prado Jr". manteo- do a rima do original: "Convenants, withoutthe sword, are but words" (Leviathan. London: Penguin Books,1981 p" 223)" tern interesse em fazer contratos - e Hob- bes argumenta que os homens tern esse interesse, pois fazer contratos e a condi- c;ao da paz, que a todos interessa - entao, tern interesse em criar esse poder. Esse poder e criado pelo contrato po- litico, o contrato dos contratos, o contrato que institui a condic;ao de validade de to- dos os contratos e de si mesmo, formulado por Hobbes nos seguintes termos: "I ... ] e como se cada hom em dissesse a cad a homem: cedo e transtiro meu direito de governar-me a mim mesmo a esse homem ou a esta assembleia de homens, com a condi- lfli.O de transterires a ele teu direito, autorizan- do de maneira semelhante todas as suas a~toes" (HOBBES, 1974, p. 109). Ha muitos elementos nessa formula- c;ao que merecem comentario. Ressalte- mos dois. Primeiro, a ideia de que o contra- to se da nos termos de urn contrato de autorizac;ao (ideia que nao esta presente nas obras politicas de Hobbes anteriores ao Leviatti). Autorizar ou conferir autori- dade e conferir 0 direito de praticar deter- minadas ac;5es (HOBBES, 1974). Hobbes entende que por meio desse ato de autori- zac;ao os cidadaos de urn Estado reconhe- cem as ac;5es da autoridade assim consti- tuida como se fossem suas. Nesse sentido, essa autoridade os representa. E por meio Os Contratualistas II!D identidade. A instituic;ao de uma instancia representante equivale, portanto, a insti- tuic;ao do corpo politico. Folha de rosto da edicao de 1651 de 0 Leviata. de Thomas Hobbes. No caso da autoridade politica, con- fere-se a ela - esse e o segundo ponto que queremos ressaltar - o direito de praticar "todas as suas ac;5es". Trata-se assim de uma autoridade absoluta, o que significa que nao se pode negar ao Estado ou aque- les que detem a sua pessou o direito de praticar seja la que ac;ao entender por bern praticar. Alem de uma autoridade absolu- ta, e por isso mesmo, o Estado detem urn poder soberano, ou seja, urn poder que esta acima de todos os outros, na medida em que pode contar com "a forc;;a e o recur- so de todos" (HOBBES, 1974, p. 110). Hobbes poe a noc;;ao de contrato a da unidade do representante, e nao dos re- servic;;o de uma justificac;ao da soberania presentados, que sao muitos e diversos, que o corpo politico adquire unidade e do Estado, fazendo derivar dos termos do contrato acima mencionados os direitos t f, I r ~ i I i 'I ! I IIIII Manual de Filosofia Politica absolutos da sober;mia. Quando a multi- dao reunida pactua de modo a ceder a urn homem ou assembleia de homens o direito de represerita-la, ou, o que da no mesmo, quando autoriza todos os atos desse ho- mern ou assembleia como se fossem seus, ela esta, por este mesmo ato, reconhecen- do que este poder nao pode: 1. ser transfe- rido para outrem sem seu consentimento; 2. ser confiscado; 3. ser protestado pela minoria uma vez tendo sido declarado pela maioria; 4. ser acusado de injuria; 5. ser punido. No conjunto, tais direitos confe- rem ao poder politico urn carater absoluto, posto que juridicamente incontestavel, no que concerne ao direito de exercer todos os seus atos. 0 Estado e esse poder sobera- no e absoluto na medida em que instituido por e derivado do contrato. Desse modo, o poder do Estado, ao mesmo tempo que e criado juridicamente por contrato, e condic;ao de todo contrato e do proprio contrato que o cria. Ou seja, o campo jurfdico em que consiste o Estado, o conjunto de deveres e obrigac;oes criados pelo pacto politico pelo qual a multidao se unifica num corpo politico, e sustentado politicamente pelo poder do Estado. Fora do Estado nao ha obrigac;oes em sentido pr6prio, pois estas sao consequencias de contratos e nao ha contratos onde nao houver Estado. Assim, pode-se dizer que o direito (tornado aqui em sentido arnplo, nao apenas como urn sistema de normas qual for sua natureza, pelos quais se faz a partilha entre 0 legftimo e 0 ilegftimo) e fundado politicarnente. Locke, por sua vez, emprega o argu- mento contratualista para definir de uma maneira radicalmente diferente a relac;ao entre o poder politico e o direito. Pois ha, para ele, urn padrao natural de_legitimida- de, anterior a instituic;ao do poder politico e a todo contrato, que e a lei natural. Hob- 1 bes tambem fala em lei natural, mas como urn conjunto de preceitos da razao - den- tre os quais os principais sao procurar a paz, fazer e cumprir contratos - que nao obrigam propriamente, mas aconselham a adotar certa conduta. Para Locke, contu- do, a lei natural, nao sendo apenas urn pre- ceito da razao, mas urn mandamento de Deus, obriga em sentido estrito. Da lei na- tural se derivam as obrigac;oes de consti- tuir propriedade pelo trabalho e respeitar as propriedades assim constitufdas. Para Locke, assim como para Hob- bes, certo conteudo so constitui obrigac;ao, se ao seu nao cumprimento estiver asso- ciada uma punic;ao. Dai por que Hobbes diga que os tais preceitos da razao que ele denomina lei natural nao constituem pro- priamente obrigac;ao, salvo se forem consi- derados a palavra de Deus (HOBBES, 1974), posto que Deus tern direito de man- do sobre os homens, na medida em que tern o poder de punir os que nao the obe- positivas, mas como os parametros, seja la decem. Mas Hobbes nao parece querer se J ' . ' ~ ·~. i ."!: ~· 4' ;- 'f .. "''~ i·~· l "~ '•$ ;II; ·J _:_:.:: ,j -,t :m-l -! ... '" l -~ ; i } ,Ji. ·~ ~ i ~ j i ii I comprometer com essa tese, deixando em aberto a questao de saber se os preceitos da razao sao ou nao mandamentos de Deus. Locke, ao contrario, se esforc;a por mostrar que as leis de natureza que deter- minam a constituic;ao da propriedade e urn mandamento de Deus, o que para ele e uma forma de mostrar que elas constituern obrigac;ao e que ha, portanto, contraria- mente ao que diz Hobbes, obrigac;oes na- turais e pre-contratuais. Isso e irnportante porque, como veremos, nesse caso, a lei natural pode servir como princfpio de ~li mitac;ao do poder politico, 0 que ela nao e para Hobbes. 0 poder de punic;ao que sustenta as obrigac;oes naturais nao e para Locke ape- nas o poder de Deus, mas tambem o poder de todo e qualquer homem, que detem, se- gundo ele, o poder executivo da lei de na- tureza, ali onde nenhum governo foi insti- tufdo. "Cada urn tern o direito de punir os transgressores da [lei de natureza] em tal grau que impec;a sua violac;ao" (LOCKE, 2005, p. 385). Tern de ser assim; do contra- rio, raciocina Locke, a lei de natureza seria va. A ideia e que toda lei implica obrigac;ao e toda obrigac;ao implica o poder de faze-la valer. Deus consiste nesse poder no que se refere a lei natural, mas este nao e urn po- der com o qual se possa contar nesse mun- do. Assim, Locke dira que a lei de natureza obriga antes mesmo da instituic;ao do po- Os Contratualistas - natureza o poder de sua execm;ao, ou seja, o poder de punir seus transgressores. Seria certamente incorreto dizer que, ao conferir a cada homern o poder executivo da lei de natureza, Locke esti- vesse pensando em Hobbes e que visasse a responder a tese hobbesiana de que nao M em sentido proprio obrigac;oes naturais. Mas o fato e que este e urn passo impor- tante na argumentac;ao de Locke para que ele possa dizer, contrariamente a Hobbes, que ha obrigac;oes naturais ern sentido proprio. A lei natural obriga no estado de natureza porque o seu desrespeito nao resta impune - e nao apenas porque Deus punira seus transgressores no momento do juizo final, mas porque os homens, em cujas maos se depositam a responsabilida- de de sua execuc;ao, tambem punirao seus transgressores. A lei de natureza nao de- pende, portanto, do poder politico para obrigar e regular as relac;oes entre os ho- mens neste mundo. Assim, ha, para Locke, antes mesmo da constituic;ao do corpo politico, urn con- junto de deveres e obrigac;oes que vincu- lam os homens uns aos outros, nao ainda numa sociedade politica, mas no que ele de- nomina uma "comunidade natural". 0 esta- do de natureza nao e desse modo urn esta- do de dispersao, mas urn estado em que os homens estao naturalmente ligados uns aos outros pelos vfnculos racionais do direi- der politico, porque todo homem tern por to natural. Todo homem pode conhecer, ff j ~L [ I l ··~ ,r ,, 'i llfl Manual de Alosofia Polftica pelo uso da razao, o dever de constituir e respeitar a propriedade. Esse reconheci- mento vincula os _ homens uns aos outros numa serie de rela<;oes de propriedade, re- la<;oes estas que nao apenas sao rela<;oes juridicas (rela<;Oes de direito e dever), como econ6micas, rela<;oes de trabalho e de pro- du<;iio de bens. Esses vinculos economicos ejuridicos (e, todavia, niio_politicos), sao os vfnculos dos homens na comunidade natu- ral a que pertencem enquanto seres de ra- zao, capazes de organizar a vida segundo rela<;oes de propriedade. Retrato de John Locke. por Sir Godfrey Kneller, 1697. State Hermitage Museum. sao Petersburgo. 0 contrato.polftico nao cria, portan- to, para Locke, como para Hobbes, os la<;os de dever e obriga<;ao. Sua fun<;ao e outra: a de evitar que· esses la<;os, existentes no ambito da natureza, deixem de ser aqueles pelos quais os homens se pautam em suas rela<;oes recfprocas, o que ocorre quando o estado de natureza se degenera num esta- do de guerra, quando as rela<;oes entre os homens deixam de ser rela<;oes de direito e dever, pautadas pela lei natural, para se tornarem rela<;oes de puro poder. Ao men- cionar o estado de guerra e ao dizer que evita-lo "e a grande razao pela qual os ho- mens se unem em sociedade e abandonam o estado de natureza" (LOCKE, 2005, p. 400), o autor esta evidentemente em dialo- go com Hobbes. Hobbes entende que o estado de guerra e o estado em que os homens natu- ralmente se encontram em virtude da au- sencia de restri<;oes naturais, nao contra- tuais, ao uso do seu poder. Segundo Hobbes, todo hom em possui por natureza o direito ou a liberdade "de usar seu proprio poder, da maneira que quiser, para a pre- serva<;ao de sua propria natureza, ou seja, de sua vida" (HOBBES, 1974, p. 82). Isso significa que os homens mio tern nenhuma garantia de que os outros niio usarao do seu poder de modo a lhe fazer obstaculo ou a impedir que realizem os seus fins, dentre OS quais 0 principal e a preserva<;aO de SUa vida e natureza. Na ausencia dessa garan- tia consiste precisamente a condi<;ao de guerra, caracterizada por Hobbes como uma condi<;iio na qual os homens niio po- dem contar seniio com o proprio poder para se garantir na eventualidade de os ou- tros usarem seu poder contra ele. A solu- <;ao para essa situa<;ao ja sabemos qual e: fazer contratos e criar obriga<;oes que limi- tem o direito ao uso do poder, para o que se requer a institui<;ao do poder do Estado. .,.,~; ~. " ~-.:! "· ,. ... ¥ ; I I !. t -;;,. ; i Locke entende de outro modo o esta- do de guerra. Para ele, os homens nao tern direito a usar o proprio poder como quise- rem no estado de natureza, mas apenas o direito de usar do seu poder em acordo com a lei natural e de modo a faze-la valer diante de seus transgressores. Assim, o que ocasiona o estado de guerra nao e o di- reito dos homens a usar do seu poder sem restri<;oes, mas o fato de que as restri<;oes naturais ao uso do poder possam ser trans- gredidas. E a transgressao da lei natural, a transgressiio dos la<;os de dever, e niio a ausencia deles, o que coloca os homens em estado de guerra uns com os outros. Segundo Locke, os transgressores in- dicam pela sua transgressiio que niio "[ ... ] estao submetidos a lei comum da razao e nao t~m outra regra que nao ada for~a e da viohincia, e, portanto, podem ser tratados como animais de presas, criaturas perigosas e nocivas que seguramente nos destruirao se cairmos no seu poder" (LOCKE. 2005, p. 396). Ou seja, a transgressao da lei natural cria uma.situa<;iio em que os vinculos de dever e obriga<;iio estabelecidos por ela sao justificadamente substituidos por rela- <;5es de puro poder e violencia. 0 trans- gressor trocou urn vinculo pelo outro, jus- tificando que os outros fa<;am o mesmo com rela<;iio a ele. Com isso, a condi<;ao na- tural, que e, para Locke, uma condi<;iio em que os homens estao ligados uns aos ou- tros numa comunidade natural por uma Os Contratualistas IDI serie de vinculos juridicos e economicos, se degenera numa condi<;iio de guerra. Para evitar essa consequencia, os ho- mens instituirao por contrato o governo ci- vil, a quem confiam o poder executivo da lei de natureza. Mas, nesse caso, o poder civil nao se apresenta, como em Hobbes, como a condi<;iio dos vfnculos de direito e dever que se colocam no Iugar das rela<;oes natu- rais de poder e violencia, mas como o poder executivo de urn conjunto de vfnculos de direito e dever que preexistem a sua insti- tui<;iio e contra os quaisesse poder nao pode agir sem que se coloque, ele mesmo, em estado de guerra com os seus stiditos, justificando que contra ele se use da violen- cia. Ou seja, a lei natural sera, para Locke, urn instrumento de limita<;iio do poder po- lftico: cabe a ele executa-la e se de algum modo trair a confian<;a nele depositada, se agir contrariamente a lei de natureza, deve- ni ser destituido. Locke, portanto, usou da ideia do contrato para definir em termos completamente diferentes de Hobbes a re- la<;iio entre o poder civil e o direito. Para Rousseau, em contrapartida, todo direito e politico e convencional, todas as maneiras de fazer a partilha entre o legi- timo e o ilegftimo sao positivas e institui- das, como para Hobbes. Por natureza, isto e, antes de qualquer institui<;iio humana, nao ha direito, ou seja, nao ha leis, deveres e obriga<;oes. Mesmo porque os homens nao dispoem naturalmente das luzes, isto e, do IDI Manual de Filosofia Politica entendimento e razao necessarios para guiar sua conduta por princfpios normati- vos dessa ordem. Esse entendimento e ele mesmo adquirido - e nao por todos os ho- mens - ao Iongo da hist6ria. Assim, na ori- gem, no ponto zero da historia (que e como Rousseau compreende a noc;ao de nature- za), as relar;oes humanas nao sao reguladas por princfpios normativos, e os fil6sofos que, como Locke, identificaram tais princf- pios na natureza, na forma de uma lei natu- ral, passaram muito Ionge de compreender no que consiste a natureza do homem. Nao se va, pon!m, retirar daf, isto e, do fato de que nao ha por natureza princf- pios normativos, a consequencia retirada por Hobbes de que as relar;oes naturals en- tre OS homens tendem, portanto, a guerra e a disputa constante pelo poder. Nao ha direito ou lei natural, como quis Locke. Mas disso nao se segue que a natureza nos impulslone a cria-lo, como quis Hobbes. Por natureza, os homens nao precisam de IIIli sistema normativo para regular suas relar;oes recfprocas. Seus sentimentos na- turals sao suficientes para engaja-los numa vida tranquila e pacffica. No seu ins- tinto, o homem encontra o que precisa para garantir a sobrevivencia. Suas pai- xoes sao simples e faceis de satisfazer e os sentimentos tenros que nutrem pelos seus senwlhantes garantem que a conviv~ncia s!'!ja par.ffica. Ou seja, o estado de natureza e um estado em que as relar;oes entre os homens, nao sendo jurfdicas, mas pura- mente passionais e afet.ivas, encontram-se a despeito disso multo bem reguladas e equilibradas. Isso quer dizer que Rousseau devera fornecer outras razoes, que nao as de Hobbes, para justificar a instituir;ao do corpo polftico pelo ato contratual. Seja como for, como em Hobbes, e a diferenr;a de Locke, para Rousseau o direi- to e criado no momento da instituir;ao do corpo politico. Ele e institufdo por contrato e e coextensivo ao Estado. Mais precisa- mente, como em Hobbes, o direito funda-se para Rousseau sobre o poder soberano do Estado. A soberania e a pessoa publica do Estado considerada enquanto uma poten- cia ativa, o poder de fazer e impor leis, que, estando acima dos indivfduos, submete-os as decisoes coletivas. Sem ela, o direito nao dispoe de autoridade e capacidade de se impor. Mais que isso: sem ela, o direito nem sequer existe. Pois todo direito e direito le- gftimo e 0 direito s6 e legftimo se for a ex- pressao da vontade geral ou coletiva, posta acima das vontades individuals. As deci- soes dessa vontade os indivfduos se entre- gam inteiramente, por meio do contrato. E porque essa alienar;ao se faz sem reserva "a uniao e tao perfeita quanto possivel", nao restando nenhum poder individual de fora da soberania que a ela pudesse se con- trapor. A soberania retira daf nao apenas a forr;a com que aplica o direito, como o princfpio a partir do qual o cria, nao ha- vendo direito senao 0 que e posto por ela. Mas se, como Hobbes, Rousseau re- port.a o direito a soberania, ele o faz de uma forma muito particular, de maneira a cir- cunscrever com precisao cirurgica o campo em que o poder soberano se exerce com le- gitimidade. "0 soberano, so pelo fato de se- -lo, e sempre tudo aquilo que deve ser" (ROUSSEAU, 2006, p. 24), escreve Rousseau, num modo de dizer que a soberania se con- funde com o proprio direito e que todos os seus atos sao legftimos. No entanto, nem todo ato de governo pode ser entendido como urn ato da soberania, isto e, como o ato de uma vontade coletiva. E o que ocorre· toda vez que as ac;oes do governo exprimem urn interesse particular. A nor;ao de contra- to circunscreve assim o campo de legitima- r;ao das ar;i.ies polfticas, nao porque limite o exerdcio da soberania submetendo-a a uma lei superior aos seus decretos, mas porque determina o que pode e o que nao pode ser considerado atos da soberania. Segundo Rousseau, o problema fun- damental do cont.rato e o de como formar urn corpo politico sem dominar;ao, como encontrar uma forma de associar;ao que nao envolva a submissao da vontade de uns a vontade de outros. "Encontrar. uma forma de associacllo que defenda e proteja com toda a !orca comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada urn, unindo-se a todos, s6 obedeca. contudo, a sl mesmo e permaneca tllo livre quanto antes: esse 6 o problema fundamental cuja solucao 6 fornecida pelo contrato social" (ROUSSEAU, 2006, p. 21). Os Contratualistas 1&1 Assim, busca-se pelo recurso a ideia de contrato uma forma de associac;ao que nao envolva e que venha mesmo a expur- gar a dominar;ao. E precisamente isso o que fara o contrato, pensado nos termos de urn ato pelo qual os indivfduos sc dfio inteiramente a comunidade e nao se sub- metem senao a vontade coletiva que desl.e ato se origina. Submeter-se ao colelivo nao e o mesmo que se submeter a vontade de urn ou mais indivfduos. "Cada urn, dando- -se a todos, nao se da a ninguem" (ROUS- SEAU, 2006, p. 21). Ao submeter-se ao co- letivo cada indivfduo nao obedece senao a si mesmo, enquanto membro do corpo so- berano que quer a vontade geral. Trata-se com isso de criticar o modo como Hobbes e Locke, entre outros, pen- saram a formar;ao do corpo politico: como urn pacto de submissao da propria vontade a vontade do governante ou da maioria. Todo o raciocfnio politico de Rousseau parte da constatar;ao de que a dominar;ao e urn fato. Ela e, segundo a historia narra- da no Discurso sabre a desigualdade, o estagio mais avanc;ado da desigualdade, quando a desigualdade de bens e reputa- r;ao, que se estabeleceu entre os homens ao Iongo de urn Iento e gradual processo hist6rico, engendrou, em outro capitulo dessa hist6ria, a desigualdade entre gover- nantes e governados. Trata-se, cont.udo, de mostrar que, se relar;oes desse tipo de fato se estabelecerarn na hist6ria, nem por isso podem ser consideradas legft.imas. 1111 Manual de Filosofia Polftica Alltf's disso. todo o esfon;o de Houssean vai no scntido de mostrar que a dominac;fio e urn fato contnirio a razao. I~ pela medida do contrato que Hous- sPau pode fazer essa afirrnac;ao. Se o corpo polftico tem origem nurn contrato, tal como sust.entarn seus interlocutores, se ele 6 inst.il.ufdo por um ato voluntario dessa natureza, sua instituic;ao tern que estar em m·ordo com a vontade que o estabelece. Ora, a vontade do homem nao pode ser pensnda como vontade de submissao a vontade de outrern. Que raz5es os hornens terimn para isso? E como urn meio de dra- rnatizar essa questao sern resposta que Rousseau dcscreve a condic;ao original da humanidade como uma condic;ao de inde- J)('ndflncia reciproca e plena satisfac;ao.(~uc razi'i.o o homem teria para ter deixado essa situac;ao em favor de outra em que perdeu sua independencia? Nenhuma. A hist6ria da dominac;ao nao pode, portanto, ser cont.ada nos t.ermos de uma hist6ria conduzida pela vontade hnmana. Nesse Sf'lltido, ela e irracional. A ideia do contrato, por outro !ado, oferece a soluc;ao do problema. Ela indica o que deve ser o corpo politico para que se coloque em conformidade com a vontade hurnana, entendida como a fonte de todo o direito. Ele tern de ser tal como se tivesse sido formado pelo ato de alienac;ao total dos indivfduos ao corpo coletivo. S6 assim forrnada pela vont.ade dos homens. S6 as- sirn ela e racional. Assim, de um !ado ha a hist6ria da clc- sigualdade e da dominac;ao, que e alhda ao direito e da qual nao brota nenhum poder legftimo. Tudo o que ha nessa hist6ria sao relac;oes de forc;a, e a forc;a, insiste Housseau, nao cria o direito. Do outro !ado, M a ideia de contrato, pensada a partir da vontade humana, que, est.a sim, cria o direito. Mas por isso mesmo essa instituic;ao nao pode ser qualquer uma. Ela obedece a uma re- gra: ela tem que poder ser pcnsada como o produto da vontade dos homens. Assim, ernbora institufdo, o direito tem urn fundament.o natural, que e a von- tade. 0 que vem a ser essa vontade e algo que so se pode vislumbrar por urn esforc;o de abstrac;ao de tudo o que o hom em acres- centou a sua condic;ao original, pelo que se transformou a ponto de quase chegar a es- quecer sua natureza. "E essa ignorancia da natureza do homem que lanc;a tanta in- cert.eza e obscuridacle na verdadeira no- c;ao de direito natural" (ROUSSEAU, 2005, p. 152). 0 direito natural nao se expressa na forma de uma lei de natureza. Nem por isso e uma noc;ao dispensavel. Pois o eli rei- to funcla-se na vontade do _hom em tal como pensada a partir da natureza, como a von- lade pela qual o homem teria deixado sua condic;ao natural por uma condic;ao polfti- ca. Essa vontade e definida pela negativa a forrnar;ao dcsse corpo nao envolve domi- no Discurso sobm a desigualdade: trata- nac;ao e pode ser pens ada como tendo sido -se cia vontade de nao se deixar dominar. Se o homem nao goza mais de sua liberdade natural, se ele se interessa pelos bens da ci- vilizac;ao e nao mais pode viver sem eles, se ja nao pode mais se desfazer dos vfnculos que os prendem aos out.ros homens numa vida civilizada, trata-se entao de saber quais podem ser as instituic;5es dessa vida comum, tal que possam concordar com a vontade humana. Eis o problema funda- mental que o contrato tem de resolver. Ao fundar o direito na vontade e ao procurar determinar o que seria a natureza dessa vont.ade, Rousseau busca na natureza um princfpio de legitirnac;ao do direito poli- tico. Nissa, alinha-se a Locke contra a tese hobbesiana de que por natureza todas as ac;5es sao legitim as. Ve-se assim que nossos autores tem posic;5es divergentes sobre a relac;ao entre direito, polftica e hist6ria e que o Contratualismo nao e, portanto, uma teoria univoca, mas urn dialogo em aberto sobre o sentido dessas relac;5es. Bibliografia 808810, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. (ed.). 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