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u lh o-agosto de 2004 - ano 12 Revista Brasileira de CIÊNCIAS CRIMINAIS 49 BIBLIOTECA JURÍDICA -3 ÈJ ^ CLÁUDIO GUIMARÃES .1 OBRA N°: 960 *¥Ã i MM M .............. "I ‘> h , H.(‘ A! \ n 1111 ng schwerer Menschenrechtsverletzungen: I i " Um i|< inlc I )onlunstõsse zum internationalen Strafrecht” . In: U i/Jt | ) JíJ fJiK J J A f i J) '] ; ( ÍR O P P ;K D C H (Hrsg-.). Grenzüberscbrátimgm. Mi mt;i|ít ítiui ítl)i ( IHuiiising von Albin Eser. Freiburg, 1995, p. 229-247. VV| NI »l ,1 'íin "I)<*i ProzcssgegenK arlI (16 4 9 )unddieEngÜ scheRevolution”. In I Ji1 M A N D T, A lexander (H rsg .). Macht undRecht. G rosse Prozesse in ili i ( ífjfh iohtc. .Míinchen, 1990. p. 171-186. W N I RI MC, (Icrhard. “ W ithout truth, no reconciliation. T h e South A frican R ah iss laa t and the Apartheid p ast”. VerfassungundRechtin Ubersee, n. l ,p . SR 72, 1996. 8 8 RBCC2UM 49 - 2004 “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato - Uma Introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito Luís Greco Mestre pela Universidade Ludwig Maximüian, dc Munique, e doutorando na mesma instituição. Sum ário : I - Considerações introdutórias - I I - O primeiro grupo de dúvidas: o conceito de bem jurídico: 1. C onceito dogm ático e conceito político-crim inal de bem jurídico; 2. O prim eiro problema: é possível um conceito político-crim inal de bem jurídico?; 3. O segundo proble ma: esse conceito político-crim inal de bem jurídico pode ser condição necessária para a incriminação?; 4. O terceiro problema: como distin guir bens jurídicos coletivos autênticos de falsos bens jurídicos coletivos?; 5. Síntese das considerações sobre o bem ju r íd ico -III - O segundo grupo de dúvidas: a estrutura do delito: 1. Introdução; 2. A primeira dúvida: o que se deve entender por perigo concreto?; 3. A segunda dúvida: crimes de perigo abstrato e falsos bens jurídicos coletivos; 4. O caminho pro missor: abandono de soluções globais em favor de um detalhado desen volvimento das diversas estruturas do delito; 5. Síntese das considera ções sobre o bem jurídico; 6. Síntese das considerações sobre a estrutura do delito — IV — C onclusão - Bibliografia. R esum o: O autor tom a a cada vez difundida tese da inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato com o ponto de partida para um a análise da teoria do bem jurídico e das estruturas do delito (isto é, dos problemas relativos aos cri mes de perigo concreto e abstrato). Suas conclusões cam inham no sentido da D ireito Penal 89 L u ís G reco im possibilidade de critérios simples e globais, fazendo-se necessária u m a abor dagem tão diferenciada quanto os problem as que ela se propõe a resolver. Palavras-chave: Princípio da lesividade; bem jurídico; crimes de perigo; pe rigo abstrato; fins do direito penal. I - Considerações introdutórias Adoramos estar na moda. Isso vale para o que o vestimos, comemos, para os lugares que freqüentamos - por que não valeria para as teorias que defende m os? Pois bem, não existe nada mais in, nada m ais faskion atualmente do que dizer que os crimes de perigo abstrato seriam in totum inconstitucionais, por violarem um certo princípio da lesividade ou ofensividade.1 Afinal, segundo esse princí pio, não haveria crimes sem lesão ou perigo concreto de lesão a um bem jurídico.2 E como os crimes de perigo abstrato são justam ente aqueles cujo tipo se conside 1. O primeiro a defender esta tese entre nós, segundo vejo, foi Luiz Flávio Gomes, “A contraven ção do art. 32 da Lei das Contravenções Penais é de perigo abstrato ou concreto? (A questão da in- constitucionalidade do perigo abstrato ou presumido)”, RBCCrim 8/69 et seq. Depois, seguiram-se Paulo Queiroz, Do caráter subsidiário do direito penal, Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 112 e 150; Damásio de Jesus, Crimes de trânsito,4 . ed.,São Paulo: Saraiva, 2000, p. 2 et seq., Leiantitóxicos, 6. ed., São Pauío: Saraiva,2000, p. 15 et seq.; Luiz Flávio Gomes, Norma ebemjuridico no direito penai, São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 30; Mariângela Magalhães Gomes, O principio da proporcionalidade no direito penal, São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 120 et seq.; Alice Bianchini, Pressupostos materiais mínimos da tutela penal, São Paulo: Ed. RT,2003,p. 67 et seq. M ais contido, Angelo Roberto Ilha da Silva, Dos crimes depertgo abstrato emface da Constituição,SIoVtüAo: Ed. RT,2003,p. 95 etseq., que admite alegitimidade destes crimes, desde que respeitados certos princípios. A doutrina italiana, que é a mais importante fonte de inspiração dos críticos nacionais do perigo abstrato, parece já há muito ter abanddhado a atitude meramente negativa em favor de uma análise mais diferenciada (cf. Fiandaca e Musco, Dirittopenale. Parte generale, 3. ed., Bologna: Zanichelli, 1995, p. 176 etseq.; Fiore, Diritto penale. Parte generale, Torino:Utet, 1999, vol. I.,p . 183 etseq.; Mantovani,Dznrto/«?w/e, 3- ed., Padova: Cedam, 1999, p. 232, n. 70a; Marinucci e Doicini, Corso di diritto penale,!. ed.,Milano: Giuífrè,1999,p.416 et seq.; Padovani, Diritto penale,h. ed., Milano: Giufirè,1995,p.l72;Pagiiaro,PnW(£z^tVín/í0JÊ£?2i2/i?,8.ed.,Milano: Giuffrè,2003,p.246 etseq.). Radical, ainda, Ferrajoli, Diritto e ragione, 5. ed., Roma/Bari: Laterza, 1996, p. 482 e 739. 2. Por exemplo, Luiz Flávio Gomes, Principio da ofensividade no direito penal, São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 14. 9 0 RBCCRIM 4 9 - 2 0 0 4 "P rin c íp io da o fen siv id ad e " e crim es de oerigo ab strato ra preenchido sem que o bem jurídico seja sequer exposto a um perigo concreto, neles o dito princípio da lesividade estaria violado. U m a vez que este princípio teria hierarquia constitucional,3 os crimes de perigo abstrato seriam simplesmente contrários à Constituição. Estariam já ádm inados de inconstitucionalidade, não podendo m ais ser aplicados, apenas se passíveis de reinterpretação em termos condizentes com o princípio. N ão raro se complementa essa argumentação com algum as fórm ulas tam bém da m oda: os crim es de perigo abstrato não seriam condizentes com um direito penal garantista, com um direito penal m ínim o.4 Violariam a presunção de inocência, por presumirem um perigo, e o princípio da culpabilidade. N ão examinaremos essa segunda bateria de argumentos. O bjeto das seguintes reflexões será unicamente a primeira linha argumentativa, a saber, a da m edida em que o princípio da lesividade pode levar a que se reconheça a in constitucionalidade de todos os crimes de perigo abstrato. O que m ais im pressiona em toda essa argum entação é, ao lado de sua evidente coesão lógica, o grau de convicção daqueles que a desenvolvem . Por trás dessa atitude está o ju stificado descontentam ento com um legislador que não pára de criar novos crimes - para citar um exemplo recente, a nova L e i so bre A rm as de Fogo define com o crime inafiançável a conduta de “disparo de arm a de fogo”, com inando-lhe pena superior à das lesões corporais (art. 15, L ei 1 0 .826/2003).;’ O que me pergunto é se este tipo de postura não é quase tão descuidada e apressada quanto as norm as que a motivam , porque tal ju ízo g lo bal de condenação dos crim es de perigo abstrato repousa sobre um a série de 3. C f.idem ,ibidem ,p.58etseq.Jesus, C rrâ«^fràra ííc ,c it.,p .30 ,querextraí-lodoart. 98,1, da CF, que fala em infrações de menor potencial “ofensivo”. 4. C£, quanto ao impreciso conceito de “direito penal mínimo”, Greco, “Principio da subsidia- nedade no direito penal”, Dicionário de princípiosjurídicos, no prelo. 5. O dispositivo reza: ‘‘Disparar arma de fogo ou acionar munição emlugar habitado ou em suas adjacências, em viapúblicaou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha comofinalidade a prática de outro crime. Pena-reclusão, de dois a quatro anos, e multa. Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável” . Esta conduta era, até então, mera contravenção penal. D ire i to Pon.il 91 | h» n*" Hi-titt iu mo seguras como parecem supor os ( t f t a u í ;!* * .Im I, J.... . H«fl.tiiK nlOo II i 11 ti i n i(*í r« grupo de dúvidas: o conceito de bem ju- i i i l i i <» 1 l 'mhcíüo dogmático e conceitopolítico-criminal de bem jurídico Se o princípio da lesividade ou ofensividade (usarem os as duas expres sões indistintam ente) significa a exigência de lesão ou perigo concreto de lesão a bem jurídico, o conceito de bem jurídico torna-se uma das questões centrais. E aqui, justam ente, se apontarão as prim eiras dúvidas. A ntes de prosseguirm os, é necessário fazer um a distinção entre dois conceitos de bem jurídico. Q uando afirm am os que toda incriminação v isa a defender um bem jurídico, o conceito de bem jurídico pode ser entendido, aqui, tanto de um a perspectiva dogm ática, quanto de um a perspectiva político-crim inal, ou, para usar a fam osa term ino log ia de H assem er, tanto de um a perspectiva im anente ao sistem a, quanto trans cendente ao sistem a.6 D e um a perspectiva dogmática, toda norm a terá seu bem jurídico. O cri m e de casa de prostituição, p or exemplo, (CP, art. 229) terá por bem jurídico a “m oralidade pública sexual” ,7 a b igam ia (C P art. 235) o “interesse do E stado em proteger a organ ização ju ríd ica m atrim onial, consisten te no princípio m onogâm ico”.8 A lguns autores consideravam que a revogada incrim inação do hom ossexualism o, na legislação, alem ã, protegia o bem jurídico “interesse so- 6. Hassemer, TheurieundSoziologiedes Vebrechens, Frankfurt a.M .: Europãische Verlagsanstalt, 1980, p. 19. N a doutrina italiana, fala Ferrando Mantovani, op. cít., p. 213, em concepção ‘ juspositivista”e “metapositivista”de bem jurídico. 7. Cf. Cézar Bitencourt, Código Penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 912. 8. Idem,íbidem,p.926. 9 2 R B C C R IM 49 - 2004 "P rin c íp io d a o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab stra to ciai na norm alidade da vida sexual” .ç Q uanto a este conceito, não há qualquer dúvida ou problema. E le nada m ais é que o interesse protegido por determ ina da norm a, e onde houver uma norm a, haverá um tal interesse. M as quando discutimos os limites do poder legal de incriminar, não é esse o conceito de bem jurídico que nos interessa. Afinal, este conceito está à comple ta disposição do legislador. Com base neste conceito, só se poderá dizer se algo é um bem jurídico se o legislador assim houver decidido. O que precisamos saber é se é possível trabalhar com um conceito não m ais dogmático, e úxa. político-cri m inal àe. bem jurídico; noutras palavras, se se pode esperar do conceito de bem jurídico algum a eficácia no sentido de limitar o poder de punir do Estado. N este trabalho, não trataremos do conceito dogm ático de bem jurídico, m as unicamente do político-criminal. Tal não implica separar dogm ática de po~ lítica-criminal,10 nem desconhecer em que m edida o conceito dogm ático depen derá do conceito político-crim inal. A rigor, penso que o conceito dogm ático de verá ser construído nos m oldes que lhe sejam fornecidos pelo conceito político- criminal, e alguns apontam entos nesse sentido serão feitos no correr do estudo. Ocorre que, por razões de espaço, concentrarei as atenções no exame do conceito político-crim inal de bem jurídico, fazendo só observações pontuais a respeito da relevância dogm ática dessa categoria político-criminal. 2. O -brimeiro problema: épossível um conceito político-cri minal de hem jurídico? a) O panorama: entre defensores e céticos Prim eiram ente, u m curto panoram a sobre a discussão no B rasil e na A le manha. N o Brasil, a doutrina tradicional, a rigor, nem sempre utilizar as palavras 9. Maurach, DeuíschesStrafrecbt-BesondererTeil,4. ed.,Karlsruhe:C.F.Müller, 1964, p. 411. 10. O que não se mostra mais possível desde o fundamental estudo de Roxin, Política criminale ststemajurídico-penal, 2. ed., Crad. Luís Greco, Riode Janeiro: Renovar,2002 { l .aedição publicada originalmente em 1970). M ais detalhes sobre essa abordagem • chamada “funcional” , em Greco, “Introdução à dogmática funcionalista: do delito", RBCCrim 32/120 et seq., 2000. D ireito Penal 93 Luís G reco “bemjurídico”, preferindo porvezes o term o objeto ou objetividade jurídica. Com o esta diferença é apenas terminológica, pode-se dizer que ela já conhecia o concei to de bem jurídico, mas em sua dim ensão exclusivamente dogmática. O u seja, a nossa doutrina majoritária, acostumada exclusivamente com o conceito dogmático de bem jurídico, não costuma reconhecer qualquer função crítica ou político-cri- minal à idéia.11 E m geral, só a partir de investigações m ais recentes se começou a propor um conceito de bem jurídico com o diretriz para o legislador.12 Segundo vejo, pioneiro aqui foi Juarez Tavares.13 N a Alemanha, ao contrário do que talvez se pense, a situação não é tão diversa. A o lado de alguns defensores do conceito político-crim inal de bem juríd ico ,14 há um a vasta doutrina m ajoritária que ou a rejeita de m odo expres- 11. Cf. Hungria, in: H U N G R IA , Nelson; FR A G O SO , Heleno. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. t. II, vol. I, p. 10 et seq.; Bruno, Direito penal. Parte geral, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. II, p. 212; Magalhães Noronha, Direito -penal, 32. ed., São Paulo: Saraiva, 1997, vol. I, p. 115; Fragoso, Lições de direitopenal. Parte geral, 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 268 et seq. 12. Uma pequena amostra, ordenada alfabeticamente, sem qualquer pretensão de ser comple ta: Nilo Batista, Introdução critica ao direito penal brasileiro, 4. ed.,Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 94 et seq.; Fernando Capez, Consentimento do ofendido e violência desportiva, São Paulo; Sa raiva, 2003,p. 114; Yuri Carneiro Coelho,Bemjurídico-penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, passim; Luiz Flávio Gomes, Norma e bemjurídico..., cit.; Ilha da Silva, op. cit., p. 29 et seq.; Magalhães Gomes, op. cit., p. 90 et seq.; Luís Régis Prado, Bem jurídico-penale Constitui ção, 3. ed., São Paulo: Ed. RT, 2003, passim; Juarez Tavares, Teoria do injusto penal,2. ed., Belo Horizonte: Del Rey,2002,p. 197 et seq. 13. Com o estudo “Critérios de selação de crimes ecominação de penas”, RBCCrim, São Paulo, número especial de lançamento, p. 78 et seq,, 1992. , 14. Por exemplo, Freund, in: H E IN T S C H E L -H E IN E G G , Bem d von (Ed.). Münchener Kommentarzum Strafgesetzbuch. München: Beck, 2003. vor § § 1 3 ff/4 2 et seq.; Hassemer, “Grundlinien einer personalen Rechtsgutslehre”, in: P H ILIPS; S C H O L L E R {&à.).Jenseits des Funktionalismus. Heidelberg: Decker u. Müller, 1989. p. 91-92); “Darfes Straftatengeben, die ein strafrechdiches Rechtsgut nicht in Mítleidenschaft ziehen?”, in: H E F E N D E H L ; W O H LER S;v.H IR SC H (Eds.).Z )?>fo ’i:to(g'Zí/j^écní’. BadenBaden:Nom os,2003.p. 64,para o qual proibições penais sem bem jurídico seriam “terrorismo estatal"; Herendehl, Koílektive Rechtsgüterim Strafrecht, Kóln: Heymanns etc.,2002,p. 18 er seq.; “D as Rechtsgut ais materialer Angelpunkt einer Strafnorm”, in: H E F E N D E H L ; W O H L E R S: v. H IR S C H (Eds.). Die Rechtsgutstheorie. Baden Baden: N om os,2003. p. 119 et seq.;“DieTagung aus derPerspektive eines Rechtsgutsbefiinvorters”, in: H E F E N D E H L ; W O H L E R S; v. H IR SC H (Eds.). Die 9 4 RBCCR1M 49 - 2004 "P rin c íp io d a o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab stra ta so ,15 ou se m antémnum a cética reserva.16 E a C orte C on stitucion al alem ã, que teve em 1994 a oportunidad e de aplicar a teoria do bem jurídico ao exa- R e c b t s g u í s t h e o r ie .Baden: N om os,2003.p.3 8 6 etseq.; Otto, Grundkurs Strafrecht,6.ed., Berlin/NewYork: DeGruyter, 2000, § 1/40; Roxin, “Wandlung der S trafrechtswissenschaft”, JA , p. 223,1980; “Zur Entwicklung der Kriminalpolitik seit den Alternativ-Encwürfen’’,J/í, p. 546,1980; Rudolphi,“Die verschiedenenAspekte des Rechtsgutsbegriffs” , FestschriftfürHomg, Gottingeiv. O tto Schwarz 8cCo., 1970, p. 163 et seq.; SystematischerKommentar, 6. ed., Neuwied: Luchterhand etc., 1997, vor § 1/8; Schünemann, “Strafrechtsdogmatik ais Wissenschaft”, in: SC H Ü N E M A N N er ai. (JL<is.).FestscbriftfurC!aus R o x i n . DeGruyter,2001.p.26 etseq.; “D as Rechtsgüterschutzprinzip ais Fluchtpunkt det verfassungsrech.dich.en Grenzen der Straftatbestande und ihrerlnterpretation”, in: H E FE N D E H L ; W OH LERS;v. H IR SC H (Eds.). Die Rechtsgutstbeorie. Baden Baden: Nomos, 2003. p. 133 etseq.; Stãchelin, Strafgesetzgebungim Verfassungsstaat, Berlin: Duncker ôtHumblot, 1998. p. 80 et seq. 15. Amelung,“DerBegriffdesRechtsgutsinderLehrevomstrafrechttichenRechtsgüterschutz”, m: H E FE N D E H L; W O H L ER S; v. H IR SC H (Eds. Baden Baden: Nomos, 2003. p. 154 etseq. (a tradução deste estudo para o português, feita por mim, encontra.-se no prelo); Appel, Verfassung undStrafe, Berlin: Duncker ôcHumbloy, 1998, p. 206; “Rechtgüterschutz durch Strafrecht?”, KritV, p. 278 et seq., 1999; Bockelmann e Vòlk, Strafrecht- Allgemeiner Teil, 4. ed., München: Beck, 1987, p. ll;F risch ,“AndenGrenzendes Strafrechts”,in: KÜPER;W ELP(Eds.). FestscbriftfürStree und Wessels. Heidelberg: C . F. Müller, p. 71 etseq.; “ Wesendiche Voraussetzungen einermodernenStrafgesetzgebung”,in :ESER(Ed.). VomtotalttãrenzumrecbtstaatlichenStrafrecht. Freiburg: Max Píanck Institut, 1993. p. 203 et seq.; ‘‘Straftat und Straftatsystem”, in: W OLTER; FR EU N D (Eds.). Straftat, StrafzumessungundStrafprozeflimgesamten Strafrechtssystem. Heidelberg: C. F. Müller, 1996. p. 136 etseq.; “Rechtsgut, Recht, Deliktsstruktur und Zurechnungim Rahmen derLegitimation staadichenStrafens”,in: H E FE N D E H L ; W O H LERS; v .H IR SCH (Eds.).-Dzá Baden Baden: Nomos, 2003. p. 216 et seq.; Jakobs,“KriminalisierungimVorfeld einer Rechtsgutsverletzung”, Z SiW 97/752,1985; Sirafrecht - Allgemeiner Teii, 2. ed., Berlin: DeGruyter, 1991, §2/1 etseq.;MichaelKóhler, Strafrecht- Allgemeiner'Teil, Berlin: Springeretc., 1997, p. 24 et seq.; Kuhlen,“Strafi:echtsbegrenzung durch einen materiellen Straftatbegriffr” , in: W OTTER; FR EU N D (Eds.). Straftat, StrafzumessungundStrafprozefiimgesamten Strafrechtssystem. Heidelberg: C . F. Müller, 1996. p. 89 e 96; Lagodny, Strafrecht vor den Schranken der Grundrechte, Tübingen: Mohr-Siebeck, 1996, p. 144; Naucke, “Die Reichweite des Vergeltunsstraírechts bei Kant”, Überdie Zerbrechlicbkeit des rechtsstaatlichen Strafens, Baden Baden: Nomos, 2000, p. 81; Stratenwerth, “Zukunftssicherung mit den Mitteln des Strafrechts”, ZStW 105/692,1993; Das Strafrecht in derKrisederlndustriegesellschafi, Basei: Verlag Heibing & Lichtenhahn, 1993. p. 17; “Zum Begriffdes ‘Rechtsgutes’”, in: E SE R et al. (Eds.). Festscòrftfur TheodorLenckner. München: Beck,1998.p.391;“KriminalisierungbeiDeliktengegenKolldaivrechtsgüter”,in: H E FE N D E H L; W OH LERS;v. H IR SC H (E.ás. ). Die Rechtsgutstbeorie. Baden Baden: Nomos, 2003. p. 255 etseq.; Vogel, “Strafrechtsgiiter und Rechtsgüterschutz durch Strafrecht im Spiegel der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts", StV, p. 112,199b;WohleTs,De/iktstypendesPráventionsstrafrechts '-zurDogm adk “moderner” Geíâhrdungsdelikte, Berlin: Duncker 6c Humblot, 1999, p. 279. 16. C f principalmente os manuais e comentários: Lenckner,em Schónke e Schrõder, Strafgesetzbzicb Kommentar, 26. ed.,München: Beck,2001, vor §§ 13 et seq./10; Gropp, Strafrecht-Allgemeiner D ireito Penai 95 L u ís G reco m inar a problem ática da proibição d o porte de haxixe para uso pessoal, fez questão de não o fazer.17 D esde essa decisão pode-se afirmar que os defensores do conceito político-crim inal de bem juríd ico se encontram na defensiva, ha vendo mesmo quem brinque com a m etáfora de estar o conceito de bem juríd i co moribundo, no leito de morte, ou declarado m orto por seus opositores.18 A inda assim, o conceito político-crim inal de bem jurídico teve, ao menos historicam ente, uma grande conquista', orientou am plas descrim inalizações no direito penal sexual alemão. Para lem brar unicamente o exemplo mais significati vo: na Alemanha, o homossexualismo masculino era uma conduta punível até a década de 70. A lguns autores valeram -se de um conceito crítico, político-crim i nal de bem jurídico para dizer que tais incriminações de condutas m eram ente im orais não tutelavam bem jurídico a lgum , sendo, portanto, ilegítim as.19 E ssa argumentação acabou por convencer o legislador, que aboliu o referido dispositi vo, iio lado de muitos outros. M a s m esm o essa conquista é atualmente questiona- dii [)oi muitos. Para Frisch20 e Stratenw erth,21 por exemplo, o conceito de bem |m idii o aqui pouco fez; a descriminalização do homossexualismo m asculino de- » niMMiii ilc mudanças culturais, elas sim decisivas. M,u'» ii!|;uns autores não v êem no bem juríd ico qualquer conteúdo liliruli.MHIr, tKVicnlido que lhe é atribuído por muitos, e sim um m ecanism o que Jh l , lln ltn ' itijií» i M , V 27 ct &eq.; Jesch eck e W eigend, Lehrbuch des S tra freck ts- All^emrMin í i l l , i u l , Un lin 1 hnti kcr W íum blot, 1996,p. 7etseq .;W essekeB eu lk e , Allflciiioiuei iu l , * I o l , I Im iotlicin t ’ . !r,M u lle r ,2 0 0 3 ,n .9 . 17. BV alt; cm NJW W . p , \S T l et wq. 18. C fosdoiadflvn iic im ultnon iT ilopollfiio c'rím m ddebem jurídicoH etendehl,“D asR echtsgut ais m aterialer...",cír.,p. 1 1 c Hi liltiim iitnii,"1 ) íih Rcchtsgüterschutzprinzip...”,c it .,p . 133. 19. E m especial Herbcnjíl^oi, S/iafyctcfz^r/jringurid Rsebtsgúterscòutzèei Siíí/ichkeitsdelikten, Stuttgart: Ferdinand Enke Wrlug, 10^7, p, 6 ct seq.; Roxin, Tãtenchaft und Tatherrschaji, Hamburg: Cram de Gruyter, 1963, p. 41.} ct 'icq ,,! lanack/Einptiehltessich.die Grenzendes Sexualstrafirechtsneuzubestimmen?”, (hiCachtcn Afúrder! 47 Deutschenjuristentag, Beck, 1968, n. 29 et seq. 20. F risch ,“R ech tsgu t,R ech t,D e!ik £sstruk tur,..” ,c it ., p. 218. 21 . Stratenw ertb ,“Zum B eg r iff ...” ,c it .,p . 3 8 9 ct seq. 9 6 RBC C R IM 49 - 2004 "P rin c ip io da o ten siv id ad e" e crim es de p erig o ab strato mais e mais serve de base para legitimar a expansão do direito penal.22 Podemos mencionar aqui Jakobs, para o qual a idéia de bem jurídico pode no máxim o che- o-ar a um direito penai de inimigo, oposto ao direito penal cidadão, sendo a fina lidade deste não a proteção de bens jurídicos, e sim a maximização de esferas de liberdade,23 e Volk, que verifica que o conceito de bem jurídico mudou completa mente de função, abandonando a função crítica para passar a fundamentar as novas incriminações do direito penal econômico e ambiental.24 Enfim , o conceito de bemjurídico pode ser tudo, menos amplamente aceito. Pelo contrário, tanto no Brasil, com o na A lem anha, ele é defendido por um a doutrina minoritária. A única diferença entre nós e os alemães parece ser que aqui está na m oda falar de bem jurídico, enquanto lá a m oda agora é recusá-lo. Tais observações não significam, porém, que essa doutrina minoritária não possa ter razão; elas valem, ainda assim , como primeiro sinal de cuidado, no sentido de que é melhor parar e refletir a respeito de nossas certezas. E o que faremos a seguir. b) A problemática do conceito político-crim inal de bem jurídico : onde fundam entá-lo? Q uerem os um conceito de bem jurídico capaz de restringir o poder de incriminar do legislador.2S O problem a é, assim , de onde extraí-lo. N a A lem a- 22. Este perigo, em especial no que se refere a bens jurídicos coletivos, é apontado mesmo por defensores do conceito político-criminal de bem j urídico, como repetidamente faz Hassemer, “Grundlinien einer personalen.. cit., p. 89; “Symbolisches S trafrechtund Rechtsgüterchutz”, N SíZ , p. 557,1989; Einfühmng in die Grundlagen des Strajrechts, 2. ed., München: Beck, 1990, p. 275; “Strafrechtswissenschaft in der Bundesrepublik Deutschíand’’, in: S IM O N (Ed.). Rechtswissenschaft in derBonner Republik. Frankfurt a. M .: Suhrkamp, 1994. p. 299 e 307; “Perspektiven einer neuen Kriminalpoíitik”, StV, p. 484,1995. 23. Jakobs, “Kriminalisierung im Vorfeld...”, cit., p. 756. 24. Volk, “Strafrechtund Wirtschaftslcriminaiitàt^.yZ, p. 88,1982. 25. Estamos abstraindo da pergunta, também relevante, quanto a se esta limitação ao poder do le gislador tem necessariamente de ser prestada pelo conceito de bemjurídico, e não por alternativas. Uma alternativa que vem ganhando cada vez mais adeptos é a teoria da lesão a direitos, que remonta iTtneib2.à\{c£.Ye.\izib/ich.,R.evisionderGrundsàtzeundGrunàbegriffèdespositivenpein[ichenR£chts, Erfurt: HenningscheBuchhandlung, 1799,reimp. Aalen, 1966, vol. I,p. f>5',R£n)isionderGrundsátze und Gnmdbegriffe des poútiven peinílcben Rechts, Tasche: Chemnitz, 1800,reimp. Aalen, 1966, vol. Direito Penai 9 7 L u ís G reco ului, as propostas são as mais variadas. Existem autores que buscam inspiração na filosofia de Kant e Fichte,26 com o outros que a procuram na filosofia da lingua gem anglo-saxònica.2' Pode-se observar, contudo, que a maior parte destas pro postas ficou sem continuidade. U m a ú nica delas parece de algum modo prospe rar: a de definir o bem jurídico com arrimo na Constituição.2S Estar-se-ia, assim, diante de um conceito político-criminal de bem jurídico vinculante para o legisla dor, porque ele seria extraído diretamente da Constituição, sendo portanto dotado de hierarquia constitucional. E sse parece ser igualmente o caminho preferido pelos defensores brasileiros do conceito político-criminal de bem jurídico.29 c) A problemática do conceito constitucional de bem jurídico (I): o cará ter aberto e impreciso das Constituições O problema que tal conceito constitucional de bem jurídico coloca salta aos olhos já à primeira vista. Se a C onstituição é necessariamente aberta, se inúmeros valores, m esm o conflitantes, encontram acolhida em seu seio, como se pode fàlar numa limitação ao poder do legislador? Tais dúvidas, que são colocadas mesmo II, p. 12 ec seq.; Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gültigenpeinlichen Rechts, 14. ed., Giessen: Heyer, 1847, § 21); entre os autores atuais, defende posicionamento bastante similar à teoria da lesão a direito Naucke, “Zu Feuerbachs S traftarbegriff”, ÜberdieZerbrechlichkeitdesrechtstaatlichen Strafrechts, Baden Baden: N om os, 2000, p. 191 et seq.; mais decididos, Klaus Giinther, ‘‘MõgüchkeiteneinerdiskursethischenBegriindurigdes Strafrechts ",in :JU N G et aI.(Eds.).i?<?í:<fc undMoral. Baden Baden: Nomos, 1991. p. 210; “Von der Rechts- zur Pflichtverletzung. Ein TaradigmawechseTim Strafrecht?”, in: IN S T IT U T FÜ R KR IM IN A LW ISSEN SC H A FT EN FR A N K FU R T a.M .(E d.). Vbm unmõglkhen Xustanddei Strafrechts. Frankfurt a. M .; Peter Lang etc., 1995. p. 445 et seq.; Kargl, “Rechtsgüterschutz durch Rechtsschutz", in: IN ST IT U T FÜR K R IM IN A LW ISSEN SC H A FT EN FR A N K FU R T a.M . (Ed.). Vom unmõglkhen Zustanddes Strafrechts. Frankfurt a.M . usw.: Peter Lang, 1995. p. 62. 26. Zaczyk, D as Unrecht der versuchten Tat, Berlin: Duncker&Hum blot, 1989, p. 128 et seq. 27. Kindhàuser, Gefàhrdwig ais Straftat, Frankfurt a. M .: Klostermann, 1989, p. 137 et seq. 28. Cf., entre outros, Roxin, Strafrecht- AUgemeinerTeil,3. ed.,München: Beck, 1997,vol.I, § 2/9;Merkel, Strafrecht und Satireim Werkvon K arl Kraus, Baden Baden: Nomos, 1994, p. 297 et seq.;Rudolphi,“Dieverschiedenen Aspekte...”,cit.,p . 15 8; Sysíematischer Kommentar, cit,, vor § 1/5; Stâchelin, op. cit, p. 80 et seq. 29. Batista, op. cit., p. 96; Carneiro Coelho, op. cit., p. 130; Luiz Flávio Gomes, Norma e bem jurídico...,àt.,p. 86 et seq.; Ilha da. Silva, op. cit., p. 83 et seq.; Magalhães Gomes, op. cit., p. 90 et seq.; Régis Prado, op. cit., p. 90 et seq. 9 8 RBCCRLM 4 9 - 2 0 0 4 "P rin c íp io d a o fen siv id ad e " e crim es de p erig o ab stra to em face da L e i Fundam ental alemã,30 aplicam -se com muito m ais razão diante de um a C onstituição analítica como a do Brasil. Exem plificando: nem m esm o a incriminação do homossexualismo poderia ser deslegitim ada com base exclusiva na Constituição, porque esta tem dispositivos tutelando a família (art. 226 et seq.) e a m oralidade (art. 221, IV ). Foi similar, aliás, a argumentação da C orte C o n s titucional alemã, quando, em 1957, se viu obrigada a examinar a constitucionali- dade da proibição, que foi decidida em sentido afirmativo.31 A pergunta é, por tanto, se a Constituição-, aberta como ela reconhecidamente é, pode excluir algum inte resse, algum valor, para considerá-lo impassível de tutela por meio do direito penal. Parece-m e que, apesar das considerações acim a tecidas, a resposta deve recair em sentido positivo, porque, por exemplo, uma norm a como a L e i de Prote ção do Sangue Alem ão e da H onra A lem ã, de 15.09.1935, que, em seus §§ 1 .° e 2 .°, proibia a “maculação da raça” (Rassenschande) pelo casamento ou pelo coito entre alemães e judeus,32 seria m anifestamente ilegítima em face da ordem cons titucional tanto alemã, com o brasileira, vez que ambas vedam discrim inações por motivos de raça ou origem.33 M ais: mesm o a norma que proíbe o homossexualismo poderia ser criticada com argumentos de direito constitucional, atinentes a direi tos fundamentais como a liberdade, a privacidade e a intimidade, que teriam de prevalecer sobre a tutela constitucional da família e da moralidade. M as, um a vez que se responda a essa pergunta desta maneira, em sentido afirmativo, cai-se imediatam ente em um novo problema: a argumentação crítica acima tecida aparentemente dispensa o conceito de bem jurídico. O que se utili zaram foram valores e princípios constitucionais, e só - se o leitor duvidar, releia 30. Cf.,levando em conta a doutrina do direito consdrucional,Appel, VerfassungundStrafe, cit., p. 476; de acordo também Frisch, “Rechtsgut, Recht, Delikcsstruktur...", cit., p. 217. 31. BVerfGE 6 (1957), p. 389 et seq. 32. A respeito, c£ S\gg,DasRassestrajrechtin Dentschlandincfenjahren 1935-1945utiterbesonderer Berüchichtigung des Blutschutzgesetzes^ Aarau: Saueriánder, 1951, p. 49 et seq. 33. Nesse sentido também Roxin, Strafrecht, cit., § 2/11 (sem, é claio, falar da Constituição brasileira). Direito Penal 99 L u ís G reco o parágrafo anterior. N ão seria o conceito de bem jurídico algo dispensável? N ão bastaria afirmar que o direito penal só pode tutelar valores acolhidos, ou ao menos não-vedados, pela Constituição? C om isso estamos diante do próxim o problema, que diz respeito à necessidade ou não de um conceito constitucional de bem jurí dico ao lado da Constituição de que já dispomos. d) A problemática do conceito constitucional de b em juríd ico (II): im prescindível ou mera duplicação conceituai? O conceito de bem jurídico teria alguma função ao lado do conjunto de valores constitucionais? N ão se poderia dizer que o fim do direito penal é pro teger valores constitucionais, sem precisarpropor um novo termo, tornando sem razão de ser as intermináveis discussões a seu respeito? Parece-m e que grande parte dos defensores do conceito de b em juríd ico , especialm ente entre nós, o utiliza com o sinônim o d esta d escrição “valor acolhido ou não vedado pela C onstitu ição”, apesar de isso fazer do conceito algo dispensável. N ão seria, portanto, m ais adequado renunciar ao conceito de bem jurídíco, faíar unicamente em tutela de valores constitucionais, e com isso sim plificar consideravelmente a teoria geral do direito penal? C reio que a resposta deve recair em sentido negativo, porque o bem ju- rídico-penal, apesar de ter de ser arrim ado na Constituição - afinal, doutro modo, não poderia lim itar o poder do legislador —, deve ser necessariam ente m ais res trito do que o conjunto dos valores constitucionais. N em tudo que a C onstitui ção acolhe em seu bojo pode ser objeto de tutela pelo direito penal. A palavra- chave aqui é o princípio da subsidiariedade, ou da ultima ratio , ou da intervenção mínima: como o direito penal d ispõe de sanções especialm ente graves, não basta um a afetação de qualquer interesse de caráter ínfim o para legitim ar a interven ção penal.34 A nossa C onstituição protege até m esm o os interesses do C olégio 34. Observe-se que não trabalhei aqui com as tradicionais formulações do princípio, segundo as quais a pena seria a mais grave das sanções, à qual portanto só se poderia recorrer uma vezque o legislador não dispusesse de nenhum outro meio menos grave, como o direito administrativo 1 0 0 R BC C R ÍM 49 - 2004 "P rin c íp io d a o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab strato Pedro II , ao qual dedica dispositivo próprio, em que declara: “O C olégio Pedro II, localizado na C idade do R io de Janeiro, será m antido na órbita federal” (art. 242, § 2 .°) . E necessário, muito m ais, que o bem seja dotado de algum a rele vância, de fundam ental relevância, de relevância tamanha que se possa ju stifi car a gravidade da sanção que a sua violação em regra acarreta. D a í por que pre cisam os de um a definição de bem jurídico m ais restrita do que a m era referên cia a valores constitucionais. e) A problemática do conceito constitucional de bem jurídico (III): como defini-lo? C om o que estam os diante do seguinte desafio: se o conceito de bem jurí dico não pode servir de mero espelho da Constituição, m as tem de necessaria m ente excluir algo, com o defini-lo? A qui, as propostas doutrinárias realmente abundam, e ao contrário do que declara o conhecido brocardo latino, esta abun dância de fato prejudica, porque ela im plica em confusão, em desorientação, quan do o que se quer é justam ente um parâmetro para orientar o legislador. J á se pro puseram as m ais diversas definições de bem jurídico, que vão desde “interesse juridicam ente protegido”35 a “valor objetivo que a lei reconhece com o necessita- ou o direito civil. E de se dar razão a Tiedemann, que aponta que, muitas vezes, estes outros ramosdodireitopodem ser bem mais limitadores da liberdade do que o direito penal (Tiedemann, Tatbestandsfunktionen im Nebenstrafreckt, Tübingen: M ohr-Siebeck, 1969, p. 145, n. 22; "Wirtschaftskriminalitát ais Problem der Gesetzgebung”, In :T IE D E M A N N , Klaus (Ed.). Die Verbrecben in der Wirtscbaft, 2. Aufl. Karlsruhe: C . F. Müller, 1972. p. 9 et seq., SS. 16-17; “Wirtschaftsstrafrecht - Einfuhrung und Ubersicht”, / ^ , p. 690,1989; “Strafrecht in der Marktwirtschaft”. In: K Ü PE R ; W E L P (Eds.). Festschriftfúr Stres und Wessels. Heidelberg: C. F. M üller, 1993. p. 530-531; de acordo também Schünemann, “Alternative Kontrolle der W irtschaftskrim ininalitàt” , in: D O R N S E IF E R et al. (Eds.). Gedãchtnisschriftfür Armin Kaufmann. Koln: Heymanns etc., 1989. p. 632; Hefendehl, Koileklive Rechtsgüíer..., cit., p. 234). Parece-me, portanto, que um a tarefa urgente diante da qual a moderna doutrina do direito penai se encontraé reestudar o princípio da subsidiariedade, levando em consideração este problema. Para mais reflexões, c£ Greco, “Princípio da subsidiariedade...”, cit. 35. Principalmente Liszt, “D er Begriff des Rechtsguts im Strafrecht und in der Encyklopádie der Rechtswissenschaft”, Z StW 8/133 et seq., 1888; Liszt e Schmidt, Lehrbuch des Deutscben Strafrechts, 26. ed., Berlin/Leipzig: DeGruyter, 1932, p. 4. Similar, Figueiredo Dias, “A questão D ireito Penal 1 0 1 L u ís G reco iln d* "vsilor dem entar da vida em comunidade”,3' “unidade funcio- tiijl i< k u IV ^M C lcnsão de respeito”,39 “relação real da pessoa com um valor con- i id o iTionhccido pela comunidade”40 etc. Creio que este cansativo debate é, em grande medida, term inológico, e talvez seja por isso que se observa um crescente desinteresse da doutrina a seu respeito. Tem -se a impressão de estarem todos a dizer aproximadamente a m es ma coisa, m as valendo-se de palavras distintas. N a verdade, parece-me que o es sencial é, de fato, compreender que existem nada mais do que três questões fun damentais no momento de definir o conceito de bem jurídico. A primeira delas diz respeito a que este interesse, valor, unidade funcional, pretensão de respeito etc. seja de importância fundam ental para alguém, de modo que a existência ou o bem -estar deste alguém estariam severam ente ameaçados caso a incriminação inexistisse. A qui, não háproblem a algum ,parece haver grande acordo ou ao menos possibilidade de acordo na doutrina. A segunda questão diz respeito a este men cionado “alguém”: para quem o bem jurídico deve ter importância fundamental? Para os indivíduos, para a coletividade ou para os dois? E ste tóp ico é calorosam ente debatido atualm ente na A lem anha. São imagináveis três posições, apesar de, na prática, serem defendidas unicamente duas. D e um lado, encontram -se os adeptos da cham ada concepção dualista de do conteúdo material do conceito de crime (ou fato punível)”, in: Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Ed. RT, 1999. p. 63. 36. Mezger, Strafrecbt-Ein Lehrbuch, 3. ed., Berlin: Duncker ScHumblot, 1949, p.201. Simi lar, Bitencourt, Tratado de direito penal, 8. ed., São Paulo: Saraiva,2003, p. 204; Carneiro Coelho, op. d t.,p . 130. 37. Welzei, Dasdeutsche Strafrecbt, 11. ed., Beriin: DeGruyter, 1969,p. 1-2. 38. Rudolphi, “Die verschiedenen Aspekíe...”, cit., p. 163; de acordo, Fiandaca e Musco, op. cit.,p.5. 39. Schmidhàuser, <frrcj/r«Ã/-AllgerneinerTeil)2. ed.,Tübingen:Mohr, 1984, § 5/27. D e acor do, Gropp, op. cit., § 3/28. 40. Otto, op. cit., § 1/32. 10 2 RBCCR1M 4 9 - 2004 "P rin c íp io da o ten siv id ad e" e crim es de p erig o ab stra to bemjurídico, entre os quais se encontram Tiedem ann,41 Kuhlen,42 Schünemann,43 H efendehl44 e, em Portugal, Figueiredo D ias,45 e que parece ser a posição do minante: para esta concepção, há bens jurídicos tanto individuais, quanto cole tivos, e não se pode reduzir os bens jurídicos individuais à sua dim ensão de in teresse coletivo e nem vice-versa os bens jurídicos coletivos à sua dim ensão de interesse individual. Bens jurídicos individuais e coletivos seriam am bos igual m ente legítim os e adm issíveis. D o outro lado, encontram -se os que pugnam por uma concepção monista-pessoai de bemjurídico. Para estes autores, atualmen te encabeçados por H assem er, ponto de partida são os interesses individuais.46 Bens jurídicos da coletividade só podem ser reconhecidos na m edida em que referíveis a indivíduos concretos. A coletividade por si só não é objeto de prote ção do direito penal. A terceira posição se ria m onista-estatal ou monista- coletivista, para a qual todos os bens jurídicos serão reflexode um interesse do Estado ou da coletividade. Bens jurídicos individuais não seriam reconhecíveis enquanto tais, porque o indivíduo só seria proteg ido na m edida em que isso interessasse ao E stad o ou ao coletivo. C om o dissem os, esta posição, pelo seu evidente autoritarism o, não é m ais praticam ente sustentada. E la foi apaixo- 41. Tiedemann, Tatbestands/iífzktionen...,cit.,p. 119 ttseq.;DieNeuordnungdes Umzüeltstrajrechts, Beriin/NewYorkDeGruyter,1980,p.28;“Wrirtschaftsstrafrecht...”,cit.,p.691; Wirtschqftsbetrug, Berlin/NewYork:DeGruyter, 1999, p. XII. 42. Kuhlen, “Umweltstraftrecht - Aufder Suche nach einer neuen Dogmatik'’, ZStWlOS/704, 1993. 43. Schünemann, “Kritische Anmerkungen zur geistigen Situation der deutschen Strafrechtswissenschaft”,G/í, p. 208 et seq., 1994, em áspera polêmica contrao conceito monista- pessoai de bemjurídico. 44. Hefendehl,Kollektive Rscbtsgüter...,cit.,p. 73. 45. Figueiredo Dias, op. cit., p. 63 e 74. 46. Hassemer, “Grundlinien einer personalen...”, cit., p. 91-92; “Kennzeidien und ÈCrisen des modemen Strafrechts”, ZRP,p.379,1992; de acordo, também, Hohmann,“VondenKonsequenzen einerpersonalenRechtsgutsbesãmmungimUmweltstrafrecht”, GA, p. 76 etseq.,1992;Stãchelin, op. cit., p. 100. Entre nós, decidido e enfático, Tavares, Teoria do injusto..., cit., p. 216 et seq.; próxi mos, ademais, Zaffaroni e Pierangeli, Manual de direito penai brasileiro, São Paulo: Ed. RT, 1997, p. 464 et seq., n. 236. Direito Peno! 103 L u ís G reco nadam ente propugnada por B indin g47 e, na atualidade, vejo em W eigend seu único defensor na A lem anha.48'49 Para se utilizar um exemplo concreto: uma teoria dualista não terá qual quer dificuldade em reconhecer o meio ambiente como um bem jurídico coletivo, nem sempre redutível a bens jurídicos individuais.S0 j á uma teoria m onista-pes- soal poderá ter problemas com este conceito, havendo mesm o quem negue a exis tência de um bem jurídico coletivo m eio ambiente, considerando todas as infra ções ambientais meros crimes de perigo abstrato contra a vida ou a integridade física de pessoas concretas.51 Creio que a teoria m onista-pessoal do bem jurídico, por interessante que seja, não pode ser aceita, porque ela lança sobre os bens jurídicos coletivos um estigm a que não lhes faz verdadeira justiça. Bens jurídicos coletivos não são uma novidade no direito penal. E les não foram introduzidos com o m oderno direito penai ambiental e econômico. O s crimes de falsidade de moeda e de corrupção, existentes em toda e qualquer legislação penal desde tempos esquecidos, tutelam bens jurídicos coletivos, e nada h á de errado com isso. O problema dos bens jurí dicos coletivos não está em referi-los a indivíduos, e sim, como veremos abaixo, em distinguir bens jurídicos coletivos autênticos de meras retificações de bens 47. Binding,DieNormenundihre Übertretung,4. ed., Leipzig: FelixMeiner, 1922, voí. I,p . 358. 48. Weigend, “Úber dieBegriindungder Straflosigkeitbei Einwilligung des Betroffenen”, ZStW 98/59,1986. 49. Próximos, também, Sérgio Salomão Shecariae Alceu Corrêa Jr ./A finalidade da sanção penal”, Penas Constituição, São Paulo: E d .R T , 1995, p. 44: “a função da pena é a de proteger os bens ju rídicos para garantir a sobrevivência do Estado”. 50. Nesse sentido, enfaticamente Schünemann,“ Kriõsche Anmerkungen...” , cit., p. 209; “Zur Dogmatikund Krirmnalpolitik des U mweitstrafrechts'’, in: S C H M O L L E R (Ed.). Festscòriftfèr Otto Triffterer. W ien/New York: Springer, 1996. p. 437 et seq.; “Vom Unterschicht- zum Oberschichtstrafrecht. E in Paradigmawechsel im moralischen Anspruch?”, in: K Ü H N E ; M F/AZÂW A (Ed.). Ahe Strafrecbtsstruktvren und neue gesellschaftiicbe Herausforderung inJapan undDtuischiand. Berlin: Duncker ScHumblot, 2000. p. 27; tTizàzmvn.TL,DieNeuordnimgdes..., cit., p. 10,18 e28; “Wirtschaftsstraírecht...", cit., p. 693; Kuhlen, "Umwei ts tr aftre cht... ”, dt.,p. 70S; Heiende-hl, Ko/fekiive Recòtsgüter..., cit., p. 307. 51. Assim, especialmente,Hohmann, op. cit., p. 82. 1 0 4 R B C C R IM 49 - 2004 "P rin c íp io da o fen sív id ad e " e crim es de perigo ab stra to jurídicos individuais. Veremos que, ao contrário do que defende a teoria m onista- pessoal, quanto menos um bem jurídico coletivo se deixar referir a indivíduos, m enos problemático eie será. A lém do m ais, nem sempre será possível referir o bem jurídico coletivo aos interesses de indivíduos concretos. Para dar um exem plo:52 a pretensão de arrecadar os im postos devidos continua a ser um bem juríd i co, ainda que o dinheiro obtido seja utilizado para comprar tanques de guerra e não para a construção de jardins de infância. D a m esm a forma, e agora o exemplo é m eu, pouco im porta que nenhum interesse individual seja afetado pela conduta do particular que em segredo gratifica o funcionário público para que este realize, já depois do expediente, um ato vinculado a que o pardcular tinha de qualquer form a direito, mas que só seria praticado bem depois. Se ainda assim, apesar de ausente qualquer referência a interesses individuais, os defensores da teoria pes- soal-m onista quiserem adm itir a punibilidade nestes dois casos (alegando que, por exemplo, a arrecadação de im postos ou a honestidade da Adm inistração afe ta, bastante indiretamente, interesses individuais), então acabam por trabalhar com uma noção de “referência indireta ao indivíduo” tão ampla, que só parecem diferir da concepção dualista no que se refere à terminologia. O u seja: temos de p a rtir de uma teoria dualista do bem jurídico. Resolvidas estas duas questões, a da fundamental relevância daquilo que se entenda por bem jurídico e a do titular do bem jurídico como os indivíduos e a co letividade, resta um a terceira: a de se o bem jurídico deve ser entendido como rea lidade fá tica ou com o um a entidade meramente Ideal. Entre as definições acima mencionadas, algumas há que com bastante clareza consideram o bem jurídico um ideal: em especial as que se referem a “valores” ou à “pretensão de respeito”. Já as que se referem a uma 'unidade social funcional” ou a uma “relação real” buscam fixar o bem jurídico na realidade.53 M uitas vezes, porém, não é da definição do conceito de 52. Retirado de Amelung, op. cit., p. 162. 53. Detalhes sobre a discussão em YÍQÍtnà&\A,KollekíiveRechtsgiiter..., c it, p. 27 et seq. Oimtu P-enal 105 L u ís G reco bemjurídico, e sim da explicação que dá o autor sobre as relações entre bemjurídico e objeto da ação que veremos se defende ele um conceito realista ou idealista de bem jurídico. Assim , por exemplo, Liszt, que definia bem jurídico como interesse juridicamente protegido, parece à primeira vista trabalhar com um conceito realis ta, mas, ao diferenciar bem jurídico e objeto da ação, diz que só o objeto da ação pode ser lesionado, enquanto o b em juríd ico , encontrando-se além do mundo fenomènico, ou seja, além do domínio da lei causai, é impassível de qualquer agres são.54 Esta questão não é, ao contrário do que possa parecer, meramente terminológica, porque ela está estreitamente ligada ao problema dos bens jurídicos aparentes ou fal sos, de que abaixo trataremos. Sem adiantar o que logo além se irá dizer, declare-se unicamente que definições de bem jurídico que o transformem em uma entidade ideal, em um valor, em algo espiritual, desmaterializado, são indesejáveis, porque elas aumentam as possibilidades de que se postulem bens jurídicos à la volonté., para legitim ar qualquer norm a que se deseje.55 O rdem pública, segurança pública, incolumidade pública, confiança, tudo isso pode ser mais facilmente entendido como bemjurídico se o conceito deste sereferir am eras entidades ideais, e não a dados con cretos. Por isso, parece-me mais desejável trabalhar com um conceito de bemjurídico como realidade, posição que entre nós defende Juarez Tavares.56 Note-se que realida de não é o mesmo que realidade empírica, porque o mundo real não se esgota naquilo que se pode verificar por meio da investigação das ciências naturais:57 a honra, por exemplo, é uma realidade, apesar de não lhe ser essencial o aspecto empírico. Resolvidas estas três questões, aí sim o resto torna-se problema terminológico. Podemos fàlar em interesses, funções, dados, elementos, no que quisermos. Preâro 54. Liszt, “Der Begriff des Rechtsguts... ”, cit., p. 153. 55. Assim, apontando a proximidade entre a concepção ideal de bem jurídico e bens jurídicos falsos, Amelung, op.cit.,p. 173 et seq., e Hefendehl, Kolíektive Rechtsgützr..., cit., p. 33. 56. Cf.Tavares,“Critérios de selaçãode crimes...", cit., p. 79. Cf. ademais Hefendehl, Kolkktive Recbtsgiiter..., cit., p. 28; Amelung, op. cit., p. 166. 57. Por exemplo, Hefendehl, Kollektive Rfchtsgüter..., cit., p. 28. 1 0 6 RBC C R IM 49 - 2004 "P rin c íp io da o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab strato usar o termo “dados”, pela sua maior conotação fática:58 bens jurídicos seriam, por tanto, dados fundamentais para a realização pessoal dos indivíduos ou para a subsistên cia do sistema social, nos limites de uma ordem constitucional. Por isso é que o fato de o Colégio Pedro II ser mantido na órbita federal não é um bemjurídico, enquanto a vida, a liberdade, a autenticidade da moeda e a probidade da Administração59 o são. 3. O segundo problema: esse conceito político-criminal de bem jurídico pode ser condição necessária para a incriminação? A gora tocaremos numa das questões mais delicadas em torno da teoria do bem jurídico . D efin im os bem jurídico com o dado necessário para a realização pessoal e para a subsistência de um sistema social. M as estará o direito penal adstrito à exclusiva proteção de bens jurídicos? Ser-lhe-á realmente vedado incriminar uma conduta para proteger algo que não um bem jurídico? E m regra, especialmente no Brasil, quem se vale de um conceito político- criminal de bem jurídico não duvida desta vedação. Lembremos unicamente a afir mação de Hassemer, segundo a qual incriminações sem bens jurídicos não passariam de “terrorismo estatal” .60 Afinal, de que valeria a idéia de bemjurídico, se o legislador não estivesse adstrito a ela? Já na Alemanha, a situação começa a modificar-se. Pou cos, mas cada vez mais autores, mesmo entre os defensores da teoria poiítico-crimi- nal do bemjurídico, começam a aceitar, ainda que em caráter excepcional, incriminações sem bem jurídico, por alguns chamadas de delitos de comportamento.61 58. Não se ignorara as críticas à utilização deste termo (por exemplo, Stratenwerth, “Zum Begriff... ” , cit., p. 381), mas, como dissemos, elas não atingem o cerne da questão, uma vez que ao falar em dados quero apenas sugerir que o bem jurídico é uma realidade, e que não pode ser fruto da simples fantasia do legislador (ou do intérprete). 59. Quanto a estes dois últimos bens jurídicos coletivos, há porém séria controvérsia doutrinária a respeito da formulação adequada. Cf. a nota 143, sobre o segundo deies, por exemplo. 60. Hassemer, “D arf es Straftaten geben...”, cit., p. 64. 61. Entre os defensores do conceito de bemjurídico, mencionem-se Hefendehl, Kollektive Rscbtsgúter...,cit., p. 52 et seq. (em especial p. 64 e p. 73);“DasRechtsgutals materialer...”,cit.,p. Direito Penai 1 0 7 L u ís G reco Coloquem os um exemplo. O art. 32 da L e i 9.605/1998 erige em crime a conduta de “praticar ato de abuso, m aus-tratos, ferir ou mutilar anim ais silves tres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. Se alguém pega seu cão e o tortura, para depois abandoná-lo m utilado, deixando-o agonizar por horas, não consigo duvidar do caráter criminoso desta conduta. Contudo, tampouco consi go vislumbrar aqui qualquer bem jurídico afetado, porque definimos bem jurídi co como dado fundamental de titularidade ou do indivíduo, ou da coletividade. C ausar horríveis sofrimentos a um cão não afeta de m odo algum qualquer esfera individual. E tampouco se pode dizer que este comportamento fira bens jurídi cos da coletividade. Talvez o leitor objete: como não? A revolta que sentimos diante de tal com portam ento dá indícios da existência de um bem jurídico, sim. E le poderia formular-se como o sentimento de solidariedade para com certos anim ais supe riores. Este sentimento tratar-se-ia, obviamente, de um bem jurídico coletivo. Tal formulação, não o nego, seria possível e defensável. E la aliás fora pro posta por Roxin na terceira edição de seu tratado.62 Ocorre que ela cria um grande problema, talvez maior do que aquele que ela pretende solucionar, porque a partir do m omento em que sentimentos de revolta pela prática de dado comportamen to servem de base para legitim ar a sua punição, pode-se até m esm o declarar o hom ossexualism o um a conduta punível, vez que há m uitíssim as pessoas que m anifestam similar revolta diante de tal comportamento. O u, para usar um exem plo de Jakobs, até a violação de normas de etiqueta à m esa poderia ser considera da um crime:63 im agine-se a revolta que não decorria do fato de alguém liberar sonoram ente gases malvindos num jantar oficial. N outras palavras: o preço de se 128; Andrew v. Hirsch, “Der Rechtsgursbegriff und das hartn principie”, in: H E FE N D E H L ; W O H L E R S; v. H IR SC H (Eds.).D«i?eftegw£tó&e<?n'í.BadenBaden:Nomos,2003.p.21 etseq. (em especial p. 25); Roxin, Nova versão § 2 para a 4. ed. de Strafrecbt - Allgemeiner Teil, ago. 2003, inédito, n.52 etseq.;Rudolphi, Systematischer Kommentar, cit., vor § 1/11. 62. Roxin, Strafrecbt,cit., § 2/21. 63. Jakobs, Strafrecbt, cit., § 2/19. 1 0 8 R B C C R IM 49 - 2004 "P rin c íp io da o fe n s iv id a d e " s crim es de perigo ab stra to dilatar o conceito de bem jurídico para compreender também sentimentos supe riores implica num abandono de qualquer função crítica. E é por isso que, na ainda não publicada quarta edição de seu manual, propõe Roxin que se reconheça que, na tutela penal de animais, está-se diante de incriminações sem bem jurídico.64 Roxin fala ainda em m ais duas exceções à idéia de bem jurídico com o condição necessária da punição. A lém da proteção de animais e p lantas,65 m en ciona ele a proteção ao em brião66 e aos interesses de gerações futuras,67 porque, se é verdade que nenhum destes dois interesses é passível de referência aos in divíduos hoje concretam ente existentes, nem às condições de subsistência do atuaí sistem a social, tam bém é verdade que a sua excepcional fragilidade ju sti fica uma intervenção do direito penal. O u seja, seria necessário reconhecerem- se três exceções à necessidade de um bem jurídico para justificar um a punição. D eixem os porém de lado estas duas outras exceções, e concentrem o-nos uni camente no delito de m aus-tratos a anim ais, porque tanto o embrião,, com o as gerações futuras ainda se referem a interesses de seres hum anos, enquanto no caso da tortura im posta a um cão, nem m ediatam ente se pode falar em qual quer referência a um interesse hum ano. Diante deste estado de coisas, são possíveis três posturas. A primeira delas, radical e conseqüente, seria declarar que de fato os interesses envolvidos no tipo de maus tratos a animais não são bens jurídicos e por isso não podem ser objeto de tutela penal.68 Creio que este posicionam ento, louvável por sua consistência e 64. ^oyim.,Novaversão § 2...,áx.., n. 52 et seq.; assim também Jakobs,Strafrecht, cit., § 2/19, e Rudolphi, Systematischer Kommentar, cit., vor §1/11. Para um curto c não muito atualizado pano rama das discussões em tomo do objeto tutelado pelo deiito de maus tratos a animais, c£W;egand, Die Tierquálerei, Lübeck: Schmidt-Rõmhild, 1979, p. 125 et seq. 65. Roxin, Nova versão §2..., cit., n. 55 et seq. 66. Idem ,ibidem ,n.52etseq. 67. Idem,n. 57 et seq. 68. Nesse sentido, pouquíssimos autores, como,por exemplo,Dulce Santana Ve,%3.,Laprotección penal de los bienes jurídicos colecúvos, Madrid: Dykinson, 2000, p. 58. D ireito Penal 109 L u ís G reco coragem - porque a maioria dos defensores intransigentes da proteção de um bem jurídico como princípio absoluto prefere nem dizer como resolvem este proble m a é impraticável e indesejável. E m especial a crescente preocupação com o meio ambiente, com a biodiversidade, com a subsistência não só da fauna, como mesm o da flora, obrigará a que se tutele penalm ente interesses não necessaria mente referidos ao bem -estar do hom em . A segunda saída seria a continuação d a proposta acim a íeita por m eu h i potético leitor. E la consistiria em expandir o conceito de bem jurídico para com preender tam bém o bem -estar anim al. C o m isso, salvar-se-ia a idéia de bem jurídico com o necessário p ara qualquer incriminação. M a s o conceito de bem juríd ico seria de tal m aneira d ilatado que sequer se poderia im aginar algum a in crim inação que o dispensasse . C a ir - se - ia ou num a teoria que leg itim a a incriminação do hom ossexualism o ou, caso nos referíssem os à idéia de valores constitucionais, a incriminação de tentativas de retirar o Colégio Pedro II da esfera federal. A terceira proposta é nas linhas de R oxin e H efendehl. E la im plica em reconhecer exceções à idéia de bem juríd ico com o condição necessária para a incriminação. C laro que ela teria a desvantagem de enfraquecer, à prim eira vis ta, o potencial crítico da categoria do bem jurídico, uma vez que agora se pode proibir m esm o sem bem jurídico. O corre que tal enfraquecimento é, em verda de, um fortalecim ento, porque a recusa de diluir o conceito de bem jurídico perm ite dem arcar com precisão em que ponto se esfá utilizando o direito penal para tutelar interesses que já não são referíveis ao hom em e ao sistem a social existentes, im pondo àquele que defende um a tal incriminação um forte ônus de fundamentação. A lém disso, abre-se um horizonte completamente novo para a investigação científica, a saber, o da form ulação de critérios para a legitim ação de incrim inações sem bem juríd ico . H efen d eh l, por exemplo, esforça-se no sentido de form ular tais critérios, afirm ando que é necessária uma convicção en ra izad a no sen tido da n ecessid ad e de respe itar determ inada norm a de 1 1 0 RBCCRIM 49 - 2004 "P rin c íp io da o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab stra to com portam ento.69 É verdade que esse critério tam pouco parece convincente, mas a necessidade de se pensar a respeito nunca teria sido vista, caso in sistísse m os em rem endar a definição in icial de bem jurídico. M u ito pelo contrário, m uitas incrim inações já estariam de antem ão ju stificadas, porque sem pre se poderia alegar defenderem elas bens jurídicos, segundo o conceito d ilatado do segundo cam inho. A terceira proposta merece, assim , nossa acolhida, porque ela m ostra as coisas com m aior clareza, im pede que, por m eio de um a m odifi cação adhoc das prem issas iniciais, se jo gue a poeira p ara debaixo do tapete, o que é a única m aneira de evitar que depois nos deparem os com surpresas desa gradáveis. E la está longe de ser ideal, é verdade. O problem a diante do q ual nos encontram os não é passível de um a solução perfeita, e o que interessa é saber qual entre as possíveis soluções é a menos ruim . Parece-m e que a terceira o é, porque, para usar uma im agem , ela ao menos evita que o cavalo de tróia atra vesse as m uralhas do b em juríd ico e acabe por derrubá-las de dentro para fora. O u seja: o b e m ju ríd ic o é, em regra, necessário para leg itim ar um a incrim inação. M as som ente em regra, sendo possíveis exceções: um a delas é o crime de m aus tratos a anim ais, incrim inação legítim a, apesar de não tutelar dado necessário à realização de indivíduos, nem tam pouco à subsistência do sistem a social. Se há outras exceções, se elas são as três apontadaspor R oxin, ou se tam bém outras, qual o seu fundam ento, tais são problem as relativam ente recentes e que no âm bito deste sucinto trabalho têm de ficar em aberto. E les m arcam porém pontos nevrálgicos para futuras investigações. 4. O terceiro problema: como distinguir bensjurídicos coleti vos autênticos de falsos bens jurídicos coletivos? Por fim , o terceiro e último problema a respeito do conceito poíítico-cri- minal de bem jurídico. O ptam os por um a concepção dualista do bem jurídico, 69. Hefendehl, KollektiveRechtsgüter...,cit., p. 56. Direito Penai L u ís G reco isto é, reconhecemos bens jurídicos coletivos em seu pleno direito, ao lado de bens jurídicos individuais. M as um rápido apanhado de bens jurídicos coletivos já de monstra que nem todos apresentam o m esm o pedigree. D e um lado, tem os bens jurídicos coletivos como o meio ambiente, a fé pública (crimes de falso), a A dm i nistração Pública e suaprobidade (crimes de corrupção). D e outro, aincolum idade pública (chamados crimes de perigo com um 70), a saúde pública (crimes de tóxi co),71 a segurança no trânsito (crimes de trânsito),72 as relações de consumo (cri mes contra o consumidor).'3 O curioso é que este segundo grupo de bens jurídi cos coletivos é proposto e defendido pela generalidade de nossa doutrina, em al guns casos (crimes de perigo comum) sem maiores questionamentos, em outros, como nos crimes de tóxico e de trânsito, justam ente como alternativa à constru ção de crimes de perigo abstrato. O u seja, eles são propostos pelos defensores garantistas do direito penal dito mínimo, que repudia crimes de perigo abstrato. O que não parece ser visto é que, no final das contas, acabou-se por legitimar, da mesma forma, a antecipação do direito penal.14 Só que no caso dos crimes de perigo abstrato, antecipa-se a proibição; no bem jurídico coletivo, antecipa-se a própria 70. Criticamente quantoaeste conceitode perigo comum, c£ Rudolphi, SystematiscberKommentar, cit., vor § l/9a, e Heine, em Schonke e Schrõder, op. cit., vor §§ 306 fE/19, que acertadamente relevam que o perigo comum não se refere a um bem jurídico supra-individuaí, e sim a bens jurí dicos individuais de várias pessoas. 71. RudolfSchmitt, “Strafrechtlicher Schutz des Opfers vor sich selbst?”, in: SC H R O E D E R , F. C.; Z IP F (Eàs,).Fesiscbri/tJürMauracb. Karlsruhe: C. F. Müller, 1972.p. 125; Endriíl eMalek, Betàuèungsmitteistrafrecht,2.cd.,Mimchcn-.Bcck,2QQQ,n.30;K}ausWebzT,Betãué>ungsmittelgesetz Kommentar-,2. ed., München: Beck, 2003, § 1/3 etseq.; Boijajim énez, Curso de política criminal, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 199; Jesus, Lei antitóxicos, cit., p. 12; Celso Delmanto, T óxi- cos, São Paulo: Saraiva, 1982,p. 16. 72. Kühl, in: LA C K N E R , Karl; K Ü H L, Kristian. Strafgesetzbucb. 24. ed. München: Beck,2001. § 315/1; Wessels e Hettinger, Strafrecht- BesondererTeil, 27. ed., Heidelberg: C . F.Müller,2003, n. 978; Rengier, Strafrecht - Besonderer Teil II, 2. ed., München: Beck, 1999, § 43/1; Jesus, Cri mes de trânsito, c it .,p .ll ,p , 13. 73. Jesus, “Nova visão da natureza dos crimes contra as relações de consumo”, RBCCrim 4/81 et seq., 1993. 74. Jesus, Crimes de trânsito, cit., p. 25, chega a anteveresta crítica, e responde com pouca clareza. 1 1 2 R BC C R IM 4 9 - 2 0 0 4 lesão. E mais: com o agora haveria verdadeira lesão, e não m ais mero perigo abstra to, como a saúde pública seria lesionada, e não somente posta em perigo abstrato pelo porte de entorpecentes (art. 16 da L e i de Tóxicos), desaparecem todos e quais quer problemas de legitim idade. A final, o tal princípio da lesividade, que exige lesão (ou perigo concreto) a um bem jurídico, estaria atendido - com o que sur gem dúvidas a respeito de se não dem os um a grande volta para acabar em situa ção pior daquela da qual saím os, pois ao menos os crimes de perigo abstrato tinham a virtude de não ocultar o fa to de que o direito penal está realmente se antecipando, j á certos bens jurídicos coletivos resolvem tudo, acabam com todos os problemas, e é nisto, justam ente, que está o maior problema. Pois bem , este artifício não é um a construção nacional. J á há décadas em penham -se vários autores em inventar bens jurídicos coletivos a todo momento que necessitam de um fundamento para legitim ar uma proibição um tanto estra nha.75 E isso não tem interesse meramente teórico, porque a postuiação de um bem jurídico coletivo acaba tendo um segundo efeito prático, além da já aponta da legitim ação da crim inalização antecipada por meio de sua ocuitação: uma legitimação da sanção exasperada. Vejamos alguns exemplos. O art. 311 da L e i de Trânsito define como crime a conduta de “velocidade incompatível”, definida nos seguintes termos: “ trafegar em velocidade incom pa tível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embar que e desem barque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movim entação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano. Pena - de tenção, de seis meses a um ano, ou multa”. J á a lesão corporal culposa (art. 121, § 6.°, do C P ) é punida com detenção de dois meses a um ano. Dam ásio de Jesus conside ra o referido crime um delito de lesão ao bem jurídico coletivo incolumidade públi 75. C£,além dos autores citados nas notas anteriores, principalmenteTiedemann, por exemplo, Wirtschaftsbetrug, cit., § 265/6, onde argumenta ser necessário postular um bemjurídico coletivo no crime de fraude contra seguro, pois doutro modo não se conseguiria “explicar” (isto é,justificar) a elevada cominação penai. Também admitindo um bemjurídico coletivo neste crime, Lackner e KüM, op. cit., § 265/3. ''P rincip io d a o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab strato Direito Penal 113 L u ís G reco ca;76 por isso, sequer se vê diante do problem a da sanção absurda. J á quem con sidere tal crime um crime de perigo77 terá em suas mãos o instrum entário ade quado p ara criticar a com inação legal. A final, puniu-se a mera exposição a pe rigo com pena m ais grave do que a própria lesão ao bem jurídico individual in tegridade física. O utro exemplo ainda m ais gritante, aliás um dos mais gritantes de todos, é a L ei deTóxicos,que pune o tráfico de entorpecente com pena de 3 a 15 anos de reclusão e multa (art. 12). Se temos um bem jurídico saúde pública, é mais facil tentar explicar o porquê de tal sanção draconiana.78 O crime passa a ser, afinal, crime de lesão!79 Se dispensarmos, porém , esse bem jurídico coletivo e trabalhar m os unicamente com bens jurídicos individuais, em especial com a integridade física de quem recebe o tóxico, transformando estes crimes em crimes de perigo abstrato, ganhamos duas coisas. Prim eiram ente, vem os a criticabilidade da proi bição, que tutela um bem jurídico individual mesm o contra a vontade de seu titu lar. E com isso abrimos as portas para uma interpretação teleológica restritiva do tipo: este tipo só deverá aplicar-se caso a vontade do titular do bem jurídico seja jurid i camente irrelevante, por estar viciada de erro, por ser ele doente mental, menor, louco ou inculpável por qualquer outro motivo.80 O segundo problema deste bem jurídico coletivo é legitimar a sanção absurda, pois se o tráfico de tóxico nada mais é do que uma conduta que gera um perigo abstrato de lesão à integridade física, esta conduta não pode sofrer pena m ais grave do que a do respectivo crime de 76. Crimes de trânsito, cit., p. 227. 77. Observe-se que a norma fala em “gerar perigo de dano”, o que é indicação clara de perigo concreto, e não só abstrato. M as até a interpretação deste tipo como de perigo abstrato seria mais benéfica do que a postulação do bemjurídico coletivo. 78. Se bem que nem assim isso seja de todo possível, como apontei em meu estudo “Tipos de autor e Lei deTóxicos”, RBCCrim 43/226. 79. Assim Jesus, Leiantitóxicos, cit., p. 16. 80. Conclusão próximaemFrisch,“An denGrenzen...”,cit.,p.95;'cWesentlicheVoraussetzungen...", cit., p. 218; e Queiroz, op. cit., p. 116. Isso independentemente de outras considerações restritivas, tais como as que propus em meu estudo citado na penúltima nota. 1 1 4 RBCCRIM 4 9 - 2 0 0 4 "P rin c íp io da o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab stra to lesão, no caso as lesões corporais. Estas são punidas em sua form a sim ples com detenção, de três meses a, no máximo, um ano. E é por isso que parte da doutrina em barcou num em preendim ento que, segundo m e parece, será u m a das mais fecundas utilizações da teoria do bem ju ríd ico : a desconstrução de bens ju rídicos só aparentemente coletivos. R o x in ,31 Schünem ann,82 H efendehl83 e A m elung,S4 entre outros, esforçam -se por criti car certos bens jurídicos, com o os acima apontados, e m ais alguns, interpretan do os respectivos tipos com o crimes de perigo abstrato para um b em juríd ico individual. A rgum enta-se em especial que os referidos bens jurídicos só são apa rentemente coletivos, um a vez que eles não passam da som a de vários bens ju rídicos individuais .8S A som a de vários bens jurídicos individuais não é suficiente, porém , para constituir um b em juríd ico coletivo, porque este é caracterizado pela elem entar da não-distributividade, isto é, ele é indivisível entre diversas pessoas.36 A ssim , cada qual tem a sua vida, a sua propriedade, independente das dos dem ais, m as o meio am biente ou a probidade da A dm inistração Pública são gozados por todos em sua totalidade, não havendo uma parte do m eio am biente ou da probidade da A dm inistração Pública que assista exclusivamente a A ou a B. J á o b em juríd ico saúde pública, por exemplo, nada m ais é do que a som a das várias integridad.es físicas individuais, de m aneira que não passa de um pseudo-bem coletivo. 81. Roxin, Nova versão §2..., cit., n. 79. 82. Schünem ann, “D as R echtsgüterschutzprinzip...” , cit., p. 149; cf. tam bém “ Vom Unterschicht- zum Oberschichtstrafrecht... ”, cit., p. 26, 28. 83. Hefendehl, Kollektive Recktsgüter..., cit., p. 139 et seq. 84. Amelung,op.cit.,p. 171 etseq. 85. C£ as passagens citadas nas notas anteriores. Só Amelung trabalha com considerações um pouco diversas: para ele, estaremos diante de um bem jurídico aparente quando o suposto bem jurídico não passar de uma descrição substantivadado próprio comportamento em conformidade à norma, tal como seria o caso no suposto bemjurídico “moralidade”. 86. Cf. Hefendehl, KollektiveRechtsgüter..., cit., p. 112 e 123. Direito Pünal 1 15 Lu ís G reco Este empenho no sentido de desconstruir pseudo-bens jurídicos coletivos é extremamente recente e tem sido levado adiante de m odo ainda muito intuitivo. N ão está claro se e em que medida o critério da não-distributividade é realmente capaz de efetivar aquilo que ele promete, a separação entre o joio e o trigo, porque os defensores de tais bens coletivos não se cansamde afirmar que eles são mais do que a soma dos diversos bens individuais.87 E o momento, a meu ver, de se pensar em critérios para a postulação de bens jurídicos coletivos, para impedir que se legitimem leis absurdas com construções adhoc, sem qualquer fundamento, mantendo a cons ciência dos penalistas limpa e imper turbada, em razão de estarem respeitando o tal princípio da lesividade - ao menos da boca para fora. M as esta necessidade de se formularem critérios para postulação de bens jurídicos coletivos não foi vista nem mesm o na Alemanha. A qui se abre todo um campo para um trabalho pioneiro. 5. Síntese das considerações sobre o bemjurídico E m síntese, podem os observar três aspectos: - 0 conceito político-crim inal de bem jurídico épossível. E le tem de estar arrim ado na C onstituição, mas não se lim ita a meramente refletir os valores que a C onstituição consagra, um a vez que som ente valores fundam entais podem justificar a gravidade da intervenção penal (princípio da subsidiariedade). E s tes valores podem ser tanto do indivíduo, com o da coletividade, m erecendo acolhida a concepção dualista de bem jurídico. A ssim sendo, definim os bem juríd ico com o dado fundam ental p ara a realização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistem a social. —A tutela de um bem jurídico não é, porém, condição necessária p ara a legiti midade de uma incriminação. E m casos excepcionais, como o dos m aus tratos a 87. Tiedemann, Die Verbrechen..., cit., p. 10 et seq.; “Welche strafrechtliche Mittei empfehlen sich fiir eine wirksamere Bekàmpfung der W irtschaftskriminalitàt?”, Verhandlungen des 49, DeutschenJuristentages,München: Beck, 1972, p. C 19 et seq.; Jesus, Lei antitóxicos, cit., p. 11. 1 1 6 RBCCRIM 49 - 2004 "P rin c íp io d a o fen siv id ad e " e crim es de perigo ab strato animais, não será possível falar em bem jurídico no sentido acim a proposto. Para evitar uma total diluição do conceito de bem jurídico, com sacrifído de seu cará ter crítico, é melhor adm itir exceções -* ainda que com enorme cautela. Abre-se, com isso, todo um novo cam po para a investigação científica, que diz respeito aos critérios com base nos quais se podem reconhecer tais exceções. - Por fim, épreciso cuidado com pseudo-bensjurídicos coletivos. Falar em saú de ou incolumidade pública, por exemplo, esconde os déficits de legitim idade de antecipações da tutela penal. A categoria dos crimes de perigo abstrato, referida a um bem jurídico individual, é m uito mais crítica, porque expõe estes problemas com toda clareza. E necessário, porém , formular critérios para a distinção entre bens jurídicos coletivos autênticos e aparentes, algo que nem mesmo na A lem a nha se viu ser necessário. III - O segundo grupo de dúvidas: a estrutura do delito 1. Introdução D em os início a nossas considerações ao examinarmos a assertiva segundo a qual crimes de perigo abstrato seriam inconstitucionais, em razão do tal princí pio da lesividade. Ocorre que, após a análise do bem jurídico acima realizada, ainda não com eçam os a falar verdadeiramente da problemática dos crimes de perigo abstrato, porque, como foi só recentemente visto na Alemanha, mas não ainda entre nós,88 o problema dos crimes de perigo abstrato pouco tem a ver com a questão do bem jurídico. A legitim ação dos crimes de perigo abstrato não deve ser discu tida à luz de considerações sobre o bem jurídico, e sim sobre outro tópico, que alguns autores começam a chamar de “estrutura do delito” {Deliktstruktur). Ao tratar 88. Uma aparente exceção seria Luiz Flávio Gomes, Princípio da ofensividade..., cit., p. 43, em suas considerações a respeito da relação entre o que ele chama de “princípio da ofensividade” e o “princípio da proteção de bens jurídicos”. M as aleitura do resto do trabalho demonstra que ele de fato não diferencia suficientemente as duas questões. Direito Penal 1 1 7 L u ís G reco do bemjurídico, está-se diante da pergunta: o que proteger? Ao tratar da estrutura do delito, o problema j á não é mais o que proteger, e sim: como proteger? E neste “como”, na questão da estrutura do delito, que devemos examinar a problemática do crime de perigo abstrato. Explicitemos a questão por meio de um exemplo, a saber, o bem jurídico individual vida. Aqui, a primeira pergunta, quanto à existência de bem jurídico, se responde facilmente em sentido afirmativo, porque a vida é dado necessário para a realização pessoal, subsumindo-se, portanto, à defi nição acima proposta. A segunda ordem de considerações diz respeito à estrutura dos delitos que protegem a vida. E sta proteção pode ser efetivada por meio de de litos de lesão: pensemos no homicídio culposo e no homicídio doloso, sem falar em vários outros crimes em que a destruição da vida figura como qualificadora (lesão corporal seguida de morte, estupro com resultado morte). O utra estrutura de pro teção é a dos delitos de perigo concreto: a vida é protegida por meio desta estrutura nos crimes de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, C P ), no abandono de incapaz (art. 133),89 no incêndio (art. 250).90 Aqui, é necessário que de uma pers pectiva expost resulte efetivamente um a situação de fragilidade para o bemjurídico tutelado, que só se salva por obra do acaso.91 Por fim, o bem jurídico vida pode ser protegido também por meio de crimes de perigo abstrato: por exemplo, o legisla dor proíbe a rixa (art. 137) não só no interesse da incolumidade pública,92 como, principalmente, porque essa conduta pode provocar mortes. Com o vimos, entre nós tornou-se costumeiro declarar inconstitucionais in totum os crimes de perigo abstrato. D iz-se que isso resultaria do princípio da 89. Apesar de parte da doutrina falar em úm bemjurídico “segurança” (Bitencourt, Código Penal comentado, cit., p. 482). 90. Apesar de parte da doutrina falar no pseudo-bem jurídico coletivo “incolumidade pública” (Bitencourt, Código Penal comentado, cit., p. 954). 91. Mais detalhes a respeito deste conceito normativo de perigo concreto abaixo, 2. 92. Para alguns autores, este bemjurídico figura ao lado do bemjurídico individual como objeto de tutela penal (Bitencourt, Código Penal comentado, cit., p. 511). Para a posição aqui defendida, trata-se de um falso bemjurídico. 1 18 RBCCRIM 49 - 2004 "P rin c íp io da o fen siv id ad e" e crim es de perigo ab stra to lesividade, da necessária referência a um bem jurídico. Podem os afirmar, já de agora, que tal colocação do problem a é falha, por tratar-se de um erro categorial. N os crimes de perigo abstrato, o problema, em geral, não está no bem jurídico a ser protegido, pois este é o m esm o dos crimes de perigo concreto e dos crimes de lesão, a respeito de cuja legitimidade muitas vezes não se pode duvidar. O que se está afirmando, a rigor, é que as estruturas do delito legítimas se restringem a uni camente duas form as: à do delito de lesão e à do delito de perigo concreto. E ssa afirm ativa já pouco tem a ver com o problem a do bem juríd ico , previamente tratado. O próprio termo “princípio da lesividade” ou “ofensividade” convida a que se confiinda a questão do bem jurídico com a questão da estrutura do deli to. São estas as duas questões verdadeiramente decisivas, e é por isso que parece m elhor não trabalharm os m ais com a denom inação princípio da ofensividade ou lesividade, e sim com a distinção entre proteção de bens jurídicos e estrutura do delito. J á tratam os acima do primeiro destes tópicos, atinente ao b em juríd i co. Resta-nos o segundo, referente às estruturas do delito, com o que surge toda um a série de questionam entos, a que agora darem
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