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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE DIREITO MARCOS PAULO FALCONE PATULLO A IGUALDADE NO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN SÃO PAULO 2009 2 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE DIREITO A IGUALDADE NO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie como exigência para a obtenção do grau de Mestre em Direito Político e Econômico. ORIENTADOR: Professor Doutor Hélcio Ribeiro SÃO PAULO 2009 3 P322i Patullo, Marcos Paulo Falcone. A igualdade no pensamento de Ronald Dworkin / Marcos Paulo Falcone Patullo – 2009. 210 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010. Bibliografia: f. 203-210. 1. Igualdade de recursos. 2. Liberdade. 3. Comunidade liberal. 4. Direito. 5. Moralidade. I. Título. 4 “a guerra é o tema lancinante da filosofia política, e a paz, o da filosofia do direito”. Paul Ricoeur 5 AGRADECIMENTOS Aos meus pais, pelo exemplo de vida, amor e carinho. Ao Professor Hélcio Ribeiro, pelo incentivo em fazer o mestrado pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e por toda a sua dedicação no decorrer da orientação. Aos meus amigos e familiares, pelo fundamental apoio nos momentos difíceis, e por compartilharem minhas alegrias. A toda a equipe do Vilhena Silva Advogados Associados, que na luta pela concretização do direito à saúde, contribui para a aplicação prática dos conhecimentos adquiridos durante o curso de mestrado. À CAPES, pelo apoio e incentivo financeiro, essenciais para o desenvolvimento do presente trabalho. À Luiza, amor da minha vida, companheira de mais de 10 anos, por completar minha existência. 6 RESUMO O estudo da filosofia política de Dworkin, especialmente a sua concepção de “igualdade de recursos”, é essencial para a apreensão de seu pensamento jurídico. Sem dúvida, a teoria “Direito como Integridade” utiliza alguns conceitos, tais como a personificação da comunidade, interpretativismo e construtivismo, que pressupõem conceitos políticos basilares do liberalismo dworkiniano. Quando Dworkin sustenta que o intérprete deve perquirir a interpretação que mostre a lei “sob a sua melhor luz”, ele tenciona que os juristas têm o dever de fazê-la a melhor em termos igualitários. Assim, é muito importante compreender como a igualdade de recursos é desenvolvida como a concretização do direito que todo cidadão possui em uma democracia liberal de ser tratado com igual respeito e consideração, bem como a concepção dworkiniana de liberdade e comunidade, para após proceder à análise de sua filosofia do direito. Finalmente, após conectar o liberalismo igualitário dworkiniano e sua teoria jurídica, mister verificar como a filosofia de Dworkin pode ser aplicada à sociedade brasileira, que é marcada pela pobreza e exclusão social. Palavras-Chave: Igualdade de Recursos – Liberdade – Comunidade liberal – Direito – Moralidade 7 ABSTRACT The study of Dworkin’s political philosophy, specially his conception of “equality of resources”, is essential for the apprehension of his legal thought. Indeed, his “Law as Integrity” theory uses some concepts, like the personification of the community, interpretativism and constructivism, which presupposes some background political concepts of dworkinian liberalism. In fact, when Dworkin defends that the interpret must pursue the interpretation that shows law “in its best light”, he means that jurists’ duty is to make it the best in terms of equality. Thus, it is very important to understand how equality of resources is developed as the concretization of the right every citizen has in a liberal democracy of being treated with equal concern and respect, as well as Dworkin’s conception of liberty and liberal community, for then proceeding to his jurisprudence. Finally, after connecting dworkinian egalitarian liberalism and his legal theory, it’s imperative to see how Dworkin’s philosophy can be applied to the Brazilian society, which is marked by poverty and social exclusion. Key-Words – Equality of Resources – Liberty – Liberal Community – Law - Morality 8 SUMÁRIO Introdução 11 Capítulo I – O Conteúdo Normativo do Princípio Igualitário Abstrato 18 1.1. A evolução da idéia de igualdade no pensamento dworkinano 19 1.2. A igualdade de bem-estar e a crítica de DWORKIN 22 1.2.1. A igualdade de bem-estar como tentativa de fundamentação do 23 princípio da igualdade 1.2.1.1. As teorias da igualdade de bem-estar relacionadas com o sucesso 24 1.2.1.1.1. Igualdade de sucesso e as preferências humanas (políticas, 25 impessoais e pessoais) 1.2.1.1.2. A igualdade de satisfação (equality of enjoyment) e as 32 teorias objetivas da igualdade de bem-estar 1.3. O equalisandum dworkiniano: a igualdade de recursos 34 1.3.1. Igualdade na propriedade privada de recursos 37 1.3.2. A construção do mercado igualitário a partir do exemplo contractual 40 1.3.2.1. O leilão igualitário fictício como modelo avaliativo das 43 Instituições reais 1.3.2.2. O leilão sensível à ambição e insensível às circunstâncias: 45 sorte, deficiências e seguro hipotético 1.3.2.3. O leilão insensível à dotação: o problema das deficiências 48 1.3.2.4.. O leilão insensível à dotação II: a questão da sorte genética 53 9 1.4. A concretização do seguro hipotético: o sistema tributário redistributivo 56 Capítulo II – Igualdade de Recursos e Liberdade 65 2.1. Direito à Liberdade ou Direito a Liberdades? 66 2.2. Como (re)conciliar a igualdade e a liberdade? 68 2.2.1. A estratégia dos interesses 68 2.2.2. A estratégia constitutiva: a liberdade como pressuposto da igualdade 70 2.2.2.1. O princípios e subprincípios que regem os direitos de liberdade 72 2.3. A questão do deficit de recursos e de liberdade 76 2.4. A crítica de Amartya Sem ao Liberalismo Dworkiniano 78 2.4.1. A resposta de Dworkin 83 Capítulo III – Comunidade e Ética no pensamento dworkiniano 87 3.1. Os argumentos pelo perfeccionismo moral 89 3.1.1. O argumento majoritário 90 3.1.2. O argumento paternalista 91 3.1.3. O argumento do interesse pessoal 93 3.1.4. O argumento do Comunistarismo Republicano Cívico 95 3.2. O republicanismo cívico liberal de DWORKIN: a comunidade liberal 97 3.3. Comunidade e boa-vida 99 3.3.1. O conceito de boa-vida (The Good Life) 100 3.3.1.1. O “Modelo do Impacto” e a Ética Utilitarista 100 3.3.1.2. Igualdade de recursos e boa-vida: o “Modelo do Desafio” 102 10 3.3.1.2.1.Descartes e o surgimento do conceito de subjetividade humana 102 3.3.1.2.2. O Modelo do Desafio: a justiça como métrica do viver bem 104 3.4. As dimensões da dignidade humana 107 Capítulo IV – A Filosofiado Direito Dworkiniana 111 4.1. O positivismo jurídico 112 4.1.1. HART e o Conceito de Direito 112 4.1.2. A interpretação do direito nas doutrinas positivistas: um paralelo 118 entre HART e KELSEN 4.2. O Direito como Integridade 125 4.2.1. A limitação estrutural da teoria de Herbert Hart 125 4.2.2. A integridade como ideal político e a sua manifestação no Direito 131 4.2.3. A interpretação construtivista dworkiniana 133 4.2.3.1. Razão Prática e o Construtivismo Político 134 4.2.3.2. A atitude interpretativa e a definição do Direito como 137 objeto interpretativo 4.3. Ceticismo, Coerência e a Tese da Resposta Certa 145 4.3.1. O predomínio e declínio do Ceticismo na teoria política normativa 146 4.3.2. O Ceticismo no Direito e a crítica dworkiniana 151 4.3.3. Integridade e Coerência 154 4.3.3.1. A crítica de HABERMAS ao “princípio monológico” 157 de DWORKIN 11 4.3.3.2. A crítica de RICOEUR: a falta de uma teoria da argumentação 160 no pensamento dworkiniano 4.3.4. Uma leitura da “tese da resposta certa”: o dever buscar 162 a melhor solução Capítulo V – O Pensamento Dworkiniano e a Interpretação da 169 Constituição Federal de 1988 5.1. A Colocação do Problema Prático 170 5.2. Uma questão interpretativa 174 5.3. A Crise do Estado Social e o Direito à Saúde 180 5.3.1. O problema da governabilidade 182 5.4. A importância de se recorrer à Teoria Política Normativa 185 5.4.1. O liberalismo igualitário e o Estado brasileiro 187 5.4.2. A solução divergente 190 Conclusão 196 Referências Bibliográficas 203 11 INTRODUÇÃO Qual é a importância da teoria política1 para o Direito? Esse é, sem dúvida alguma, um dos temas mais instigantes da filosofia do direito, e que permeia todo o pensamento jusfilosófico de DWORKIN. Por muitos anos, por conta da preocupação cientificista do positivismo jurídico, houve certo distanciamento da filosofia jurídica e da teoria política normativa. Com efeito, o dogma positivista segundo o qual “a validade de uma norma do direito positivo é independente da validade de uma norma de justiça2” é tido como uma verdade axiomática no ensino do direito, notadamente nas universidades brasileiras. Por essa razão, inclusive, o estudo da filosofia do direito muitas vezes se limita à análise da crítica positivista às doutrinas jusnaturalistas, sem, no entanto, abordar a tradição jusfilosófica que ora se pretende expor. Na presente dissertação, assim, analisar o pensamento dworkiniano, com enfoque em sua teoria liberal-igualitária. Ao fazê-lo, no entanto, tem-se como meta ressaltar o papel e a relevância dos principais valores constitutivos da teoria política liberal3, nomeadamente, a igualdade, a liberdade e a fraternidade, para a interpretação e justificação racional do Direito. 1 Utiliza-se, aqui, o termo “teoria política”, “teoria política normativa” ou mesmo filosofia política como “um ramo da filosofia moral que parte da descoberta, ou aplicação, de noções morais na esfera das relações políticas”, in BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 228. Não se pretende, nesse sentido, contrapor Política e Moral, mas sim conferir àquele termo o significado que lhe foi atribuído pelos filósofos, como RAWLS e HABERMAS, que compõem o que ABBAGNANO denomina de “renascimento da filosofia prática”, posto que “voltaram a empenhar o discurso filosófico nos grandes temas da liberdade e da justiça. E isso segundo um modelo criativo-normativo de filosofia P., voltando a responsabilizar os filósofos em relação às instituições fundamentais de uma sociedade organizada, ou seja, a engajar-se na “construção de mundos habitáveis, por via de razões”, cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Edição revista e ampliada. 5.ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 906. 2 KELSEN, Hans. O problema da Justiça. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 11. 3 O termo “Liberalismo” não é de fácil conceituação. Tradicionalmente, em termos políticos, a partir da exposição de filósofos como MILL, o liberalismo é tido como uma doutrina individualista, e que prima pela prevalência da liberdade sobre a igualdade. Trata-se, portanto, de uma visão extremamente conservadora e que predomina, mormente, na Europa e no Brasil. Já na tradição norte-americana, especialmente a partir da década de 1970, com a publicação de “A Theory of Justice”, houve o desenvolvimento da teoria liberal com uma 12 Mas qual a razão da escolha, entre esses três ideais fundadores do liberalismo, da igualdade? A igualdade é, sem dúvida, um valor político muito caro para a República Federativa do Brasil, e integra o conteúdo normativo dos princípios constitucionais fundamentais previstos no artigo 1.º da Constituição Federal. Outrossim, a igualdade está prevista, como direito fundamental, no artigo 5.º, caput, da Lei Maior, o que apenas corrobora a sua importância para a ordem jurídica pátria. Em que pese a relevância política e jurídica desse ideal, não foi conferido ao mesmo o destaque teórico que lhe é devido. De fato, quase a totalidade dos publicistas pátrios que se debruçaram sobre o tema, limitaram à análise do conteúdo “jurídico” do princípio da isonomia. Talvez a melhor obra sobre a igualdade que foi produzida no direito brasileiro foi escrita por Celso Antônio Bandeira de MELLO4, na qual, define-se o “conteúdo político-ideológico” da igualdade com a seguinte definição: “a Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social5”. Embora louvável a preocupação de MELLO com a igualdade, verifica-se que a mencionada definição nada mais faz do que uma definição “formal” da igualdade, sendo certo que nada de “político-ideológico” se extrai da definição supra senão a repetição a idéia, expressa no artigo 5.º, caput, da Constituição6, de que a lei não pode estabelecer discriminações ilógicas e deve buscar a proteção dos direitos necessários à ordenação da vida social. O erro cometido por MELLO, qual seja, o de buscar na própria lei a definição da igualdade, é cometido pela imensa maioria dos constitucionalistas, preocupação igualitária. Em contraposição ao conservadorismo de outrora, o liberalismo passa a ser concebido, por RAWLS, como “a resposta mais funcional à exigência atual de uma “sociedade bem organizada”, baseada na justiça e no pluralismo”. É nesse contexto que se insere o pensamento dworkiniano e, por conseguinte, é com esse conteúdo semântico que se utilizará o termo “Liberalismo” na presente dissertação. 4 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3.ª ed. 14. ª Tiragem. São Paulo: Malheiros. 5 Idem. Ibidem. p.10. 6 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(...)” 13 e tem a sua origem na tradição juspositivista que domina o ensino do direito no Brasil. A definição do conteúdo valorativo do princípio igualitário não é apreendido mediante análise do texto constitucional. Para tanto, há a necessidade de se recorrer à teoria política normativa. Aliás, esse ramo do conhecimento é de fundamental importância para a análise do direito constitucional de uma forma geral, o que levou, inclusive, DWORKIN a afirmar, expressamente, que nenhum constitucionalista, atualmente, pode ignorara leitura de “A Theory of Justice” de JOHN RAWLS 7. A igualdade, substancialmente compreendida, deve ser perquirida na teoria política normativa. A esse respeito, todavia, a justiça rawlsiana representa um corte teórico extremamente relevante, eis que, conforme dito, representa uma releitura dos pressupostos da teoria liberal, a partir de uma visão igualitária. Pode-se afirmar, com toda certeza, que RAWLS foi um dos pensadores que mais influenciou o pensamento dworkiniano. Em um de seus mais recentes livros, DWORKIN “confessa” que existem muitos pontos comuns entre a sua teoria filosófica e o pensamento rawlsiano. Mais do que isso: DWORKIN considera tamanha a importância de John RAWLS para a filosofia moderna que chega a compará-lo com a importância que o próprio KANT possui para a Filosofia8. Essa característica do pensamento dworkiniano, qual seja, a sua “raiz rawlsiana”, não foi devidamente explorada pelos juristas. Com efeito, DWORKIN é sempre apresentado pelos estudiosos do direito como um jusfilósofo anti-positivista. No entanto, o alicerce político-normativo de seu 7 “Professor Rawls of Harvard, for example, has published an abstract and complex book about justice which no constitutional lawyer will be able to ignore (A Theory of Justice, 1972) There is no need for lawyers to play a passive role in the development of a theory of moral rights against the state, however, any more than they have passive in the development of legal sociology and legal economics. They must recognize that law is no more independent from philosophy than it is from other disciplines. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 149. 8 DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006, p. 261. 14 pensamento jurídico é deixado de lado. E, nesse sentido, a melhor forma de analisar a contribuição do liberalismo igualitário dworkiniano para seu pensamento jurídico é através da análise da igualdade. Assim, a escolha pela “igualdade no pensamento de Ronald Dworkin” foi motivada tanto pela possibilidade de aprofundamento no estudo desse ideal político, quanto pela apreensão da essência do pensamento dworkiniano, que é, hodiernamente, um dos mais relevantes no meio acadêmico. Ronald DWORKIN nasceu em 1931, em Worcester, Massachusetts, e graduou-se direito na Faculdade de Direito de Havard, na década de 1950. Foi assessor, entre 1957-58, do Juiz Learned Hand na United States Court of Appeals. Após, tornou-se membro do New York bar e associado do escritório de advocacia Sullivan and Cromwell entre 1958-62. Academicamente, sua carreira iniciou-se em 1962, na Faculdade de Direito de Yale. Posteriormente, em 1969, foi indicado para a cadeira de Filosofia do Direito de Oxford, como sucessor de HERBERT HART, onde permaneceu até 1998. Além de Oxford, DWORKIN também lecionou nas faculdades de direito de Harvard, Cornell e Princeton, além de ser professor convidado da University College London desde 1984. Atualmente, DWORKIN leciona Filosofia do Direito na New York University School of Law 9. Seu primeiro artigo foi publicado no Journal of Philosophy em 1963 e versava a respeito da discricionariedade judicial. Em seguida, outros artigos foram escritos, sendo neles identificável uma tese anti-utilitarista (que emergia na filosofia política norte-americana) e uma forte influência do pensamento de JOHN RAWLS. Foi, no entanto, com a publicação, no University of Chicago Law Review do artigo “Is Law a System of Rules?”, em 1968, na qual critica o 9 GUEST, Stephen. Profiles in legal theory: Ronal Dworkin. California: Stanford University Press, 1991, p. 01-02. 15 pensamento de HART, que o autor norte-americano ficou conhecido no mundo jurídico. DWORKIN tem, outrossim grande influência das escolas Britânica e norte-americana. Com efeito, no ano de 1952, quando o Professor HERBERT HART tornou-se titular da cadeira de filosofia do direito na Universidade de Oxford, o estudo e desenvolvimento da filosofia do direito, bem como a teoria política, estavam em crise na Inglaterra. Na década de 1950 foram publicadas de algumas obras10 cujo principal foco era o rigor metodológico, e que motivaram o surgimento de grandes discussões a respeito da filosofia jurídica. Todavia, foi em 1961, com a publicação de “O Conceito de Direito” (The Concept of Law), de HERBERT L.A.HART, que a Jurisprudência britânica ganhou a claridade e rigor lingüístico e metodológico necessários para o seu pleno desenvolvimento. Já nos Estados Unidos, o desenvolvimento da argumentação jurídica se dava a partir da prática dos tribunais, o que é, até hoje, uma marcante característica da Jurisprudência norte-americana. DWORKIN, como dito, iniciou a sua produção científica na década de 1960, em plena ocorrência da Guerra do Vietnã e do Movimento pelos Direitos Civis. Duas questões, portanto, emergiam desses fatos históricos: a questão da legitimidade da atuação estatal, e, relacionado a esta, a da inviolabilidade dos direitos individuais. Ambos os temas têm presença marcante na filosofia dworkiniana, uma vez que tratar a todos os cidadãos com “igual respeito e consideração” é a condição sine qua non para a legitimidade substantiva do governo democrático, o que exige o reconhecimento de certos direitos fundamentais que são invioláveis pela atuação estatal. A presente dissertação visa examinar, a partir da igualdade, o pensamento dworkiniano, tanto no seu aspecto político-normativo, quanto a sua filosofia do 10 Dentre elas, Stephen Guest cita The Vocabulary of Politics (1953), de T.D. Weldon; The Province and Function of Law(1946), de Julius Stone; Law and Social Change in Contermporary Britain (1951) e Legal Theory (1967), de Wolfgang Friedman; e, finalmente, Introduction to Jurisprudence (1959), de Dennis Lloyd. Cf. GUEST, op cit., p.03. 16 Ddireito. Nesse sentido, o Capítulo 01 será dedicado à exposição pormenorizada da “igualdade de recursos” dworkiniana, conceito essencial para o entendimento dos demais temas que serão abordados nos Capítulos subseqüentes. Após, no Capítulo 02, enfocar-se-á a principal característica do liberalismo igualitário dworkinano: a compreensão da igualdade e da liberdade como ideais políticos complementares, e não conflitivos. Conforme será visto, DWORKIN sustenta que esses valores políticos interagem de uma forma peculiar e que não entram genuinamente em conflito. Nesse Capítulo, ainda, será analisada a crítica que SEN tece a DWORKIN e a importância da mesma para a compreensão do presente objeto de estudo. Por sua vez, o Capítulo 03 será reservado ao estudo do conceito dworkiniano de comunidade liberal e de boa-vida. O entendimento da teoria “Direito como Integridade” deve começar pela idéia de Republicanismo Cívico Liberal que DWORKIN expõe no Capítulo 05 de “Sovereign Virtue”, sendo certo que a concepção de “comunidade personificada” é de importância impar para a doutrina dworkiniana. O fechamento da teoria política de DWORKIN se dará com o estudo da questão do viver bem, e, finalmente, com as dimensões da dignidade da pessoa humana, composta pelos princípios da responsabilidade individual e do valor intrínseco da pessoa humana. A partir do Capítulo 04, o foco da dissertação passa a ser a teoria do direito dworkiniana, a qual tentar-se-á analisar com vistas ao que foi exposto nos três primeiros Capítulos. Pretende-se, na verdade, mostrar a importância da compreensão do pensamento ético-político de DWORKIN para a correta apreensão de sua teoria do direito. De fato, a filosofia política exerceum papel decisivo no desenvolvimento do pensamento jurídico de DWORKIN, tanto na definição dos conceitos interpretativos, como, especialmente, no entendimento da one right answer thesis. 17 Passa-se, no Capítulo 05, da abstração para a concretude, visto que, a partir da análise de um problema concreto, qual seja, a questão do fornecimento gratuito, pelo Estado, de medicamentos de alto custo, far-se-á uma leitura do artigo 196 da Constituição Federal à luz do pensamento dworkiniano. Objetiva- se, com isso, demonstrar como as filosofias política e jurídica de DWORKIN podem contribuir para a interpretação do direito brasileiro, desde que a mesma seja usada com critério, mediante a feitura das mitigações necessárias à adaptação do pensamento dworkiniano para o caso brasileiro. 18 CAPÍTULO I O CONTEÚDO NORMATIVO DO PRINCÍPIO IGUALITÁRIO ABSTRATO A igualdade é um valor fundamental na teoria de dworkiniana. Sem dúvida, o autor norte-americano dedica boa parte de sua obra a defender uma interpretação extensiva da cláusula de igual proteção contida na Constituição Americana, a qual representa, para ele, o texto legal que insere o princípio igualitário abstrato na vida política norte-americana. Nesse sentido, visando definir o conteúdo normativo desse princípio, DWORKIN constrói uma teoria geral da igualdade, em especial na obra “Sovereign Virtue”. Se no âmbito da teoria do direito DWORKIN pode ser considerado um “pós-positivista”, politicamente, seu pensamento se insere na mesma linha da filosofia rawlsiana, ou seja, como um liberal igualitário, visto que defende a conciliação (e não o conflito) entre a igualdade e a liberdade. No aludido livro, DWORKIN ressalta a importância que a igualdade tem para legitimar um governo democrático, defendendo que o Estado tem o dever de demonstrar igual consideração (equal concern) para com todos os cidadãos que estão sob o seu domínio, aos quais invoca lealdade11. Considerando a importância legitimadora da igualdade, DWORKIN pretende oferecer uma concepção igualitária que fortaleça esse ideal, que perdeu importância nas doutrinas liberais a partir do século XIX. Mas o que pode fazer da igualdade um ideal político atraente? Em primeiro lugar, cumpre salientar que DWORKIN não é defensor de uma igualdade indiscriminada. Pelo contrário, ele se preocupa em rechaçar, logo na Introdução de “Sovereign Virtue”, a concepção da igualdade indiscriminada 11 DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: the theory and practice of equality. Massachusetts: Harvard University Press, 2000, p. 1. 19 defendida pela “velha esquerda12”, a qual sequer pode ser considerada, segundo ele, como um ideal político genuíno13. Embora DWORKIN não mencione expressamente, a crítica ao que denomina “velha esquerda” é dirigida à teoria marxista. É deveras controverso se o marxismo pode ser propriamente considerado uma teoria da justiça. Com efeito, o problema da Justiça não era uma preocupação de MARX, eis que a idéia que permeia a sua filosofia é a de que “com a chegada do comunismo iriam desaparecer (...) as ‘circunstâncias da justiça’. A escassez e os conflitos seriam reduzidos, ao ponto de tornar desnecessária qualquer apelação à justiça14”. Por essa razão, DWORKIN desconsidera o marxismo como fonte de um ideal igualitário, eis que, para o filósofo norte-americano, o princípio da igualdade deve ser complexo e dotado de diversos critérios definidores das situações em que se deve prezar pela igualdade, e daquelas em que o próprio tratamento igualitário pode ser injusto. A “igualdade de recursos” dworkiniana (equality of resources), visa elaborar um ideal igualitário dotado da complexidade que falta à “igualdade indiscriminada marxista”, e parte de uma crítica das teorias da igualdade de bem estar 1.1. A EVOLUÇÃO DA IDÉIA DE IGUALDADE NO PENSAMENTO DWORKINANO A igualdade é mencionada por DWORKIN em diversos de seus escritos, mas ganhou relevância teoria em “Taking Rights Seriously”, onde DWORKIN, 12 Ressalte-se, desde já, que DWORKIN não prima pela precisão técnica do vocabulário que utiliza, o que representa, inclusive, uma dificuldade que o seu leitor deve superar, já que não são incomuns as inovações terminológicas no decorrer de sua obra. 13 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 02. 14 “Marx simplemente se desentendía de las cuestiones de la justicia, porque pensaba que con la llegada del comunismo iban a desaparecer (lo que Hume o Rawls llamaron) las “circunstancias de la justitcia”. La escasez y los conflictos se iban a ver reducidos, hasta el punto de tornar innecesaria cualquier apelación a la justicia”. GARGARELLA, Roberto. Las teorias de la justicia después de Rawls: un breve manual de filosofia política. Barcelona: Paidós, 1999, p. 106. Gargarella menciona, ainda, autores como Richard Miller, que sustentam que Marx tinha uma verdadeira aversão à justiça, e outros como Zayid Husami, que entendem que o filósofo alemão possuía, implicitamente, uma teoria da justiça. 20 no capítulo 12, define o conceito de “equal concern and respect”. Argumenta que quando se afirma que um governo tem o dever de tratar a todos com “equal concern and respect”, pode-se ter em mente duas interpretações possíveis. A primeira é no sentido de que o conteúdo abstrato do direito a “igual respeito e consideração” manifesta-se como um direito a “equal treatment” (tratamento igualitário), ou seja, “(direito) à mesma distribuição de bens e oportunidades que foi ou é dada a qualquer outra pessoa15”. Outra interpretação possível é que “equal concern” acarreta o direito a “treatment as an equal” (tratamento como um igual), que diz respeito ao direito a “igual respeito e consideração nas decisões políticas acerca da forma como esses bens e oportunidades deverão ser distribuídos 16”. Essa distinção entre equal treatment e treatment as an equal é sutil, mas de vital importância. Equal treatment, segundo a definição proposta por DWORKIN, diz respeito a uma igualdade à mesma parcela de recursos a que foi dada aos demais indivíduos, o que dá margens à “igualdade indiscriminada” defendida pela “velha esquerda” e, conforme visto acima, é tão criticada por DWORKIN. Por sua vez, o direito a tratamento “como um igual” (treatment as an equal) deve ser visto como um direito de fundamental importância para a concepção liberal de igualdade, eis que atribui ao governo o dever de considerar as circunstâncias pessoais de cada indivíduo quando da tomada da decisão política que determinará a distribuição de recursos na sociedade, o que significa, por exemplo, que o governo tem que levar em consideração as deficiências (físicas, mentais, etc) que determinados indivíduos têm para definir a política tributária que será adotada17. 15 “(right) to the same distribution of goods and opportunities as anyone else has or is given”. DWORKIN. Taking…, op. cit., pp. 272-273. 16 “equal concern and respect in the political decision about how these goods and opportunities are to be distributed”. Idem. Ibidem. p. 273. 17 Essa é, inclusive, uma preocupação que já se encontra na teoria liberalismo igualitário de JOHN RAWLS e que será colocada em evidência por DWORKIN. Nesse sentido, cf. RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Havard University Press, 1999, pp. 86 e ss. e 21 DWORKIN foi criticado pela demasiada abstração com a qual definiu o direito à igualdade, conforme podemos observar nos comentários que PAUL GAFFNEY tece à teoria do direitode dworkiniana, no sentido de que é muito difícil se extrair um programa político da definição formal que DWORKIN faz da igualdade, mostrando-se surpreso com o fato de que o autor norte-americano não se esforçou em dar contornos mais concretos à sua concepção de igualdade: “Inacreditavelmente, Dworkin não dedica muita energia para essa questão, apesar de sua centralidade 18”. Realmente, tendo em vista apenas a forma como DWORKIN define a igualdade em “Taking Rights Seriously”, que é seu livro de maior destaque, a crítica feita por GAFFNEY é pertinente. Todavia, em escritos posteriores à aludida obra, DWORKIN refinou a sua concepção de igualdade, dando à mesma contorno mais concreto. Sem embargos, no artigo “Why Liberals Should Care about Equality?”, que atualmente encontra-se publicado em “A Matter of Principle”, DWORKIN refere-se a uma concepção de “igualdade de recursos”, introduzindo a idéia de que uma teoria da igualdade, enquanto ideal genuíno do Estado Liberal, deve respeitar as “escolhas autênticas” dos indivíduos e neutralizar as circunstâncias naturais19. No entanto, foram nos artigos “What is equality? Part I: equality of welfare” e “What is equality? Part II: equality of resources”, publicados originalmente na revista “Philosophy and public affairs” em 1981, e que hoje compõem o livro “Sovereign Virtue”, que DWORKIN desenvolveu por completo a sua defesa da igualdade de recursos. VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp.114 e ss. 18 “Incredibly, Dworkin does not devote too much energy to this question, despite its centrality”. GAFFNEY, Paul. Ronald Dworkin on law as integrity: rights and principles of adjudication. New York: Mellen University Press, 1996, p. 108. 19 DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, pp. 205 e ss. 22 Outrossim, em seu livro mais recente, denominado “Is democracy possible here?”, DWORKIN faz menção a dois princípios éticos que fundamentam a sua teoria liberal, que comporiam as dimensões da dignidade da pessoa humana20, demonstrando que esses princípios devem constituir uma base comum (common ground) para a discussão dos assuntos políticos de maior relevância na sociedade americana. Esse assunto será abordado no Capítulo III. Por ora, cumpre analisar a forma como DWORKIN elabora a defesa da igualdade de recursos a partir de uma crítica de uma concepção igualitária que coloca o bem-estar como parâmetro igualitário. 1.2. A IGUALDADE DE BEM-ESTAR E A CRÍTICA DE DWORKIN Existem várias concepções políticas igualitárias, sendo este termo “igualdade” utilizado por diversos autores para defender modelos distributivos divergentes. Visando esclarecer esse problema, SEN defende que as doutrinas igualitárias devem buscar a resposta à pergunta “igualdade de quê” (equality of what?), visto que em cada uma das teorias igualitaristas “a igualdade é buscada em algum espaço – um espaço que considera como tendo um papel central nessa teoria”21. Assim, todas as doutrinas que defendem uma espécie de igualdade que considera relevante acabam por aceitar uma desigualdade em algum determinado espaço, considerado de somenos importância. Nesse sentido, defender a igualdade significa definir alguma espécie de igualdade que deva prevalecer sobre as demais, de modo que “proponentes do igualitarismo não podem portanto simplesmente se dizer igualitários, devem apontar em que 20 DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate. Oxford: Princeton University Press, 2006, p. 09 e ss. 21 SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. 2.ª Ed. Tradução: Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 44. 23 dimensão (isto é, espaço) uma sociedade de iguais busca a igualdade entre as pessoas”22. A resposta à pergunta “igualdade de quê” pode ser considerada um marco teórico na doutrina dworkiniana, visto que é a partir da separação entre “doutrinas da igualdade de bem-estar” e “igualdade de recursos” que ele constrói o conteúdo normativo do princípio igualitário. Nesse diapasão, DWORKIN reserva um capítulo inteiro de “Sovereign Virtue” para analisar (e desconstruir) a igualdade de bem-estar (equality of welfare), para posteriormente expor a sua teoria da igualdade de recursos. 1.2.1. A IGUALDADE DE BEM-ESTAR COMO TENTATIVA DE FUNDAMENTAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE As doutrinas da igualdade de bem-estar concebem o princípio igualitário a partir de uma racionalidade econômica, contemplando os recursos sociais de acordo com sua capacidade de produção de bem-estar para os indivíduos23. Nesse contexto, a igualdade de bem-estar está relacionada com a forma de distribuição desses bens para que as pessoas tenham igual bem-estar em sua vida social considerada como um todo. Tendo isso em vista, a questão que DWORKIN coloca é se a igualdade em bem-estar deve ser um objetivo a ser alcançado por um governo comprometido com o princípio abstrato da igualdade24. No entanto, preliminarmente à discussão da igualdade de bem-estar, DWORKIN propõe uma classificação da mesma a partir de três grandes grupos. 22 FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Justiça distributiva para formigas e cigarras. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77 [cited 2009-12-16], pp. 243-253.Disponível em : <http://www.scielo.br /scielo. php? script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000100013&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0101-3300. doi: 10.1590/S0101-33002007000100013. Acesso em 17.12.2009. 23 Para Dworkin, a produção de bem estar era vista, pelos economistas, como a principal característica dos recursos sociais, cf.DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 14. 24 Idem. Ibidem. p. 15. 24 O primeiro grupo ele denomina de “teorias do sucesso” (success theories)25” do bem-estar, às quais estariam relacionadas com o êxito dos indivíduos na comunidade26. Já o segundo grupo da classificação proposta por DWORKIN contém as denominadas “teorias do estado de consciência”, segundo as quais “a distribuição deve tentar objetivar igualar as pessoas, na medida do possível, em algum aspecto ou qualidade de sua vida consciente27”. Dessa modo, as teorias do estado de consciência estão relacionadas com a quantidade de prazer e de desprazer (igualdade de satisfação) que um indivíduo sentirá em sua existência. Por fim, DWORKIN menciona as teorias objetivas do bem-estar, que requerem a construção de parâmetros objetivos para a mensuração do bem-estar na sociedade. 1.2.1.1. As teorias da igualdade de bem-estar relacionadas com o sucesso A igualdade de bem-estar, na modalidade ora em exame, relaciona-se com o sucesso ou êxito que uma pessoa atinge na sociedade no decorrer de sua vida. DWORKIN inicia a discussão acerca das “teorias do sucesso” do bem-estar para verificar se o “sucesso” deve ser um parâmetro na elaboração de uma teoria geral da igualdade, ou seja, se a igualdade, em sua substância, exige que o Estado atue de forma a igualar os indivíduos quanto ao êxito, considerado este em suas mais diversas formas. Nesse contexto, DWORKIN questiona: “se (...) nós podemos alcançar a igualdade de bem-estar em alguma dessas concepções, 25 Jussara Simões, na edição brasileira do livro Virtude Soberana, publicada pela editora Martins Fontes, sugere a tradução dessa expressão como “teorias bem sucedidas do bem-estar”, mas eu preferi por não adotar essa tradução e manter a expressão consoante se encontrano original em inglês. 26 Cumpre salientar que DWORKIN relaciona o êxito de uma pessoa a três fatores, a saber, às preferências políticas, pessoas e impessoais do indivíduo. Assim, para aqueles que defendem irrestritamente que a igualdade de bem-estar é uma questão de êxito, os bens sociais devem ser distribuídos de forma a que as pessoas consigam ter sucesso de forma equânime em suas mais diversas preferências (políticas, pessoais ou impessoais). Já outras teorias mais restritas podem limitar a igualdade de bem-estar na modalidade êxito a cada uma dessas preferenciais. Cada um desses fatores será oportunamente conceituado e relacionado com a igualdade de bem- estar, de modo a que esta distinção fique mais clara. 27 “distribution should attempt to leave people as equal as possible in some aspect or quality of their conscious life” (tradução do autor). DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 18. 25 seria desejável, em nome da igualdade, que isso realmente seja feito?28”. Visando responder a essa pergunta, DWORKIN faz uma análise das teorias do sucesso da igualdade de bem-estar em suas mais diversas facetas, nomeadamente, considerando as preferências políticas, impessoais e pessoais dos indivíduos e relacionando-as com uma possível teoria geral da igualdade. 1.2.1.1.1. Igualdade de sucesso e as preferências humanas (políticas, impessoais e pessoais) Uma das formas que DWORKIN considera relevante para ser tratada como igualdade de sucesso diz respeito às preferências políticas dos cidadãos. A pergunta que se faz é se o ideal da igualdade, em seu grau mais abstrato, exige que as pessoas sejam niveladas com relação ao sucesso obtido em suas preferências políticas. Mas o que DWORKIN quer dizer por “preferência política”? Para o filósofo norte-americano, o termo preferência política (political preference) pode ser utilizado com um sentido mais amplo e um mais restrito, mas sempre estará relacionada com preferências a respeito de “como, na comunidade, os bens, recursos e oportunidades devem ser distribuídos para os outros29”, ou seja, diz respeito às diversas formas de distribuição dos bens sociais e oportunidades no seio social, em decorrência das decisões políticas tomadas na comunidade. Não se pode ignorar, todavia, que toda decisão política é contestável e desagradará, via de regra, algum grupo social. Assim, caso o ideal da igualdade abranja uma cláusula de igual sucesso em preferências políticas, cada grupo que se sentir afetado negativamente por uma decisão política teria o direito a uma compensação recursal por isto. Todavia, para DWORKIN, a igualdade não 28 “If (…) we could achieve equality of welfare in some of these conceptions, would it be desirable, in the name of equality, to do so?”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 21. 29 “how the goods, resources, and opportunities of the community should be distributed to others.”. Idem. Ibidem. p. 17. 26 acarreta o direito a uma compensação àqueles prejudicados por uma decisão tomada coletivamente, pois considera que a questão da distribuição dos bens sociais não pode ser vinculada ao existo em uma decisão política, por tratar-se de uma questão de justiça. Com efeito, DWORKIN reconhece que existem divergências políticas em uma sociedade e que sempre alguém será prejudicado pela escolha de uma política pública em detrimento de outra, mas conclui que a igualdade, abstratamente, não exigem uma compensação para tanto, posto que a distribuição dos recursos sociais deve ser feita de acordo com parâmetros de justiça distributiva. Nesse sentido, pode-se concluir que DWORKIN não trata a igualdade como uma questão preferência política, mas como uma questão de justiça: (...) uma boa sociedade é aquela que trata a concepção de igualdade que a sociedade endossa não apenas como preferências que algumas pessoas possam ter, e, assim, como uma fonte de realização que possa ser negada a alguns e que deva ser, posteriormente, compensada de outras formas, mas como uma questão de justiça que deve ser aceita por todos porque está certa. Uma sociedade desse tipo não compensará pessoas por terem preferências que suas instituições políticas fundamentais declararem que é errado que elas as tenham30. O sucesso ou insucesso em uma preferência política, nesse contexto, relaciona-se com o bem-estar individual, e não com a igualdade propriamente dita. A igualdade não determina, por conseguinte, que as pessoas sejam igualadas em sucesso em preferência política. Mas o bem-estar de uma pessoa na sociedade não diz respeito apenas às suas preferências políticas, já que existem outras duas espécies de preferências que podem ser levadas em conta para quantificar o mesmo. A primeira delas são as preferências impessoais, quer dizer, aquelas relacionadas com fatos 30 “(...) a good society is one that treats the conception of equality that society endorses, not simply as a preference some people might have, and therefore as a source of fulfillment others might be denied who should then be compensated in other ways, but as a matter of justice that should be accepted by everyone because it is right. Such a society will not compensate people for having preferences that its fundamental political institutions declare it is wrong for them to have.” DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 23. 27 exteriores ao indivíduo e ao seu meio relacional31, como por exemplo, o apreço pelo avanço científico, ou pelo desenvolvimento do esporte, etc. São todas preferências que não estão diretamente relacionadas com a vida de quem as têm. Seria compensável, assim, um eventual insucesso em uma preferência impessoal? No entendimento de DWORKIN, uma eventual compensação financeira em virtude da frustração de uma preferência impessoal não só não se justifica à luz da igualdade como, também, a frustra32. Sem embargo, as o insucesso em uma preferência impessoal, embora seja um fato externo ao indivíduo, apenas gera uma perda de bem-estar, afetada pela subjetividade inerente à mesma, que não pode ser quantificada objetivamente para uma compensação recursal. Assim, a igualdade de sucesso, compreendida como sucesso nas preferências políticas dos indivíduos, ou como sucesso em atingir as preferências impessoais não constitui argumento suficiente para, invocando o ideal da igualdade, se pleitear uma compensação por eventual frustração. DWORKIN analisa, então, se a igualdade de bem-estar entendida como obtenção de sucesso nas preferências pessoais dos indivíduos pode ser considerado um ideal político forte, no sentido de fundamentar o dever do Estado de tratar a todos como iguais em bem-estar e constituir uma circunstância pessoal que possa, em nome da igualdade, justificar que uma reparação (financeira ou de alguma outra ordem) por parte do Estado em caso de desigualdade. A igualdade de sucesso nas preferências pessoais significa que o Estado tem o dever de promover uma política distributiva de modo que os indivíduos obtenham igual êxito em suas circunstâncias pessoais, consideradas em seu próprio ponto de vista, ou seja, de acordo com o seu próprio ponto de vista. 31 DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 17. 32 Idem. Ibidem.p. 27. 28 Nesse diapasão, essa forma de igualdade exige que o indivíduo faça um juízo valorativo sobre a sua própria vida sob dois enfoques diferentes: o êxito seu relativo e êxito total33. Por êxito relativo de um indivíduo DWORKIN considera o sucesso na realização das metas que ele fixou para a sua vida, de modo a fazê- la uma vida que tenha valor aos seus próprios olhos. O importante, no êxito relativo,é o sucesso em atingir os objetivos pessoais que uma pessoa escolheu com a ambição de fazer algo relevante na sua existência enquanto ser humano34. Ora, a igualdade de sucesso relativo em preferências pessoais está claramente fundamentada no direito que cada um tem de escolher o melhor para sua vida e no dever de fazê-lo da melhor maneira possível, utilizando os bens de forma instrumental para atingir ao sucesso em suas preferências pessoais e, conseqüentemente, produzir bem-estar. Mas, sob o prisma da igualdade, decorre daí, novamente, uma dificuldade: o subjetivismo. De fato, as pessoas valoram o seu sucesso (ou fracasso) pessoal de formas diferentes, utilizando critérios diferentes. Por exemplo, imagine-se dois escritores que não se conhecem e que têm como objetivo escrever uma obra de sucesso. Ocorre, então, que cada um escreveu um romance, os quais venderam um milhão de cópias cada. É possível afirmar positivamente que os escritores atingiram seus objetivos? Será que os dois escritores imaginários considerarão que seus livros são um sucesso a ponto de satisfazer uma preferência pessoal? Não necessariamente. Pode ocorrer que um escritor fique extremamente feliz e satisfeito com relação à vendagem de seu livro, mas que o outro escritor ache que sua obra foi um fracasso, pois, exigente que é, acha merecia ter vendido mais cópias. Agora a pergunta fundamental: será possível, invocando-se a igualdade, sustentar que o 33 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 28. 34 Idem. Ibidem. p. 30-31. 29 escritor que considerou sua obra um fracasso mereça receber mais recursos do que o escritor que se considerou bem sucedido? Evidente que não35. Outra dificuldade concernente ao sucesso pessoal relativo (ou seja, aquele relacionado com os objetivos que cada um traçou para si) é que esse critério de igualdade determinaria uma distribuição de recursos de uma pessoa para outra por razões que ambas valoram de forma diferente, ou melhor, nas palavras de DWORKIN: dinheiro é dado para uma pessoa e não para outra, ou tirado de uma e dado para outra, com o objetivo de se alcançar a igualdade em relação a algum valor que alguns valoram mais do que outros e que alguns valoram muito pouco, ao custo da desigualdade em algo que outros atribuem um maior valor36. Dessa forma, DWORKIN considera injusta a distribuição de recurso sob um critério que seja meramente subjetivo, ou seja, que considera apenas o que cada pessoa escolhe para si, já que cada indivíduo pode valorar de forma diversa o que é importante para sua vida. Assim, o sucesso relativo não pode ser utilizado como critério para uma teoria geral da igualdade. Mas com relação às preferências pessoais, deve ser considerado ainda o êxito absoluto, ou seja, o êxito considerando não com relação às escolhas pessoais do indivíduo, mas a sua vida como um todo. Qual o critério para se avaliar o sucesso (ou insucesso) da vida de um indivíduo? Da mesma forma como no sucesso relativo, o critério deverá ser o próprio indivíduo, pois, conforme explica DWORKIN, é ele quem, avaliando a sua vida como um todo, dirá se conseguiu fazer algo de valioso de sua 35 Em “Sovereign Virtue”, DWORKIN utiliza um exemplo parecido e expressa a mesma opinião. Cf. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 31 e ss. 36 “money is given to one rather than another, or taken from one for another, in order to achieve equality in a respect some value more than others and some value very little indeed, at the cost of inequality in what some value more” Idem. Ibidem. p. 31. 30 existência37. Assim, o indivíduo é o parâmetro se as suas preferências pessoais foram atingidas ou não. Aqui ocorre o mesmo problema de subjetividade observado com relação à igualdade de êxito relativo. DWORKIN demonstra, através de exemplos utilizando pessoas fictícias, denominadas “Jack” e “Jill”, que as concepções políticas, o humor, ou mesmo as convicções filosóficas podem influenciar na avaliação que uma pessoa tem de sua própria vida38. DWORKIN pressupõe uma situação hipotética em que “Jack” e “Jill”, embora tenham vidas parecidas, avaliam de maneira oposta os valores que conseguiram agregar na sua existência, não pelo fato objetivo de suas vidas serem diferentes, mas porque possuem concepções de vida diversas39. Nesse contexto, conclui o DWORKIN: As diferenças nos julgamentos pessoais acerca do quão bem suas vidas vão, consideradas no geral, são antes diferenças em suas vidas, do que apenas diferenças em suas crenças, apenas quando constituem diferenças em realização, e não em fantasia ou convicção, o que é, acredito, uma questão de mensuração pessoal do sucesso ou fracasso em face de algum padrão que estabeleça o que deveria ter sido, e não apenas o que poderia ter sido. A comparação importante e pertinente aqui me parece que é essa. Quanto mais as pessoas possam razoavelmente se lamentar de não ter feito alguma coisa de suas vidas, menos sucesso terão tido em suas vidas consideradas no todo40. DWORKIN, portanto, sustenta que a igualdade não comporta, para fins de redistribuição de bens na sociedade, argumentos puramente subjetivos acerca do sucesso/insucesso total do indivíduo. Portanto, a idéia que percorre a crítica de DWORKIN para as teorias da igualdade de bem-estar é a de que “nós não 37 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 32. 38 DWORKIN coloca diversas hipóteses envolvendo esses personagens, e conclui que a subjetividade que envolve as diferentes avaliações do sucesso/insucesso da vida de pessoas com recursos semelhantes não pode servir de argumento para que a transferência de recursos de uma para outra. Cf. Idem. Ibidem. p. 36. 39 Idem. Ibidem. p. 38. 40 “Differences in people’s judgments about how well their lives are going overall are differences in their lives, rather than simply differences in their beliefs, only when they are differences not in fantasy or conviction but in fulfillment, which is, I take it, a matter of measuring personal success or failure against some standard of what should have been, not merely of what conceivably might have been. The important and presently pertinent, comparison seems to me this. The more people can reasonably regret not having done something with their lives, the less overall success their lives have had (grifei)”. Idem. Ibidem. p. 38. 31 podemos igualar as pessoas apenas segundo os seus próprios critérios sobre o que é o sucesso geral de uma vida41”. Mas como, então, se pode avaliar objetivamente a vida de um indivíduo? Com essa finalidade, DWORKIN introduz a noção de lamentação razoável (reasonable regret), sustentando que uma pessoa somente pode fundamentar o insucesso de sua vida como um todo se não possuir o que razoavelmente ela teria direito a ter em uma sociedade comprometida com o princípio igualitário. Com isso, DWORKIN afasta, por exemplo, a hipótese de um indivíduo sustentar que sua vida é um insucesso (e que por isso merece uma compensação de recursos) porque ele não conseguiu ser o melhor jogador de futebol do mundo, porque ninguém pode, razoavelmente, pretender tanto. A pessoa pode até ter a ambição de ser o melhor jogador, mas não pode dizer que é um fracasso somente por não ter conseguido esse objetivo42. Portanto, DWORKIN sustenta que, para que a igualdade de êxito absoluto tenha algum atrativo enquanto ideal político, deve ser compreendida a partir do conceito de lamentação razoável. Todavia, o que pode ser considerada uma lamentação razoável? O conceito de lamentação razoável tem a função de inserir um critério objetivo para a avaliação da igualdade de êxito. No entanto,assevera DWORKIN que dizer que uma pessoa somente pode se lamentar daquilo que ela razoavelmente poderia ter durante sua vida não está vinculado com o seu bem- estar, mas com a distribuição de recursos na sociedade. Nesse sentido, conclui que “a métrica da lamentação razoável para determinar o sucesso geral faz suposições acerca de qual distribuição é justa, sobre a distribuição que cada 41 “we cannot make people equal on the criterion of their own judgment of overall success alone”. GUEST, op. cit., p. 261. 42 DWORKIN desenvolve esse mesmo raciocínio, mas com exemplos diferentes, em Sovereign..., op. cit, p. 39 e ss. 32 pessoa tem direito43”. Nesse diapasão, a inserção da idéia de lamentação razoável é vista por DWORKIN como possível somente “com o uso de algum esquema de distribuição justa dos recursos, no qual o julgamento acerca do sucesso geral não está incluído44”. Seguindo essa linha de raciocínio, a lamentação razoável conexiona-se com a justiça distributiva entendida enquanto igualdade nos recursos, e não com a igualdade de bem-estar, de modo que a igualdade de êxito não pode ser visto como um ideal atrativo de forma independente, já que, para que ganhe contornos objetivos, depende de um conceito que está relacionado com a igualdade de recursos. Portanto, DWORKIN deriva a igualdade de recursos exatamente da impossibilidade de se construir uma concepção da igualdade de bem-estar independente, o que leva à conclusão de que a essência da igualdade não está no bem-estar, mas em uma teoria da distribuição de igualitária de recursos. 1.2.1.1.2. A igualdade de satisfação (equality of enjoyment) e as teorias objetivas da igualdade de bem-estar Existem, no entanto, duas tentativas de vincular a igualdade ao bem-estar sem utilizar a idéia de igualdade de êxito. A primeira delas diz que a produção de bem-estar na sociedade não está relacionada com o êxito, mas com a quantidade de prazer e desprazer que o indivíduo sente no decorrer de sua vida. Assim, retira-se o êxito do centro da teoria da igualdade e coloca-se a satisfação, que é um estado de consciência e, assim, relaciona-se com as preferências humanas (assim como a igualdade de êxito). Da mesma forma que na igualdade de êxito, a igualdade de satisfação também depende das preferências (políticas, impessoais, pessoais relativas e pessoais absolutas). DWORKIN atenta, todavia, 43 “the reasonable-regret metric for determining overall success makes assumptions about what distribution is fair, about the distribution to which people are entitled” (grifei). DWORKIN. Sovereign, op. cit., p. 41. 44 GUEST, op. cit., p. 262. 33 que com relação às preferências políticas, às preferências impessoais, e às preferências pessoais relativas, as objeções são as mesmas que foram feitas à igualdade de êxito45. No entanto, o argumento muda de figura quanto às preferências pessoais absolutas, ou seja, quanto à avaliação que o indivíduo faz do prazer que sentiu na sua vida como um todo. A argumentação dworkiniana contra a igualdade de satisfação proveniente das preferências pessoais absolutas dos indivíduos leva em conta a própria essência desse ideal: DWORKIN considera que a satisfação não pode servir de critério para a distribuição de recursos, e nem a vincula, para tanto, à idéia de lamentação razoável, ou seja, o próprio binômio prazer/desprazer, que é algo inerentemente subjetivo (sentimental, portanto) não pode ser inserido no conteúdo abstrato do princípio igualitário46. Por fim, DWORKIN desconstrói as teorias “objetivas” da igualdade de bem-estar, que pretendem vincular a análise do que as pessoas podem razoavelmente lamentar em suas vidas a fatores objetivos, ou seja, externos ao indivíduo, sustentando que o Estado deve atuar de modo a igualar a quantidade de lamentação que as pessoas têm durante a vida. Há, com relação a essa teoria, a mesma dificuldade enfrentada pelas teorias “subjetivas” anteriormente analisadas, vez que uma pessoa somente pode se lamentar do que ela teria direito a ter recebido e, logo, se o Estado deve atuar de modo a igualar os indivíduos nesse sentido, ele deverá basear-se em uma teoria independente de distribuição de recursos, pois somente dessa forma pode ser feita uma avaliação do que cada um tem direito a receber47. Cumpre, derradeiramente, salientar que DWORKIN pretende afastar qualquer possibilidade de a igualdade de bem-estar seja considerada em uma teoria geral da igualdade, e, para tanto, rejeita até a possibilidade de uma 45 Vide, acima, os argumentos utilizados por DWORKIN para objetar as preferências políticas e impessoais. 46 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 44-45. 47 Idem. Ibidem. p. 46. 34 eventual junção das teorias anteriormente analisadas no que elas têm de melhor. Para o filósofo igualitário, a sua crítica às teorias da igualdade de bem-estar tem um caráter mais amplo, de modo a rejeitar qualquer possibilidade de utilização do bem-estar para fins de distribuição. Nesse sentido DWORKIN conclui: Nós não achamos qualquer razão para sustentar a idéia de que a comunidade deva aceitar o objetivo de fazer as pessoas mais iguais em qualquer dessas diferentes formas, mesmo quando isso poderia ser feito sem prejudicar nenhuma outra pessoa. Se isto é assim, então é implausível que ela deva aceitar o objetivo de fazer as pessoas mais iguais de alguma forma composta ou compromissada entre essas diferentes formas. Combinações e permutas são apropriadas quando um conjunto de objetivos ou princípios concorrentes, cada um dos quais com uma atração independente, não podem ser satisfeitos de uma vez só. Elas não são apropriadas quando nenhum objetivo ou princípio demonstrou que tenha um atrativo independente, nem como uma teoria da igualdade48. DWORKIN não identifica, portanto, o ideal da igualdade com a quantidade de bem-estar que o indivíduo sente no decorrer de sua vida, rejeitando qualquer possibilidade de fundamentação desse princípio em qualquer das teorias da igualdade de bem-estar, ou mesmo de algum teoria que resulte da fusão de todas as teorias citadas. 1.3. O EQUALISANDUM DWORKINIANO: A IGUALDADE DE RECURSOS DWORKIN, consoante o exposto, nega peremptoriamente as teorias da igualdade de bem-estar, sustentando que elas não oferecem um argumento normativo robusto para o ideal igualitário. Mas qual seria a alternativa teórica 48 “We found no reason to support the idea that a community should accept the goal of making people more equal in any of these different ways even when it could do so without damage to any of the others. If that is so then it is unlikely that it should accept the goal of making people more equal in some way that is composite or compromise among these different ways. Combinations and trade-offs are appropriate when a set of competing goals or principles, each of which has independent appeal, cannot all be satisfied at once. They are not appropriate when no goal or principle has been shown to have independent appeal, at least as a theory of equality, at all”. DWORKIN. Sovereign…, op. cit., p. 48. 35 para as concepções igualitária do bem-estar? A concepção política rival da igualdade de bem-estar, e que DWORKIN pretende defender, é a igualdade de recursos (equality of resources), que, segundo o autor norte-americano, é a teoria da igualdade que está na base do liberalismo norte-americano49. Para fins introdutórios, cumpre observar o liberalismo dworkiniano é, por excelência, uma teoria que preza pela tolerância liberal e,portanto, defende que “o Estado deve ser neutro perante as diferentes concepções de boa vida esposada pelos indivíduos50”. A análise da filosofia política de DWORKIN exige que tenhamos em mente que ele possui a mesma preocupação normativa que JOHN RAWLS: construir uma teoria normativa que apresente uma justificativa para a ação individual, mas que preserve o pluralismo moral na sociedade liberal. Com efeito, ao afirmar que “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais51”, RAWLS direciona a virtude da justiça que, para os antigos era uma disposição de caráter, para as instituições sociais, ou melhor, para a estrutura básica da sociedade. Nesse sentido, a teoria política passa a ter a função de construir valores políticos que servirão de base para a disposição da estrutura básica da sociedade, com a finalidade de fazer com que o Estado concretize o ideal abstrato da igualdade, que para DWORKIN é a virtude do soberano: tratar os membros da comunidade com igual respeito e consideração (equal concern and respect). Nesse contexto, em sua artigo “Liberalism”, atualmente publicado em “A Matter of Principle”, DWORKIN identifica a existência de duas espécies de liberalismo: uma delas baseada no ceticismo moral e que não tem um compromisso igualitário, visto que não oferece qualquer argumento contra o 49 DWORKIN é, essencialmente, um autor polêmico e é, por isso, muito criticado. Uma das principais características de seu pensamento é, exatamente, a pretensão de identificá-lo com a prática norte-americana. Dada a inexistência de um consenso na sociedade estadunidense sobre a igualdade, não há como se identificar a igualdade de recursos como amplamente aceita nos Estados Unidos. 50 TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. 1.ª ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 198. 51 “Justice is the first virtue of social institutions (…)”.RAWLS. Theory…, op. cit., p. 03. 36 utilitarismo ou contra as desigualdades econômicas, e outra comprometida com uma moralidade igualitária, no sentido de que o governo tem o dever de tratar as pessoas com igual respeito e consideração52. Há, de fato, um traço comum entre as duas formas de liberalismo citadas, que é a rejeição da imposição de uma moralidade privada por parte do governo, princípio esse que é a base para qualquer teoria liberal. Todavia, o liberalismo baseado na igualdade tem uma dimensão econômica que confere ao mercado a função de fazer com que cada indivíduo, no decorrer de sua vida, utilize uma parcela igualitária dos recursos sociais53. Isso não significa, no entanto, que o governo deva perquirir uma igualdade indiscriminada entre os cidadãos, ou seja, um governo comprometido com a igualdade não deve fazer com que os indivíduos tenham, em cada momento de sua vida, parcelas idênticas dos recursos sociais. Pelo contrário, o fato de pessoas com vidas (e ambições) diferentes ter recursos desiguais é inerente à igualdade de recursos. Todavia, e aqui já dá para ter uma noção da essência da teoria igualitária de DWORKIN, as desigualdades toleráveis por uma sociedade liberal que adota a igualdade de recursos como princípio fundamental devem ser aquelas resultantes as escolhas individuais, e não das diferenças circunstanciais naturais (talentos, deficiências, classe social, raça, etc). Nesse contexto, DWORKIN sustenta que o montante de recursos de cada pessoa na sociedade deve refletir o custo da vida que o indivíduo escolheu levar para a sociedade, e esse cálculo deve ser feito por intermédio do mercado54. DWORKIN reconhece que sua teoria igualitária é extremamente abstrata e que a identificação prática das desigualdades provenientes das escolhas individuais e daquelas resultantes das circunstancias é difícil55. Todavia, a 52 DWORKIN. A Matter..., op. cit., p. 205. 53 Idem. Ibidem. p. 206. 54 Idem. Ibidem. p. 207. 55 Idem. Ibidem. p. 208. 37 elaboração de uma teoria normativa da igualdade de recursos, bem como a construção de um mercado igualitário hipotético pode servir de guia contrafactual para a conformação das instituições reais. É nesse contexto que o filósofo norte-americano desenvolve a sua teoria igualitária. 1.3.1. IGUALDADE NA PROPRIEDADE PRIVADA DE RECURSOS O primeiro marco teórico que DWORKIN traça para desenvolver o seu conceito de igualdade de recursos é limitá-la, inicialmente, à propriedade privada de recursos, ignorando, por ora, a igualdade de poder político ou a igualdade de propriedade de recursos públicos56. A idéia central da qual DWORKIN parte para elaborar o conteúdo substantivo da igualdade de recursos é do conceito de mercado. O mercado econômico, sem dúvida, é um conceito que exerce um papel de destaque na teoria dworkiniana. Aliás, as instituições de mercado guardam uma relação de estreita afinidade com o “liberalismo de princípios”, em especial nas teorias de JOHN RAWLS e DWORKIN, muito embora estes autores não tenham definido expressamente um arranjo institucional econômico da sociedade democrática57. No entanto, tais instituições não são valoradas pelos filósofos igualitários em virtude de sua eficiência econômica, mas “por razões de justiça”, ou seja, por serem “mais consistentes com as liberdades iguais e com a igualdade eqüitativa de oportunidades58”. Nesse sentido, pode-se observar que, na teoria de RAWLS, os dois princípios de justiça possuem prioridade léxica sobre o princípio da eficiência, bem como que o igualitarismo 56DWORKIN entende que a análise do conteúdo do ideal igualitário a partir da propriedade privada de recursos não compromete a compreensão do mesmo, de modo que essa “simplificação” ajuda no estudo da igualdade de recursos. 57 VITA, Álvaro de. Justiça Liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 75. 58 Idem. Ibidem. p.77. Na realidade, a idéia em destaque não é necessariamente o fato de o mercado ser compatível com as liberdades iguais ou com a igualdade eqüitativa de oportunidades, mas a compatibilidade e a importância do mercado para a construção de uma teoria da igualdade, seja ela qual for. 38 dworkiniano valoriza, antes da eficiência distributiva, o fato de o mercado ser um mecanismo de distribuição eqüitativa dos recursos na sociedade59. Dessa forma: Tanto para a teoria de Rawls como para a de Dworkin, portanto, o mercado é primariamente valorizado como uma condição necessária (...) à liberdade individual e à igualdade e somente secundariamente como meio para promover a prosperidade, a utilidade e a eficiência. A prosperidade é colocada em seu devido lugar, isto é, no de um objetivo instrumental àquele que o liberalismo vê como o valor humano fundamental, a autonomia individual: a capacidade de os indivíduos escolherem e realizarem em suas vidas os objetivos e fins que julguem valiosos60. DWORKIN demonstra que o papel do mercado, na teoria política do século XVIII, que atualmente é denominada de liberalismo clássico, era visto como um mecanismo a ser utilizado pela sociedade para atingir finalidades sociais, estando sempre relacionado com as idéias de prosperidade, eficiência e utilidade. Nesse contexto político, a defesa do mercado se baseava em argumentos de política (arguments of policy), exatamente por pelos ganhos que proporciona para a sociedade. No entanto, ao mesmo tempo, o mercado era visto, sob o ponto de vista valorativo, como um mecanismo de defesa da liberdade individual, ou seja, como uma garantia ou instrumento de desenvolvimento do direito de liberdade do indivíduo na sociedade61. Assim, enquanto que do pontode vista político o mercado estava relacionado com a eficiência econômica, sob o prisma princípiológico (ou seja, que diz respeito aos direitos individuais), o mercado era tido como um protetor da liberdade individual. É exatamente pelo modo como DWORKIN desenvolve a idéia de mercado que a sua doutrina política começa a se desenvolver como liberalismo 59 VITA. Justiça..., op. cit., p. 77 e p. 79. 60 Idem. Ibidem. p. 80. 61 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 66. 39 igualitário. Com efeito, ele atenta para o fato de os filósofos liberais clássicos defendem uma suposta oposição entre a igualdade, e um lado, e a liberdade e eficiência, de outro, propondo sempre mecanismos de sopesamentos e concessões entre esses valores62. Trata-se, portanto, de uma visão que opõe a liberdade e a igualdade, compreendendo esta como um valor antagônico àquela. DWORKIN faz uma interpretação diferente da relação entre o mercado e os valores expressos pela igualdade e a liberdade, propondo que a teoria geral da igualdade de recursos seja construída a partir do mercado econômico, que passaria a figurar como figura central na igualdade de recursos. Assim as instituições de mercado , enquanto instrumentos reguladores de preços dos bens e serviços que serão comercializados na sociedade, são de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria da igualdade63. Evidentemente, DWORKIN não pretende defender que o mercado exerce, na realidade fática, um papel igualitário. Pelo contrário, o filósofo norte- americano reconhece que o mercado, na forma como se desenvolveu historicamente nas sociedades capitalistas, em especial nos Estados Unidos, gerou enormes desigualdades. Aliás, DWORKIN afirma diversas vezes que a sociedade norte-americana é extremamente desigual64. No entanto, o filósofo igualitário pretende sustentar que, normativamente, o mercado é extremamente importante, uma vez que “somente o mercado pode medir o que uma pessoa adquiriu para si mediante a identificação do custo de oportunidade que isso causa aos demais65”. O grande entrave para que o mercado atue de forma a produzir justiça, para DWORKIN, diz respeito à distribuição inicial de recursos: somente com a justeza na distribuição recursal será possível que o mercado, 62 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 66. 63 Idem. Ibidem. p. 66. 64 Vide, por exemplo o Capítulo 08 de Sovereign Virtue, op. cit., pp. 307-319. 65 “On my view a market in goods and service is indispensable to justice because only a market can measure what one person has taken for himself by identifying the opportunity cost to others of his having it(…)” BURLEY, Justine [ed]. Dworkin and his critics: with replies by Dworkin. Malden: Blackwell Publishing, 2004, p. 342. O trecho citado refere-se a uma resposta de Dworkin a uma crítica feita por Cohen. 40 atuando de forma livre, produza resultados justos. Certamente, na prática, nunca será possível uma sociedade atingir essa situação ótima, na qual há uma distribuição igualitária de recursos, mas a construção normativa de tal situação é extremamente relevante, para que possamos avaliar a instituições reais e modificá-las para a aproximação de uma situação justa. Nesse contexto, cumpre salientar que DWORKIN não possui uma visão idealizada do mercado, mas sim pretende construir uma teoria igualitária abstrata e complexa, a partir de um mecanismo hipotético de mercado igualitário, visando à reforma das instituições reais. O enfoque de DWORKIN, assim, embora normativo, tem uma finalidade prática, característica que permeia todo o pensamento dworkiniano. 1.3.2. A CONSTRUÇÃO DO MERCADO IGUALITÁRIO A PARTIR DO EXEMPLO CONTRACTUAL A idéia de um mercado igualitário, que exerce um papel central na igualdade de recursos, é desenvolvida por DWORKIN a partir de uma situação fictícia, contrafactual, na qual náufragos (imigrantes) se encontram em uma ilha deserta abundante em recursos. A convivência dos indivíduos (imigrantes) nessa primitiva sociedade que eles agora formam obedece a duas condições essenciais: i) eles reconhecem que ninguém tem, a priori, direito a qualquer dos recursos encontrados na ilha deserta; e ii) há ampla aceitação do princípio segundo ao qual esses recursos deverão ser distribuídos igualitariamente entre eles. Há, portanto, uma situação em que uma nova sociedade irá começar a partir dessa distribuição de recursos, na qual todos os indivíduos concorrerão e influenciarão de forma igualitária66. O problema, agora, é o seguinte: como realizar uma 66 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., pp. 66-67. 41 distribuição que não seja feita de forma arbitrária e na qual todos os indivíduos fiquem satisfeitos com o montante de recursos que receber? DWORKIN propõe que a satisfação dos imigrantes com o montante de recursos recebidos seja mensurada pelo teste da inveja (envy test), que determina que “nenhuma divisão de recursos é uma divisão igualitária se, uma vez completa, qualquer imigrante preferir o montante de recursos de outro ao seu próprio montante67”. Assim, tal divisão deve ser feita até que, ao final, cada imigrante esteja satisfeito com a quantidade e qualidade dos recursos que recebeu, de tal sorte que, se for proposta uma troca entre os montantes por eles recebidos, nenhum dos imigrantes aceite. Existem, no entanto, diversas formas de se alcançar essa distribuição igualitária (como por exemplo o sorteio, ou a tentativa), mas a maioria desses mecanismos, embora possam resultar em montantes igualitários de recursos, podem ser manipulados de modo a gerar injustiças. Imagine, por exemplo, se os imigrantes chegassem a um acordo no sentido de a distribuição dos recursos deverá ser feita por sorteios, até que se alcance distribuição igualitária dos mesmos. Todavia, antes de se realizar o sorteio, os imigrantes descobrem uma ilha vizinha, abundante em um determinado recurso (e.g., melancia), e lhes propõe a troca de todos os bens da ilha por melancias, o que é aceito pela maioria. Imagine, agora, que um dos imigrantes odeie melancia. Chegaremos, com isso, na situação em que o sorteio resultará em uma distribuição igualitária, mas não justa, vez que o indivíduo que odeia melancias nunca ficará satisfeito68. E qual poderá ser o seu argumento para se opor à distribuição feita na ilha? Um argumento consistente poderia ser no sentido de que os recursos inicialmente encontrados na ilha não fossem trocados com a outra ilha com a utilização de critérios arbitrários. Com isso, DWORKIN pretende demonstrar a necessidade de se formular um mecanismo distributivo 67 “no division of resources is an equal division if, once the division is complete, any immigrant would prefer someone else’s bundle of resources to his own bundle” Idem. Ibidem. p. 67. 68 DWORKIN. Sovereign..., op. cit., p. 67-68. DWORKIN utiliza um exemplo muito semelhante. 42 que permitisse a partilha dos recursos de forma igualitária e não-arbitrária, reconhecendo, assim, que o teste da inveja não é satisfeito com qualquer espécie de distribuição, exigindo algum mecanismo mais complexo para a partilha dos recursos sociais. Visando, portanto, encontrar um critério não-arbitrário para a divisão equitativa dos recursos na sociedade primitiva estabelecida na ilha, DWORKIN propõe que a mesma seja feita através de um leilão, no qual os habitantes teriam conchas que serviriam como moeda de troca pelos bens a serem leiloados. Segundo a descrição feita por DWORKIN, o leilão deveria ser presidido por um leiloeiro (escolhido entre os habitantes
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