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1. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa, Marcos Bagno, 7' ed.
2. Linguagem & comunicação social- visões da linguística moderna, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, 2' ed.
3. Por uma linguística crítica, Kanavillil Rajagopalan, 3' ed.
4. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 5' ed.
5. Sistema, mudança e linguagem- um percurso pela história da linguística moderna, Dante Lucchesi
6. "O português são dois"- novas fronteiras, velhos problemas, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed.
7. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed.
8. A linguística que nos faz falhar- Investigação crítica
Kanavillil Rajagopalan, Fábio Lopes da Silva [orgs.] -sob demanda
9. Do signo ao discurso- Introdução à filosofia da linguagem, Inês Lacerda Araújo, 2' ed.
10. Ensaios de filosofia da linguística, ]o sé Borges Neto
11. Nós cheguemu na escola, e agora?, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 2' ed.
12. Doa-se lindos filhotes de poodle-Variação linguística, mídia e preconceito, M" Marta Pereira Scherre, 2' ed.
13. A geopolítica do inglês, Yves Lacoste [org.], Kanavillil Rajagopalan
14. Gêneros- teorias, métodos, debates,]. L. Meurer, Adair Bonini, Désirée Motta-Roth [ orgs.], 2' ed.
15. O tempo nos verbos do português urna introdução a sua interpretação semântica
Maria Luiza Monteiro Sales Corôa
16. Considerações sobre a fala e a escrita- fonologia em nova chave, Darci lia Simões
17. Princípios de linguística descritiva, M. A. Perini, 2' ed.
18. Por uma linguística aplicada IN disciplinar, Luiz Paulo da Moita Lopes, 2' ed.
19. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística
U. Weinreich, W Labov, M. I. Herzog, 2' ed.
20. Origens do português brasileiro, Anthony ]ulius Naro, Maria Marta Pereira Scherre
21. Introdução à gramaticalização- Princípios teóricos & aplicação
Sebastião Carlos Leite Gonçalves, Maria Célia Lima-Hernandes,
Vânia Cristina Casseb-Galvão [orgs.]
22. O acento em português- Abordagens fonológicas, Gabriel Antunes de Araújo [org.]
23. Sociolinguística quantitativa- Instrumental de análise, Gregory R. Guy, Ana Maria Stahl Zilles
24. Metáfora, Tony Berber Sardinha
25. Norma culta brasileira- desatando alguns nós, Carlos Alberto Faraco
26. Padrões sociolinguísticos, William Labov
27. Gênese dos discursos, Dominique Maingueneau
28. Cenas da enunciação, Dominique Maingueneau
29. Estudos de gramática descritiva- as valências verbais, Mário A. Perini
30. Caminhos da linguística histórica- "Ouvir o inaudível", Rosa Virgínia Mattos e Silva
31. Limites do discurso ensaios sobre discurso e sujeito, Sírio Possenti
32. Questões para analistas do discurso, Sírio Possenti
33. Linguagem & diálogo- as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco
IEDITOII: Marcos Marcionilo
CAPA E PROJETO GRÁFICO: Andréia Custódio
CoNSELHO EDITORIAL: Ana Maria Stahl Zilles [Unisinos]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Egon de Oliveira Rangel [PUCSP]
Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, lpol]
Henrique Monteagudo [Univ. de Santiago de Compostela]
Kanavillil Rajagopalan [Unicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFRJ, UnB]
Rachei Gazolla de Andrade [PUC-SP]
Salma Tannus Muchail [PUC-SP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
CIP-IlRASil. CATAlOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, 11.1
F2251
Faraco, Carlos Alberto
Linguagem & diálogo: as ideias lingufsticas do círculo de
Bakhtin I Carlos Alberto Faraco.- São Paulo: Parábola Editorial,2009.
168p.(Lingua[gem] ;33)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-88456-96-9
1. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975.2.
Linguística.3. Linguagem e línguas- Filosofia. 4. Literatura
-Estética.!. Título. 11. Série.
09-2257
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© do te)duas consciências, dois sujeitos. Enquanto a expli
cação aponta para o necessário (i.e., o intelecto contempla as coisas
mudas em busca de relações necessárias), a compreensão aponta
para o possível, po:rque é uma operação sobre o significado que,
sendo em grande parte efeito da interação, do encontro de cosmo
visões e orientações axiológicas, envolve sempre uma dimensão de
pluralidade. Desvelam-se, nessa operação, aspectos semânticos não
s
~
G
o
-------------------------....... ----~-"---
reiteráveis do signo, decorrentes justamente do fato sua produção
~ e recepção serem sempre contextualizadas (singulares, evênticas).
~
3 O limite da exatidão nas ciências naturais é a identidade (a garan-
3
~ tia de controle da natureza, fundada no pressuposto da necessidade
das relações, é justamente a reprodutibilidade do experimento); nas
ciências humanas, a exatidão consiste na capacidade de não fundir
em um só os dois sujeitos; ou, nas palavras de Bakhtin, de sobrepujar
a alteridade daquilo que é outro sem o transformar em qualquer coisa
que é para si (Para uma metodologia das ciências humanas, p. 169)2.
Marilia Amorim, em seu livro O pesquisador e seu outro: Bahhtin nas ciências huma
nas, explora, de maneira rica e interessante, essa concepção bakhtiniana das ciências
humanas como espaço de tensão dialógica.
CAPÍTULO DOIS
CRIAÇÃO IDEOLÓGICA
E DIALOGISMO
UMA TEORIA MATERIALISTA DA
CHAMADA CRIAÇÃO IDEOLÓGICA
orno vimos no capítulo anterior, Voloshi
nov e Medvedev tinham como projeto
intelectual explícito, em seus trabalhos
da segunda metade da década de 1920,
contribuir criticamente para a construção
de uma teoria de base marxista da criação
ideológica.
Voloshinov se concentrou na questão da lin
guagem, desenvolvendo basicamente dois
pontos: uma discussão crítica dos estudos linguísticos de sua época
(em especial em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem) e a apre
sentação da tese de que os enunciados do cotidiano e os enunciados
artísticos têm um chão comum - estão ambos no interior da grande
corrente da comunicação sociocultural e têm ambos uma dimensão
axiológico-social em sua significação (ver seus artigos O na
vida e o discurso na poesia e As fronteiras entre e
Voloshinov envolveu-se também com a temática da subjetivida
de, desenvolvendo uma discussão crítica da psicanálise (em especial
em seu livro Freudismo) e da psicologia de seu tempo (ver particu
larmente o cap. I-3 de Marxismo e filosofia da linguagem e o cap.
I-2 de Freudismo) e formulando um conceitual sociológico sobre a
natureza da consciência.
Medvedev, por sua vez, direcionou sua reflexão para o estudo
da literatura, tendo como ponto de partida uma pormenorizada crí
tica das ideias dos formalistas.
Nos capítulos 1 e 2 de seu livro O método formal nos estudos li
terários, Medvedev, depois de apresentar o estudo da literatura como
um ramo dos estudos da criação ideológica, traça o que poderia ser
lido como diretrizes gerais para um estudo de base materialista e
sócio-histórica do universo da criação ideológica.
· Como ideologia é uma palavra "maldita" (pelas incontáveis sig
nificações sociais que pode veicular), é importante - para evitar
costumeiros mal-entendidos- deixar claro o sentido que ela tem na
obra de Medvedev (e, de fato, de todo o Círculo de Bakhtin).
Nos textos do Círculo, a palavra ideologia é usada, em geral,
para designar o universo dos produtos do "espírito" humano, aquilo
que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imate
rial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento
idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num voca
bulário de sabor mais materialista).
Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o
universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião,
a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais
(para usar certa terminologia da tradição marxista).
A palavra ocorre também no plural para designar a pluralidade
de esferas da produção imaterial (assim, a arte, a ciência, a filosofia, o
direito, a religião, a ética, a política são as ideologias). É com esse uso
no plural que Medvedev inicia seu livro, dizendo que o estudo da
literatura é um ramo do estudo das ideologias, com este abarcando
todas as áreas da criatividade intelectual humana citadas acima.
Esses termos (ideologia, ideologias, ideológico) não têm, portan
to, nos textos do Círculo de Bakhtin, nenhum sentido restrito e nega
tivo. Será, portanto, inadequado lê-los nestes textos com o sentido de
"mascaramento do real", comum em algumas vertentes marxistas.
Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente
a axiológico. Aqui é importante lembrar que, para o Círculo, a signifi
cação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa
sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer
enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico- para eles,
não existe enunciado não-ideológico. E ideológico em dois sentidos:
qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no
interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa
sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a pró
pria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica). r
Voloshinov, ao iniciar seu livro Marxismo e filosofia da lin
guagem, também identifica ideologia com o universo da produção
imaterial humana. Diz ele que "as bases de uma teoria marxista das
ideologias - as bases para os estudos do conhecimento científico,
da literatura, da religião, da moral etc.- estão estreitamente ligadas
aos problemas da filosofia da linguagem" (p. 9).
E, logo adiante, dirá que tudo o que é ideológico (isto é - en
tenda-se bem-, todos os produtos da cultura dita imaterial) possui
significado; é, portanto, um signo. E conclui com a afirmação de que
"sem signos não existe ideologia" (p. 9), querendo com isso dizer
que o universo da criação ideológica é fundamentalmente de nature
za semiótica, afirmação reiterada na página seguinte:
O domínio da ideologia coincide com o domínio dos signos. Eles
são mutuamente correspondentes. Ali onde um signo se encontra,
encontra-se também ideologia. Tudo o que é ideológico possui valor
semiótico (p. lO).
É essa identificação do ideológico com o semiótico que vai dar
ao Círculo o fundamento para construir sua teoria materialista para
o estudo dos processos e produtos da cultura imaterial; o fundamen
to de sua filosofia da cultura.
Voltando ao texto de Medvedev, observamos que, como ponto
de partida, ele considera inadequadas todas as abordagens positivis
tas e idealistas da criação ideológica. As primeiras, porque se perdem
num empiricismo atomista (concentram-se no estudo dos objetos
ideológicos - obras de arte, por exemplo - tomando-os isolada
mente, desaguando num detalhismo sem sentido ou numa fetichi
zação do artefato). As segundas, porque entendem toda a criação
ideológica ou como produto de uma consciência individual isolada;
ou como localizada no reino de "puras ideias", "puros valores" e "for
mas transcendentes" (p.4).
Para Medvedev, ambas as abordagens perdem de vista o fato de
que a criação ideológica é sempre social e histórica, não podendo,
por isso, ser reduzida nem à sua superfície empírica (como se fosse
um rol de meros fenômenos isolados), nem fechada e autocontida no
mundo de uma consciência individual ou no reino das "puras ideias".
Pelo seu caráter intrinsecamente sócio-histórico, a criação ideológica
exige, para ser estudada, um conceitual e um método de natureza
sociológica, para cujo delineamento ele se propõe contribuir.
Nesse processo, lembra, de saída, que todos os produtos da cria
ção ideológica são objetos dotados de materialidade, isto é, são parte
concreta e totalmente objetiva da realidade prática dosseres humanos
(não se podendo estudá-los, portanto, desconectados dessa realidade).
E existem como tal corporificados em algum material semiótico
definido (i. e., numa determinada linguagem - tomado o termo
aqui em sentido amplo), ou seja, um produto da criação ideológica
é sempre um signo.
para Medvedev (como para todo o Círculo de Bakhtín), os
signos são intrinsecamente sociais, isto é, são criados e interpretados
no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o
intercâmbio social. Os signos emergem e significam no interior de re
lações sociais, estão entre seres socialmente organizados; não podem,
assim, ser concebidos como resultantes de processos apenas fisiológi
cos e psicológicos de um indivíduo isolado; ou determinados apenas
por um sistema formal abstrato. Para estudá-los, é indispensável si
tuá-los nos processos sociais globais que lhes dão significação.
Por outro lado, Medvedev expõe outra premissa fundamental
para seu raciocínio (e para o pensamento do Círculo como um todo):
nós, os seres humanos, não temos relações diretas, não mediadas,
com a realidade. Todas as nossas relações com nossas condições de
existência - com nosso ambiente natural e contextos sociais - só
ocorrem semioticamente mediadas. Vivemos, de fato, num mundo
de linguagens, signos e significações.
Em outros termos, o real nunca nos é dado de forma direta,
crua, em si. Sobre isso, Bakhtin já dizia, em Para uma .filoso.fi~ do
ato, que "O dado puro não pode ser realmente experienciado" ,Cp.
32). Nós nos relacionamos com um real informado em matéria signi
ficante, isto é, o mundo só adquire sentido para nós, seres humanos,
J
quando semioticizado. E mais: como a significação dos signos envol
ve sempre uma dimensão axiológica, nossa relação com o mundo é
sempre atravessada por valores.
~rc--'
Bakhtin, em O discurso no romance (p. 276), apresenta este
pressuposto do Círculo, dizendo que qualquer palavra (qualquer
enunciado concreto) encontra o objeto a que ele se refere já recober
to de qualificações, envolto por uma atmosfera social de discursos,
por uma espécie de aura heteroglóssica (i.e., por uma densa e tensa
camada de discursos).
A relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do
termo) nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente: nossas pa
lavras não tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos
CfJ
õ
o
3
~
·~
u
sociais que recobrem as coisas. Essa relação palavra/coisas, diz este
autor, é complicada pela interação dialógica das várias inteligibilida
des socioverbais que conceitualizam as coisas ( p. 277).
Essa concepção é, então, apresentada na sequência do texto
pela bela figura do raio de luz:
Se nós imaginarmos a intenção de uma tal palavra, isto é, sua dire
cionalidade para o objeto1, na forma de um raio de luz, então o jogo
vivo e irrepetível de cores e luz nas faces da imagem que ele constrói
pode ser explicado como a dispersão espectral da palavra-raio, não
no interior do objeto em si( ... ), mas antes como sua dispersão espec
tral numa atmosfera cheia de palavras alheias, julgamentos de valor
e acentos através da qual o raio passa em seu caminho em direção ao
objeto; a atmosfera social da palavra, a atmosfera que cerca o objeto,
faz as faces da imagem cintilar (p. 277).
É nesse sentido que os textos do Círculo vão dizer recorrente
mente, que os signos não apenas refletem o mundo (não são ape
nas um decalque do mundo); os signos também (e principalmen-
te) refratam o mundo._É_~~~11~~~?1?~~1~\TE:~~~s_so A~ ~ri'lg~mu.t~S~.O ~-~ ~u-~~o em matér!a stgrljficam~
sempre atravessad() p~la refr~~ão dos quadros axiológicos.
A DOUTRINA DA REFRAÇÃO
No processo de referenciação, realizam-se, portanto, duas ope
rações simultâneas nos signos: eles refletem e refratam o mundo.
Quer dizer: com os signos podemos apontar para uma realidade que
lhes é externa (para a materialidade do mundo), mas o fazemos sem
pre de modo refratado. E refratar significa, aqui, que com nossos
signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos
Note-se que Bakhtin, neste texto, usa diversas vezes a palavra intenção no sentido
filosófico de intencionalidade (termo corrente na fenomenologia), isto é, de direciona
lidade para um objeto e não no sentido mais comum de desejo, vontade, propósito.
-na dinâmica história e por decorrência do caráter sempre múl
tiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos
)
- diversas interpretações (refrações) desse mundo. Nessa mesma
direção, Medvedev dirá que "no horizonte ideológico de uma época
ou grupo social, não há uma, mas várias verdades mutuamente con
traditórias" (p. 19).
Essas várias verdades equivalem aos diferentes modos pelos
quais o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos huma
nos. Como resultado da heterogeneidade de sua práxis, os grupos
humanos vão atribuindo valorações diferentes (e até contraditórias)
aos entes e eventos, às ações e relações nela ocorrentes. É assim que
a práxis dos grupos humanos vai gerando diferentes modos de dar
sentido ao mundo (de refratá-lo), que vão se materializando e se
entrecruzando no mesmo material semiótico.
A refração é, desse modo, uma condição necessária do signo na
concepção do Círculo de Bakhtin. Em outros termos, para o Círculo,
não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações
não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um siste
ma semântico ab~trato, único e atemporal, nem pela referência a u~
mundo dado umforme e transparentemente, mas são construídas
na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de ex
periências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e
confrontos de valorações e interesses sociais.
~El...?_?l&!l()S~não podem ser unívocos (moi1ossêmicQs);~aberta e infinita.
Anteriormente, em O problema do conteúdo, do material e da
forma na arte verbal (1924), Bakhtin, embora ainda não falando em
termos de signos e semiose, já fazia referência a essa dinamicidade do
universo das significações, quando apresentava qualquer ato da cria
ção ideológica como vivendo essencialmente nas fronteiras (p. 274).
Para ele um domínio cultural (uma esfera da criação ideológica)
'
não deve nunca ser pensado como tendo uma espécie de todo espa-
cial (um território interno), mas deve ser visto como vivendo sempre
na intersecção de múltiplas fronteiras. E isso porque cada ponto de
vista criativo (que implica sempre uma tomada de posição axiológica)
toma-se necessário e indispensável somente em correlação com ou
tros pontos de vista criativos (com outras posições axiológicas).
Essa dinamicidade intrínseca ao universo da criação ideológi
ca (ao universo das significações) será recoberta, em textos futuros,
pela metáfora do diálogo (que tantas confusões tem gerado e à qual
voltaremos adiante).
Neste ponto, é importante deixar registrado que a reação ao
caráter infinito (centrífugo) da semiose humana será parte inerente
ao jogo dos poderes sociais. As vontades sociais de poder tentarão
sempre estancar, por gestos centrípetos, aquele movimento: tentarão
impor uma das verdades sociais (a sua) como a verdade; tentarão
submeter a heterogeneidade discursiva (controlar a multidão de dis
cursos); monologizar (dar a última palavra); tomar o signo monova
lente (deter a dispersão semântica); finalizar o diálogo.
Contudo, Bakhtin, ao fim de sua vida, talvez lembrando suas
discussões sobre a carnavalização e seu conceito de plurilinguismo
dialogizado (ver adiante), terminará seu último manuscrito com a
seguinte observação:
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limi-
tes para o contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimita-
do e para um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, isto é,
aqueles que nasceram no diálogo dos séculos passados, não podem
nunca ser estabilizados (finalizados, encerrados de uma vez por to- \
das) - eles sempre se modificarão (serão renovados) no desenrolar
subsequente e futuro do diálogo. Em qualquer momento do desen
volvimento do diálogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de
sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos do
desenrolar posterior do diálogo eles são relembrados e receberão vi-
gor numa forma renovada (num contexto novo). Nada está morto de
maneira absoluta: todo sentido terá seu festivo retomo. O problema
da grande temporalidade (p. 170).
VOLOSHINOV E BAKHTIN SOBRE O MESMO TEMA
Numa síntese da discussão anterior, podemos dizer que para
Medvedev o universo da criação ideológica tem um caráter material
Lembra "A ordem do discurso do Foucault
(é parte concreta e totalmente objetiva da realidade prática dos seres
humanos), histórico (não pode ser reduzido a processos fisiológicos
e psicológicos de individuas isolados) e sociossemiótico (se corpori
fica em signos, emergindo e significando nos complexos processos
do intercâmbio social).
Além disso, como os processos semióticos só refletem o mun
do refratando-o, os signos são espaços de encontro e confronto de
diferentes índices sociais de valor, plurivalência que lhes dá vida e
movimento, caracterizando o universo da criação ideológica como
uma realidade infinitamente móvel.
Voloshinov, em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem (em
especial nos cap. 1-2 e II-4), ao discutir a significação, voltará a en
fatizar o pressuposto forte do Círculo de que a enunciação de um
~i~no é sempre.té(mbém aenunciélção de índices sociais de valor, i~~9
é, a enunciação de um signo tem efeitos de sentido que decorremfljl~
posg.QW:dadeAe ~Sl.l!não apenas no sentido mais comum do termo nos
estudos linguísticos (isto é, as estratificações visíveis nas marcas dia
letais stricto sensu, aquelas decorrentes do tempo, da distribuição geo
gráfica e social dos falantes), mas fundamentalmente pela saturação
da linguagem pelas axiologias sociais, pelos índices sociais de valor.
Lembremos que, até o fim da década de 1920 (período em que
está se elaborando esse conceitual do Círculo de Bakhtin), a ciência
da linguagem verbal- embora estivesse construindo, numa certa
esfera, uma teorização que pressupunha um objeto unitário e ho
mogêneo- já vinha trabalhando com a perspectiva da heteroge
neidade em pelo menos duas direções: a da estratificação temporal
(quer dizer, o tempo diversifica; as línguas se diferenciam no eixo
temporal); e a da estratificação espacial (quer dizer, a distribuição
geográfica dos falantes gera diversidade; é possível, portanto, corre
lacionar formas diferentes e geografias diferentes).
Ao mesmo tempo, a ciência da linguagem verbal já estabelecera
que a estratificação geográfica poderia refletir tempos diferentes, no
sentido que alguns dialetos são mais conservadores e outros mais
inovadores e têm percursos históricos diferentes. Articulavam-se aí
as duas estratificações.
Já se percebera também que o contato entre as línguas em certas
circunstâncias era também fator de diversificação, resultando, mui
tas vezes, no desenvolvimento dos pidgins e dos crioulos.
Contudo, a ciência da linguagem verbal se ocupava (e se ocupa)
fundamentalmente da estratificação das formas gramaticais. Seu in
teresse era (e continua sendo) correlacionar formas gramaticais com
o tempo e o espaço geográfico.
Na década de 1960, a criação da sociolinguística veio acrescen
tar a essas duas estratificações uma terceira: aquela que estabelece
uma correlação sistemática entre as formas gramaticais e a estrutura
social. E disso resultou um grau maior de percepção da complexi
dade das línguas, isto é, elas passam a ser vistas como um complexo
emaranhado das diferentes estratificações, emaranhado em que se
correlacionam as variações geográficas, sociais e temporais.
Ora, o Círculo de Bakhtin, na década de 1920, vai apontar para
uma estratificação não propriamente e apenas de formas gramaticais'
(o signo pode ser materialmente o mesmo), mas para uma estratifi
cação dada por diferentes axiologias, dada pelo processo sócio-histó
rico de saturar a linguagem de índices sociais de valor.
~~.~_?~Dt!dQ, (!quilo que chamamos de língua não é só um
~n~().9:ifu§og~ vari.edadesgeográficas, temporais e sociais (como
~~1!!'!.1!1 él. dialetologia, a.l!ggut~tjq hi2tQQC:él. t: a ?()c:Joligguísti-
Todo esse universo de variedades formais está também atraves::
sado outra estratificação, que é dada índices sociais deva
lor oriundos da diversificada experiência sócio-histórica dos grupos
~"'""-""~-·-~~~-~~---'~MA palavra diálogo, contudo, tem várias significações sociais, o que
pode afetar a recepção do pensamento do Círculo. O próprio Bakhtin,
como veremos abaixo, criticou, em vários momentos, a idéia de um
dialogismo estreito. É preciso, por isso, neste ponto, fazer até mesmo
um esforço de compreensão do sentido de diálogo nos trabalhos do
Círculo para termos condições de explorar seu poder heurístico.
A palavra diálogo designa, comumente, determinada forma
composicional em narrativas escritas, representando a conversa dos
personagens. Pode designar também a sequência de fala dos perso
nagens no texto dramático, assim como o desenrolar da conversação
na interação face a face.
Os membros do Círculo de Bakhtin não são teóricos do diálogo
nesses sentidos. Não lhes interessa o estudo da forma-diálogo como
tal, seja na composição escrita ou no texto dramático, seja na interação
face a face. Desse modo, não constitui objeto de suas preocupações
a maneira como se dá a troca de turnos entre participantes
de uma conversa, como faz hoje, por exemplo, a chamada análise
da conversação. Nem desenvolver um estudo de práticas conversa
cionais de um grupo humano qualquer, como se faz, por exemplo,
desde a década de 1960, na chamada etnografia da fala ou da comu
nicação - por mais interessantes que possam ser essas análises.
Em seu manuscrito O problema do texto (provavelmente escrito
em 195911960), Bakhtin diz (p. 124) sobre isso:
O diálogo concreto (a conversação cotidiana, a discussão científica, o
debate político, e assim por diante). As relações entre réplicas de tais
diálogos são um tipo mais simples e mais externamente visíveis de
relações dialógicas. As relações dialógicas, no entanto, não coinci
dem de modo algum, é claro, com relações entre réplicas do diá
logo concreto - elas são muito mais amplas, mais variadas e mais
complexas (destaque acrescido).
Portanto, o evento do diálogo face a face (aquilo que eles chamam,
em vários momentos, de diálogo em sentido estrito do termo) estará no
foco de atenção do Círculo, mas não como forma composicional e sim
como" um documento sociológico altamente interessante",(conforme
se pode ler em Problemas da poética de Dostoievski- apêndice I, p.
280), isto é, como um espaço em que mais diretamente se pode obser
var a dinâmica do processo de interação das vozes sociais.
Em outras palavras, podemos dizer que, no caso específico da
interação face a face, o Círculo de Bakhtin se ocupa não com o diálogo
em si, mas com o que ocorre nele, isto é, com o complexo de forças que
nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali.
Interessam-lhe, de fato, as forças que se mantêm constantes em
todos os planos da interação social, desde os eventos mais banais e
fugazes do cotidiano, até as obras mais elaboradas do vasto espectro
da criação ideológica. O que lhes interessa é aquilo a que Voloshinov
se refere como o "colóquio ideológico em grande escala" (Marxismo
e filosofia da linguagem, p. 95) ou que Bakhtin chama de "o simpósio
universal" (Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, p. 293).
Cfj
õ
o
3
.ê
e;:
u
Assim, o evento do diálogo face a face só interessa como um dos
muitos eventos em que se manifestam as relações dialógicas - que
são mais amplas, mais variadas e mais complexas do que a relação
existente entre as réplicas de uma conversa face a face. O objeto efe
tivo do dialogismo é constituído, portanto, pelas relações dialógicas
nesse sentido lato ("mais amplas, mais variadas e mais complexas").
Sob essa perspectiva, o diálogo face a face vai também interessar
ao Círculo como um dos espaços em que se dá, por exemplo, o en
trecruzamento das múltiplas verdades sociais, ou seja, como um dos
muitos espaços em que ocorre diálogo no sentido amplo do termo,
isto é, a confrontação das mais diferentes refrações sociais expressas
em enunciados de qualquer tipo e tamanho postos em relação.
O Círculo, portanto, olha para o diálogo face a face do mesmo
modo que olha para uma obra literária, um tratado filosófico, um
texto religioso, isto é, como eventos da grande interação sociocultu
ral de qualquer grupo humano; como espaços de vida da consciência
socioideológica; como eventos atravessados pelas mesmas grandes
forças dialógicas (as forças da heteroglossia dialogizada).
I::;so não significa que o Círculo não distinga as especificidades
de cada um desses espaços de vida da consciência socioideológica.
Boa parte de seus textos vai precisamente no sentido de estudar essas
especificidades, em especial no que diz respeito à criação literária.
No entanto, é característica do pensamento do Círculo o con
tínuo reportar-se às práticas do cotidiano, valorizando-as como es
paços em que já estão embutidas as bases da criação ideológica mais
elaborada e as fontes da sua contínua renovação.
As raízes dessa valorização do cotidiano estão certamente no
envolvimento filosófico inicial de Bakhtin com o mundo da vida (cf.,
em especial, Para uma filosofia do ato), mas também no embate do
Círculo com a poética dos formalistas - que se sustentava precisa
mente numa radical distinção entre a linguagem poética e a lingua
gem do cotidiano.
Para Bakhtin e o Círculo, ao contrário, trata-se de aproximá-las
porque nelas, no fundo, estão em funcionamento as mesmas forças:
estão ambas situadas na grande corrente da comunicação sociocul
tural e nas duas se materializam tomadas de posição axiológicas e
relações dialógicas (cf., em especial, a discussão de Medvedev sobre
essa questão no cap. 5 de O método formal nos estudos literários).
Voloshinov, nesse sentido, explicita uma distinção - que apa
recerá mais à frente também no texto de Bakhtin O problema dos
gêneros do discurso (do início da década de 1950) - entre duas
esferas da criação ideológica: a ideologia do cotidiano e os sistemas
ideológicos constituídos (cf. em especial Marxismo e filosofia da lin
guagem, p. 19-21 e p. 91- 92).
A primeira esfera compreende a totalidade das atividades so
cioideológicas centradas na vida cotidiana, desde os mais fortuitos
eventos (um acidental pedido de informação na rua) até aqueles que
se associam diretamente com os sistemas ideológicos constituídos (a
leitura de um romance, por exemplo).
A segunda esfera compreende a totalidade das práticas socioi
deológicas culturalmente mais elaboradas, como as artes, as ciências,
o direito, a filosofia, a religião etc.
Obviamente, Voloshinov não entende estas duas esferas como
realidades independentes, mas em estreita interdependência. Ele vê
a esfera dos sistemas ideológicos constituídos como se consolidando
a partir das práticas da ideologia do cotidiano e, ao mesmo tempo,
se renovando continuamente por meio de um vínculo orgânico com
estas mesmas práticas que abrigam, segundo ele, os indicadores pri
meiros e mais sensíveis das mudanças socioculturais e
ainda mais, [indicadores] de mudanças ainda em processo de incre
mento, ainda sem um formato definido e não ainda amoldados em sis
temas ideológicos já regularizados e integralmente definidos (p. 19).
Essas mudanças socioculturais vão encontrar mais tarde sua , ,
expressão nas produções ideológicas mais elaboradas que, por sua
\
vez, acabam por exercer uma forte influência sobre as práticas do
cotidiano.
Em cada uma dessas esferas, desenvolve-se, em cada época e
em cada grupo social, um conjunto de gêneros de formas da comu
nicação socioideológica (p. 20)- que Bakhtin chamará adiante de
gêneros do discurso, distinguindo os gêneros primários (aqueles da
ideologia do cotidiano) e os gêneros secundários (aqueles dos sis
temas ideológicos constituídos). Voltaremos a este tema específico
no capítulo três.
Por ora, destacamos apenas que a valorização das práticas so
cioideológicas do cotidiano, o pressuposto da uniformidade das
forças que dinamizam ambas as esferas e a propostade tratá-las
em constante inter-relação assentam as bases para uma teoria das
práticas socioculturais que não despreza o cotidiano, nem super
valoriza as esferas mais elaboradas. Não se perde numa fragmen
tação empiricista, nem se condena ao determinismo inexorável de
grandes estruturas.
RELAÇÕES DIALÓGICAS
Voloshinov, particularmente, é quem mais se ocupa com o
evento do diálogo face a face. Isso, porque, segundo ele (conforme
se pode ler no artigo A construção do enunciado, p. 124), é aí que se
pode encontrar a chave para o entendimento daquilo que ocorre nos
enunciados das esferas mais elaboradas da criação ideológica, como,
por exemplo, nos enunciados literários.
Em todas as suas discussões, ele alerta sempre o leitor para o
fato de que tudo o que ocorre no diálogo face a face é de caráter
intrinsecamente social, isto é, a interação face a face não pode, em
nenhum sentido, ser reduzida ao encontro fortuito de dois seres em
píricos isolados e autossuficientes, soltos no espaço e no tempo, que
trocam enunciados a esmo.
A interação face a só pode ser adequadamente analisada -
mesmo quando a consideramos em sua absoluta singularidade, como
evento único e irrepetível-, projetando-a na grande torrente da inte
ração social: ela precisa ser vista como um evento do "simpósio univer
sal", do "colóquio ideológico em grande escala". É necessário~ portanto,
dimensioná-la como estrutura socioideológica, naqual os intera,ctantes
sã~~~~? soc~almente orgar~izaª()~, situados e agindc)num COJJ:lplexo
quadro de relações socioculturais, no interior do qual se manifestam
~.~~·-·~~"á'-~"--'--'''·'-"··"'--- ------" ~"--'~,.--.-o- .. -.-&.0•' -- - .- -" --
relações dialógicas (1JD sentido bakhtiniano da expressão).
Bakhtin, no capítulo 5 de seu livro Problemas da poética de Dos
toievski, ao distinguir as tarefas da linguística e da disciplina que ele
chama de metalinguística (nome traduzido mais frequentemente por
translinguística, para evitar confusões com o uso mais corrente do
termo metalinguística), diz:
A linguística reconhece, é claro, a forma composicional da "fala dialo
gada" e estuda suas características sintáticas e léxico-semânticas. No
entanto, ela as estuda como fenômenos puramente linguísticos, isto
é, no plano da língua; é incapaz de abordar a natureza específica das
relações dialógicas entre as réplicas num diálogo (p. 182-3).
Vamos encontrá-lo no futuro, em seu manuscrito inacabado O
problema do texto, criticando explicitamente a "concepção estreita de
dialogismo" que o compreende apenas como uma forma composi
cional do discurso (p. 117). Nesse mesmo texto, ele vai caracterizar
as relações dialógicas como relações de sentido que se estabelecem
entre enunciados, tendo como referência o todo da interação verbal
e não apenas o evento da interação face a face.
-~-ssim, quaisq11er enunciaª()~, se postos lado a lado no pla
!_l()_dgsentido, "acabam por estabelecer 11ma relação dialógica" (p.
117). -~esmo enunciados separados um do outro no tempo e no
esp~~o e que nada sabem um do outro, se confrontados no plano
d~~entido, revelarão relações dialógicas (p.124). E isso em qual
quer ponto do vasto universo da criação ideológica, do intercâm
bio sociocultural.
As relações dialógicas - diz Bakhtin no mesmo manuscrito
(p. 124) - não podem ser reduzidas a relações de ordem lógica,
linguística (no sentido estrito do termo), psicológica, mecânica ou
natural. São relações de sentido de um tipo especial que se estabele
cem entre enunciados ou mesmo no interior de enunciados (quando
marcados, por exemplo, pela chamada bivocalídade).
Essa mesma temática foi apresentada por Bakhtin no cap. 5 do
seu livro Problemas da poética de Dostoievshi. :2SL1l_i, e! e primeiramen
te afirmaque não há relações dialógicas 11~lí!l:gua enquanto objetQ,
da linguística, isto é? não há relações dialógicas e!ltre elementos d~"«·
um sistema linguístico (por exemplo, entre palavras em um dicioná.
ri~,entre morfemas? entrepalavras de uma sentença etc.). Também
não há tais rela~.C:~~-dialógicas entre ele1ll~l};t()~M~ç_~lll t,~xto ou en~re
g:~t()s~q1la~sl-2 apgrd_ados por um viés estritamente ling11ístico; nem
entre unidades sintáticas ou ~-~~E~ :pr:()E()Siçõ~s_quando _ig}léllll1.Bakhtin
arrola, então, várias outras situações em que se pode reconhecê-las,
dizendo (p. 121):
A compreensão estreita de dialogismo como debate, polêmica ou pa
ródia. Estas são as formas externamente mais óbvias, embora rudi
mentares, de dialogismo. A confiança na palavra do outro, a recepção
reverencial (a palavra de autoridade), o aprendizado, a busca pelo sen
tido profundo e sua natureza obrigatória, a concordância, suas infinitas
gradações e nuanças (mas não suas limitações lógicas e restrições pura
mente referenciais), a estratificação de um significado que se sobrepõe
a outro, de uma voz que se sobrepõe a outra voz, fortalecimento por
meio da fusão (mas não identificação), a combinação de muitas vozes
(um corredor de vozes) que amplia a compreensão, o afastamento para
além dos limites do compreendido, e assim por diante.
DIÁLOGO É CONSENSO?
Isso posto, é necessário lembrar ainda que a palavra diálogo,
no uso corrente, tem também uma significação social marcadamente
positiva, que remete a 'solução de conflitos', a 'entendimento', a 'ge
ração de consenso'.
Ora, essa significação também não ocorre como tal no pensa
mento do Círculo de Bakhtin. Seus membros não são, portanto, teó
ricos do consenso ou apologistas do entendimento. Ao contrário,
tentam dar conta da dinâmica das relações dialógicas num contexto
social dado e observam que essas relações não apontam apenas na
direção das consonâncias, mas também das multissonâncias e disso
nâncias. Delas pode resultar tanto a convergência, o acordo, a ade
são, o mútuo complemento, a fusão, quanto a divergência, o desa
cordo, o embate, o questionamento, a recusa.
E, para enfatizar esse entendimento multidirecional do funcio
namento das relações dialógicas - e não apenas na direção do con
senso, do entendimento, do acordo - , lembramos aqui a expressão
tenso combate díalógico ocorre nas fronteiras" que Bakhtin usa,
em seu caderno de notas de 1970/1971 (p. 143), para caracterizar a
dinâmica das relações dialógicas.
Voloshinov, por seu turno, ao tratar da pluralidade de acentos
avaliativos das expressões verbais, dá também destaque a essa idéia
do "tenso combate dialógico". Diz ele em seu livro de filosofia da
linguagem (p. 80):
De fato, qualquer enunciado concreto, de um modo ou outro ou em
um grau ou outro, faz uma declaração de acordo ou de desacordo
com alguma coisa. Os contextos não estão apenas justapostos, como
se alheios uns aos outros, mas encontram-se num estado de tensão
constante, ou de interação e conflitos ininterruptos.
Fica claro, então, que o Círculo de Bakhtin entende as relações
dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portan
to, não apenas coexistem, mas se tensionam nas relações dialógicas.
Mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao
dizer de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros di
zeres (outras vozes sociais): aceitar incondicionalmente um enuncia
do (e sua respectiva voz social) é também implicitamente (ou mesmo
explicitamente) recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que
podem se opor dialogicamente a ela.
É nesse sentido que Bakhtin vai dizer, em O discurso no roman
ce (p. 272), que qualquer enunciado é uma unidade contraditória e
tensa de duas tendências opostas da vida verbal, as forças centrípetas
e as forças centrífugas.
Assim, o diálogo, no sentido amplo do termo ("o simpósio uni
versal"), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as
vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam
forças centrípetas (aquelas que buscam impor certa centralização
verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas
(aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras,
por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso
de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hi
bridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc.).
Bakhtin, ao apresentar sua concepção axiologicamente estratifi
cada da linguagem (a heteroglossia) e sua dialogização (a heteroglos
sia dialogizada), aponta também, portanto, para a existência de jogos
de poder entre as vozes que circulam socialmente, manifestados nas
tendências centrípetas e correlacionados a condições sócio-históri
cas específicas.
Ao qualificar as forças centrípetas como monologizantes, é pre
ciso observar que elas não deixam de ser dialógicas: elas também
constituem um gesto responsivo no oceano da heteroglossia. Em
outras palavras, a atitude discursiva monológica é intrinsecamente
dialógica- como, aliás, na concepção do Círculo, todas as manifes
tações verbais.
HETEROGLOSSIA DIALOGIZADA E LUTA DE CLASSES
Mesmo reconhecendo os jogos de poder, Bakhtin- diferente
mente de Voloshinov - não estabelece em nenhum momento uma
vinculação estreita entre vozes sociais e classes sociais. Há sim, no
conceitual do plurilinguismo dialogizado, luta social entre as dife
rentes "verdades sociais", mas não uma correlação estreita entre essas
lutas e a chamada luta de classes.
Também não há em seus textos nenhuma perspectiva de supe
ração definitiva dos jogos de poder. O processo dialógico é conce
bido como infindo, inesgotável. As forças centrífugas - das quais
talvez o riso e a carnavalização sejam as mais fortes- corroem con
tinuamente todos os esforços de centralização discursiva. Assim, na
lógica de Bakhtin, não há (nem nunca haverá) um ponto de "síntese
dialética", de "superação definitiva das contradições".
contudo, estabelece explicitamente uma vinculação
estreita entre classes sociais e a estratificação socioaxiológica da lingua
gem, descrevendo esta como decorrente daquela. Nessa linha, afirma
que classe social e comunidade semi ótica não se confundem na medida
em que as diferentes classes sociais se servem da mesma língua, atraves
sando-a, no entanto, com diferentes (e contraditórios) índices de valor.
Por isso, em suas palavras, o signo se toma a arena onde se desenvolve
a luta de classes (Marxismo e filosofia da linguagem, p. 23).
Neste mesmo texto, ele diz também que a classe dominante ten
ta tomar monovalente o signo- que é, no entanto, sempre poliva
lente -,imprimindo-lhe, com este gesto, um caráter de deformação
do ser a que remete o signo.
Voloshinov, no entanto, não fecha adequadamente a questão
que propõe. Fica irresolvida, em seus textos, a conjunção da teoria
da refração (todo e qualquer signo refrata necessariamente o mundo)
- que implica a existência simultânea de "várias verdades sociais"
- e uma teoria da divisão da sociedade em classes - que explici-
tamente atribui a verdade a uma das classes (o proletariado), aquela
que revolucionariamente construirá uma sociedade sem classes.
Em nenhum momento, Voloshinov teoriza sobre como seria dis
cursivamente uma sociedade sem classes. Desapareceria a refração dos
signos? Desapareceria a estratificação axiológica da linguagem? Esta
riam, na sociedade sem classes, esgotados os processos dialógicos?
No texto em que ele mais extensa e abertamente discute essa
questão (A palavra e sua função social- publicado em 1930), fica
bastante clara sua dificuldade em juntar as duas teorias, em harmo
nizar a (eterna) refração com a redenção da sociedade sem classes.
De um lado, ele reitera a teoria da refração, isto é, nenhuma
palavra reflete seu objeto de forma totalmente acurada ('objetiva'),
nenhuma palavra é a fotografia daquilo que ela significa (p. 144). O
signo, portanto, sempre refrata o mundo. E repisa sua velha tese de
que as refrações "em última análise são inevitavelmente condiciona
das por relações de classe" (p. 144).
'~
Destaca, porém, que na linguagem de cada classe há sempre um
grau particular de correspondência entre o verbal e a obje
tiva, cabendo ao proletariado o ponto de vista que mais intimamente
se aproxima da "lógica objetiva da realidade" (p.146). Quer dizer: Vo
loshinov assume que a linguagem do proletariado também refrata o
mundo (não é, portanto, integralmente não refratada), mas a refração é
menor do que aquela que ocorre em outras classes sociais. Em nenhum
momento, porém, este autor esclarece como estabelecer estes graus de
refração e de correspondência com a "lógica objetiva da realidade".
Ao admitir que a linguagem do proletariado também refrata o
mundo, Voloshinov acaba por se comprometer com o infindo, com o
inesgotável (tão característico do pensamento do Círculo de Bakhtin),
com a não superação definitiva das contradições, o que - parece -
introduz um conflito com o conceitual marxista dominante à época
em seu país. Assim é que ele diz (p. 145) que a pessoa real vive na
história, "no eternamente turbulento mar da luta de classes que não
conhece nenhum descanso, nenhuma pacificação" (ênfase acrescida).
No fundo, o problema que perseguia os membros marxistas do
Círculo de Bakhtin era como costurar com as ortodoxias de seu tem
po um conceitual que cultiva, como pressuposto básico, a idéia do
não fechamento, do inesgotável, do inacabamento, do movimento
infindo. Ou, dito de outra forma, como aderir a uma verdade (que se
propagava como a verdade e tinha o aparelho do Estado a seu lado)
e, ao mesmo tempo, aceitá-la como também refratada. E, se refratada
(sempre refratada), passível de ser dessacralizada na atmosfera do
plurilinguismo dialogizado.
RESUMINDO O TEMA DA DIALOGIA
Numa síntese, podemos dizer que o Círculo de Bakhtin - desde
sua virada linguística por volta de 1925/1926- vai progressivamente
pavimentando o caminho em direção à adoção, por volta de 1928/1929,
diálogo como a grande metáfora que dará um arremate às reflexões
do Círculo sobre a linguagem e sobre a criação ideológica em sua totali
dade, bem como sustentará as discussões futuras do próprio Bakhtin.
Os primeiros textos em que a grande metáfora do diálogo apa
rece como tal são os dois livros de 1929: aquele assinado por Vo
loshinov sobre filosofia da linguagem e o de Bakhtin sobre Dostoie
vski. Vamos encontrar, pela primeira vez, uma extensa discussão das
chamadas relações dialógicas (Problemas da poética de Dostoievski,
p. 182-185), bem como a expressão diálogo em sentido amplo (Mar
xismo e filosofia da linguagem, p. 95) para designar o complexo das
relações dialógicas, a dinâmica dos signos e das significações enten
dida como se realizando responsivamente de modo similar às répli
cas de um diálogo face a face.
As raízes dessa metáfora estão, contudo, já nos primeiros textos
de Bakhtin, naqueles em que as relações um/outrem (a inter-ação,
portanto) são extensamente discutidas, embora ainda sem a inter
venção substancial e constitutiva da linguagem, como ocorrerá à
frente. O que temos nesses primeiros textos dos inícios da década de
1920 é uma espécie de metafísica da interação, em que as relações
um/outrem são ainda fundadas num jogo que passa pela visão (o
olhar de fora e o excesso de visão são categorias centrais aqui) e não
propriamente pela linguagem.
A partir do texto O discurso na vida e o discurso na poesia, pu
blicado por Voloshinov em 1926, a linguagem entra em cena, seja
em suas manifestações no cotidiano (na 'vida'), seja na criação ideo
lógica em sentido amplo; e a interação passa a ser assumida de modo
claro como uma realidade fundamentalmente social e semiótica.
Mesmo as referências aos enunciados da conversa cotidiana
buscam mostrar como o "pequeno fato social imediato" (Freudismo,
p. 175) se integra no quadro maior da interação prática do respecti
vo grupo social, no intercâmbio social contínuo desse determinado
grupo. Nesse sentido, os enunciadores rião são vistos como seres
empíricos, mas como um complexo de posições sociais avaliativas.
No texto de 1926, encontramos Voloshinov asseverando que
enunciar é tomar uma posição social avaliativa (p. 16); é posicionar
se frente a outras posições sociais avaliativas, já que falamos sempre
numa atmosfera social saturada de valorações.
Esta formulação de Voloshinov reproduz, de certa forma, afirma
ção de Bakhtin em seu texto O autor e o herói na atividade estética.
Nele, lemos (p. 4) que, na vida cotidiana, nós reagimos (responde
mos) valorativamente às manifestações dos que nos cercam. Esta visa
da axiológica é, como já destacamos, um dos pilares do edifício teórico
bakhtiniano. O que Voloshinov faz é reelaborá-la projetando-a na lin
guagem. Assim, em seus termos, enunciar é responder, como aparece
em seu artigo de 1928 (As correntes mais recentes do pensamento lin
guístico no Ocidente, p. 43), no qual vai destacar também que o enun
ciado não só responde como se põe para uma resposta (p. 43).
Essa segunda afirmação anuncia o tema caro ao Círculo (e que
vai ser formulado pelo próprio Voloshinov no livro sobre filosofia da
linguagem): o da compreensão responsiva. Para ele, o processo de com
preensão não podia ser entendido como passivo, como mera decodifi
cação de uma mensagem. A compreensão é um processo ativo Qá que
tem de lidar com o novo e não com o recorrente do enunciado) em que
se opõe "à palavra do locutor uma contrapalavra" (p. 102); "a compre
ensão é uma resposta a um signo por meio de outros signos" (p. ll).
Finalmente, chegamos aos textos de 1929 em que explicitamente
a dinâmica da criação ideológica, a interação social em todas as suas
esferas, a enunciação e o enunciado, a compreensão responsiva, a orga
nização interna do próprio enunciado e a construção e funcionamento
da consciência são abrangidos pela grande metáfora do diálogo.
A UTOPIA BAKHTINIANA
A propósito do tema do diálogo no Círculo de Bakhtin, há ain
da outro aspecto que precisa ser considerado. O diálogo é aí mais
que apenas uma grande metáfora para tratar de assuntos de determi
nada semiótica social, de uma filosofia da linguagem. Bakhtin não é
apenas o filósofo das relações dialógicas em sentido amplo; o diálogo
é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que poderíamos
considerar como sua grande utopia.
É costume lembrar que Bakhtin viveu boa parte de sua vida adulta
sob um regime totalitário, tendo sido, inclusive, vítima de perseguição
política, o que resultou em prisão, num exílio de seis anos no Cazaquis
tão e num ostracismo de trinta anos em cidades provincianas, já que,
como antigo prisioneiro político, era alcançado pela proibição do regime
stalinista de fixar residência e trabalhar em grandes centros urbanos.
Apesar disso, parece que nunca lhe faltou o impulso utópico, a
crença de que outro mundo era possível; ou, para usar suas próprias
palavras, parece que nunca lhe faltou o senso de fé, isto é (conforme
se lê em Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski),
não fé (no sentido de uma fé específica na ortodoxia [na religião or
todoxa], no progresso, no homem, na revolução etc.), mas um senso
de fé, isto é, uma atitude integral (por meio da pessoa como um todo)
em relação a um valor superior e supremo (p. 294).
Parece bem claro, pelo conjunto de seus textos, que o "valor
superior e supremo" para Bakhtin era a heteroglossia e sua dialogi
zação infinda; ou, em outros termos, a pluralidade dialogizada das
vozes e, neste meio heterogêneo, a resistência a qualquer processo
centrípeto, monologizador.
O texto em que mais explicitamente se vê esse seu impulso utó
pico, é precisamente o manuscrito que acabamos de citar. Escrito em
1961, consiste em uma série de apontamentos e reflexões com vistas
à revisão de seu livro de 1929. Essa revisão lhe fora solicitada por
professores da Universidade de Moscou, que haviam recentemente
redescoberto seu trabalho (naqueles anos do degelo político pro
piciado pelo governo de N. Kruschev) e lhe haviam proposto uma
nova edição, que viria a ser publicada em 1963.
É nesse manuscrito preparatório dessa nova edição que Bakhtin
deixa emergir suautopia. Expõe aí sua idéia de que a vida humana é
por sua própria natureza dialógica. Nesse sentido,
Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas,
dar atenção, responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diá
logo, uma pessoa participa integralmente e no correr de toda sua vida:
com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e
com todos os seus feitos. Ela investe seu ser inteiro no discurso e
esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio
universal (p. 293).
Neste "simpósio universal", a morte absoluta (o não-ser) é o es
tado de não ser ouvido, de não ser reconhecido, de não ser lembrado.
Isto porque ser significa se comunicar, significa ser para um outro e,
pelo outro, ser para si mesmo (p. 287). A subjetividade se constitui e
se move no denso caldo do simpósio universal, sendo a alteridade e a
intersubjetividade, portanto, absolutamente indispensáveis:
Eu não posso me arranjar sem um outro, eu não posso me tornar eu
mesmo sem um outro; eu tenho de me encontrar num outro para
encontrar um outro em mim (p. 287)
Nesse sentido, Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência
de monologização da existência humana, isto é, de negar a existên
cia de um outro eu com iguais direitos e iguais responsabilidades.
Uma atitude monológica ou um modelo monológico do mundo é
autocentrado e insensível às respostas do outro; não as espera e não
reconhece nelas nenhuma força decisiva; pretende ser a última pala
vra (p. 292-293).
Como forma de sobrepujar o monologismo, só há, para Bakhtin,
a via do diálogo sem fim, que ele considera a única forma de preservar
a liberdade do ser humano e de seu inacabamento (p. 291); uma re
lação, portanto, em que o outro nunca é reificado; em que os sujeitos
não se fundem, mas cada um preserva sua própria posição de extraes
pacialidade e excesso de visão e a compreensão daí advinda (p. 299).
E
De certa forma, o que Bakhtin parece estar defendendo aqui
é sua utopia de um mundo polífônico, no qual a multiplicidade de
vozes ~plen~\T~l~n!e_s e de consciências independentes e não fundíveis
tem direito de cidadania- vozes e consciências que circulam e in
teragem num diálogo infinito.
Lembremos, por oportuno, que o termo polifonia, adotado por
Bakhtin do vocabulário da música, foi por ele usado para qualificar
o projeto estético realizado por Dostoievski em seus romances da
maturidade.
Bakhtin considerava que Dostoievski havia criado um gênero
romanesco novo, caracterizado pelo fato de que nele
aparece um herói cuja voz é construída exatamente como a voz do
próprio autor num romance de tipo comum. Uma palavra do herói
sobre si mesmo e sobre seu mundo é tão plena quanto a palavra do
autor costuma ser; não está subordinada à imagem objetificada do
herói como apenas uma de suas características, nem serve ela de por
ta-voz da palavra do autor. Ela possui extraordinária independência
na estrutura da obra; é como se soasse ao lado da palavra do autor,
coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalen
tes dos outros heróis (p. 7).
O termo, portanto, tem, em princípio, um sentido bastante es
pecífico: ele é introduzido no vocabulário bakhtiniano para designar
o modo novo de narrar que, segundo Bakhtin, havia sido criado por
Dostoievski. Polifonia não pode, desse modo, ser confundido com he
teroglossia ou plurivocidade, que são termos utilizados por Bakhtin
para designar a realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo
ân~lo da multiplicidade de línguas sociais ("o plurilinguismo real").
É inadequado não distinguir os termos aqui principalmente
porque a estratificação socioaxiológica da linguagem não gera neces
sariamente uma realidade polifônica. Polifonia não é, para "[).~!última
e definitiva palavra. Um mundo em que qualquer gesto centrípeto
será logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da
polêmica, da paródia, da ironia.
É esse Bakhtin utópico que nos convida a renunciar aos hábitos
monológicos (p. 272); e a aprender com o próprio Dostoievski en
quanto criador do romance polifônico (p. 36).
E, na utopia de superar toda e qualquer monologização da exis
tência humana, Bakhtin viu no carnaval - entendido não como
uma festa específica, mas como todo um modo de apreender o mun
do ("um senso carnavalesco do mundo", p. 107)- uma poderosa
força vivificante e transformadora da vida cultural, dotada de uma
vitalidade indestrutível, porque "nada absolutiza, apenas proclama
a alegre relatividade de tudo" (p. 125), justamente ao permitir uma
vida às avessas, em que
as leis, proibições e restrições que determinam a estrutura e a ordem
da vida ordinária, não carnavalesca, são suspensas durante o carnaval:
o que se suspende antes de tudo é a estrutura hierárquica e todas as
formas correlatas de terror, reverência, piedade e etiqueta- isto é, tudo
aquilo que resulta da desigualdade sócio-hierárquica ou de qualquer ou
tra forma de desigualdade entre as pessoas (inclusive a etária) (p. 122).
Nesse sentido, a festa em si é importante apenas na medida em
que, ao viver o carnaval, podemos visualizar a possibilidade de outro
mundo, de negar o atual e afirmar o possível (mesmo que isso ocorra
apenas no limite dos dias festivos). Contudo, mais importante que a
festa é o senso carnavalesco do mundo (o carnaval, neste sentido, é,
no dizer de Bakhtin, funcional e não substantivo, p. 125).
É este senso ~JE:P.~Q.C::I2~9.ji}§1TJ:!!!1~Q!~.~- de um senso carnavalesco do mundo (p. 107)- vai de
senvolver extensamente a questão desse senso carnavalesco em sua
análise da obra de Rabelais (Rabelais e seu texto que teve
uma história bastante peculiar: foi escrito na década de 1940 e apre
sentado como tese de doutoramento ao Instituto Gorki de Literatura
Universal em 1946. A defesa, porém, cobriu um período de quase
oito anos! Só em 1952 foi-lhe concedido finalmente um título aca
dêmico, mas não o de doutor.
Para entender o episódio, é necessário lembrar que, ao tempo
de sua defesa, logo após a Segunda Guerra Mundial, o governo stali
nista voltava a apertar o cerco às atividades culturais. A relativa libe
ralização que ocorrera durante a Guerra desaparecia e retomavam-se
os controles policialescos das atividades intelectuais, que eram obri
gadas a se submeter às linhas estreitas do dirigismo oficial.
Ora, a tese de Bakhtin nada tinha a ver, de fato, com os dogmas
do oficialismo. Desse modo, colocava a banca em situação muito de
licada: era impossível negar as muitas qualidades do trabalho, mas,
ao mesmo tempo, aprová-lo poderia trazer para os membros da ban
ca pesadas consequências. A saída foi postergar a decisão por anos a
fio e, ao cabo do processo, conceder-lhe apenas o título de candidato
e não propriamente o de doutor (para detalhes deste processo, cf.
Pan'kov 1998 e 1999).
Nesse texto, Bakhtin retoma seu percurso de filósofo do riso,
que se iniciara nos trabalhos em que elaborou sua teoria do romance
(nas décadas de 1930 e 40), em especial em Da pré-história do dis
curso romanesco.
Nesta teoria, o romance é apresentado como o gênero literário plu
riestilístico, plurilíngue e plurivocal por excelência. Bakhtin o reconhece
como uma forma relativamente nova, mas põe em evidência sua longa
história. Argumenta (p. 50) que suas raízes estão no riso e no plurilin
guismo - que, segundo ele, são os fatores historicamente responsáveis
pela descentração e relativização da consciência humana, processo que,
em termos artísticos, encontrará no romance sua expressão.
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ü o
'~
i5
Seu arg111nento é que a humanidade vai construindo hist()ri
camente, por meio do riso e da percepção do plurilinguismo,
c~n~ciê~cia descentrada (que se percebe uma entre muitas), chama
dapor ele figurativamente de consciência galileana.
O riso participa organicamente desse processo porque tudo
dessacraliza e relati~za. Rir dos discursos deixa clara sua upJl~terali
dade e seus limites, descentrando-os, portanto. A consciê~c!a" socio-
,..,_..-,~~~·,-~~~,~-,- ,-- ~ -- ,,_ - - ,- - -- - ,, --~-- ,-,, -
ideológica passa a percebê-los como~apenas uns~ntre muito~."t; em
suas relações tensas e contraditórias. O riso destrói, assirn' .. ~"~J~;t?ssas
paredes que aprisionaram a consciência no seu próprio discurs(), na
sua própria linguagern (p. 6Q).
Por outro lado, a percepção do plurilinguismo (da multidão
das línguas alheias e, principalmente, de seu esclarecimento recípro
co, p. 51) faz ver que a "minha língua" e a "minha cultura" não são
únicas, são apenas uma entre muitas. Essa percepção liberta a cons
ciência dos limites de um unilinguismo fechado e impermeável (p.
61): dá-lhe a dimensão da diversidade linguística e do emaranhado
de conflitos interlinguísticos (isto é, entre as línguas ditas nacionais)
e intralinguísticos (isto é, no interior da realidade estratificada da
própria língua). Nas palavras do próprio Bakhtin (p. 65):
Lá onde as línguas e as culturas se vivificaram mutuamente, a língua
se tornou algo inteiramente diferente, sua própria natureza mudou:
no lugar de um mundo linguístico ptolomaico, único e fechado, apa
rece o mundo galileano, aberto e com muitas línguas mutuamente se
vivificando.
É dessa consciência galileana que nascerá o romance como o
gênero literário que dá forma estética à plurivocidade social. É isso
que nos diz Bakhtin no seu texto O discurso no romance (p. 366):
O romance é a expressão de uma percepção galileana da língua,
uma percepção que nega o absolutismo de uma língua única e uni
tária - isto é, que se recusa a reconhecer sua própria língua como
o único centro semântico-verbal do mundo ideológico. É uma per-
cepção que se tornou consciente da vasta plenitude das línguas
nacionais e, mais precisamente, das línguas sociais - das quais
todas são igualmente capazes de ser "línguas da verdade", mas, em
assim sendo, são igualmente relativas, reificadas, limitadas, já que
são apenas línguas de grupos sociais, de profissões e de outras di
mensões da vida cotidiana (p. 367).
O filósofo italiano Augusto Ponzio, em seu livro sobre filosofia
da linguagem (Ponzio, 1994), aproveita esse raciocínio de Bakhtin
e estende-o para justificar a própria construção histórica de uma
consciência filosófica.
Segundo ele (cap. 10), a consciência filosófica só se tornou de
fato possível como produto da consciência do plurilinguismo. Só
quando a língua foi percebida como não unitária, mas pluridiscur
siva - isto é, só quando se percebeu que se fala significativamente
do mesmo mundo por meio de registros conceituais e axiológicos
diferentes (por diferentes línguas ou vozes sociais)- é que emergiu
uma consciência filosófica, uma consciência que vive precisamente
do confronto desses diferentes dizeres significativos. Filosofar, se
gundo Ponzio (p. 260), é pôr-se em relação com o dizer do outro; é,
para usar os termos de Bakhtin, estabelecer relações dialógicas com
os enunciados e as vozes alheias.
Claro, diz Ponzio, este embate pluridiscursivo gerou duas di
reções: uma monologizante e outra dialogizada; uma que expulsa
o sofista da ágora (para usar a imagem de Foucault em A ordem do
discurso) e a outra quemencionados e a alguns artigos também publicados
de Voloshinov e Medvedev.
a assinatura
Esse fato trouxe para os estudos bakhtinianos uma generalizada
confusão quanto à autoria desses textos. Até hoje, nenhum argu
mento convincente conseguiu resolver essa dúvida criada, ao que
tudo indica, artificialmente por lvanov.
O contínuo e infrutífero debate acabou por diVidir a recepção
daqueles textos em três direções:
a) a primeira é a daqueles que respeitam as autorias das edi
ções originais e, por consequência, só reconhecem como
da autoria do próprio Bakhtin os textos publicados sob seu
nome ou encontrados em seus arquivos;
b) a segunda direção é a daqueles que atribuem a Bakhtin to
dos os textos ditos disputados;
c) há, por fim, uma solução de compromisso que inclui os
dois nomes na autoria. Assim, Freudismo e Marxismo e filo
sofia da linguagem são atribuídos a Bakhtin!Voloshinov; e O
método formal nos estudos literários, a Bakhtin/Medvedev.
Neste livro, adotamos a primeira direção. E há várias razões
para isso. Em primeiro lugar, entendemos que atribuir a cada um
dos autores os textos publicados sob seus respectivos nomes é uma
forma adequada de respeitar sua memória- o que não é irrelevante,
considerando o lado trágico de suas existências.
Mais importante, porém, é nãD perder a diversidade de pen
samento do grupo, suas múltiplas e inegáveis inter-relações e sua
apreciável riqueza. Isso. tudo sem esquecer que Bakhtin, a partir da
década de 1960 e até a ~ua morte,. teve várias oportunidades concre-
' taS: de reivindicar a a~toria dos .textos mencionados e nunca o fez.
Considerando que DS três intelectuais envolvidos tiveram fortes la
. ços de amiz~de, encontraram-se regularmente durante dez anos ( 1919-
1929)num estudos e partilharam um conjunto expressivo de
ideias, adotamos também a denominação que se tomou corrente
para identificar o conjunto da obra: o Círculo de Bakhtin.
É importante lembrar que essa denominação foi-lhes atribuí
da a posteriori pelos estudiosos de seus trabalhos, já que o próprio
grupo não a usava. A escolha do nome de Bakhtin, neste caso, é ple
namente justificável, tendo-se em conta que de todos foi ele quem
produziu, sem dúvida, a obra de maior envergadura.
o CíRCULO DE BAKHTIN
Antes de prosseguir, parece útil apresentar alguns dados sobre o
Círculo. Trata-se de um grupo de intelectuais (boa parte nascida por
volta da metade da década de 1890) que se reuniu regularmente de
1919 a 1929, primeiro em Nevei e Vitebsk e, depois, em São Peters
burgo (à época rebatizada de Leningrado).
Era constituído por pessoas de diversas formações, interesses inte
lectuais e atuações profissionais (um grupo multidisciplinar, portanto),
incluindo, entre vários outros, o filósofo Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan
I. Kanaev, a pianista Maria V Yudina, o professor e estudioso de literatura
Lev V Pumpianski e os três que vão nos interessar mais de peno neste
livro: Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev.
Sobre Voloshinov, sabe-se que trabalhava como professor e, de
início, tinha seus interesses voltados para a história da música, vin
do, porém, a se formar em estudos linguísticos em 1927, dedicando
se, em seguida, a estudos pós-graduados na mesma área. Medvedev,
formado em direito, teve uma carreira de educador e de gestor na
área da cultura. Desenvolveu intensa atividade no jornalismo cultu
ral e ensinou literatura no Instituto Pedagógico Herzen, em Lenin
grado. Voloshinovveio a falecer em 1936, vitimado pela tuberculose;
e Medvedev, provavelmente em 1940, vítima dos expurgos políticos
que varreram a URSS no fim da década de 1930.
Bakhtin, por sua vez, teve formação em estudos literários. Atuou
como professor, embora sem vínculos institucionais (principalmente
por problemas de saúde) até ser preso em 1929. Condenado a um
exílio no Cazaquistão, só pôde encontrar um emprego permanente
depois da Segunda Guerra Mundial, tornando-se professor de lite
ratura do Instituto Pedagógico (depois, Universidade) de Saransk
(Mordóvia), donde se aposentou em 1969, passando seus últimos
anos de vida na região de Moscou, onde faleceu em 1975.
Apreciando sua obra retrospectivamente e considerando a am
plidão de seus temas e a densidade de suas reflexões, o melhor que se
pode dizer dele (seguindo hoje uma tendência internacional) é que
foi um filósofo, talvez um dos mais importantes do século XX, embo
ra seu ostracismo por mais de trinta anos tenha impedido a circulação
e o debate de suas ideias até praticamente a década de 1970.
Os membros do Círculo que recebeu seu nome, tinham em co
mum, conforme se pode ler em Clark & Holquist (p. 65), uma pai
xão pela filosofia e pelo debate de ideias, o que é facilmente percep
tível nos textos que nos legaram. Mergulhavam fundo nas discussões
de filósofos do passado, sem deixar de se envolver criticamente com
autores de seu tempo.
Podemos acrescentar a essa paixão outra que, progressivamen
te, invade os interesses do Círculo, em especial em seus tempos de
Leningrado: a paixão pela linguagem.
PROBLEMAS DE RECEPÇÃO
Além da confusão em torno da autoria de certos textos publi
cados nos anos 1920, a recepção da obra do Círculo de Bakhtin,
quando de sua reentrada em cena de meados da década de 1960 em
diante, foi, para dizer o menos, bastante tumultuada. Basta lembrar,
nesse sentido, que o material veio vindo à luz na Rússia sem nenhu
ma ordem cronológica e sua publicação levou mais de vinte anos
para se completar, desde a reedição do livro sobre Dostoievski em
1963 até a edição, em 1986, de Para uma ato. Ironica
mente, o primeiro dos textos mais longos escritos por Bakhtin foi o
último a ser publicado!
De certa forma, o mesmo aconteceu com a chegada das obras
no Ocidente: não houve nenhuma ordem cronológica na sua divul
gação, que, por sua vez, levou perto de vinte e cinco anos para se
completar, desde as primeiras traduções em 1968 (ano em que apa
receram a edição em italiano da obra sobre Dostoievski e a edição em
inglês da obra sobre Rabelais) até a tradução para o inglês de Para
uma filosofia do ato em 1993.
Além disso, é preciso registrar que nem sempre as traduções fo
ram feitas com o devido cuidado. Bastaria lembrar o caso da primei
ra tradução do livro sobre Dostoievski para o inglês. Alguns outros
exemplos mais pontuais podem ser lidos em Souza (1999, p. 42-53)
e Castro (1997).
Acrescente-se a isso tudo o fato de que boa parte dos textos
do próprio Bakhtin é constituída de manúscritos inacabados, alguns
apenas rascunhados, o que nos deixa, sem dúvida, numa situação de
não poucas dificuldades quanto à apreensão de seu pensamento.
No Brasil, a recepção das ideias do Círculo teve também suas
peculiaridades. Além de não poucos problemas de tradução, o pen
samento do Círculo, com bastante frequência e durante muitos anos,
foi identificado quase exclusivamente ao livro Marxismo e filosofia
da linguagem, o primeiro a ser publicado em português (em 1979).
Por outro lado, em especial pelo viés do discurso pedagógico
(mas não apenas), houve uma banalização de termos como diálogo,
interação e gêneros do discurso, retirados do vocabulário do Círculo,
mas claramente despojados de sua complexidade conceitual (con
forme argumentaremos mais à frente).
E, por fim, cabe lembrar a confusão que se criou com o termo
polifonia, seja por ser ele tomado inadvertidamente como sinônimo
3
.~
u
o o
de heteroglossia (ou seja pelo sentido que ele tem
no quadro de referência do linguista francês O. Ducrot, nem sem
pre claramente distinguido, entre nós, de seu sentido em Bakhtin1
Comentaremos esta questão peculiar no capítulo dois. Desde já, po
rém, recomendamos aos leitores interessados a discussão do concei
to bakhtiniano de polifonia em Tezza (2002 e 2003).
DOIS GRANDES PROJETOS
Quando se observa em conjunto a obra do Círculoo acolhe com todos os direitos. É porque teve
de enfrentar a pluridiscursividade que a filosofia gerou tendências
universalizantes, unificadoras, marcadas pela quimera de silenciar a
heterogeneidade e estancar a dialogia.
Por isso, Ponzio vai propor (cap. 12) que a filosofia da lingua
gem seja o espaço do desenredamento crítico dos processos sociais
geradores de significação (298) e dos processos de reificação e abso
lutização dos discursos (301).
8
Q
SUJEITO
É no interior do complexo caldo da heteroglossia e de sua dia
logização que nasce e se constitui o sujeito. A realidade linguística
se apresenta para ele primordialmente como um mundo de vozes
sociais em múltiplas relações dialógicas - relações de aceitação e
recusa, de convergência e divergência, de harmonia e de conflitos,
de interseções e hibridizações.
É nessa atmosfera heterogênea que o sujeito, mergulhado nas
múltiplas relações e dimensões da interação socioideológica, vai-se
constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo
tempo, suas inter-relações dialógicas. É nesse sentido que Bakhtin
várias vezes diz, figurativamente, que não tomamos nossas palavras
do dicionário, mas dos lábios dos outros.
Como a realidade linguístico-social é heterogênea, nenhum su
jeito absorve uma só voz social, mas sempre muitas vozes. Assim,
ele não é entendido como um ente verbalmente uno, mas como um
agitado balaio de vozes sociais e seus inúmeros encontros e entre
choques. O mundo interior é, então, uma espécie de microcosmo
heteroglóssico, constituído a partir da internalização dinâmica e
ininterrupta da heteroglossia social. Em outros termos, o mundo in
terior é uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas rela
ções de consonâncias e dissonâncias; e em permanente movimento,
já que a interação socioideológica é um contínuo devir.
Nesse processo de construção socioideológica do sujeito, as vo
zes funcionarão de diferentes modos. Algumas entrarão como vozes
de autoridade e outras como vozes internamente persuasivas (nos
termos de Bakhtin em O discurso no romance, p. 342ss.).
A palavra de autoridade, em seus variados tipos, é aquela que nos
interpela, nos cobra reconhecimento e adesão incondicional. Trata-se
de uma palavra que se apresenta como uma massa compacta, encap-
impermeável, resistente a bivocalizações. E, por isso
tudo, é uma palavra que "não se pode pronunciar em vão" (p. 342).
Já a palavra que se apresenta como internamente persuasiva é
aquela que aparece como uma entre outras muitas. Transita, por
tanto, nas fronteiras, é centrífuga, é permeável às bivocalizações e
hibridizações, abre-se continuamente para a mudança.
O embate e as inter-relações dialógicas dessas duas categorias
do discurso (em seus diferentes tipos e graus) são determinantes da
história da consciência ideológica individual. Quanto mais as vozes
forem funcionalmente de autoridade para o sujeito, mais monoló
gica (ptolomaica) será sua consciência; quanto mais internamente
persuasivas as vozes, mais galileana será sua consciência.
Nosso mundo interior, portanto, é, em sua essência, sociossemióti
co (sem signos não há consciência) e, por isso mesmo, heterogêneo, na
medida em que a realidade linguístico-social é heterogênea (plurilíngue).
E sua dinâmica interior decorre da dialogização desta heterogeneidade.
Sobre isso, diz Voloshinov (em Marxismo e filosofia da lingua
gem, p. 13) que a consciência toma forma e existência nos signos
criados por um grupo social no processo de sua interação social. A
consciência individual se alimenta de signos; deriva deles seu cresci
mento; reflete sua lógica e leis.
Esta lógica é precisamente a da interação socioideológica, isto
é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogizado. É
esta dinâmica social que, internalizada, desencadeia o moto contí
nuo da atividade psíquica.
Nossos enunciados emergem - como respostas ativas que são
no diálogo social - da multidão das vozes interiorizadas. Eles são,
assim, heterogêneos. Desse ponto de vista, nossos enunciados são
sempre discurso citado, embora nem sempre percebidos como tal, já
que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em
nós sem que percebamos sua alteridade (na figura bakhtiniana, são
palavras que perderam as aspas).
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3 ,__,;
i5
Outras, contudo, estão na nossa memória discursiva como pala-
(isto é, -~~~~~T11l!lC:~~~----~"-"~·--"~do sujeito
e de sua atividade, não houve, em princípio, lugar teórico para a
questão do inconsciente psicanalítico. Os membros do Círculo co
nheciam evidentemente as formulações freudianas. Contudo, não as
incorporaram em suas reflexões. Ao contrário, reagiram criticamente
a elas - Voloshinov em especial.
Em seu livro Freudismo (de 1927), ele desenvolve uma expo
sição e crítica de vários aspectos da teoria freudiana. Reconhece sua
magnitude e seu caráter inovador. Reconhece também a complexida
de do mundo psíquico e os conflitos que o atravessam (e, nesse sen
tido, é herdeiro de Freud). Recusa, porém, com base em argumentos
sociológicos de certa inspiração marxista, o modo como Freud teori
za sobre esse mundo, em especial o viés fisiológico e subjetivista que,
3
segundo Voloshinov, sustenta a psicanálise freudiana. Para o psi-
quismo é fundamentalmente linguagem e, por isso, socioideológico.
Mesmo recusando Voloshinov sente-se atraído (e desafiado)
'
pela "descoberta freudiana" e tenta esboçar (cap. 9) uma formulação
que interpreta o inconsciente e os conflitos psíquicos como resultan
tes da luta, no interior, de diferentes motivos socioideológicos.
Nem Voloshinov, nem os outros membros do Círculo voltaram a
essa temática. Por outro lado, o pesado discurso marxista (marcado,
sem dúvida, pelas pressões da conjuntura em que o livro foi escrito)
pode velar as qualidades polêmicas do texto de Voloshinov e impedir
que se avance, oitenta anos depois de sua publicação e considerando
a história posterior da psicanálise, um diálogo produtivo entre a con
cepção de linguagem do Círculo e as teorias do inconsciente.
Tal diálogo adquire particular interesse na atual conjuntura dos
estudos linguísticos, em que as teorias que propuseram uma incor
poração teórica do inconsciente psicanalítico na análise da lingua
gem, embora tenham contribuído para uma relevante problematiza
ção do dizer e de suas significações, não foram ainda muito além de
genéricas declarações de princípio - talvez porque o inconsciente
mais se esconda do que se revele.
Saber se há, de fato, incompatibilidade epistemológica entre um
olhar bakhtiniano e um olhar psicanalítico é tema complexo e que
transcende os objetivos e limites deste livro. No entanto, entendemos
ser uma questão pertinente um eventual diálogo entre esses dois mun
dos, em especial considerando que ambos os olhares pressupõem a
alteridade, a heterogeneidade, o conflito, a singularidade e, em espe
cial, a linguagem - mesmo que em planos teóricos diferentes.
SER AUTOR
O tema do autor e da autoria está presente, em maior ou menor
grau, em quase todos os escritos conhecidos de Bakhtin. Trata-se de um
tema uma extensa elaboração de natureza filosófica Gá que,
desde cedo, Bakhtin esteve empenhado em construir uma estética geral)
e que conheceu diferentes desdobramentos a cada novo retomo a ele.
Já no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin dis
tingue o autor pessoa (isto é, o escritor, o artista) do autor criador
(isto é, a função estético-formal engendradora da obra, o pivõ que
sustenta a unidade do todo esteticamente consumado).
O autor criador é entendido fundamentalmente como uma po
sição estético-formal cuja característica básica está em materializar
certa relação axiológica com o herói e seu mundo: ele os olha com
simpatia ou antipatia, distância ou proximidade, reverência ou crítica,
gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura, ge
nerosidade ou crueldade, júbilo ou melancolia, e assim por diante.
Obviamente, embora os exemplos estejam aqui apresentados em
construções alternativas, é preciso não perder de vista que uma efeti
va posição axiológica nunca é um todo uniforme e homogêneo, mas
agrega múltiplas e heterogêneas coordenadas. A simpatia pelo herói e
seu mundo poderá, por exemplo, ser nuançada por uma crítica melan
cólica; a reverência, por uma suave e sutil ironia, e assim por diante.
É esse posicionamento valorativo que dá ao autor criador a for
ça de constituir o todo: é a partir dela que se criará o herói e o seu
mundo e se lhes dará o acabamento estético.
No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na
arte verbal (escrito em 1924), Bakhtin amplia o escopo da posição
axiológica do autor criador, incluindo nela tanto o herói e seu mun
do, quanto a forma composicional e o material, isto é, o todo estético
materializa escolhas composicionais e de linguagem que resultam
também de um posicionamento axiológico.
Se podemos dizer que a distinção autor pessoa/autor criador é hoje
um lugar-comum nas teorizações estéticas, ainda assim as considerações
bakhtinianas trazem ao conceito de autor criador uma substância pecu
liar ao caracterizá-lo fundamentalmente como uma posição axiológica.
Para se as bases dessa conceituação, é importante
reiterar que, para Bakhtin, ag~and~fo~ça que move o univ~~so
práticas culturais são precisamente as posições socioavaliativas
t~S}l~!l!~ dinâmica de múltiplas i~~eE:E~J~SQ~§It;?p()n~i.vas.
Em outras palavras, todo ato cultural se move numa atmosfe
ra axiológica intensa de interdeterminações responsivas, isto é, em
todo ato cultural assume-se uma posição valorativa frente a outras
posições valorativas (conforme se pode ler em seu ensaio O problema
do conteúdo, do material e da forma na arte verbal).
Desse modo, qualquer texto tem, como seu ponto de partida
e como seu elemento estruturante, um posicionamento axiológico,
uma posição autoral. No ato artístico, especificamente, a realidade
vivida Qá em si atravessada por diferentes valorações sociais porque
a vida se dá num complexo caldo axiológico) é transposta para um
outro plano axiológico (o plano da obra): o ato estético opera sobre
sistemas de valores e cria novos sistemas de valores.
No ato artístico, aspectos do plano da vida são destacados (iso
lados) de sua eventicidade, são organizados de um modo novo, su
bordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem auto
contida e acabada. E é o autor criador - materializado como certa
posição axiológica frente a certa realidade vivida e valorada - que
realiza essa transposição de um plano de valores para outro plano de
·valores, organizando um novo mundo (por assim dizer) e sustentan
do essa nova unidade.
O autor criador é, assim, quem dá forma ao conteúdo: ele não
apenas registra passivamente os eventos da vida (ele não é um este
nógrafo desses eventos), mas, a partir de certa posição axiológica,
recorta-os e reorganiza-os esteticamente.
O ato criativo envolve, desse modo, um complexo processo de
transposições refratadas da vida para a arte: primeiro, porque é um
autor criador e não o autor pessoa que compõe o todo estético -há
aqui, portanto, já um deslocamento refratado à medida que o autor
criador é uma posição axiológica conforme recortada pelo autor pes-
soa. para usar um comentário tardio de Bakhtin (em seus apon
tamentos de 1970-71, p. 152), a posição autoral é, no fundo, uma
máscara - autorar é assumir uma máscara (determinada
posição axiológica, determinada voz social). Nesse sentido, Bakhtin
entende que não há enunciado em que se possa encontrar uma face;
encontramos sempre ali um autor criador (uma máscara, portanto).
Por outro lado, a transposição de planos da vida para a arte se
dá não por meio de uma isenta estenografia (o que seria impossível
na concepção bakhtiniana), mas a partir de um certo viés valorativo
(aquele consubstanciado no autor criador).
O autor criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Re
fratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recorta
da pelo viés valorativo do autor pessoa; e refratante porque é a partir
dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida.
Lembremos, a propósito disso, que, para o Círculo de Bakhtin,
os processos semióticos- quaisquer que sejam eles- ao mesmo
tempoem que refletem, sempre refratam o mundo. Em outras pa
lavras, a semiose não é um processo de mera reprodução de um
mundo "objetivo", mas de remissão a um mundo múltipla e hetero
geneamente interpretado - isto é, aos diferentes modos pelos quais
o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos em
cada momento de sua experiência histórica.
A distinção autor pessoa/autor criador - tratada de maneira
geral em O autor e o herói na atividade estética - vai ser retomada
por Bakhtin em seu manuscrito inacabado O problema do texto em
linguística, filologia e nas ciências humanas (provavelmente escrito
por volta de 1960).
Neste texto, aquela distinção recebe uma nova formulação sus
tentada agora na filosofia da linguagem que Bakhtin havia desenvol
vido no seu ensaio O discurso no romance (redigido em 1934-1935).
Ela passa a ser caracterizada como envolvendo um necessário deslo
camento no plano da linguagem - entendida linguagem aqui não
no sentido gramatical do termo, nem no sentido político-cultural da
língua unitária, mas no sentido construído em O no roman
ce, qual seja, a linguagem concebida como heteroglossia - como
um conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes ou línguas sociais, isto
é, um conjunto de formações verboaxiológicas.
No ato artístico, há, então, um complexo jogo de deslocamentos
envolvendo as línguas sociais, pelo qual o escritor (que é aquele que
tem o dom da fala refratada) direciona todas as palavras para vozes
alheias e entrega a construção do todo artístico a uma certa voz.
Essa voz criativa (isto é, o autor criador enquanto elemento es
tético-formal) tem de ser sempre, segundo insiste Bakhtin, uma voz
segunda, ou seja, o discurso do autor criador não é a voz direta do
escritor (do autor pessoa), mas um ato de apropriação refratada de
uma voz social qualquer de modo a poder ordenar um todo estético.
A linguagem não deslocada (isto é, se a voz do escritor enquanto
pessoa permanece como tal) é, para Bakhtin, ingênua e inadequada para
a autêntica criação estética. O escritor é, então, a pessoa capaz de traba
lhar numa linguagem enquanto permanece fora dessa linguagem.
Mesmo que a voz do autor criador seja a voz do escritor como
pessoa, ela só será esteticamente criativa se houver deslocamento,
isto é, se o escritor for capaz de trabalhar em sua linguagem perma
necendo fora dela.
No livro sobre Dostoievski, Bakhtin apresenta esse necessário
deslocamento com um vocabulário anterior à sua filosofia da lingua
gem, dizendo que as ídeias do escritor, quando entram na obra, mu
dam sua forma de existência: transformam-se em imagens artísticas
das ídeias, isto é, não são as ideias do escritor como tais que entram
no todo estético, mas sua refração.
Essa mesma compreensão já aparecia no texto O autor e o herói
na atividade estética quando Bakhtin dizia que mesmo que o escritor
coloque suas ideias na boca do herói, não são mais suas ideias porque
estão precisamente na boca do herói e se conformam ao seu todo.
No ensaio O no romance, esse deslocamento fundador do
ato estético está sintetizado (agora sob os pressupostos da filosofia da
linguagem) da seguinte maneira: trata-se de dizer "Eu sou eu" na lin
guagem de outrem; e de dizer, na minha linguagem, "Eu sou outro".
Essa concepção do necessário deslocamento presente no ato
de trabalhar uma linguagem estando fora dela remete àquilo que
Bakhtin chama, em seu ensaio sobre o autor e o herói, de o princípio
esteticamente criativo na relação autor/herói, qual seja, o princípio
da exterioridade: é preciso estar fora; é preciso olhar de fora; é pre
ciso um excedente de visão e conhecimento para poder consumar o
herói e seu mundo esteticamente.
Posto em termos de linguagem, o princípio da exterioridade
(a lógica imanente da criação estética) demanda do escritor que ele
desista de sua linguagem, saia dela, liberte-se dela, olhe-a pelo olho
de outra linguagem, desloque-a para outrem ao mesmo tempo em
que se desloca para outra linguagem.
Em outros termos, é necessário que a consciência artística se
libere da prisão da linguagem que se impõe como única e absoluta
(conforme está discutido no ensaio Da pré-história do discurso roma
nesco); que se libere da hegemonia aprisionadora do imaginário de
uma língua unitária e da língua como mito (isto é, como uma forma
absoluta de significar) e se deixe vagar livremente pela heteroglossia.
No fundo, a formulação da distinção autor pessoa/autor criador
em termos de deslocamentos no plano da linguagem é apenas um
outro modo de apresentar a conceituação primeira de Bakhtin. Pri
mordialmente, ele nos apresenta o autor criador (enquanto elemento
estético-formal) como uma posição axiológica que dá unidade ao
todo artístico. Neste outro momento, Bakhtin caracteriza o autor
criador como a voz social que dá unidade ao todo artístico.
Este segundo modo de enunciar apenas transpõe a primeira con
ceituação para o quadro de referências da filosofia da linguagem de
lineada na década de 1930. Nela- ao conceber a linguagem como
heteroglossia - Bakhtin vai dar materialidade verbal às posições so-
c
.~ g
o
"'
cioaxiológicas que passam a ser entendidas como vozes ou línguas so
ciais, isto é, como formações em que confluem formas léxico-gramati
cais e uma semântica cujo dominante são os índices sociais de valor.
Em suma, a função estético-formal de autor criador é, nos dois
casos, uma posição axiológica. A única diferença é que, no segundo
momento, essa posição se reveste de materialidade verbal e o autor
criador passa a ser identificado à voz social que cria e sustenta a uni
dade do todo artístico.
Por ser uma função imanente ao todo estético e por definir-se
como uma posição axiológica, o autor criador (a voz segunda) é, para
Bakhtin, pura relação: não se trata de um ente físico (não é possível
encontrar nas ruas Dom Casmurro como tal), mas de uma função
narrativa imanente que condensa, num todo estético, determinado
feixe de relações valorativas. Ou, como aparece formulado no fim de
O autor e o herói na atividade estética, a posição axiológica do autor
criador é um modo de ver o mundo, um princípio ativo de ver que
guia a construção do todo estético e direciona o olhar do leitor.
Dentre incontáveis exemplos possíveis, escolhemos Angústia para
ilustrar essa discussão. Obviamente, Luís da Silva, o autor criador da
narrativa, não é Graciliano Ramos, o escritor do romance. É um ente
interno ao romance, puramente relaciona!; é uma voz social refratada
esteticamente (i. e, transposta para o plano estético); é uma posição
socioaxiológica que poderíamos caracterizar como a do funcionário
pobre, "um Luís da Silva qualquer" (p. 19), solitário e amargo, viven
do uma vida monótona e estúpida, cheio de "tristeza e raiva" (p.6).
Só enxerga uma paisagem em que "tudo [é] feio, pobre, sujo"
(p. 36), em que nada tem qualquer sentido. Despreza profundamen
te os outros e se vê por eles desprezado ("sujeitos remediados que
me desprezam porque sou um pobre diabo", p. 6; "Rua do Comér
cio. Lá estão os grupos que me desgostam", p.9).
Vive fechado em si, ruminando, com amargor, sua insignificân
cia de ser abjeto a seus próprios olhos. Mesmo seu interesse por
Marina não pode ser classificado por um caso de amor (sentimento
que, de fato, não existe em Luís da Silva); é antes uma atração carnal
por uma mulher que ele sequer estima. O que lhe dói é perdê-la para
Julião Tavares, a quem votava um desprezo total ("o homem odioso
que tinha tudo, mulheres, cigarros", p. 182). Essa situação vai acirrar
seus ressentimentos e seus ódios.
É dessa posição axiológica integralmente negativa que Luís da
Silva constrói sua angustiante narrativa, narrativa que se afunda em
penosas recordações e em doentios redemoinhos psíquicos em que
delírio e realidade se mesclam quase sem distinção.
A AUTOBIOGRAFIA E A AUTOCONTEMPLAÇÃO
Anecessidade do princípio da exterioridade no ato criador poderia
ser questionada no caso da autobiografia. Nesta, escritor e herói aparen
temente coincidem. Bakhtin, porém, toma a autobiografia precisamente
para reiterar seu postulado geral de que sem deslocamento não há ato
criador (conforme se pode ler em O autor e herói na atividade estética).
Para ele, a autobiografia não é (e não pode ser) um mero dis
curso direto do escritor sobre si mesmo, pronunciado do interior do
evento da vida vivida. Ao escrever uma autobiografia, o escritor pre
cisa se posicionar axiologicamente frente à própria vida, submeten
do-a a uma valoração que transcenda os limites do apenas vivido.
Para isso (para posicionar-se axiologicamente frente à própria
vida), o escritor precisa dar a ela certo acabamento, o que ele só alcan
çará se distanciar-se dela, se olhá-la de fora, se tornar-se um outro em
relação a si mesmo. Em outros termos, ele precisa se auto-objetificar,
isto é, precisa olhar-se com certo excedente de visão e conhecimento.
O ato de autocontemplação no espelho motiva reflexão seme
lhante em Bakhtin. Pode parecer, numa abordagem superficial desse
fenômeno, que estamos, de fato, nos vendo diretamente como os
outros nos veem. No entanto, diz Bakhtin, vemos no espelho uma
face que nunca temos efetivamente na vida vivida: vemos apenas um
reflexo do nosso exterior e não a nós mesmos em termos nosso
exterior, porque estamos em frente ao espelho e não no seu interior.
O que fazemos, então, quando em frente ao espelho, à falta des
sa efetiva possibilidade (de nos vermos a nós mesmos inteiramente
abarcados pelo nosso exterior) é nos projetarmos num possível outro
peculiarmente indeterminado, com cuja ajuda tentamos encontrar
uma posição axiológica em relação a nós mesmos. Nesse sentido,
nunca estamos sozinhos frente ao espelho: um segundo participante
está sempre implicado no evento da autocontemplação.
Em seu caderno de notas de 1943 (conforme traduzidas e publi
cadas por Tatiana Bubnova em Hacia una filosofía del acto ético. De los
borradores. Y otros escritos, p. 14 7), Bakhtin volta a esse tema, desta
cando a complexidade que se esconde atrás da aparente simplicidade
da autocontemplação. É ingênuo pensar, diz ele, que no ato de olhar
se no espelho há uma fusão, uma coincidência do extrínseco com o
intrínseco. O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho,
em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho, não
vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a
mim mesmo com os olhos do mundo- estou possuído pelo outro.
Essas reflexões todas têm, como pano de fundo, o pressuposto
bakhtiniano forte do primado da alteridade, no sentido de que tenho
de passar pela consciência do outro para me constituir (ou, num vo
cabulário mais hegeliano, o eu-para-mim-mesmo se constrói a partir
do eu-para-os-outros; cf. Apontamentos de 1970-1971).
Ü TEMA DO AUTOR NO CíRCULO DE BAKHTIN
Dos outros membros do Círculo de Bakhtin, apenas Voloshinov
vai se ocupar do tema do autor, dedicando a ele boa parte do seu ar
tigo O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado em 1926.
O núcleo sua discussão é muito similar ao de Bakhtin: ela é
Lcu.uu,_u ... formulada em termos de posições axiológicas. Para Voloshi
nov, o todo estético condensa uma complexa rede de relações axio
lógicas envolvendo três grandes constituintes imanentes: o autor, o
receptor e o herói.
Ele deixa claro também que o autor não se confunde com o es
critor, nem o receptor com o público reaL Trata-se, nos dois casos, de
funções imanentes, constitutivas da obra. Cada uma delas consubs
tancia (de forma refratada) posições valorativas sociais e, em relações
recíprocas, determinam, do interior, a forma do todo estético.
Se no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin pen
sa a forma artística como expressão da relação axiológica do autor
criador com o herói (e só muito tangencialmente faz referência ao
receptor imanente), Voloshinov como que complementa aquela dis
cussão, detalhando as referências ao terceiro elemento (o receptor
imanente) nessa relação.
O autor criador tem uma relação axiológica com o herói, mas
nunca perde de vista os posicionamentos axiológicos do receptor
imanente, seja frente ao mesmo herói, seja frente à própria relação
do autor criador com o herói. Em outras palavras, o autor criador
fala do herói, mas sempre atento ao que os outros pensam do herói
e da própria relação dele com o herói.
A relação autor/herói fica assim mais claramente atravessada
pelos diálogos sociais, pelas interdeterminações responsivas. O re
ceptor imanente é a função estético-formal que permite transpor
para o plano da obra manifestações do coro social de vozes.
CAPÍTULO TRÊS
A FILOSOFIA DA
LINGUAGEM
BAKHTIN E VoLOSHINOV SOBRE A LINGUAGEM
s dois pensadores do Círculo que escre
veram mais explicitamente sobre ques
tões de linguagem foram Bakhtin e Vo
loshinov: A filosofia da linguagem que
construíram, não está, porém, apresen
tada integralmente num único texto, até
mesmo porque sua elaboração se esten
deu no tempo. Ela vai se constituindo ao
longo da segunda metade da década de
1920, o período mais produtivo do Círculo como tal, até sua dissolução
-por força das circunstâncias a que já nos referimos- em 1929.
Bakhtin voltará, posteriormente, a essa temática, ampliando-a e
complementando-a. Trata-se, portanto, de um pensamento construí
do coletivamente num primeiro momento e que continua evoluindo
depois da dispersão do grupo.
O próprio Bakhtin, em carta de 1961 a V Kozhinov pode
ser lida em Bocharov, p. 1016), afirma que os três livros fim dos
anos 1920 (O nos Marxismo e
losofia da linguagem e Problemas da poética de Dostoievshi) estão
baseados numa concepção comum de linguagem - construída ao
tempo em que os três autores "estavam trabalhando em contato cria
tivo muito próximo" (p. 1016). E adiante acrescenta:
Até hoje me mantenho fiel à concepção de linguagem e fala que foi
pela primeira vez apresentada, de modo incompleto e nem sempre in
teligível, naqueles livros, embora, é claro, a concepção tenha evoluído
nos últimos trinta anos.
Desse modo, para apreender essa filosofia da linguagem numa
visão de conjunto, é preciso percorrer e aproximar vários dos textos
do Círculo e do próprio Bakhtin. No correr deste capítulo, apresen
taremos os passos do processo de construção dessa filosofia, ao mes
mo tempo em que tentaremos fazer uma apresentação de seus eixos
principais. Por ora, deixamos arrolados, em ordem cronológica, os
textos de cada um desses autores em que questões de linguagem
foram discutidas.
De Voloshinov:
- O discurso na vida e o discurso na poesia (1926);
- O freudismo: um esboço crítico (1927);
- As correntes mais recentes do pensamento linguístico no Oci-
dente (1928);
- Marxismo e filosofia da linguagem (1929);
- Estilística do discurso literário (1930) - que compreen-
de os três artigos: "O que é a linguagem?", "A estrutura do
enunciado" e "A palavra e sua funçao social";
-"As fronteiras entre poética e linguística" (1930).
De Bakhtin:
- Problemas da poética de Dostoievski (192911963);
- "O discurso no romance" (1934-35);
- Rabelaís e seu mundo (1945/1965);
(1952-53);
"(1974).
Cabem aqui duas observações:
a) os três últimos textos de Bakhtin são, de fato, manuscritos
inacabados, com muitas de suas partes apenas esboçadas;
b) tópicos de linguagem ocorrem esparsamente nas várias no
tas de caderno, em especial nas de 1970-1971.
Por fim, lembramos que tainbém no livro de Medvedev há con
siderações sobre a linguagem, boa parte delas muito semelhantes às
formulações dos outros dois autores. Em todo caso, a elas faremos
referência sempre que pertinente.
As RELAÇÕES COM A LINGUÍSTICA
Como destacamos anteriormente, o Círculo de Bakhtin conhe
ceu, por volta de192511926, uma virada linguística, isto é, a questão
da linguagem passou a ser central em suas reflexões e reorientou
todos os trabalhos daí para a frente. O marco inicial dessa virada
é o artigo O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado por
Voloshinov em 1926.
No entanto, antes dessa virada já encontramos, nos textos de
Bakhtin, reflexões esparsas sobre a linguagem. Ela, contudo, não é
ainda colocada como o núcleo articulador do seu pensamento, nem
ele se concentra em dizer como a está concebendo.
Apesar disso, podemos afirmar que as grandes coordenadas .
da concepção de linguagem que o Círculo construiu depois, já es
tavam presentes em Para uma filosofia do ato, particularmente as
seguintes:
a) a perspectiva da refraçao avaliatíva de nossas relações com
o mundo - fundamento da futura concepção da linguagem
como estratificada axiologicamente e do conceitual da hetero
glossia, isto é, da multiplicidade das vozes ou línguas sociais;
b) a relação eu/outro- fundamento da grande metáfora dialó
gica do Círculo, que vai orientar sua compreensão da dinâ
mica da cultura imaterial e donde emerge a filosofia do riso
de Bakhtin e seu conceitual da heteroglossia dialogizada, da
bivocalização, do discurso citado;
c) o destaque à unicidade dos eventos do mundo da vida- que
sustentará, no futuro, a insistência do Círculo em aproximar
sistematicamente as práticas de linguagem do cotidiano e
aquelas das diferentes esferas da criação ideológica.
Foi preciso, porém, submeter essas grandes coordenadas concei
tuais a uma semioticização sociologizada para redesenhar-lhes o per
fil heurístico: foi preciso perceber sua materialização em linguagem e,
ao mesmo tempo, perceber a linguagem para além de uma concepção
apenas formal, dimensionando-a nas relações sociointeracionais.
No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na arte
verbal (de 1924),já está claro que a questão da linguagem estava co
meçando a tomar corpo nas reflexões de Bakhtin. Neste texto, nós o
encontramos afirmando que os enunciados concretos emergem sem
pre num contexto cultural semântico-axiológico e asseverando que,
desse modo, não há e nem pode haver enunciados neutros (p. 292)
- o dizer assevera valores, isto é, sempre que enun~~~~~~~~~~~
mos também uma J20sição axiológica.
-~· u,~Y/Z"h~-~?"-'~~~r;,o,,•V~- -·· '' '"' m, '•, '-,~,":; ·~- ''~' '- •- ••- -'
terconectado valor e~.:::.:'~!\l'"'~fl~±.'=''·
Ao abordar especificamente os enunciados da arte verbal, Bakhtin
afirma que eles devem ser estudados como fenômenos puramente
verbais (p. 293), mas tal estudo é insuficiente para a análise estética,
na medida em que o que entra no todo estético não é a língua na sua
condição gramatical (a língua em si), mas fundamentalmente a língua
como realidade semântico-axiológica; "não é a foE:!l:(lli~g~~_gS:~..9.:':1~.
entra no todo estético, mas sua significação axiológica" (p. 299).
~"~~-••·--··~~--··-~~--••---·~- '-"··-··~-~--~-•••••-~~- ~~de
uma ciência e menos ainda de um método para abordá-lo. O máximo
que podemos dizer, seguindo o raciocínio heideggeriano discutido no
capítulo um, é que o Ser da linguagem "em sua totalidade concreta e
viva" está interpelando Bakhtin - que lhe responde com uma filoso
fia da linguagem e não propriamente com uma nova ciência.
Por outro lado, podemos observar que há no discurso bakhti
niano uma relação bastante positiva com a linguística. Ou, em ou
tros termos, Bakhtin nunca põe a linguística em questão: aceita sua
especificidade (isto é, o estudo do verbal em si- ver O problema do
texto, p. 120), considera legítimas e justificáveis as abstrações opera
das pela linguística (Problemas da poética de Dostoievski, p. 181) e
toma o sistema gramatical como um dado, caracterizando-o por sua
virtualidade (O problema do texto, p. 118).
Ele apenas considera que a linguística, embora necessária, é in
suficiente para o estudo da comunicação verbal em si, nos termos
em que ele a entende, isto é, para o estudo das formas desta comu
nicação, da natureza dos enunciados concretos, das relações dialógi
cas, dos gêneros do discurso (O problema do texto, p. 118).
Nesse sentido, há uma clara diferença entre ele e Voloshinov.
Este é um crítico contumaz da linguística, em especial de sua pers
pectiva formal (que ele designa de objetivismo abstrato). Seu argu
mento básico aqui é que a noção de sistema sincrônico não tem
qualquer objetividade (cf. cap. II-2 de Marxismo e filosofia da lin
guagem) e, portanto, é um erro persegui-lo cientificamente.
Em nenhum momento, ele propõe criar uma segunda ciência:
para ele basta redirecionar criticamente a linguística, incorporando
lhe a enunciação como objeto (p. 96). Mesmo o estudo das formas
linguísticas como tais só é possível, segundo ele, no interior de uma
teoria da enunciação:
Enquanto a enunciação, em sua inteireza, continuar sendo terra in
cognita para o linguista, será impossível falar de uma compreensão
genuína, concreta, não escolástica das formas sintáticas (p. 110).
E afirma, como princípio geral, que o estudo das formas gra
maticais deve estar metodologicamente situado no ponto de chegada
dos estudos linguísticos e não no ponto de partida (p. 95-96):
Daquilo que acabamos de estabelecer, segue que a ordem metodolo
gicamente fundada do estudo da linguagem deve ser:
(1) as formas e os tipos de interação verbal em conexão com suas
condições concretas;
(2) as formas de enunciações particulares, de atos particulares de di
zer, em ligação estreita com a interação de que são constituintes
- i.e., os gêneros do discurso na ideologia do cotidiano e na cria
ção ideológica como determinadas pela interação verbal;
(3) um reexame, a partir dessa nova base, das formas da língua em
sua apresentação linguística usual.
Assim, enquanto Bakhtin considera que o linguista está cor
reto em abordar os elementos linguísticos no contexto fechado do
sistema da língua (O problema do texto, p. 120), Voloshinov critica
precisamente o fato de o pensamento linguístico ter perdido, sem
esperança, qualquer sentido do todo verbal (p. 110).
Essa negação algo radical de uma perspectiva formal para o es
tudo da linguagem tem, porém, seu preço. Segundo nossa avaliação,
ela traz para Voloshinov algumas problemas de coerência interna. E
isso é particularmente visível quando ele, ao discutir a relação falan
te/signo, argumenta que os falantes, na interação concreta, não se
orientam por um sistema abstrato de formas, mas pela significação
que a forma adquire no contexto singular da enunciação:
Podemos expressar isso da seguinte maneira: o que importa para o fa
lante sobre uma forma linguística não é ser ela um sinal estável e sempre
autoequivalente, mas ser um signo sempre mutável e adaptável (p.68).
Introduz, então, uma distinção entre sinal e signo, apresentan
do o primeiro como o nível da recorrência e do estável e o segundo
como o nível do sempre mutável e adaptável. Embora essa distinção
faça sentido no conjunto de sua reflexão (na medida em que ele quer
precisamente enfatizar a plurissignificação do signo nos diferentes
contextos de enunciação), ele não deixa esta relação sinal/signo su
ficientemente bem resolvida no plano teórico. Isso, segundo nosso
ponto de vista, porque Voloshinov não consegue lidar com clareza
com a especificidade gramatical, negando-lhe pertinência num pon
to de seu texto e pressupondo-a em outro.
Embora alguns estudiosos da linguagem cheguem mesmo a
negar essa especificidade, parece-nos, de fato, impossível tratar a
linguagem verbal sem considerá-la. Podemos, é claro, criticar as in
suficiências dos modelos gramaticais existentes e até mesmo tentar
criar outros levando em conta o pressuposto de Voloshinov (i. e.,
de que o estudo não escolástico das formas linguísticas como tais
só se faz produtivamente no interior de uma teoria da enunciação).
Contudo, parece-nos que não podemos ignorar sua materialidade ou
dela escapar: ela, sem dúvida, constitui um dos incontornáveis do
objeto linguagem, no sentido heideggeriano do duplo incontornável
da ciência (ver Ensaios e conferências, p. 50-57 em particular).
O próprio Voloshinov não a ignora em seu quadro de refe
rência. Assim, ao discutir a significação do enunciado (cap. II-4 de
Marxismo e filosofia da linguagem), ele inclui as formas linguísticas
como parte inalienável do enunciado e a significação calculável nes
tas formas (que ele identifica como os aspectos semânticos que são
reiteráveis e sempre iguais em qualquer situação em que o enuncia
do ocorre) como parte inseparável da significação deste.
Em outrasp_alavras, o plano da sinalidade é parte constitutiva
~_plano da significação do enunciado. Assim,sua semântica com-
po~~aria necessariamente duas dimensões em estreita correlação: a
significação dada pela estrutura (reiterável e sempre igual) e a signi
ficaç~~~~dapela enunciação (o sempre mutável e adaptável)- ou
seja, o mesmo (sinal) que é sempre outro (signo).
Como formulação semântica geral, parece-nos uma diretriz
adequada: ela constitui, de fato, o núcleo de qualquer discussão per
tinente sobre a significação da linguagem. Ela antecipa, por várias
décadas, o desafio que continua a nos perseguir nas disciplinas da
significação, isto é, engendrar modelos semânticos capazes de sub
sumir esta correlação.
Apesar de, na discussão das bases de sua semântica, Voloshinov
não recusar pertinência à materialidade do linguístico como tal, ele
parece perder-se um pouco no tratamento dessa questão no capítulo
em que introduz a distinção sinal/signo (cap. II-2).
A discussão que se desenvolve neste ponto do livro deixa-nos a
forte impressão de que Voloshinov parece ter confundido o sistema
sincrõnico conforme definido pelo objetivismo abstrato com o (irre
cusável) aspecto estrutural da língua e, ao recusar um, acabou por
recusar o outro, criando para si mesmo um vácuo teórico: ele não
consegue falar do enunciado sem admitir que há nele uma face rei
terável (que ele chama de sinalidade); no entanto, não encontra ele
mentos para caracterizar sua natureza e termina por fazer a afirmação
claramente esdrúxula de que o componente de sinalidade existe na
língua, mas não como constituinte da língua como tal (p. 69). O que
poderia ser isso que existe na língua, mas não é constituinte dela?
Obviamente o fato de o elemento de sinalidade ser "dialeti-
'
camente eclipsado pela nova qualidade de signo" (p. 69) não lhe
tira a especificidade estrutural. Voloshinov parece ter confundido os
planos da sentença e do enunciado; e, ao recusar uma linguística de
sistema, não encontra uma alternativa para lidar com aquela especi
ficidade que fica mal situada em seu conceitual: o sinal - a forma
linguística com tal- é sem ser!
E
As origens das dificuldades de Voloshinov parecem estar em
sua clara filiação (embora crítica) à filosofia da linguagemde Hum
boldt. Ao apresentar e criticar as duas principais correntes do pen
samento linguístico de seu tempo (Parte li de Marxismo e filosofia
da linguagem), Voloshinov descarta radicalmente o objetivismo abs
trato, argumentando que o sistema sincrônico, pedra angular dessa
corrente, não tem objetividade - em direta oposição ao que sobre
isso afirmava Saussure no Curso de linguística geral (p. 23)- e é,
portanto, um erro persegui-lo.
Sua crítica ao subjetivismo individualista, contudo, é menos ra
dical. Ele não aceita seu compromisso de base com uma concepção
individualista do falante e de sua atividade linguística - isto é, o fato
de seus atos de dizer serem entendidos como expressões de uma cons
ciência puramente individual; ou, em outros termos, sua incapacidade
de compreender a natureza social do enunciado e da enunciação.
No entanto, Voloshinov considera corretos os outros pressu
postos de base da tradição humboldtiana (p. 93 e 94): tomar a enun
ciação como a realidade concreta da linguagem e não separar a forma
linguística de sua substância ideológica. Em outras palavras, ele se
filia a essa tradição (em oposição à tradição racionalista- em que
nada enxerga de correto), dando-lhe, porém, uma perspectiva socio
lógica. Suas cinco teses, apresentadas ao fim do capítulo 11-3, sinte
tizam esses dois posicionamentos: a linguagem é apresentada como
atividade (como energeia), mas seus princípios são caracterizados
como de natureza sociológica.
Ao filiar-se à tradição humboldtiana, Voloshinov, ao mesmo
tempo em que lhe dá um caráter novo (ao sociologizá-la), herda as
dificuldades daquele pensamento para tratar do gramatical propria
mente dito, na medida em que este é visto, naquela tradição, como
ponto de chegada e não como ponto de partida da linguagem, ou
seja, como um a posteriori e não como um a priori da atividade
o
p
linguística. Esta não é um mero produto de um sistema que lhe pre
existe (como a entende o racionalismo linguístico), mas o sistema
resulta da atividade elaboradora do espírito.
A obra de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) sobre a lingua
gem costuma ser apresentada como extensa e dificilmente suscetível
de sistematização. Ele era dono de uma erudição enciclopédica e de
uma paixão pelas línguas. Sua vida abastada lhe deu condições de
estudos, viagens e contatos contínuos com grande parte da intelec
tualidade européia de seu tempo. Era, portanto, um intelectual de
interesses múltiplos, o que, com certeza, contribuiu para uma pro
dução não facilmente sistematizável.
A esse respeito, é interessante reproduzir as palavras de E. Cassirer
(1874-1945) que, em seu livro A filosofia das formas simbólicas (1923),
muito se inspirou nas reflexões de Humboldt (e foi leitura de cabeceira
de Voloshinov que- segundo reporta Mika Lahteenmãki (2002, p. 193)
- havia inclusive iniciado uma tradução desse texto para o russo):
Essencialmente, Humboldt é um pensador sistemático, mas ele se mostra
hostil a toda e qualquer técnica de sistematização apenas exterior. Ocorre,
assim, que seu empenho em sempre apresentar em cada um dos pontos de
sua análise simultaneamente a totalidade de sua concepção da linguagem
resulta na ausência de uma distinção clara e inequívoca desta totalidade.
Os seus conceitos nunca são os produtos puros e livres da análise lógica;
neles, ao invés, vibra sempre uma tonalidade estética do sentimento, uma
atmosfera artística, que anima a exposição, mas, ao mesmo tempo, enco
bre a articulação e a estrutura das idéias. (p. 140-141)
Em outras palavras, Humboldt é antes de tudo um filósofo da
linguagem e não propriamente um linguista no sentido estrito do
termo: o que parece lhe interessar, antes de qualquer coisa, é o Ser
da linguagem e não a formulação de um método de análise de um
"objeto calculável". Daí, talvez, a suposta falta de senso de sistemati
zação que alguns lhe atribuíram.
Ao que se sabe, Humboldt estudou línguas extensamente: co
nheceu muitas das gramáticas de línguas ameríndias feitas pelos
m1sswnános; manteve contato epistolar permanente com pesqui
sadores de línguas indígenas da América do Norte; esteve no País
Basco para conhecer-lhe a língua; e, frequentando em Paris a École
des Langues Orientales Vivantes, entrou em contato com línguas da
Ásia (em especial, as semíticas, o chinês e a língua kawi, da ilha de
Java). A esta última, Humboldt destinou sua investigação de maior
porte, publicada postumamente em 1836, contendo uma introdução
de caráter mais geral, em que encontramos suas concepções sobre a
natureza da linguagem.
Para ele, linguagem e pensamento constituem uma unidade.
Nesse sentido, a língua não é entendida apenas como a manifesta
ção externa do pensamento (algo que vem depois do pensamento),
mas aquilo que o torna possível. Ela tem, nesse sentido, um caráter
constitutivo, viabilizando a elaboração conceitual e os atos criativos
da mente. É por isso que Humboldt afirma ser a língua um processo,
uma atividade (energeia) e não um produto (ergon).
Ela é, ao mesmo tempo, algo que permanece (o ergon acumula
do que cada geração recebe e que constitui, no seu conjunto, a visão
de mundo da nação, o espírito do povo - bem de acordo com o
ideário do pensamento romântico, do qual Humboldt foi um dos
formuladores) e algo transitório (porque é inerentemente energeia,
isto é, trabalho mental criativo contínuo, um verdadeiro ato artístico
que opera permanentemente sobre o ergon, reconfigurando-o).
É interessante destacar o grande fundamento semântico (e não
propriamente gramatical) da concepção de Humboldt: um elaborar
contínuo do intelecto (energeia) e o resultado desse processo, o acú
mulo histórico desse trabalho (ergon) -que constitui a cosmovisão
da nação, o espírito do povo.
Ora, Voloshinov incorpora essas duas facetas, sociologizando-as:
o elaborar contínuo é precisamente o jogo de significações sempre no
vas que se dão no processo de interação social - a linguagem como
uma energeía social. Já o ergon perde o caráter unitário de referência
a 'povo' ou 'nação' e se mostra socialmente estratificado em diferentes
índices sociais de valor, em diferentes horizontes sociais
não se trata mais de uma, mas de múltiplas cosmovisões.
Voltando ao pensamento de Humboldt, vale lembrar que, se,
de um lado, a diversidade das línguas o fascinava, ele acreditava que
por detrás dela havia uma única forma geral, um modo único de ser
- energeia:
Pois na linguagem a individualização de uma conformidade geral é
tão maravilhosa que podemos dizer com igual correção que a huma
nidade como um todo tem uma só língua e que cada ser humano tem
a sua própria (p. 53).
Em outras palavras, a capacidade de individualizar a forma ge
ral da linguagem (enquanto atividade constitutiva) é a mesma na
humanidade como um todo e em cada indivíduo em particular.
Desse modo, sua concepção universalizante não diz respeito a
uma gramática universal entendida como um sistema, mas como uma
dinâmica mental de elaboração da expressão. Num certo sentido, en
tão, Humboldt se aproxima da tradição universalizante que atravessa
os séculos e tem suas formulações bem conhecidas no século XX, mas
afasta-se de todas elas por conceber a língua não como um sistema
gramatical, mas como uma atividade mental sistemática de elabora
ção. Para ele, a gramática como tal (como um a priori) e a comunica
ção são absolutamente acessórias, vêm depois e nunca antes daquilo
que é o essencial, isto é, o trabalho elaborador do espírito.
Vale a pena, neste ponto, voltar ao texto de Cassirer e reproduzir
a súmula que ele faz do pensamento de Humboldt sobre esse tema
específico, trecho em que fica clara a indisposição geral da tradição
humboldtiana com a questão especificamente gramatical:
A fragmentação da linguagem em palavras e regras será sempre um
trabalho grosseiro e inútil da análise científica - poisa essência da
linguagem não reside jamais nestes elementos ressaltados pela abstra
ção e pela análise, mas tão somente no trabalho eternamente repetido
que realiza o espírito para tomar o som articulado capaz de expressar o
pensamento. Em cada língua, este trabalho tem início em determinados
pontos centrais, expandindo-se, a partir deles, para diversas direções
-e apesar disso, esta multiplicidade de processos criadores se funde
afinal, não na unidade objetiva de uma criação, mas na unidade ideal
de uma atividade que, em si, está subordinada a regras específicas. A
existência do espírito só pode ser concebida em atividade e como ativi
dade, e o mesmo é válido para cada existência particular que somente
é apreensível e possível através do espírito. Consequentemente, o que
denominamos de essência e forma da linguagem nada mais é do que o
elemento permanente e uniforme que podemos detectar, não em uma
coisa, mas no trabalho realizado pelo espírito para fazer o som articu
lado expressão de um pensamento (p. 146-147).
Este trabalho mental elaborador, com as mesmas propriedades
criativas, em Voloshinov- a contrapelo de toda a tradição hum
boldtiana - é social, isto é, resulta da internalização da lógica dos
signos, que é a lógica da interação socioaxiológica (como vimos em
detalhe no capítulo dois).
Assim, em sua perspectiva, o falante é social de ponta a ponta
("a única definição objetiva possível da consciência é sociológica", p.
13). Mas, ao mesmo tempo, ele é individual de ponta a ponta. Quer
dizer: o fato de seu psiquismo ser integralmente social não lhe tira
a individualidade, porque seu mundo mental não é uma realidade
estática, mas dinâmica (e, portanto, criativa- pressuposto funda
mental de Humboldt).
Essa dinamicidade mental decorre do fato de o psiquismo refle
tir a lógica da comunicação sociocultural, isto é, a lógica das relações
dialógicas, do encontro tenso (e até contraditório) das múltiplas lín
guas sociais. Também para Voloshinov, "a existência do espírito só
pode ser concebida em atividade e como atividade", mas seu móvel
é social e não puramente individual. Diz ele:
A consciência toma forma e vida no material semiótico criado, por
um grupo organizado, no processo de sua interação social. A consci
ência individual se alimenta de signos; ela retira deles seu desenvolvi-
mento; ela reflete sua lógica e leis. A lógica da consciência é a lógica
da comunicação socioideológica, da interação semiótica de um grupo
social (p. 13).
Em suma: Voloshinov adota a concepção de Humboldt de lin
guagem como atividade, mas muda radicalmente o eixo de sua ar
ticulação ao atribuir-lhe um caráter inerentemente social, em que
a interação, longe de ser acessória (como era para Humboldt), é
essencial. Desse modo, o trabalho elaborador mental contínuo não
precede a comunicação, embora seja a comunicação, ao alimentar
de signos a consciência e dar-lhe a lógica das relações dialógicas,
que o torna possível.
Voloshinov, ao sociologizar a concepção de Humboldt, recupe
ra o poder heurístico daquela filosofia e abre nova direção para os
estudos linguísticos que desejam enfocarque permanece viva entre nós.
Embora não se possa dizer que esta seja uma questão resolvi
da entre os estudiosos da linguagem, acreditamos não ser incorreto
afirmar que há certa crença, entre boa parte deles, de que tal divisão
de trabalho é pertinente (mesmo que não assumam, como axioma, o
caráter biológico do estrutural).
Por outro lado, não se pode esquecer que entre os que ad
mitem (e defendem) uma divisão de trabalho entre o estudo da
estrutura e o estudo das práticas de linguagem, há aqueles que
consideram ser o uso da linguagem incognoscível cientificamen
te. É o caso de Chomsky (2000), que sugere ter a linguagem na
tural apenas sintaxe (no sentido que o termo tem em sua teoria)
e pragmática (p. 132). Este último termo é usado aí num sentido
amplo, recobrindo as questões da língua em uso. Para ele, estas
questões estão fora do alcance do conhecimento científico, pelo
menos de uma ciência que ele classifica de naturalística (cap. 4) e
parecem antes constituir mistérios - que nunca serão resolvidos
pela mente humana (p. 133).
Bakhtin talvez concordasse em parte com Chomsky, se lembrar
mos que, para ele, o estudo das práticas de linguagem não é da alça
da das Naturwissenschaften, mas das Geisteswissenschaften. Ou, em
outros termos, o estudo das práticas de linguagem é tarefa de "uma
disciplina de interpretação e não de uma física de tipo novo". Con
tudo, Bakhtin certamente recusaria o pressuposto de que as práticas
de linguagem são incognoscíveis, já que ele chegou a propor uma
disciplina para estudá-las- a translinguística.
De todas as disciplinas linguísticas contemporâneas, é a análise
do discurso aquela da qual mais diretamente se aproximaria o proje
to de uma translinguística.
Não é fácil sintetizar em poucas linhas os projetos e pressu
postos da análise do discurso, particularmente se considerarmos a
diversidade teórica que aí encontramos. No entanto, parece correto
afirmar que uma teoria do discurso é fundamentalmente uma teoria
da significação do dizer, privilegiando aquilo que está aquém e além
da estrutura, isto é, o já dito (a memória discursiva) e os efeitos de
sentido do dizer em dada circunstância.
Ora, Bakhtin concebeu a translinguística precisamente para se
ocupar da enunciação e dos seus sentidos. Não lhe interessava, em
princípio, uma semântica da estrutura linguística em si (embora não
a descartasse), mas o estudo da significação do enunciar, em especial
dos efeitos de sentido das relações dialógicas.
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Por outro lado, a teoria do discurso assume hoje como pressu
posto de base (e explicitamente inspirado em Bakhtin) a heteroge
neidade constitutiva dos discursos e dos enunciados, o que implica
abandonar qualquer concepção homogênea de formação discursiva
e de enunciado. Os discursos constituem um emaranhado
seções enunciativas e e_~~ão dispersos por diferentes formaçõe~~s
~---·--~~----~~-·--~-----·~---·--h-> .--"'0 ~ --·~~~ --~~--- -----· '··- ----· ---·---- ----- "'"' ~ ---~--~--~~~- -~ '~=
enunciados emergem desse gce,(lnO heterog~neo e estão mais
nos explicitamente marcados pela heterogeneidade que os constitui.
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Nessa perspectiva, é interessante lembrar que Bakhtin elabo
rou um conceitual em que ~~~-e~ ~ociais não têm p_f()Qriamente
11m espaço interior: elas vivem nas fronteiras (são
2
portanto, hete-:
rogêneas), vivem em pontos de contínua tensão socioaxiológica, de
contínuas interanimações, contraditorie9-ad~s, entrecruzamentos e
reconfigurações.
Por outro lado, ao identificar enunciação e posicionamento axio
lógico, Bakhtin e o Círculo deram à teoria do discurso um interessante
viés para a apreensão dos fundamentos da heterogeneidade discursiva,
do processo de inscrição da história na língua e de sua dinâmica.
A proximidade da concepção bakhtiniana e da teoria contem
porânea do discurso fica bastante evidente quando observamos um
dos aproveitamentos heuristicamente mais produtivos do conceitual
de Bakhtin na área dos estudos linguísticos - as formulações de ] .
Authier-Revuz sobre a questão da heterogeneidade discursiva. Essas
formulações tiveram, conforme destaca G. Williams (p. 164), um
profundo impacto e influência nos desdobramentos e redesenhos da
teoria contemporânea do discurso.
Por fim, é interessante comentar que alguns analistas viram a filo
sofia do Círculo de Bakhtin como precursora da chamada pragmática
- entendida como o componente da análise linguística que, somado
à sintaxe e à semântica, foi proposto como necessário para se dar conta
de aspectos da significação que decorrem do uso da língua ou daquilo
que os falantes fazem contextualmente com seus enunciados.
Williams (p. 203-204) aproveita a argumentação de Boutet
(1994) rejeitar essa relação. Segundo ele, Boutet:
rejeita tal interpretação, afirmando que a ênfase de Bakhtin em anali
sar as formas gramaticais e discursivas em relação a situações sociais
concretas de enunciação e o modo como sua teoria semântica repousa
na tensão dinâmica entre o tema e o significado de uma enuncia
ção conduzem, em última análise, a uma crítica radical do empreen
dimento pragmático. Boutet afirma que nem consenso social, nem
negociação participam como princípios organizativos da interação
verbal nos trabalhos de Bakhtin. Ao contrário, a organização se assen
ta num princípio opositivo envolvendo a natureza contraditória da
atividade linguística e da interação.
Em outras palavras, embora Bakhtin se ocupe, como a pragmática,
com os fenômenos da língua situada, ele ultrapassa em muito os limites
desta disciplina porque não interessa a ele calcular as significações que
decorrem da relação de um enunciado com o contexto imediato de sua
enunciação ou com a intenção do falante (em outros termos, não lhe
interessa o significado do falante, no sentido que a pragmática deu a
esta expressão), mas as relações dialógicas entre enunciados- relações
de significação que não se reduzem aos contextos imediatos, mas se
constituem no encontro de diferentes vozes/ línguas sociais.
A FILOSOFIA DA LINGUAGEM DO CíRCULO
NUMA VISÃO DE CONJUNTO
Como dissemos anteriormente, Voloshinov e Bakhtin são os
dois membros do Círculo que mais extensamente discutiram o tema
da linguagem. Construíram em conjunto, na segunda metade da dé
cada de 1920, uma concepção de linguagem que- ampliada nos
textos e manuscritos de Bakhtin posteriores a 1930- singulariza o
Círculo no contexto da história das idéias linguísticas.
Nosso objetivo agora é, depois de ter destacado vários de seus
aspectos, apresentar essa concepção numa visão de conjunto, reite-
rando que estamos diante de uma reflexão geral de natureza filosófi
ca (uma formulação sobre o Ser da linguagem) e não de proposições
de natureza científica (formulação de método para análise um
"objeto calculável").
Podemos dizer que o Círculo parte da asserção de que a reali
dade fundamental da linguagem é o fenômeno social da interação
verbal (Marxismo e filosofia da linguagem, p. 94) .. li~2~~ s."entidg, .que seja", sendo o diá
logo face a face apenas um destes muitos tipos.
Por outro lado, os eventos interacionais- sejam aqueles das esfe
ras do cotidiano, sejam aqueles das esferas mais especializadas da cria
ção socioideológica - são sempre compreendidos como situados num
complexo quadro de relações socioculturais. Os eventos estão, portan
to, sempre correlacionados com a situação social mais imediata e com
o meio social mais amplo, ambos se entrecruzando em cada evento e
tendo aí papel condicionador dos atos de dizer e de sua significação.
Mais imE_orta11~~,p_orérr1, é lembrar .... _k ..•. ·--········
si q11e interessam, mas aquilo que neles acontece, isto é, as rela
ções dialógicas em sentido amplo, conforme çli§cutimos no capítulo
dois. Assim, o Círculo não se propõe reci11~!- a questão. do dizer à
esfera das relações interindividuais (com_() pres.s1Jpõe, por exerrrpl()_,_
uma abordagem etnometodológica) ou à esfera das relações sociais
o modo de interação ent~e grupos humanos (como
pressupõe a etnografia da comunicação). Seu foco efetivo de atenção
são as relações dialógicas, entendidas como relações de sentido que
decorrem da responsividade (da tomada de posição axiológica) ine
rente a todo e qualquer enunciado.
Os sujeitos que se envolvem nessas relações dialógicas não são
entes autônomos e pré-sociais, mas indivíduos socialmente organi
zados .. !~_§Q_§jggi:figt_cl.i~~:Lqueos suj~itos se definem como feixes de
re!_asêí.~S?.Qç:iais:_s:o!ls~ituem-se e vivem nestes feixes q11e são múlti
pJ.()§1.1l~!~J:'.iativos (envolvem-se em múltiplas dessas esferas da ativida
d~humana), são também seres que transitam por múltiplos gêneros
do discurso, isto é, realizam seu dizer por meio de diferentes gêneros
correlacionados às diferentes esferas da atividade.
Todo o dizer, por estar imbricado com a práxis humana (social
e histórica), está também saturado dos valores que emergem des
sa práxis. Essas diferentes "verdades sociais" (essas diferentes refra
ções do mundo) estão materializadas semioticamente e redundam
em diferentes vozes ou línguas sociais que caracterizam a realidade
da linguagem como profundamente estratificada (heteroglóssica) e
atravessada pelos contínuos embates entre essas vozes - a infinda
heteroglossia dialogizada.
Esta pode ser caracterizada como uma espécie de guerra de
discursos, em que estão em permanente tensão forças centrípetas
'~ u
(centralizadoras, monologizadoras, que tentam apagar ou submeter
a heteroglossia) e forças centrífugas (que resistem à monologização e
multiplicam a heteroglossia).
Os enunciados emergem nesse caldo heteroglóssico e nos pon
tos de tensão entre essas forças. Têm uma face ~erbalJo dito)e uma
face não verbal (o presumido - que amarra a significação do enun
ciado ao horizonte ~ocial amplo, ao aquém da estrutura).
Os enunciados manifestam-se fundamentalmente como uma
tomada de posição axiológica, como uma resposta ao já dito. Sua
significação comporta sempre esse estrato valorativo. Ela, portanto,
não é dada apenas pelo verbal (pela estrutura), mas também pela
correlação entre o verbal e os horizontes sociais de valor.
Por outro lado, ao ser dito, o enunciado espera uma resposta.
E, ao mesmo tempo, por ser heterogeneamente constituído (o enun
ciado de um contém enunciados ou fragmentos de enunciados de
outrem), está atravessado por uma dialogização interna (a bivoca
lização - nome que recobre os processos pelos quais mais de uma
voz e mais de um acento avaliativo ressoam no mesmo enunciado).
ÜS GÊNEROS DO DISCURSO
O atual uso inflacionado no Brasil - em especial no discurso
pedagógico posterior à reforma do ensino de 1996- da expressão
gêneros do discurso, tendo o texto de Bakhtin como referência, é o
que nos motiva a discutir em mais detalhes essa questão. Interessa
nos, particularmente, expor à crítica certa cristalização do conceito
em sua transposição pedagógica.
Não será demais começar por uma breve referência etimológica. A
palavra gênero remonta à base indoeuropéia * gen- que significa 'gerar',
'produzir'. Em latim, relaciona-se com esta base o substantivo genus,
generis (significando 'linhagem', 'estirpe', 'raça', 'povo', 'nação') e o ver
bo gigno, genui, genitum, gignere (significando 'gerar', 'criar', 'produzir',
'provir'), com o qual se relacionam palavras como genitor, ...,...;,.......,,,~~~;
Por curiosidade, vale registrar que a palavra germâni
(criança) remonta àquela mesma base etimológica.
Como se vê, esse segmento vocabular se desenvolve a partir
da semântica do processo de gerar (procriar) e dos produtos da
geração (da procriação). A utilização do termo gênero para desig
nar tipos de textos é uma extensão da noção de estirpe (linhagem)
para o mundo dos objetos literários e retóricos. Assim como as
pessoas podem ser reunidas em linhagens por consanguinidade,
o mesmo se pode fazer com os textos que têm certas característi
cas ou propriedades comuns. A noção de gênero serve, portanto,
como uma unidade de classificação: reunir entes diferentes com
base em traços comuns.
Parece que Platão foi o primeiro a falar de gêneros quando, no
livro IIl da República, divide a mimese (isto é, a representação lite
rária da vida) em três modalidades: a lírica, a épica e a dramática.
Aristóteles elaborou, na sequência, dois trabalhos importantes de
sistematização dos gêneros: na Arte retórica, propôs e estudou três
gêneros retóricos (o deliberativo, o judiciário e o epidítico); e, na
Arte poética, buscou tratar da produção poética em si mesma e de
seus diversos gêneros, explorando extensamente as propriedades da
tragédia e da epopéia (e, segundo se acredita, da comédia no livro li,
totalmente perdido). Esses dois trabalhos de Aristóteles foram refe
rências durante séculos na discussão dos gêneros.
É interessante observar que, na longa história da teoria dos gê
neros literários e retóricos, estes foram interpretados muito mais na
perspectiva dos produtos do que na dos processos (muito embora
- destaque-se - Aristóteles não separasse as formas de suas fun
ções e das respectivas atividades sociais em que ocorriam).
O foco de atenção eram as propriedades formais. Houve, in
clusive, em vários momentos, uma forte propensão reificadora e,
por consequência, normativa: as características formais dos gêneros
foram tomadas como propriedades fixas, como padrões inflexíveis.
Talvez aqui esteja uma das razões para certo abandono teoria
dos gêneros, principalmente a partir
estética clássica.
crítica do romantismo à
Fizeram parte do processo de construção da estética romântica
o questionamento do modelo do teatro clássico (o chamado modelo
das três unidades: espaço, tempo e personagem) e a percepção do
anacronismo da epopéia clássica. Nesse sentido, a estética romântica
pôs em xeque dois dos mais cultuados gêneros da teoria clássica. Ao
mesmo tempo, vivia-se o desenvolvimento do romance, gênero para
o qual as teorias tradicionais não forneciam qualquer subsídio analí
tico e que é ainda hoje motivo de muita polêmica. Pode-se dizer que
o romantismo abalou profundamente a teoria clássica dos gêneros e
pôs o tema gêneros numa permanente crise.
Em contraste com essa crítica, não deixa de ser surpreendente o
uso inflacionado dode Bakhtin,
é perceptível a existência de dois grandes projetos intelectuais. Da
parte de Bakhtin, parece haver, de início, a intenção de construir
uma "prima philosophía". Seus primeiros textos apontam nessa di
reção ao se dedicarem extensamente à crítica do que ele chama de
teoreticismo, isto é, as objetificações da historicidade vivida, obtidas
pelos processos de abstração típicos da razão teórica.
A interlocução maior, nesse caso, parece se dar, segundo tem
apontado a exegese daqueles textos, com problemas filosóficos formu
lados principalmente pela fenomenologia e por pensadores neokantia
nos. A estes, o Círculo tinha amplo acesso por meio do filósofo Matvei
I. Kagan, que se doutorara na Universidade de Marburgo (Alemanha)
- um dos centros do neokantismo -, onde foi aluno de Hermann
Cohen, uma das figuras emblemáticas daquele pensamento.
É preciso, porém, resistir à tentação de logo rotular Bakhtin como
um filósofo neokantiano. Considerando o todo de sua obra, um pou
co de cautela não fará mal. Como veremos em mais detalhes adiante,
Bakhtin, de fato, parece ter encarado como relevantes os problemas for
mulados por filósofos neokantianos (em especial a questão axiológica) e
aproveitou-os como fio condutor de suas próprias reflexões. Contudo,
Cf. Amorim (2001, p. 123, n. 162), para um comentário critico ao conceito de
polifonia de Ducrot face ao de Bakhtin.
manteve sempre uma postura crítica frente àqueles filósofos e, mais im
portante, avançou respostas bastante originais àqueles problemas, res
postas que dificilmente poderiam ser classificadas como neokantianas.
O segundo grande projeto intelectual de membros do Círculo,
claramente visível nos textos de Voloshinov e de Medvedev, publi
cados entre 1925 e 1930, era contribuir para a construção de uma
teoria marxista da chamada criação ideológica, ou seja, da produção
e dos produtos do "espírito" humano; ou, para usar um termo mais
corrente num certo vocabulário marxista, uma teoria das manifesta
ções da superestrutura.
Tratava-se de uma área em que havia um grande vazio teórico
no pensamento marxista e que acabou atraindo vários pensadores,
nas décadas de 1920 e 1930, tanto na Rússia, quanto no Ocidente.
As contribuições de Voloshinov e de Medvedev nessa direção
têm duas marcas bem distintas. Primeiro, a crítica sistemática que
ambos fizeram ao chamado marxismo vulgar, aquele que tenta dar
conta dos processos e produtos da criação ideológica por meio de
uma lógica determinista e mecanicista, segundo a qual uma relação
de causalidade simples, direta, unilinear e unidirecional entre a base
econômica e as manifestações superestruturais resolveria tudo, sim
plória e dogmaticamente.
Segundo, e certamente mais importante, o papel central que
eles deram à linguagem em suas formulações e as próprias pecu
liaridades da filosofia da linguagem que elaboraram. Nesse sentido
específico, pode-se dizer que o Círculo de Bakhtin trouxe uma con
tribuição original para aqueles debates, cujas implicações heurísticas
não foram ainda de todo exploradas.
PRIMA PHILOSOPHIA
Os primeiros textos de Bakhtin apontam para o objetivo do autor
de se envolver com a construção de uma reflexão filosófica ampla. Es-
tamos nos referindo principalmente aos dois textos que foram escritos
provavelmente no início da década de 1920 e que ficaram inacabados
- Para uma filosofia do ato e O autor e o na estética.
Vamos encontrar nestes primeiros textos um conjunto muito
denso e rico de reflexões, que, de uma forma ou de outra, atravessará
todos os escritos de Bakhtin até o fim de sua vida. No entanto, não
é objetivo deste livro apresentar e discutir essa temática específica
(ética e estética), por mais interessante e instigante que ela seja e por
mais provocadores que sejam os vários debates que ela tem motiva
do internacionalmente. Por si só, ela exigiria outro livro.
Apesar disso, no contexto desta apresentação da filosofia da lin
guagem do Círculo de Bakhtin, é importante dar atenção aqui a pelo
menos alguns aspectos daquelas reflexões iniciais em razão de sua
pertinência para a concepção de linguagem que o Círculo formulou.
Referimo-nos particularmente:
- à questão da unicidade e eventicidade do Ser;
-ao tema da contraposição eu/outro;
-e ao componente axiológico intrínseco ao existir humano.
Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, parte da asserção de que
existe um dualismo entre o mundo da teoria (isto é, o mundo do juízo
teórico, chamado, neste texto, de "mundo da cultura", o mundo em
que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elabora
ção teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético) e o mundo da
vida (isto é, o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de
seres históricos únicos que realizam atos únicos e irrepetíveis, o mundo
da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada).
Esse dois mundos, diz Bakhtin (p. 2), não se comunicam porque
o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo
mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que nele não
há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui
exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida.
Mais ainda: para Bakhtin, não é possível superar este dualismo
partindo do interior da cognição teórica. Essa superação só será alcan-
se subsumir a razão teórica na razão prática, entendida
--- -
esta como a razão que se orienta pelo evento único do ser e pela unici-
dade de seus atos efetivamente realizados; ou, em outras palavras, que
se orienta a partir do vivido, i.e., do interior do mundo da vida.
Esse posicionamento crítico frente à razão teórica, que abstrai o
ser humano de sua realidade concreta (deixando apenas um esque
leto de significado- p. 64), que constrói juízos em que eu não me
encontro, em que eu não existo, será uma das principais constantes
do pensamento do autor e do Círculo. O evento único e irrepetível
será sempre uma referência central nas suas elaborações filosóficas.
Deve ficar claro que essa crítica à razão teórica, ao teoreticismo,
não é uma negação da cognição teórica. Ao contrário: Bakhtin re
conhece sua validade; o que ele recusa é sua total desvinculação do
mundo da vida. Embora seu projeto seja
uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta da
experienciação do mundo regida por valores- não com uma funda
mentação analítica na cabeça, mas com aquele centro real, concreto
(tanto espacial quanto temporal) donde emergem ou brotam avalia
ções, asserções e atos e onde os membros constituintes são objetos
reais, interconectados por relações-eventos concretas no evento sin
gular do Ser (p. 61),
ele não esconde o desejo de reconciliar o mundo da cognição teórica
e o mundo da vida, conforme podemos ler à p. 49:
Todo o contexto infinito do conhecimento teórico humano possível
- a ciência - deve se tornar alguma coisa responsivamente conhe
cida [uznaníe] para mim como um único participante, e isso em nada
diminui ou distorce a verdade [ístína] autônoma do conhecimento
teórico, mas, pelo contrário, complementa-a até o ponto em que ela
se torna uma verdade [pravda] necessariamente válida.
Bakhtin, desde este seu primeiro texto, será um crítico contu
maz do racionalismo (p. 29-30), isto é, de um pensamento em que
interessa o universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento;
o sistema e jamais o ato individual; um pensamento que contrapõe o
objetivo (entendido como o único espaço da racionalidade, da com
preensão lógica) ao subjetivo, ao individual, ao singular (entendido
como o espaço do fortuito, do irredutível à compreensão lógica).
Incomoda-lhe a idéia de sistema em que não há espaço para o indi
vidual, o singular, o irrepetível, o evêntico.
No fim da vida, no texto inacabado Para uma epistemologia das
ciênciastermo nos últimos anos. A principal referência des
sa explosão tem sido o texto O problema dos gêneros do discurso, escrito
por Bakhtin possivelmente em 1952/1953. Trata-se de um texto inaca
bado, encontrado entre os papéis do autor e publicado na Rússia pela
primeira vez numa coletânea de material de seus arquivos em 1979.
É claramente um fragmento de texto, o que leva os estudiosos
a afirmar tratar-se provavelmente da parte inicial de um livro a que
o autor pretendia se dedicar, retomando com mais detalhes questões
levantadas brevemente naqueles textos do Círculo da segunda meta
de da década de 1920.
Bakhtin está discutindo, neste manuscrito, caminhos para um es
tudo da linguagem como atividade sociointeracional e aponta algumas
características da unidade deste estudo (o enunciado) em contraste
com a unidade tradicional dos estudos linguísticos (a sentença).
Este fragmento de texto está dividido em duas partes. Na pri
meira, faz-se uma introdução geral do tema, conceituando-se gêne
ro do discurso, distinguindo-se gêneros primários de secundários e
correlacionando-se estilo e gênero.
Na uma extensa discussão sobre o conceito de
enunciado, como unidade da comunicação socioverbal, em contraste
com o de sentença, como unidade da língua entendida como sistema
gramatical abstrato. Bakhtin está, nesta segunda parte, dialogando
criticamente (sem negar-lhe relevância) com a tradição dos estudos
linguísticos que se caracteriza por privilegiar o estudo sistêmico
(imanente) da linguagem verbal e ignorar ou simplificar a realidade
linguística enquanto interação social, enquanto práticas sociais de
linguagem. E defende novamente a necessidade de constituir duas
disciplinas - metodologicamente separadas, mas organicamente
combinadas - para o estudo da linguagem:
Mas estes dois pontos de vista sobre o mesmo fenômeno linguístico
específico não deveriam ser inacessíveis um ao outro e não deveriam
simplesmente ser substituídos um pelo outro mecanicamente. Eles
deveriam se combinar organicamente (mantendo, contudo, uma dis
tinção metodológica muito bem definida entre eles) com base na uni
dade real do fenômeno linguístico.(. .. )
Parece-nos que um estudo da natureza do enunciado e dos gê
neros do discurso é de fundamental importância para superar aquelas
noções simplistas sobre a vida do dizer, sobre o assim chamado fluxo
da fala, sobre a comunicação, e assim por diante- idéias que são ain
da correntes nos nossos estudos linguísticos. Além disso, um estudo do
enunciado como a unidade real da comunicação verbal tornará também
possível compreender mais adequadamente a natureza das unidades da
língua (como um sistema): as palavras e as sentenças. (p. 66-67)
Poderíamos nos perguntar, neste ponto, sobre o que diferencia
a teoria dos gêneros do Círculo de Bakhtin das teorias tradicionais,
inclusive para entendermos criticamente a apropriação pedagógica
epidêmica de seu conceitual nos últimos anos.
Uma característica daquela teoria é que, diferentemente de outras,
ela não pensa os gêneros em si (muito embora seja esta a perspectiva
dominante na apropriação pedagógica do conceito), isto é, como con
juntos de artefatos que partilham determinadas propriedades formais.
Qsgêneros não são enfocados apenas pelo viés estátiçp do l{IQdu
to (das formas), mas principalmente pelo viés dinâmiço cia pmduçãuo.
Isso significa dizer que a teoria do Círculo assevera axiomaticamente
uma e~treita correlação entre os tipos de enunciados(gêneros) e s11as
!~!!çS)es na interação sociover[>al;centre os tipos e o que fazemos C()lJl
eles i11teljgr de uma cl~t~I]Jlinada ativig~d~ social._
O ponto de partida de Bakhtin é a estipulação de um vínculo
orgânico entre a utilização da linguagem e a atividade humana. Para
ele, todas as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas
com a utilização da linguagem. E essa utilização efetua-se em forma
de enunciados que emanam de integrantes duma ou doutra esfera
da atividade humana.
Assim, se queremos estudar o dizer, temos sempre de nos reme
ter a uma ou outra esfera da atividade humana, porque não falamos
no vazio, não produzimos enunciados fora das múltiplas e variadas
esferas do agir humano. Nossos enunciados (orais ou escritos) têm~
ao contrário? conteúdo temático, organização composicional e estilo
próprios correlacionados às condições específicas e às finalidades de
;;d;~~fera de atividad(:.o
Em outros termos, o que é dito (o todo do enunciado) está
sempre relacionado ao tipo de atividade em que os participantes
estão envolvidos. Do mesmo modo, se queremos estudar qualquer
das inúmeras atividades humanas, temos de nos ocupar dos tipos
de dizer (dos gêneros do discurso) que emergem, se estabilizam e
evoluem no interior daquela atividade, porque eles constituem parte
intrínseca da mesma.
~mas sempre tem a memória do seu passado,
das suas origens. O gênero é um representante da memória criativa
no processo do desenvolvimento literário. Precisamente por isso, o
gênero é capaz de garantir a unidade e a ininterrupta continuidade de
seu desenvolvimento.
Desse modo, Bakhtin articula uma compreensão dos gêneros
que combina estabilidade e mudança; reiteração (à medida que as
pectos da atividade recorrem) e abertura para o novo (à medida que
aspectos da atividade mudam).
Ele lembra que há gêneros bastante estandardizados como cer
tos tipos de documentos oficiais, ordens militares, cumprimentos
e felicitações sociais. Contudo, mesmo estes admitem mudanças,
ou seja, estão abertos à adequação às condições concretas de uso.
Bakhtin salienta que esses gêneros altamente estandardizados acei
tam variações, mesmo que ligeiras, de matizes na entonação expres
siva; ou sobre eles podem intervir, por exemplo, o jogo das inflexões,
isto é, sua reacentuação pela mudança de esfera de atividade ou sua
hibridização (a mistura de gêneros pertencentes a esferas diferentes
ou à mesma esfera).
Caracterizando gênero pela estabilidade relativa (admitindo,
portanto, sua contínua mobilidade e mutabilidade), Bakhtin lança
as bases de uma teoria que abandona (por reconhecer sua impos
sibilidade) a tarefa tradicional de recortar tipos bem demarcados;
de estabelecer uma taxonomia rígida baseada em critérios formais
puramente sincrônicos.
É claro que essa nova perspectiva traz uma série de dificulda
des para a análise que precisarão ser adequadamente enfrentadas.
O próprio Bakhtin diz (p. 61), reconhecendo essas dificuldades: "A
extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente
dificuldade em determinar o caráter genérico do enunciado não de
vem ser minimizadas".
Contudo, ele não se propõe fixar o que se move, estancar o que
flui, nem estabelecer limites claros para aquilo que é necessariamente
impreciso, já que intrinsecamente vinculado à contingência das ativi
dades humanas. A imprecisão dos limites e fronteiras se reforça ainda
mais, no texto de Bakhtin, pelo destaque que ele dá, por exemplo, ao
fato de que os diferentes gêneros se hibridizam continuamente.
Isso tudo, no entanto, face a certas recorrências de elementos,
eventos e ações no interior de cada esfera da atividade, não impede
que se reconheçam similaridades e que se gerem tipos relativamente
estáveis de enunciados. De certo modo, a dinâmica da tipificação é
um processo socialmente construído de gerar significado, baseado
no reconhecimento de similaridades e analogias.
No fundo, a idéia da relativa estabilidade leva Bakhtin a an
tecipar toda uma discussão que se fará posteriormente na teoria
social de que as atividades humanas não são nem totalmente pre
visíveis por modelos pré-dados, nem totalmente casuais. As ativi
dades conhecem recorrência, mas também têm dimensões novas
em cada contingência. Para compreendê-las (e para envolver-se
nelas de modo significativo), é fundamental estabelecer contínuas
inter-relações entre o que recorre e a singularidade; entre o dado
e o novo; entre o arquivo e o acontecimento (evento); entre a me
mória e o momento.
Daí decorre outro aspecto importante dos gêneros do discurso:
como tipos relativamente estáveis do dizer no interior de uma esfera
da atividade humana, eles cump_!~~.~I1-ªisJ:>~I1s~yeis funções ~_ocig:
coçrnitivas. Pela sua estabilidade, eles são elementos organizadores
«;~..Q:,,.~,~-,"'-~·~·~---~··-•• -------~---~--•-~•~--·~,,,,~.ww,w~ ~ --- ---··--•--·~···"--'-••·---~---.~--·- '-
das ativi~aª-e~ __ ~;J?_()r_~sso, ()Iientam nossa participação e111 detei1lli-
nada esfera de atividade (eles balizam nosso entendimentodasações
dos outros, assim comosão referência para nossas própriasações):
Ao gerarem expectativas de como serão as ações, eles nos orien
tam diante do novo no interior dessas mesmas ações: auxiliam-nos
a tornar o novo familiar pelo reconhecimento de similaridades e, ao
mesmo tempo, por não terem fronteiras rígidas e precisas, permitem
que adaptemos sua forma às novas circunstâncias.
Nesse aspecto particular, é interessante lembrar que Medvedev,
em seu livro O método formal nos estudos literários (de 1928), de
lineia (cf. o capítulo 7) vários aspectos da discussão do Círculo so
bre gênero. Embora tratando especificamente dos gêneros literários,
Medvedev levanta questões quanto à relação gêneros/vida social/cog
nição que podem e devem ser estendidas ao estudo dos gêneros em
outras esferas da atividade humana.
Medvedev inicia seu argumento, criticando o pressuposto de
que os gêneros são apenas formas. Diz ele (p. 129):
Os formalistas geralmente definem gênero como determinado con
junto específico e constante de dispositivos com uma dominante
definida. Como os dispositivos básicos já tinham sido previamente
definidos, o gênero foi mecanicamente compreendido como sendo
composto desses dispositivos. Dessa forma, os formalistas não apre
enderam o significado real de gênero.
E qual seria o "significado real do gênero"? Precisamente a cor
relação entre formas e atividades. O gênero não deve ser abstraído da
esfera que o cria e usa; isto é, abstraído da atividade, de suas coorde
nadas de tempo-espaço, das relações entre os interlocutores. É nesse
sentido que Medvedev assevera que o enunciado que se materializa
no interior de um gênero é, antes de tudo, um ato sócio-histórico
("Ele ocupa uma posição entre pessoas socialmente organizadas de
alguma forma", p. 131).
Desse modo, os gêneros constituem agregados de meios de
orientação coletiva à frente da realidade; constituem, em outros ter-
mos, meios de conhecimento situado. São modos e meios sócio-his
tóricos de visualização e conceitualização da realidade ("O processo
de ver e conceitualizar a realidade não deve ser separado do processo
de corporificá-lo em formas de um gênero particular", p. 134) que,
incorporados pelas pessoas, funcionam como modos e meios de co
nhecer a realidade e nela orientar-se ("Pode-se dizer que a consciên
cia humana dispõe de uma série de gêneros internalizados para ver e
conceitualizar a realidade", p .134).
Por outro lado, novos modos de ver e conceitualizar a realidade
gerarão novos gêneros ou modificações nos gêneros existentes que,
por seu turno, nos permitirão ver a realidade de outro modo:
Novos modos de representação nos forçam a ver novos aspectos da
realidade visível, mas esses novos aspectos não conseguem clarear
nosso horizonte e entrar nele significativamente se estiverem faltando
os novos meios necessários para consolidá-los. Um é inseparável do
outro (p. 134).
Tanto para Medvedev quanto para Bakhtin, envolver-se em
determinada esfera da atividade implica desenvolver também um
domínio dos gêneros que lhe são peculiares. Em outr:él?_J2alayras,
às formas
típicas dos enunciados numa determinada atividade (falamos e escre
vemos em gêneros; eles orientam nosso dizer) e aprendemos a dizer
assimilando essas formas típicas no interior da mesma atividade.
Por fim, é necessário lembrar que Bakhtin, para iniciar o ba
lizamento do estudo dos gêneros, propõe uma primeira grande
classificação deles em primários e secundários. Os primeiros são os
gêneros da vida cotidiana (em geral, embora não exclusivamente,
orais). Constituem-se e se desenvolvem em circunstâncias de uma
comunicação verbal espontânea e estão em relação direta com seu
contexto mais imediato. Trata-se dos gêneros da conversa familiar,
das narrativas espontâneas, das atividades efêmeras do cotidiano.
Os segundos aparecem em circunstâncias de uma comunicação
cultural mais elaborada (em geral, mas não necessariamente, escri
ta). São os gêneros que se geram e se usam nas atividades científicas,
artísticas, políticas, filosóficas, jurídicas, religiosas, de educação for
mal e assim por diante.
É importante destacar, porém, que Bakhtin não entende esses dois
tipos de gêneros como duas realidades independentes, mas como inter
dependentes. Nesse sentido, vale reproduzir suas palavras (p. 62):
Durante o processo de sua formação, eles absorvem e digerem vá
rios gêneros primários (simples) que tomaram forma na comunica
ção verbal imediata. Esses gêneros primários se alteram e assumem
um caráter especial quando entram nos mais complexos. Perdem sua
relação imediata com a situação concreta e com os enunciados con
cretos dos outros. Apenas no plano do conteúdo do romance é que,
por exemplo, réplicas de um diálogo cotidiano ou cartas encontradas
nele retêm sua forma e sua significação cotidiana. Elas participam da
realidade concreta somente por meio do romance como um todo, isto
é, como um evento artístico-literário e não como um evento da vida
diária. O romance como um todo é um enunciado do mesmo modo
que o são as réplicas no diálogo cotidiano ou cartas íntimas (todos
têm realmente uma natureza comum), mas diferentemente destas, o
romance é um gênero secundário (complexo).
Além de destacar essa perspectiva não dicotômica, mas de inter
relação entre os dois grandes tipos de gêneros, é importante chamar
a atenção para o fato de que, em muitas de nossas atividades, há uma
passagem constante do plano secundário para o primário e deste para
aquele. Lembremos, por exemplo, de uma conferência no contexto
da educação acadêmica. Trata-se de um gênero secundário bastante
elaborado no correr da história das atividades acadêmicas, que tem
certas formas relativamente estáveis de acontecer, mas que se mescla,
durante sua ocorrência, com gêneros primários de vários tipos, como,
por exemplo, quando o expositor conta uma piada ou faz uma réplica
a uma observação espontânea de um ouvinte, e assim por diante.
Da mesma forma, é interessante observar que a atividade de um
camelô anunciando seu produto, que poderíamos classificar como
gênero primário por estar diretamente relacionada com a comuni
cação prática e espontânea do cotidiano, tem muitas vezes um ar
de conferência, o que pode servir de exemplo para o fato de que os
gêneros secundários também influenciam os primários.
Em síntese, cabe dizer que talvez a apropriação pedagógica da
noção de gênero do discurso de Bakhtin tivesse sido mais enriquece
clara do que cristalizadora, se suas reflexões tivessem sido entendidas
pelo seu caráter inerentemente dinâmico e não tivesse se resumido a
submetê-las a uma leitura apenas formal dos gêneros.
ESTILO
Como mencionamos acima, Bakhtin, ao discutir o conceito de
gênero do discurso, estabeleceu uma vinculação entre gênero e estilo.
É interessante, então, fazermos um breve comentário sobre algumas
das discussões sobre estilo que encontramos nos textos do Círculo,
em especial considerando o quase total esquecimento dos estudos
estilísticos no contexto dos estudos linguísticos mais recentes.
Não é difícil entender os porquês da marginalização desses es
tudos na segunda metade do século XX, se lembrarmos o domínio
hegemônico na linguística da perspectiva estrutural sincrônica. Nela
não há muito espaço - pelas próprias opções de saída (isto é, o
recorte saussuriano entre Zangue e parole e suas diferentes configura
ções posteriores)- para a ação do falante.
O pensamento sistêmico, em seus vários modelos, de certa for
ma, exclui o sujeito falante como elemento teórico pertinente; ou,
para aproveitar por extensão a metáfora do gene egoísta da biologia
(Dawkins), transforma-o no servo da estrutura egoísta (a langue).
A estilística - ao se definir como o estudo do estilo e ao en
tender, em boa parte de suas formulações, o estilo como o espaço
do uso individual da língua (na esteira do pensamento saussuriano);
ou como o espaço da expressão subjetiva criativa (na perspectiva do
idealismo linguístico) - só poderia ficar mesmo à margem da trilha
hegemônica da linguística oficial e, por consequência, receber até a
pecha de estudo sem efetiva dimensão científica. Restou-lhe, de certo
modo, contentar-se em ser colocada como a herdeira da velha retó
rica e em se ocupar com aspectos linguísticos de textos literários em
que, por suposição, está mais visível a individualização da língua.
Delimitando como objeto o estilo, entendido, grosso modo,
como o arranjo do dizer pelo falante, a estilística oscilou, desde seus
primeiros formuladores, entre dois pólos: ou o estilo é entendido
- na esteira do trabalho de Charles Bally - como a atualização in
dividual do sistema (e, nesse sentido, ele já está contido na langue);
ou o estilo é - na esteira do idealismo linguístico ( Croce, Vossler,
Spitzer)- a expressão criativa do psiquismo individuaL
Se no primeiro polo, o falante é devedor das propriedades ge
rais do sistema; no segundo, o indivíduo, ao manipular os elementos
linguísticos, é devedor de sua sensibilidade e criatividade psicoló-
gicas. De um temos, então, uma_~e~odologia que busca se
beneficiar do rigor formal das análises estruturais (achegando-se aos
fenômenos de estilo, tertdo como pano de fundo as potencialidades
do sistema); e, de ou_~r_o,"~ma 1ll~~um único espaço (o do sistema); de outro, o imbrica
menta, percebido por caminhos teóricos cada vez mais densos, de
variáveis geográficas, sociais, contextuais, históricas com variáveis
linguísticas vai esgarçando o ~~idealista (a quimera?) de re
duzir a expressão à atividade puramente individual.
Podemos afirmar que Bakhtin e seu Círculo estão entre os auto
res que melhor perceberam essa questão de fundo. Já na década de
1920, eles criticavam o idealismo linguístico por querer constituir o
psiquismo individual como a fonte de toda a língua, mostrando que
sem uma orientação social de caráter apreciativo (axioló~ico) Il~~CJQ~
atividade mental.
Ao mesmo tempo, mostravam que o co~ceito de sistema abs
trato de formas normativas (a Zangue saussuriana), se fecundo para
certos fins, era insuficiente para dar conta da enunciação e da signi
ficação linguística, realidades eminentemente sociais.
Em decorrência dessas críticas e da construção de outro modo
de conceber a linguagem (nem só sistema abstrato, nem só expressão
individual), Bakhtin e seu Círculo discutem extensamente, em dife
rentes trabalhos, temas ligados à estilística.
Isso, à primeira vista, poderia parecer paradoxal em estudiosos
que enfatizam as dimensões sociointeracionais da linguagem. Con
tudo, embora pensadores de persuasão sociológica, escapam, como
vimos no capítulo anterior, de um determinismo absoluto do social.
A riqueza de seu conceitual está em nos obrigar a pensar não por
dicotomias (o individual X o social) ou pelo hiperdimensionamento
de um dos pólos, mas por uma intrincada dinâmica em que todo
falante, sendo uma realidade sociossemiótica, é ao mesmo tempo
único, singular, e social de ponta a ponta.
Não há contradição nisso. E a chave que lhes permite unir, no
falante, a dimensão de ser único com a dimensão de ser inteiramente
social é, como destacamos anteriormente, a forma como encaram
a linguagem. Ao assumirem a linguagem como uma realidade so
cial infinitamente. estratificada, abrem espaço para o individual (e,
portanto, para estudos estilísticos). A singularidade vai poder se
materializar nos incontáveis e mesmo imprevisíveis contatos e in-
tersecções inúmeras vozes sociais que participam da constitui-
ção contínua do psiquismo e nele ressoam e se entrecruzam numa
espécie de moto perpétuo dialógico (cf. Evans).
É por esse caminho que poderemos entender a argumentação
daqueles autores segundo a qual a elaboração estilística da enuncia
ção é uma atividade de seleção, de escolha individual, mas de natu
reza sociológica, já que o estilo se constrói a partir de uma orientação
social de caráter apreciativo: as seleções e escolhas são, primordial
mente, tomadas de posição axiológicas frente à realidade linguística,
incluindo o vasto universo de vozes sociais.
Assim, se em Marxismo e filosofia da linguagem, Voloshinov
argumenta que a elaboração estilística da enunciação é de natureza
sociológica, é em textos como O discurso no romance e O problema
dos gêneros do discurso (de Bakhtin) e As fronteiras entre a poética
e a linguístíca e A estrutura do enunciado (de Voloshinov) que essa
questão adquire contornos mais precisos.
Ao articular sua teoria do romance, por exemplo, Bakhtin mos
tra como, diante desse gênero literário, a estilística tradicional- ao
compreender o estilo, "no espírito de Saussure: como uma indivi
dualização da língua geral (no sentido de um sistema de normas
linguísticas gerais)" - (O discurso no romance, p. 264); ou como
"expressão direta e espontânea da individualidade do autor" (p. 267)
-vive insuperáveis dilemas exatamente porque ignora a estratifica
ção infinita de cada uma das línguas humanas (a chamada hetero
glossia); e a respectiva (e também infinita) dialogização que atravessa
aquela estratificação.
É essa realidade multiforme e complexa que constitui a premissa
do gênero romanesco; e "qualquer estudo substancial sobre a vida
estilística da palavra deve começar deste fato fundamental" (p. 296).
Nesse sJntido,
A consciência linguística socioideológica concreta, quando se torna
criativa- isto é, quando ela se torna ativa como literatura- se des-
cobre já cercada pela heteroglossia e, de modo algum, por uma língua
única e unitária, inviolável e incontestável. A consciência hnguística
literariamente ativa em qualquer tempo e lugar (isto é, em todas as
épocas literárias historicamente acessíveis a nós) encontra uma plura
lidade de "línguas" e não uma língua. A consciência se acha inevitavel
mente face à necessidade de ter de escolher uma dentre elas (p. 295).
Essa noção de escolha no espectro da infinita estratificação so
cial da linguagem - que, em O discurso no romance, serve para
sustentar a tese do autor de que a singularidade fundamental da es
tilística romanesca está no tipo de combinação de linguagens sociais
e de sua dialogização- volta nos outros textos citados, adquirindo,
em cada um, novas nuanças.
Em O problema dos gêneros do discurso, por exemplo, a estrati
ficação social infinita da linguagem é cruzada pela noção de gênero
do discurso e assim se estabelece um vínculo indissolúvel entre esta
nova categoria estratificante e estilo. Em A estrutura do enunciado,
Voloshinov faz um breve exercício de análise estilística do romance
As almas mortas de Gogól a partir do efeito do contexto sobre as es
colhas de linguagem; ou, ainda, em As fronteiras entre a poética e a
linguística em que o mesmo Voloshinov discute extensamente o con
ceito de 'estilo individual', contrapondo sua concepção sociológica
ao psicologismo de Croce-Vossler-Spitzer (parte II) e ao formalismo
de V V Vinogradov (parte III).
DISCURSO REPORTADO
É compreensível que o fenômeno linguístico concreto mais
discutido nos textos de Bakhtin e Voloshinov seja precisamente o
discurso reportado, isto é, a presença explícita da palavra de outrem
nos enunciados.
Este interesse decorre da própria concepção de linguagem do
Círculo, que enfoca a realidade linguística social e a de cada falan-
te como fundamentalmente heterogênea. Desse modo, o tema do
discurso reportado (e da bivocalização) emerge naturalmente dos
destaques do Círculo à estratificação socioaxiológica da linguagem, à
heterogeneidade das vozes sociais (à heteroglossia) e a sua dialogiza
ção (à heteroglossia dialogizada), também aos efeitos disso "no pro
cesso de formação ideológica do indivíduo" (p. 342) -entendido
basicamente como um processo de absorção valorada da palavra de
outrem e "na representação artística da palavra de outrem" (p. 350),
em especial no discurso romanesco.
Bakhtin, em O discurso no romance, se mostra particularmente
fascinado pela onipresença, em forma aberta ou velada, da palavra
de outrem "nos enunciados de um indivíduo social" (p. 354), desde
a réplica do diálogo familiar até as grandes obras verboaxiológicas.
No interior de cada enunciado nesta vasta realidade linguística,
Está se dando uma interação intensa e um embate entre a palavra de
um e de outrem, um processo no qual elas se opõem mutuamente
ou se interanimam dialogicamente. O enunciado assim concebido é
um elemento consideravelmente mais complexo e dinâmico do que
quando entendido como simplesmente uma coisa que articula a in
tenção da pessoa que o pronuncia, caso em que se assume o enuncia
do como um veículo direto, univocal, da expressão (p. 354).
Ao mesmo tempo, Bakhtin notava que este fenômeno não tinha
sido ainda suficientemente estudado e apreciado em sua significa
ção: "Não houve ainda nenhuma apreensão filosófica abrangente de
todas as ramificações deste fato" (p. 355), isto é, do fato de que um
dos principais temas do dizer humano é o próprio dizer.
Anteriormente, Voloshinov dedicara toda a terceira parte de seu
livro à discussão do discurso reportado, deixando bem visíveis as
bases de compreensão deste fenômeno pelos membros do Círculo.
Uma das observaçõesprincipais desse texto é aquela que diz (p.
144) ser o discurso reportado tanto uma enunciação na enunciação
como uma enunciação sobre outra enunciação. Em outras palavras,
para Voloshinov, o discurso reportado não se esgota na citação, mas
deve ser considerado como um ato que revela também uma apreen
são valorada da palavra de outrem - o que nos remete novamente
a uma das proposições básicas do Círculo sobre a linguagem, qual
seja, sua estratificação socioaxiológica.
Assim, reportar não é fundamentalmente reproduzir, repetir;
é principalmente estabelecer uma relação ativa entre o discurso
que reporta e o discurso reportado; uma interação dinâmica dessas
duas dimensões.
É essa relação que constitui, segundo Voloshinov (p. 148), o
"objeto verdadeiro da pesquisa", porque o discurso reportante e o
reportado "só têm uma existência real, só se formam e vivem através
dessa inter-relação, e não de maneira isolada". Ou, em outras pala
vras, entre os dois discursos estabelecem-se relações dialógicas e eles
se formam e vivem nessas relações.
Assim, para Voloshinov, o erro dos pesquisadores que se ocu
param com as formas de transmissão do discurso de outrem é ter
sistematicamente divorciado o discurso reportado de seu contexto
de transmissão. Este contexto envolve não só as sequências verbais
que incluem o enunciado de outrem, mas também os fins específicos
com os quais se dá a transmissão (narrativa, processos legais, polêmi
cas científicas etc.); e, além disso, envolvem também a(s) terceira(s)
pessoa(s), isto é, a(s) pessoa(s) a quem se destinam as sequências bivo
calizadas, que condicionam, efetiva ou virtualmente, ajustes no dizer.
Voloshinov deixa claro que, na análise, não interessa apenas ob
servar esses elementos em si e reduzidos ao evento empírico de sua
ocorrência, mas principalmente tomar esse evento como indicador de
tendências básicas da recepção ativa do discurso de outrem em deter
minada formação social. Caberia, por exemplo, analisar nessa pers-
----------=~-------------···-------
pectiva as diferentes atitudes sociais frente aos mais div~~?52_s_~iscursos
~~~~o elas se expressam-~~~-~-;J;~de-repo~t.;";~~ discur~~s.-·-·-
Voloshinov lembra, nesse sentido, que há verdadeiras hierar
quias sociais de valor e que é importante levar sempre em conta a
posição que um discurso a ser reportado ocupa nessas hierarquias,
porque elas afetam as formas de transmissão admissíveis.
Aceita-se, por exemplo, atravessar um determinado discurso com
réplicas, comentários, polêmicas, isto é, admitem-se, na citação, os
diversos tipos do estilo que ele chama (p. 150) de pictórico- aquele
cuja característica principal é atenuar os contornos exteriores nítidos
da palavra de outrem? Ou, para usar a terminologia de Bakhtin, o
discurso reportante toma o discurso reportado como palavra inter
namente persuasiva? Ou só se aceita citá-lo mantendo a relativa in
tegridade da voz alheia, isto é, só se admitem as diferentes variantes
do estilo que Voloshinov chama de linear - aquele cuja tendência
principal é criar contornos nítidos à volta do discurso citado; aquele
que toma o discurso reportado como palavra de autoridade?
Há indícios de mudança nas hierarquias sociais, visíveis, por
exemplo, a partir da variação das formas de transmissão? Que efeitos
de sentido decorrem da inversão das hierarquias (quando admitida)?
Um bom exemplo para fechar estas considerações são as dife
rentes relações que nossa cultura mantém atualmente com o texto
bíblico. Enquanto no período medieval, este texto foi tomado como
palavra de autoridade, hoje há uma total ambivalência em relação a
ele. No contexto de organizações religiosas cristãs fundamentalistas,
o texto bíblico, assumido como a palavra de Deus revelada, ocupa
o ponto máximo de uma hierarquia positiva de valor. Nesse caso,
não se admite senão reportá-lo monoliticamente (em estilo linear,
portanto), preservando sua integridade.
Em outros contextos sociais, porém, o texto bíblico é recebi
do como um dentre muitos textos literários. Como tal, ele também
está, normalmente, numa hierarquia positiva de valor (como parte
do patrimônio literário da cultura), mas não mais tomado como pa
lavra de autoridade. Por isso, admite as mais diversas bivocalizações
e ocorre em citações diretas ou em paródias; em citações ironizadas
ou estilizadas; e assim por diante.
Para concluir nosso percurso pela filosofia da linguagem do
Círculo de Bakhtin, é importante relembrar que essa filosofia está
centrada no pressuposto básico de que a realidade da linguagem é
o fenômeno social da interação verbal, ou seja, a realidade da lin
guagem é a dinâmica da responsividade, das relações dialógicas em
sentido amplo.
O eixo da responsividade assim posto abre um rico horizonte
heurístico para discutir inúmeros temas do interesse da filosofia e
das ciências humanas e sociais, tais como as questões da identida
de, da subjetividade, da autoria, da intersubjetividade, da alteridade,
das práticas discursivas em geral e da criação literária em especial.
São questões que estão profundamente imbricadas e que foram
centrais durante todo o século XX. Num certo sentido, pode-se dizer
que foi o século XX que pôs essa temática definitivamente no centro
do palco, envolvendo o interesse e o trabalho dos mais diferentes
pensadores. Ela está em formulações religiosas e éticas como em Mar
tin Buber e Émmanuel Lévinas; na psicologia social de George Mead;
na teoria da cognição de Lev Vygotsky; na psicanálise de Jacques
Lacan; e em várias correntes filosóficas, bastando lembrar o existen
cialismo, oujürgen Habermas, ou Paul Ricoeur.
Pode-se dizer também que o Círculo de Bakhtin ofereceu, com
sua concepção de linguagem, uma contribuição bastante específica e
significativa àquele amplo movimento intelectual que problematiza
a questão da intersubjetividade e seus temas correlatos.
Essa grande questão não é, contudo, uma elaboração do sécu
lo XX. É preciso voltar ao final do século XVIII para encontrar as
primeiras menções à relevância da relação eu-tu para fazer face a
questões filosóficas para além da tradicional relação eu-ele (isto é, da
relação sujeito-objeto).
Nesse sentido, e se quisermos apreender numa perspectiva de
grande temporalidade a contribuição do pensamento do Círculo de
Bakhtin para essa temática, é preciso entendê-la tanto como parte
dos interesses intelectuais do século XX, quanto como parte de uma
tradição intelectual que começou nos fins do XVIII.
Estamos aproveitando, neste ponto, a distinção bakhtiniana en
tre uma perspectiva de pequena temporalidade e outra de grande tem
poralidade para a história do pensamento (cf. a questão discutida no
texto Resposta a uma pergunta do Conselho Editorial da 'Novy Mir').
Ao propor um estudo de grande temporalidade, o que se quer
é transcender um pouco a pequena temporalidade, a temporalidade
imediata e próxima das teorizações, e olhá-las como parte de uma
reflexão maior que, embora dispersa, difusa, heterogênea e não ne
cessariamente contínua, se estende no tempo, isto é, não começa
com as teorizações de hoje, nem nelas se esgota.
A interação e a linguagem na interação são fenômenos de alta
complexidade por envolverem múltiplos fatores em múltiplas rela
ções. Se alguns desses fatores e relações estão razoavelmente descri
tos (como, por exemplo, certas pressões da cena enunciativa sobre o
que e como se pode dizer nela), boa parte escapa ainda de uma apre
ensão mais consistente (e aqui podemos citar, entre outros exemplos,
o processo de aquisição da linguagem e os modos de interveniência
das formações do inconsciente no dizer e no agir dos interactantes).
É preciso, portanto, reconhecer, de início, que estamos ainda muito
distantes de uma apreensão teoricamente integrada desses fenôme
nos que envolvem múltiplos fatores em múltiplas relações.
Nessesentido, a interação e a linguagem na interação continuam
recobertas por aquilo que o filósofo Heidegger (Ensaios e conferên
cias, p. 54-55) chamava de duplo incontomdvel: não podemos, pela
sua relevância para a compreensão das questões humanas, escapar
de estudá-las (não podemos contomd-las no sentido de nos desviar
delas); e não dispomos de qualquer teoria capaz de contomd-las (no
sentido de traçar uma linha teórica que as contenha).
Pode-se dizer que a interação passou a ser objeto de estudo cien
tífico a partir do começo do século XX. Talvez se possa estabelecer a
obra do pensador pragmatista norte-americano George Herbert Mead
(1863-1931) como uma espécie de marco fundacional desse empre
endimento que começa na psicologia social e cria uma tradição que
se estende para a sociologia e para a antropologia norte-americanas. A
interação será tema básico da chamada etnometodologia (donde vão
emergir as diferentes vertentes da análise da conversa); e será tema bá
sico da etnografia da comunicação e da sociolinguística interacional.
Toda essa tradição nos tem mostrado, de um lado, como respon
demos constitutivamente às condições contextuais imediatas; e, de
outro, como práticas culturais recorrentes moldam nossas interações.
Se, pelas vicissitudes da vida acadêmica, essas duas grandes ver
tentes pouco se encontraram no passado, é cada vez mais clara a ne
cessidade de ir além do evento em si, mas sem perder sua dinâmica.
Há, por exemplo, o persistente problema da relação das dimen
sões do individual e das dimensões do social. Era já uma questão central
para George Mead, que almejava construir uma abordagem psicológica
que fosse uma alternativa quer aos defensores da introspecção como
único meio de acesso ao mundo interior, quer ao behaviorismo radi
cal de Watson, que recusava qualquer relevância ao mundo interior. A
saída de Mead foi definir o self como uma realidade intrinsecamente
social que se constrói no processo de interação sociossimbólica.
Ele recusava abordagens psicológicas que tivessem como fun
damento o primado do indivíduo, na medida em que este, por ser já
efeito da interação, não pode ser o ponto de partida das teorizações
e análises psicológicas.
Seu foco era, portanto, a construção do sujeito como efeito da
interação. Não há, propriamente, nele um estudo específico da lin
guagem na interação para além do reconhecimento do seu papel
constitutivo dos processos sociointeracionais e da construção do su
jeito. O que merece especial destaque em Mead é a sua concepção da
linguagem não como estrutura, mas como ação- ação intersubjeti
va que, como tal, se internaliza e se torna ação intrassubjetiva. Pro
cesso semelhante defenderá Vygotsky para fundamentar sua teoria
da cognição humana, isto é, a cognição vista como uma atividade
que se dá primeiro na interação e é internalizada, trazendo para o
interior o movimento do exterior.
Essas intrigantes semelhanças axiomáticas que emergem em di
ferentes pontos do tempo e do espaço, muitas vezes sem que seus
autores cheguem a se conhecer, devem servir para nós de indicado
res de caminhos heuristicamente produtivos, se entendermos que
as semelhanças não são meras coincidências, mas desvelam pontos
cruciais para o desdobramento do trabalho teórico.
Nesse sentido? parec~.quep(l área dos estudos da interação não
podemos fugir do axioma d~ que o intersubjetivo se toma intras
~~~j~~~V:?' isto é, de que o movimento externo se toma movimento
interno. A questão crucial é saber como se dá esse processo. Solu
ções integralmente deterministas não são satisfatórias. Parece que boa
parte dos teóricos interacionistas quer compreender a subjetividade
como emergindo do social, quer compreender a interação como con
dicionada por vários fatores, mas, ao mesmo tempo, não quer perder
nem as singularidades da subjetividade, nem o novo, o inusitado, o
imprevisível, o inesperado dos eventos de interação. Ou seja, nem o
primado do indivíduo, nem o determinismo absoluto da estrutura.
George Mead, por exemplo, tentou fundamentar esse não-de
terminismo por meio de duas grandes coordenadas. Primeiro, as
sumindo que o social nunca é um dado homogêneo, mas sempre
heterogêneo. O social contém uma multiplicidade daquilo que ele
chama de "outros generalizados" (que poderíamos entender como
conjuntos de .~ç()e_s~r~PE~sentações, valpres_e atituc1es que circulam
numa determinada sociedade; ou, em outra terminologia, o conjun
to dos pré-construídos sócio-históricos).
Desse modo, nenhum sujeito fica confinado nos limites de um
único "outro generalizado", mas emerge de relações simultâneas ou
consecutivas com vários "outros generalizados", muitos deles opos
tos entre si, contraditórios, conflitivos. Essa realidade sempre hete
rogênea e cheia de contradições gera desequilíbrios e tensões que
inviabilizam qualquer fechamento determinista mecânico dos pro
cessos interacionais e de seus efeitos.
Por outro lado, o caráter dinâmico (ativo e não-mecânico) do
mundo interior também restringe o determinismo, na medida em que,
a partir da contínua polarização entre o "me" e o "eu" (nos termos de
Mead), geram-se respostas singulares e não totalmente previsíveis.
Em suma, a heterogeneidade e a contradição são os motores da
relação externo/interno e da dinâmica do interno.
O "me" é o "eu social", isto é, o resultado da internalização do
conjunto de atitudes e dizeres dos outros em relação ao self (o que
sou para os outros); o "eu" é a resposta ativa ao "me", isto é, o "eu" re
sulta do processo intrapsíquico ativo pelo qual cada um se subjetiviza
(se singulariza) respondendo às estruturas semioticizadas do "me".
Em outras palavras, podemos dizer que na complexa viagem de
nossa individualização, somos instados a responder ao "eu social" in
ternalizado, mas, tendo de lidar com a heterogeneidade e seus con
flitos - cada resposta vai ter necessariamente um caráter específico,
portanto, imprevisível.
Formulação muito parecida encontramos em Bakhtin. Ao que
se saiba, Bakhtin não chegou a conhecer a obra de Mead. Novamen
te, as semelhanças não podem, porém, ser vistas como meras coin
cidências, na medida em que, no fundo, revelam problemas cruciais
da área dos estudos da interação. Diz ele em O discurso romanesco:
"O vir a ser axiológico de um ser humano é o processo de assimilar
seletivamente as palavras alheias" (p. 341). Ou, em outra formula
ção, "deve-se ter em conta também a importância psicológica em
nossas vidas do que os outros dizem sobre nós e a importância, para
nós, da compreensão e interpretação dessas palavras alheias (a 'her
menêutica viva')" (p. 338), ou seja, o produto do meu processamen
to do dizer, do interagir dos "outros generalizados".
Também aqui há o reconhecimento do papel constitutivo do
que os outros dizem de nós e o papel ativo do psiquismo no pro
cessamento desse dizer. Embora não haja um detalhamento desse
processo psíquico - o que transcendia os interesses imediatos da
quele autor-, é importante deixar em destaque, para não perder de
vista a complexidade do psíquico, o pressuposto de que o psiquismo
tem - mesmo imerso na dinâmica da interação e dela emergindo
- uma autonomia e uma ação própria.
E acrescentemos: essa autonomia e ação própria se realizam
atravessadas também pela condição de seres desejantes, dimensão
trazida para o debate pelas vertentes psicanalíticas e não considera
da, no plano teórico, nem por Mead, nem por Bakhtin; e, aliás, tra
dicionalmente desconsiderada pelos estudos interacionais em geral,
quando não banalizada ou barbarizada.
Se detalhamos um pouco a perspectiva de George Mead, é por
que ela parece conter alguns dos problemas fundamentais dos estu
dos científicos que se realizarão adiante no século XX e que ainda
constituem, muitos deles, problemas não suficientemente equacio
nados. Vamos dar atenção aqui a doispontos em particular.
Um primeiro diz respeito ao fato de que a linguagem, na intera
ção, tem de ser tratada necessária e primordialmente como atividade
e não como estrutura. No entanto, permanece entre nós o problema
de como construir uma teoria que equacione estrutura e atividade;
que case adequadamente, por exemplo, sentença e enunciado ou
sentença/enunciado/enunciação.
Nesse caso, cabe perguntar: é suficiente pensar a atividade ver
bal na interação como apenas um processo de atualização do sistema
(como pressupõem tradicionalmente as linguísticas formais)? Ou as
especificidades da atividade (as chamadas pressões da interação, o
caráter aparentemente teleológico da atividade verbal) se inscrevem
na estrutura (como pressupõem as linguísticas
pelo menos, as teses da Escola de Praga)?
Se a resposta aqui for positiva, como se dá essa inscrição? A ati
vidade é mero epifenômeno da ordem da língua ou a ordem da lín
gua é epifenômeno das funções interacionais que ela cumpre? Ou há
ainda outras dimensões a serem aqui consideradas? Os interactantes
são meros usuários de uma língua pré-dada ou eles, quando em ação
conjunta (interação), também agem com e sobre a língua? A língua
é apenas um conjunto de signos (um produto) ou é um processo
de contínua diferenciação? (Nesse sentido, que leitura de Saussure
devemos privilegiar: a língua como um tesouro ou a língua como o
jogo contínuo das diferenças?)
Ou, para além da problemática sentença/enunciado, a linguagem
como atividade é melhor tratada a partir de macroestruturas? Quais
são elas? E como essas macroestruturas (os gêneros do discurso, por
exemplo) condicionam a não-aleatoriedade das sequências verbais aí
construídas ou coconstruídas (assumindo, como se tem feito e como
parece inevitável, o caráter não aleatório dessas sequências)?
Parece óbvia a importância de todas essas questões. No entanto,
não parece existir ainda uma sintaxe, micro ou macro, que responda
com adequação e abrangência às demandas de uma perspectiva que
pense a linguagem primordialmente como atividade, como interação.
É comum se ler, em textos interacionistas, a declaração de prin
cípio de que, sem se descuidar da questão estrutural, a ênfase esta
rá nos processos verbointeracionais. No entanto, o silêncio sobre a
questão estrutural é claro sinal de um problema que nos acompanha,
como dissemos antes, pelo menos desde que Humboldt formulou,
no início do século XIX, sua idéia da língua como atividade (embora
não primordialmente como interação).
Por ora, parece não haver nenhuma saída para a tradicional di
visão do trabalho: estrutura lá, atividade cá. A primeira como objeto
uma linguística stricto sensu e a segunda, pelo enorme
conjunto de fatores envolvidos, visualizada como objeto de um con
sórcio de disciplinas (para nos mantermos nas coordenadas heurísti
cas de Saussure sobre esta questão- cf. introdução, cap. IV, p. 2 7 do
Curso de línguística geral).
Se não há no horizonte uma teorização que nos forneça as bases
para pensar o estrutural a partir da atividade (o estrutural como ponto
de chegada e não como ponto de partida, como pleiteava programati
camente Voloshinov, p. 96), lemos, com certo espanto, num Chornsky
mais recente (2000, p. 132), a asserção de que a estrutura (a sintaxe) é
cientificamente cognoscível, mas a atividade, face à sua heterogeneidade,
complexidade e imprevisibilidade, não o é: constitui antes um conjunto
de mistérios que nunca serão resolvidos pela mente humana (p. 133).
Essa posição rompe com o que tem sido uma espécie de senso
comum entre os linguistas estruturais, que tradicionalmente defen
dem o primado da estrutura, mas não excluem do escopo da ciência
a atividade, mesmo que a atribuam como objeto a um consórcio de
disciplinas científicas.
Pela última formulação chomskiana, desaparece a divisão do tra
balho. Não na direção de uma teoria integrada, mas pela exclusão do
escopo da ciência daquilo que ele chama de pragmática. Se antes, dis
putávamos a direção da flecha (se da estrutura para a atividade ou se
da atividade para a estrutura), hoje temos de lidar com este tertius que
coloca sob suspeita nossas crenças de que, ao lidarmos com a interação
e com a linguagem na interação, estamos fazendo ciência. Um desafio
que nos perseguirá, no futuro imediato, será, portanto, debater e des
lindar essa questão: fazemos ciência ou estamos lidando com um con
junto de mistérios que nunca serão resolvidos pela mente humana?
Um segundo ponto que gostaríamos de voltar a pautar aqui é
o fato de que as teorizações sobre linguagem e interação enfrentam
(como Mead e tantos outros pesquisadores enfrentaram) o proble
ma de como relacionar o social e o individual. Passado um século
de investigações e teorizações, o desafio heurístico continua sendo,
em grande parte, o de relacionar dinamicamente estes dois pólos
tradicionais nas ciências sociais, evitando a todo custo reduzir esse
problema a uma dicotomia.
A crítica de quase dois séculos às filosofias individualistas, idea
listas do sujeito já deveria ser suficiente para assentarmos, em qual
quer estudo da interação e da linguagem na interação, um princípio
geral de que não se pode dar ao indivíduo a primazia sobre os "ou
tros generalizados" e sobre as relações sociais, o que não significa (e
aqui mora o grande desafio) deixar a singularidade desaparecer num
caldo integralmente determinista.
Em outras palavras, não reduzir a interação a encontros for
tuitos de mônadas autossuficientes; nem assujeitar os interactantes
às estruturas, de modo a tornar incompreensível o inusitado, o im
previsível e a resposta criativa. Não ignorar o que se passa local
mente nos eventos interacionais (cuja relevância ficou visível pelas
análises de fundo etnometodológico), mas não reduzir a interação ao
exclusivamente local. Para isso, não perder, por exemplo, as lições
das investigações antropológicas que nos apontam a relevância dos
repertórios, sempre heterogêneos, de práticas culturais como condi
cionantes dos eventos interacionais. E, ainda mais, não perder igual
mente as lições de certa tradição européia de estudos discursivos de
que a interpelação dos interactantes não se faz só pelo local ou pelas
práticas culturais, mas também pelas estruturas do inconsciente e
pelos pré-construídos histórico-axiológicos que condicionam o que
pode ou não ser dito, o que deve ou não ser dito e fazem nosso dizer
significar pela memória discursiva que nele ressoa.
O desafio é como não perder toda essa complexidade e como
não se perder nela: não dar primazia ao local, mas não ignorá-lo; não
recusar o pré-dado cultural e historicamente construído, mas não in
vocá-lo deterministicamente; não ignorar o poder interveniente das
formações do inconsciente, mas não entregar-se a uma psicanálise
selvagem; não desconsiderar as teias do interdiscurso, mas não se
satisfazer com paráfrases ingênuas ou condenações inquisitoriais.
Nesse ponto específico, parece que estamos em melhor situação
teórica para o estabelecimento de um princípio geral do que no caso
da face estrutural. É muito difícil hoje, considerando a crítica de mais
de um século às filosofias idealistas, individualistas do sujeito, susten
tar uma concepção teórica que assuma o indivíduo como axioma.
O caminho para incorporar uma concepção relacional de base
está traçado, e as melhores soluções, reforçadas por variadas reflexões
filosóficas, colocam a linguagem como pedra angular do edifício, desde
que, obviamente, não a tomemos como uma realidade homogênea.
Nesse sentido, é bastante engenhosa (e heuristicamente pode
rosa) a formulação que Bakhtin e seu Círculo deram a essa questão.
Eles propuseram - com base em sua concepção da linguagem como
interação social e em sua concepção sociossemiótica da consciência
-uma articulação entre o individual e o social de naturezanão-di
cotômica e, ao mesmo tempo, não-determinista e não-idealista.
Segundo eles, como vimos no capítulo dois, são os signos que
constituem o alimento da consciência, isto é, a consciência individu
al toma forma e existência à medida que interioriza os signos sociais.
Nesse processo, ela não só os absorve como tais, mas absorve prin
cipalmente sua lógica.
Esta lógica é precisamente aquela da interação socioaxiológica,
isto é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogiza
do. É essa dinâmica social, que, internalizada, desencadeia o moto
contínuo (a autonomia) da atividade psíquica.
Por isso tudo, pode-se dizer que, para o Círculo de Bakhtin, a
consciência é social de ponta a ponta (a origem do seu alimento e
da sua lógica é externa - a heteroglossia dialogizada) e singular de
ponta a ponta (os modos como cada consciência responde às suas
condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um
evento único do Ser).
Em outras palavras, é a linguagem que funda, para Bakhtin e
seu Círculo, a articulação social/individual. Sua materialidade per-
mite uma abordagem não-ideahsta da consciência; sua heterogenei
dade, uma abordagem não-determinista; e sua dinâmica
é o ponto de convergência do individual e do social.
A INTERAÇÃO COMO TEMA FILOSÓFICO
Antes de ser um objeto de análise científica, a interação foi tema
da reflexão filosófica já desde o século XVIII. Essa reflexão emerge
como parte de um movimento que, entre outras motivações, buscava
saídas para os percalços e embaraços trazidos por concepções solipsis
tas do sujeito - do sujeito que se autodefine, que reconhece sua exis
tência por si e a partir de si, que é senhor do próprio conhecimento.
Para entender melhor a pertinência e a conjuntura da entrada
em cena da relação eu-tu, é preciso lembrar, primeiramente, que o
indivíduo (empírico ou, primordialmente na filosofia, transcenden
tal), já desde o século XVI, é o grande elemento axiomático do pen
samento moderno. Dele se deduz todo o resto.
Um dos grandes emblemas dessa perspectiva é, certamente, o
sujeito do cogito, o sujeito transparente a si mesmo no ato imediato
de refletir sobre si e de dar fundamento à sua atividade cognitiva.
Para além do sujeito, a relação que importa é a do sujeito com o ob
jeto (a relação eu-ele), a relação cognitiva em si do indivíduo.
A se confiar na leitura que Robert G. Solomon (1983) faz desse
período, pode-se dizer que, da história da filosofia moderna - de
Descartes e Locke a Kant- os outros (i.e., os tus) estão silenciosa
mente ausentes. E, excluindo as inúmeras diferenças existentes entre
as várias formulações desse modo de pensar, poderíamos ir adiante
e dizer que essa linhagem de pensamento continua forte ainda hoje
- apesar de todas as sucessivas críticas - como o substrato orga
nizador de importantes reflexões, seja na filosofia, seja na ciência,
sobre a subjetividade, a cognição e a linguagem, para ficar apenas
em algumas áreas.
A outra linhagem - aquela que vai, aos poucos, assumir a in
tersubjetividade como axiomática e, por isso, vai fazer crescer a idéia
de que é impossível pensar o ser humano fora das relações com
0
outro e vai pôr em xeque o primado do eu- emerge no contexto da
filos~fia alemã do século XVIII, o que é um tanto quanto paradoxal,
considerando que para os filósofos desse período o eu é ainda
0
nú
cleo estruturador do seu entendimento das questões humanas.
Trata-se, contudo, de um momento particularmente interessante
da h~stória moderna que tem seus impactos sobre os modos de pen
sar. E o período em que as principais sociedades européias começam
a sentir agudamente os efeitos de um grande ciclo de mudanças: os
efeitos socioeconômicos da Revolução Industrial e os efeitos políticos
da Revolução Inglesa e da Revolução Francesa (R. Williams, 1958).
No primeiro caso, o novo modo de organizar a produção e 0
trabalho, com suas consequências, como a urbanização intensa e
o ~edesenho das sociedades até então fundamentalmente agrárias,
va1 tornar o trabalho (o agir transformador humano), por exemplo,
tema de reflexão filosófica sistemática.
No segundo caso, a percepção de que havia possibilidades con
cretas de o agir humano coletivo redundar em significativas mudanças
na organização política da sociedade começa a corroer uma perspecti
va solipsista de compreensão do pensamento e da ação humana.
Desse modo, a dinâmica da história vai forçando um redire
cion~mento das elaborações intelectuais. Nesse longo processo, foi
prec1so compreender, primeiro, que o si não existe sem 0 outro, isto
é, foi preciso compreender o primado constitutivo das relações e da
alteridade. E, depois, foi preciso colocar a linguagem como constitu
tiva dessas relações.
Para o primeiro momento, é fundante a elaboração de Hegel
em Fenomenologia do espírito (1807), texto em que se delineiam as
coordenadas da dialética do reconhecimento, em que 0 eu só apare
ce como presença de si para si mesmo pela mediação do outro: "A
consciência de si é em si e para si quando e porque é em si e para si
para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido" 126)
Essa formulação específica é apenas um degrau do grande edifício
que Hegel constrói na Fenomenologia, mas tem sido intertexto, marca
do ou não, de várias formulações posteriores, inclusive as de Bakhtin.
Antes de Hegel, o filósofo Friedrichjacobi (1743-1819) parece ter
sido o primeiro a reclamar, explicitamente, a paternidade do tema da
intersubjetividade. No prefácio à edição de 1815 da obra David Hume
über dm Glaubm, em nota de rodapé, Jacobi (1994:554) declara ter
sido o primeiro a proclamar inequivocamente, em sua obra sobre Spi
noza (publicada 1785, com uma nova e ampliada edição em 1789), a
proposição "O eu é impossível sem o tu" ("Kein du, kein ich").
Contudo, a proposição de Jacobi estava ligada a uma temática
teísta e emergiu no contexto de sua crítica à concepção de Spinoza
de um Deus transcendental que, contrária a todas as representações
antropomórficas de Deus, terminava por identificá-lo com a Nature
za (o seu famoso dito Deus sive Natura).
Ora, para Jacobi, essa argumentação era inteiramente inaceitá
vel. Para ele (fiel a sua formação pietista, atitude religiosa que defen
de que nada se interpõe entre Deus e o crente; que entre eles há uma
relação direta de sentimento e não de pensamento conceitual), Deus
tem de ser um outro; ele não pode ser uma substância indistinta na
Natureza, nem apenas um conceito ou um valor abstrato, mas é um
ser transcendente, uma personalidade real ("Eu acredito numa causa
inteligente e pessoal do mundo." -Jacobi 1946, p. 111) que, ao se
dar a conhecer a nós pela experienciação de um sentimento anterior
e acima da razão, também determina a individuação do eu. Em ou
tros termos, é só na relação com o tu que o eu pode se perceber como
distinto. Vale aqui também o dito anterior de Jacobi de que o eu é
impossível sem o tu. Em outras palavras, parajacobi não pode haver
um eu exceto em referência a um tu que o transcenda.
Essa questão será retomada pelo filósofo Ludwig Feuerbach
(1804-1872). Suas referências a uma razão intersubjetiva são bas-
tante dispersas. No entanto, há um trecho, em
de 1866, que é suficiente para mostrar a direção
de seu pensamento. Dizia ele:
Certamente que o idealismo sabe( ... ) que sem tu não há eu, mas este
ponto de vista no qual há um eu e um tu, é para ele apenas o empírico,
não o transcendental, quer dizer, verdadeiro, não é o primeiro e origi
nário, mas um ponto de vista subordinado, que é válido para a vida,
mas não para a especulação (Gesammelte Werke, vol. 11, p. 176).
Fica claro, por este trecho, que para Feuerbach o intersubjetivo
tem um papel constitutivo ("transcendental, primeiro, originário") e não
apenas subordinado. Ele elevou a interação ao estatuto de dimensão a
príori, condição transcendentalda existência. Desse modo, ele substi
tuiu a razão autossuficiente por uma razão relacional e a subjetividade
isolada pela subjetividade relacional, efeito da relação intersubjetiva.
Na sequência, vamos encontrar, nesta linhagem filosófica, Mar
tin Buber (1878-1965), que, explicitamente inspirado em Feuerba
ch, escreveu seu influente livro de 1923 Ich und Du (Eu e tu, na
tradução brasileira).
Buber identifica (em Buber 1948) Feuerbach, a par de Jacobi,
como pai do princípio da intersubjetividade. Foi ele, segundo Buber,
que retirou o fundamento teísta da formulação de Jacobi e deu-lhe
um fundamento inter-humano. Com isso, pôde estatuir também a
intersubjetividade como um a príori para uma nova filosofia, isto
é, uma filosofia capaz de superar o solipsismo tradicional. Nesse
sentido, Buber considerava a obra de Feuerbach como um segun
do recomeço do pensamento moderno depois da descoberta do eu
pelo idealismo. Nesse sentido, havia nas formulações de Feuerbach,
segundo Buber, um evento copernicano.
Buber aprofunda essa perspectiva, construindo em seu livro
uma espécie de ontologia da relação (resumida em seu slogan de
sabor bíblico: "No princípio, é a relação"), uma ontologia da inter
relação como o modo humano de existência e, por consequência,
uma ética do inter-humano.
.:)
2
::l
A alteridade precede e é constitutiva da identidade, da ipseida
de ("Ich werde am Du"- "Me tomo na relação com o Tu"). Devo à
presença do Tu minhas possibilidades existenciais. Toda e qualquer
função psíquica só se desenvolve, bem ou mal, na presença do outro.
Ser reconhecido é a pedra angular da construção do Eu: ser visto,
reconhecido, respeitado.
Do caráter constitutivo, estruturante da inter-relação decorrem
os fundamentos de uma ética do inter-humano. O Tu tem o dever
de reconhecer o Eu (como dirá Bakhtin, mais tarde- no seu texto
Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, de 1961-, "A morte
absoluta - o não-ser - é o estado de não ser ouvido, de não ser
reconhecido, de não ser lembrado. Ser significa ser para um outro, e
por meio do outro, ser para si mesmo."- p. 287).
Por outro lado, o Eu tem o dever de reconhecer o Tu, o que signi
fica, fundamentalmente, responder ao Tu. O Eu é instado a responder.
Desse conjunto de reflexões filosóficas, emerge uma primeira
questão crucial para os estudos da interação e da linguagem na in
teração: cabe-nos apenas descrever e explicar os fenômenos ou, ao
identificar o papel nuclear, estruturante da dialética do reconheci
mento, cabe-nos também cuidar da grande dimensão ética que per
passa a interação?
O filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1995) criticava qualquer
abordagem meramente intelectualista da interação. Para ele, há uma
inter-relação originária irredutível à mera compreensão intelectuaL
Ou, em outras palavras, não é possível reduzir a interação ao pro
posicional, porque antes de ser mero objeto de conceitualização, a
interação é desde sempre uma relação que nos obriga a responder à
face (à exterioridade do outro): antes e para além de ser objetificada,
a inter-relação é, portanto, vivida.
Dentre todos os filósofos que puseram o foco de suas reflexões
na interação, foi Bakhtin o que mais avançou em termos de uma
análise da linguagem.
Bakhtin estava familiarizado com essa rede de pensadores. De
sua da obra fundante de Hegel, nos dá uma pequena pista nas
notas de caderno de 1970-1971 (p. 137), quando alinha algumas con
siderações sobre a consciência que o ser humano adquire de si mesmo
e diz: "A reflexão do si no outro empírico por quem o si tem de passar
para alcançar o eu paramim mesmo", uma quase-paráfrase de HegeL
Por outro lado, foi leitor e admirador de Buber, mas- é im
portante destacar- suas reflexões sobre a relação eu/outro, em Para
uma filosofia do ato, foram escritas alguns anos antes de Buber pu
blicar seu livro em 1923.
Conhecia a obra de jacobi e fez dela um aproveitamento bas
tante curioso: utilizou a noção de Deus como o grande outro (ou a
alteridade absoluta) não para sustentar uma reflexão teísta, mas no
processo de caracterização do herói confessional na literatura, con
forme se pode ler em O autor e herói na atividade estética (p. 144).
Pode-se dizer, portanto, que as diferentes abordagens da temáti
ca filosófica da intersubjetividade estavam bem presentes no horizon
te do pensamento de Bakhtin e de seu Círculo. Há, claro, um longo
caminho entre as primeiras formulações da temática da intersubjeti
vidade, no século XVIII, até se chegar, cento e tantos anos depois, ao
Círculo de Bakhtin com sua teoria das relações dialógicas que colo
cou, com maestria, a linguagem no cerne desta problemática. Mas,
pelo rápido percurso que fizemos, fica já bem claro que sua filosofia
pode ser vista como parte de uma linhagem intelectual que tomou
forma a partir da percepção básica de que o si não é sem o outro.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
I - Obras do Círculo de Bakhtin: fontes das dtações
- MIKHAIL M. BAKHTIN
a) Para uma .filosofia do ato (191911921)
Toward a Philosophy of the Act. Translated by V Liapunov. Austin: University of Texas
Press, 1993.
b) O autor e herói na atividade estética (1920-1923)
Author and Hera in the Aesthetic Activity, in: Art and Answerability: Early Philosophi
cal Essays by M. M. Bakhtin. Translated by V Liapunov. Austin: University of Texas
Press, 1990, p. 4-256.
c) O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal (1924)
The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art. In: Art and Answerability:
Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin, p. 257-325.
d) Problemas da poética de Dostoievski (1929/ 1963)
Problems of Dostoevskys Poetics. Translated by C. Emerson. Minneapolis: University
ofMinnesota Press, 1984.
e) O discurso no romance (1934-1935)
Discourse in the Novel, in: The Dialogic Imagination: Four Essays by M. M. Bakhtin.
Translated by C. Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas Press,
1981, p. 259-422.
f) Da pré-história do discurso romanesco (1935-1936)
From the prehistory of novelistic discourse, in: The Dialogic Imagination: Four Essays
by M. M. Bakhtin, p. 41- 83.
g) Rabelais e seu mundo (194611965)
Rabelais and his World. Translated by H. Iswolsky Cambridge: MIT Press, 1968.
h) O problema dos gêneros do discurso (1952-1953)
The Problem of Speech Genres, in: Speech Genres & Other Late Essays. Translated by
V W McGee. Austin: University ofTexas Press, 1986, p. 60-102.
i) Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski (1961)
Toward a Reworking of the Dostoevsky Book, in: Prob!ems of Dostoevsky~ Poetics.
Appendix li, p. 283-302.
j) O problema do texto (1959-1961)
The Problem of tke Text in Linguistics, Philology, and the Human Scíences: an Experi
ment in Philosophical Analysis, in: Speech Genres & Other Late Essays, p. 103-131.
l) Resposta a uma pergunta do conselho editorial da 'Novy Mir' (1970)
Response to a Questionfrom the 'Novy Mir' Editorial Stafj, in: Speech Genres & Other
Late Essays, p. 1-7.
m) Notas de caderno -1943-1963
De los borradores, in: Hacia una filosofia de! acto ético. De los borradores y otros escri
tos. Trad. T. Bubnova. Barcelona: Anthropos; San Juan: Universidad de Puerto Rico,
1997, p. 138-178.
n) Notas de caderno -1970-1971
From Notes Made in 1970-71, in: Speech Genres & Other Late Essays, p. 132-158.
o) Para uma metodologia das ciências humanas (1974)
Toward a Methodology for the Human Sciences, in: Speech Genres & Other Late Es
says, p. 159-172.
- P. N. MEDVEDEV
a) As tarefas imediatas da ciência histórico-líterdria (1928)
'The Immediate Tasks Facing Literary-Historical Science', in: Bakhtin School Papers.
Ed. by A Shukman. Russian Poetics in Translation, Oxford, (lO): 75-91, 1983.
b) O método formal nos estudos líterdrios (1928)
The Formal Method in Literary Scholarship: a Critica! Introduction to Sociological
Poetics. Translated by A]. Wehrle.Cambridge: Harvard University Press, 1985.
-V N. VOLOSHINOV
a) O discurso na vida e o discurso na poesia (1926)
Discourse in Life and Discourse in Poetry. In: Bakhtin School Papers. Ed. by A Shuk
man, p. 5-29.
b) Freudismo (1927)
Freudism: a Critica! Sketch. Translated by L R.Titunik. Bloomington: Indiana Univer
sity Press, 1987.
c) As correntes mais recentes do pensamento línguístico no Ocidente (1928)
The Latest Trends in Línguistic Thought in the West, in: Bakhtin School Papers. Ed. by
A Shukman, p. 31-49.
d) Marxismo e filosofia da linguagem (1929)
Marxism and the Phílosophy of Language. Translated by L Matejka & L R.Titunik.
New York: Seminar Press, 1973.
e) As fronteiras entre a poética e a linguística (1930)
Les frontieres entre poétique et linguistique, in: ToDOROV, T. Mikhall Bakhtine: le prín
cipe dialogique. Paris: Seuil, 1981, p. 243-284.
j) Estilística do discurso literdrio- que reúne os artigos: O que é a linguagem?, A cons
trução do enunciado, A palavra e sua função social (1930)
Líterary Stylístics- What is Language?, The Construction of the Utterance, The Word
and íts Social Function, in: Bakhtin School Papers. Ed. by A. Shukman, p. 93-152.
II- Obras do Círculo de Bakhtin em português
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belais. Trad. Y F Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da UnB, 1987.
__ .Estética da criação verbal. Trad. P Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
__ . O freudismo: um esboço critico. Trad. P Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2001.
__ (VoLOCHINOV, V N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem. Trad. M. Lahud e Y. F Vieira. São Paulo:
HUCITEC, 1997.
Problemas da poética de Dostoievski. Trad. P Bezerra. Rio de janeiro: Forense Univer
sitária, 2008.
__ . Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. A F Bemardini et al. São
Paulo: Editora da UNESP e HUCITEC, 1988.
III - Demais obras citadas
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Edi
tora, 2001.
ARisTóTELES. The Complete Works of Aristotle. Org.: BARNES,]. Princeton: Princeton University
Press, 1984.
BocHAROV, S. Conversations with Bakhtin. PMLA- Publications of the Modem Language
Association of America, vol. 109, n. 5, oct/1994, p. 1009-1024.
BRAn, B. Ironia em perspectiva polifõnica. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
BUBER, M. What is Man?, in __ In Between Man and Man. NewYork: Macmillan, 1948.
__ .Eu e Tu. São Paulo: Editora Moraes, 1977.
CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. I- a linguagem. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
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ção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p. 357-368.
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versity Press, 2000.
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__ . Marxísm and Literature. Oxford: Oxford University Press, 1977.
,
INDICE DE AUTORES
E DE OBRAS CITADOS
A construção do enunciado 59, 64
A estrutura do enunciado 100, 137, 138
A filosofia das formas simbólicas ll O
Amorím 16, 40, 44
Angústia 94
A ordem do discurso 83
A palavra e sua .funçào social 71, 100
As almas mortas 138
As correntes mais recentes do pensamento lin
guístico no Ocidente 34, 74, 100
As fronteiras entre a poética e a lingutstica 46,
137, 138
As tarefas imediatas da ciência histórico
literária 34
Authier-Revuz 118
Bakhtin 7, 9, lO, 11, 12, 13, 14, 15,
16, 17, 18, 19,20,21,22,23,24,25,
26,27,29,30,31,32,34,35,36,38,
39,40,41,42,43,44,49,50,52,53,
55,56,58,59,60,61,62,63,64,65,
66,67,68,69, 70, 73, 74, 75, 76, 77,
78, 79,80,81,82,83,84,86,88,89,
90,91,92,93,94,95,96,97,99, 100,
101, 102, 103, 104, 105, 106, 114,
115, 116, 117, 118, 119, 122, 124,
125, 126, 127, 128, 129, 131, 132,
133, 136, 137, 138, 139, 141, 142,
146, 147, 151, 154, 156, 157
Bally 134
Bocharov 31, 100
Boutet 119
Brait 40
Buber 142, 155, 157
Bubnova 96
C assirer 110, 112
Castro 15
Chklovski 32
Chomsky 117, 149
Círculo de Bakhtin 9, 10, 11, 13, 14, 16,
17, 18, 19,24,26,27,28,29,30,32,
33,34,35,39,40,46,47,48,49,50,
51,54,56,57,58,60,61,62,63,66,
68,69, 72, 73, 74, 79,86,87,91,96,
99, 100, 101, 102, 103, 118, 119,
120, 124, 125, 126, 130, 133, 136,
138, 139, 140, 142, 143, 151, 157
Clark 14
Cohen 16
Croce 134, 138
Curry 114humanas (p. 169), ele voltará a este mesmo ponto e dirá,
comentando o estruturalismo, que é contra uma formalização e uma
despersonalização sistemáticas.
Bakhtin reconhece, naquele primeiro texto (p. 19), que a filo
sofia moderna, dentro de seus propósitos e perspectivas, alcançou
grande sofisticação em suas elaborações. Entretanto, para ele, essa
filosofia não pode pretender ser uma filosofia primeira porque nada
consegue dizer sobre o ser-como-evento único.
Uma filosofia primeira que trabalhe de dentro da unicidade do
ser e do evento não existe- diz ele (p. 19)- e mesmo os caminhos
que levam à sua criação parecem estar esquecidos.
Contudo, ele quer recuperar a possibilidade de tal filosofia pri
meira, uma filosofia cujo procedimento não será construir conceitos,
proposições e leis universais sobre o mundo do ato efetivamente rea
lizado (em outras palavras, não se orientará pela "pureza" abstrata, te
órica do ato), mas só poderá se viabilizar como uma fenomenologia
daquele mundo (p. 32), como uma forma do pensamento que Bakhtin
chama de participativo, não-indiferente, isto é, o pensamento daqueles
que sabem como não separar seu ato realizado do produto dele, mas
sim como relacionar ambos ao contexto único e unitário da vida e
buscam determiná-los naquele contexto como uma unidade indivisí
vel (p. 19, nota de rodapé).
Essa insistência de Bakhtin no trato do singular, do único, do
irrepetível tem como base uma extensa reflexão sobre a existência do
ser humano concreto. O argumento (p. 40) se assenta na estrutura
do eu moral que intui sua unicidade, que se percebe único, quere
conhece estar ocupando um lugar único que jamais foi ocupado por
alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro.
Ao se perceber único (de dentro de sua própria existência e não
como um juízo teórico), este sujeito não pode ficar indiferente a esta
sua unicidade; ele é compelido a se posicionar, a responder a ela: não
temos álibi para a existência (p. 40).
Assume, desse modo, a responsabilidade por sua unicidade
("Eu sou concreto e insubstituível e, por consequência, devo realizar
minha unicidade"- p. 41) e compreende que deve realizá-la por
que "aquilo que pode ser feito por mim não pode ser jamais feito por
outro alguém" (p. 40).
E esta realização da unicidade se dá na ação, no ato individual
e resp;;;:;á~l(~ã;-indiferente). Nesse sentido, viver é agir (p. 43) e
agir em relação a tudo o que não é eu, em relação ao outro (p. 42).
No fim desse manuscrito (p. 74-75), Bakhtin volta a insistir na
relação eu/outro. Anteriormente (p. 60), ele já tinha destacado que
reconhecer minha unicidade e realizá-la no ato individual e respon
sável não significa que o eu vive só para si.
Agora, ele vai afirmar que o princípio constitutivo maior do
mundo real do ato realizado é precisamente a contraposição concre
ta eu/outro:
A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e
essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o
outro: eu mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os
momentos concretos do Ser são distribuídos e dispostos (p. 74).
O eu e o outro são, cada um, um universo de valores. O mesmo
mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valo
rações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos.
Eessas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que
são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados):
é na contraposição de valores que os fl.tos concretos se realizam; é
no pla~o dessa contraposição axiológica (é no plano
portanto) que cada um orienta seus atos.
alteridade,
Nesse sentido, Bakhtin dirá no manuscrito O autor e na
atividade estética (p. 187-188) que viver significa tomar uma posi
ção axiológica em cada momento, significa posicionar-se em relação
a valores. Vivemos e agimos, portanto, num mundo saturado de va
lores, no interior do qual cada um dos nossos atos é um gesto axio
logicamente responsivo num processo incessante e contínuo.
Bakhtin encerra seu manuscrito Para uma filosofia do ato com o
comentário de que essa contraposição axiológica eu/outro, embora já
presente em algumas formulações morais, é ainda desconhecida da fi
losofia moral como um todo, não encontrou uma expressão científica
adequada, nem foi pensada em sua essenc1alidade e integralidade.
Apreciando o conjunto da sua obra, podemos afirmar que seu
grande projeto intelectual foi precisamente este: repor essa questão e
investigar sua essencialidade.
Essas grandes coordenadas unicidade do ser e do evento
(e a co~~~q~~~te~necessidade de não separar o grundo da teoria do
mundo da vida), a relação ell/outro e a dim~:n,sãQaxiológica- serão,
portanto, ()S~Lxo~ constantes e nucleares do pensamento bakhtinia
no e de seus pares:
Citemos alguns exemplos.
Bakhtin discutirá extensamente, em O autor e herói na ativida
de estética, que o processo estético pressupõe um olhar de fora, isto
é, um eu posicionado do lado de fora em relação ao outro para poder
enformá-lo esteticamente.
Nesse texto e em O problema do conteúdo, do material e da for
ma na arte verbal (de 1924), Bakhtin elabora toda uma reflexão esté
tica assentada na responsividade axiológica, tema que Voloshinov re
toma em O discurso na vida e o discurso na poesia (de 1926), dando
especial destaque ao fato de que a entonação (a tomada de posição
axiológica) é o chão comum do enunciado na vida e na arte.
O mesmo Voloshinov, em seu livro Marxismo
(de 1929), funda sua teoria do signo e do significado, bem
como sua crítica ao objetivismo abstrato em linguística nos mesmos
pressupostos: a consciência do falante não se orienta pelo sistema da
língua, mas pelo novo, pelo irrepetível do enunciado, pelo concreto
de sua singularidade, pelo seu horizonte social avaliativo.
Medvedev, em seu livro O método formal nos estudos literários
(publicado em 1928), elabora sua crítica à teoria da linguagem poé
tica dos formalistas tomando como ponto de referência o mundo
da vida, isto é, mostrando (p. 75ss.) que o conceito de linguagem
cotidiana de que se valiam os formalistas para sustentar sua doutrina
da linguagem poética era excessivamente esquemático (e, portan
to, inadequado) por perder de vista as forças gerativas em operação
contínua na interação diária.
Um último exemplo é a tese de Bakhtin sobre Rabelais. Ao ana
lisar a obra do autor francês e destacar sua relevância para a história
literária, Bakhtin salienta precisamente que é com este escritor que
se opera a passC urso de linguística geral 1 09, 149
pré-história do discurso romanesco
93
David Hume über den Glauben l 54
Dawkins 134
Descartes 152
Dilthey 41, 42
Dom Casmurro 94
Dostoievski 15, 29, 30, 35, 40, 73, 77, 78,
79,80,92,103
Ducrot 16
Duvakin 35
Eikhenbaum 32
Emerson 35, 36
Ensaios e conferências 37, 107, 143
Escola de Praga 148
Estilística do discurso literário l 00
Eu e tu 155
Evans 137
F enomenologia do Espírito
Feuerbach 154, 155
Feys 114
Foucault 83
Franchi 114
Freud 33,87
153
Freudismo 11, 12, 31, 33, 46, 73, 87
Gogól 138
H abermas 142
Hacia una filosofía del acto ético. De
los borradores. Y otros escritos 96
Hegel 153, 154, 157
Heidegger 36, 37, 381 143
Holquist 14
Humboldt 109, 110, 111, 112, 113, 114, 148
Jch und Du 155
J
acobi 154, 155, 157
jakobson 32
bim e Souza 40
13, 16
152
Kozhinov 30, 100
Kruschev 75
L acan 142
Lãhteenmãki 11 O
Lévinas 142, 156
Literatura i Marxiszm 34
Locke 152
M andelker 35
Marr 29
Marxismo e filosofia da linguagem 11, 12,
15,23,29,33,34,40,45,46,47,54,
59,61,63,67, 71, 73,85, 100, lOS,
107, 109, 120, 137
Mead 142, 144, 145, 146, 147, 149
Medvedev 11, 12, 13, 17,23, 27,28, 29,
30,31,32,33,34,39,42,45,46,47,
48,49,51,52,53,63, 101,130,131,
160
Nietzsche 38
O autor e herói na atividade estética 18,
22,95, 24, 74,89, 91, 92, 94, 97,157
O discurso na vida e o discurso na poesia 22,
31,46, 73,96, 100,101
O discurso no romance 24, 49, 52, 55, 58,
67,69,82,84,91,92,93, 100,137,
138, 139
O discurso romanesco 146
O freudismo: um esboço critico 100
O método formal nos estudos literários ll,
12,23,34,46,63, 100,130
O problema do conteüdo, do material e da
forma na arte verbal 22, 24, 39, 52, 89,
90, 102
O problema dos gêneros do discurso 63, 101,
104, 124, 137, 138
O problema do texto 42, 59, 60, 61, 65, 67,
91, 101, lOS, 106
O problema do texto em linguística, filologia e
nas ciências humanas 91
O que é a linguagem? 29, 100
n'kov 81
Para uma epistemologia das ciências
humanas 20
Para uma filosofia do ato 15, 18, 22, 23, 25,
49,55,62, 101,157
Para uma metodologia das ciências humanas
42,44,101
Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski
61, 75,86,156
Podgórzec 78
Ponzio 28, 83
Problemas da poética de Dostoievski 40, 61,
65,66, 73, 79,100,103, lOS, 127
D abelais 15, 23, 35, 81
ftRabelais e seu mundo 81, 100
racionalismo 19
Ramos 94
Resposta a uma pergunta do Conselho Edito
rial da 'Novy Mir' 14 3
Ricoeur 142
Sakulin 31,32,33
Saussure 109, 137, 148, 149
Seminários de Zollikon 37, 38
Solomon 152
Souza 15
Spinoza 154
Spitzer 134, 138
Tezza 16, 32, 78, 79
Tynyanov 32
über Spiritualismus und Materialismus 155
V inogradov 34, 138
Voloshinov 11, 12, 13, 17, 22, 23, 24,
27,28,29,30,31,32,33,34,35,39,
45,46,47,53,54,59,61,63, 64,67,
69, 70, 71, 72, 73, 74,85,87,88,96,
97,99, 100,101, lOS, 106,107,108,
109, 110, 111, 113, 114, 115, 119,
120, 137, 138, 139, 140, 141, 149
Vossler 134, 138
Vygotsky 142, 145
W atson 144
Williams 28, 116, 118, 119, 153
zhirmunsky 32
w o
p
p
Gtexto O autor e o herói na atividade estética), Bakhtin dirá que
viver é assumir uma posição avaliativa a cada momento; é posicio
nar-se com respeito a valores.
f>. ~~la~~a viva não conhece, portanto, um obj~tQJum "herói"~
no vocabulário posterior do Círculo) como algo JQtatitude plenamente coincidente com as pretensões
científicas do próprio marxismo) e uma cobrança de rigor metodo
lógico de qualquer proposta que se apresentasse como de inspira
ção marxista. Segundo eles, eram incompatíveis com o pensamento
marxista quaisquer propostas que não respeitassem suas premissas
de base: o materialismo, o monismo metodológico, o caráter social e
histórico de todas as questões humanas.
Como dissemos antes, saber quão marxistas eram essas suas
críticas e propostas ultrapassa nossos objetivos neste livro. Mas é
certo que os dois claramente investiram esforços no sentido de con
tribuir para uma problemática de interesse marxista. Por outro lado,
é inegável que os dois (no rico contexto heurístico do Círculo de
Bakhtin) assinaram textos que contêm uma dimensão inovadora,
especificamente no trato da linguagem, da estética, da literatura e
da criação ideológica em geral. Essa dimensão inovadora é de espe
cial interesse para todos aqueles - marxistas ou não - que dese
jam pensar os processos e produtos culturais a partir de uma base
materialista e histórico-social.
Sugerimos ao leitor interessado em aprofundar o assunto a lei
tura de dois autores consagrados (de formação marxista) que, segun
do entendemos, conseguiram situar bem esse aspecto do pensamen
to do Círculo de Bakhtin e aquilatar adequadamente a relevância
das contribuições de Voloshinov e Medvedev. Trata-se de Raymond
Williams (1977) e Augusto Ponzio (1980, 1981 e 1994).
Por fim, vale a pena destacar uma questão peculiar da relação
desses autores com sua conjuntura. Assim como há uma inegável con
tribuição de Voloshinov e Medvedev à discussão de questões do inte
resse do marxismo; e assim como é relevante dar destaque aos belos
textos que nos foram legados (ainda tão prenhes de significados para
nossos debates contemporâneos), é preciso deixar claro também que,
em alguns momentos de seus textos, Voloshinov particularmente faz
claras concessões a linhas oficiais que, nos últimos anos da década de
1920, começavam a tomar corpo no establishment acadêmico soviéti
co e a adquirir um estatuto de dogma (o que trazia pesadas consequên
cias políticas para qualquer dissidência). Isso deixa alguns pontos de
seus textos profundamente datados e, como tal, abertos ao mesmo
tipo de crítica de fundamentos que ele aplicou a outros autores.
Talvez a mais marcada dessas concessões sejam as apologias ao
pensamento do linguista N. Y. Marr que aparecem, sem maiores da
nos, em Marxismo e filosofia da linguagem (que, de resto, é uma
obra monumental), mas dominam praticamente toda a argumenta
ção do mais pobre de seus textos, o artigo O que é a linguagem?,
publicado em 1930.
VIRADA LINGUÍSTICA
Destacamos anteriormente que a questão da linguagem mar
ca de modo bastante peculiar a contribuição do Círculo de Bakhtin
para o pensamento contemporâneo. A entrada dessa questão nas
preocupações do Círculo, por sua vez, foi responsável por dar novas
direções ao desenvolvimento de seu próprio pensamento. Pode-se
dizer, nesse sentido, que ocorre, nos debates destes intelectuais, uma
espécie de virada linguística por volta de 192511926.
Se, como observamos acima, a questão da linguagem aparece
apenas esporadicamente e de modo apenas incipiente nos primeiros
textos de Bakhtin, seus textos posteriores (do livro sobre Dostoievski
para a frente, isto é, a partir de 1929) se articularão tendo sempre
como eixo um determinado conceitual sobre a linguagem, em
termos gerais, está delineado principalmente nos textos assinados
por Voloshinov na segunda metade da década de 1920; e que co
nhecerá alguns importantes desdobramentos em textos de Bakhtin
da década de 1930 em diante.
Há, portanto, por volta de 1925/1926, uma confluência do Cír
culo para a temática da linguagem. Nela se casarão as preocupações
nucleares de Bakhtin (a temática axiológica, a questão do evento úni
co do Ser e a relação eu/outro), o interesse acadêmico de Voloshinov
(que se dedicava, nessa época, a estudos linguísticos) e o projeto
deste e de Medvedev de elaborar um método sociológico para os
estudos da linguagem, da literatura e das manifestações da chamada
cultura imaterial como um todo.
Esse casamento de perspectivas na formulação de uma teoria
da linguagem mostra, de um lado, a força heurística da pluralidade
de pontos de vista que se encontravam no Círculo; e, de outro, vai
redirecionar os trabalhos de cada um de seus membros.
Enquanto Voloshinov vai, até 1930, se concentrar principalmen
te no detalhamento da teoria da linguagem (com algumas incursões
no terreno das questões estéticas), Medvedev, no mesmo período, vai
ocupar-se com os fundamentos do que ele chama de estudo das ideo
logias (num certo sentido deste termo -ver discussão adiante, no ca
pítulo dois), no interior da qual estará uma poética dita sociológica.
O pensamento de Bakhtin, por sua vez, se tornou fortemente
sociologizado a partir do livro sobre Dostoievski. Pode-se dizer que
seus grandes temas iniciais permanecem, mas são retrabalhados a
partir de um ponto de vista mais sociologicamente articulado, que
se alicerça na teoria da linguagem e da cultura que o Círculo vinha
formulando nos anos anteriores.
O tema da linguagem se tornou tão forte para os membros do
Círculo que o próprio Bakhtin, em uma carta dirigida a V Kozhinov
em (transcrita em Bocharov, p. 1016), afirmou ser a concepção
de linguagem o elemento que unia o pensamento do grupo. A diver
sidade de interesses que apontamos acima acabou por encontrar na
concepção de linguagem seu elemento de convergência.
Esse tema da linguagem aparece, pela primeira vez de forma
mais sistemática, no texto O discurso na vida e o discurso na poesia,
assinado por Voloshinov e publicado em 1926 na revista Zvezda, 6.
É interessante observar que, no ano anterior, este mesmo autor
publicara na mesma revista outro artigo e nele não havia nenhuma
menção à temática da linguagem. Tratava-se de uma apresentação
crítica dos fundamentos da psicanálise, tendo como objetivo contra
por-se a marxistas que faziam a apologia do pensamento freudiano e
que tentavam uma acomodação da psicanálise e do,marxismo. Esse
tema voltará em 1927 na forma de livro (Freudismo), incluindo, ago
ra sim, uma extensa discussão sobre a linguagem, que passa a ter,
aliás, um papel nuclear na argumentação do autor.
Também no texto de 1926 é claro o objetivo de criticar aqueles
marxistas que estariam subscrevendo uma proposta analítica corren
te (formulada por Sakulin) que dividia o estudo da arte entre uma
abordagem imanente (que não poderia ser sociológica) e uma abor
dagem histórico-causal (que deveria ser sociológica). O argumento
do texto vai no sentido de que a arte é imanentemente sociológica
e, portanto, tal divisão seria contrária aos fundamentos do método
marxista - o monismo e a historicidade.
Para demonstrar essa sua tese, Voloshinov assume a existência
de um chão comum aos enunciados artísticos (poéticos) e aos enun
ciados cotidianos ambos se materializam na grande corrente
_,,.,,' ·- -· -' v'~~'''"
da i!l~~E~s;ão sociocultural e envolvem tomadas de posições axiolá:-
gicas): É importante destacar que esse pressuposto (que será apro
fundado por Medvedev em seu livro de 1928 e estará presente em
toda a obra posterior de Bakhtin) se contrapõe de modo frontal ao
pensamento formalista, que se articulava precisamente sobre uma
oposição radical entre linguagem poética e linguagem cotidiana.
3
B
0
o
Depois de enunciar aquele pressuposto, Voloshinov desenvolve
uma discussão sobre características da linguagem na vida cotidiana,
estendendo-a, na sequência, à análise do enunciado artístico. É a
primeira vez que, em textos do Círculo, se funda uma análise esté
tica sobre uma análise da linguagem, o que será comum nos textos
futuros do Círculo e do próprio Bakhtin.
Destaque-seque a discussão de Voloshinov nesse texto não tem
a questão da linguagem propriamente como objeto, mas a questão da
literatura. É para elucidar o problema do enunciado artístico que ele
inicia uma reflexão sobre o enunciado em geral, partindo, para isso,
do enunciado do dia a dia. O que estava lhe interessando, nesse mo
mento, era mostrar que as forças que funcionam num tipo de enun
ciado são da mesma natureza daquelas que funcionam no outro.
Adiante, sem perder de vista a questão do enunciado literário,
ele ampliará suas reflexões, envolvendo-se, inclusive, com uma longa
discussão sobre a própria linguística. Por ora, concentra-se em fazer
frente à teorização dos formalistas, contrapondo-se a seu conceito de
"linguagem poética" e à oposição radical que eles estabeleciam entre
a linguagem dita ordinária e a linguagem dita poética.
Nestes mesmos anos de 1925/1926, Medvedev publica dois arti
gos sobre estudos literários. Num primeiro, discute o pensamento das
principais figuras do chamado método formal, que estava em evidência
na Rússia na primeira metade da década de 1920. Resenha criticamente
artigos e livros de autores como R.Jakobson, V Chklovski, B. M. Eikhen
baum, V M. Zhirmunsky e Y. N. Tynyanov (que, diga-se de passagem,
viriam a ser grandes referências dos estudos literários no Ocidente, na
década de 1970), apontando as limitações de suas proposições estéticas.
Medvedev voltará a essa crítica, aprofundando-a, no seu livro de 1928
- cf. Tezza (2003) para uma pormenorizada análise do pensamento
formalista e das críticas do Círculo de Bakhtin àquela estética.
Num segundo artigo, Medvedev faz uma crítica às ideias de P
N. Sakulin, que, conforme se podia observar no texto de 1926 de
Voloshinov, atraíam alguns estudiosos marxistas. Sakulin propuse-
ra, no início anos 1920, numa tentativa de conciliar os estudos
literários tradicionais com a poética formalista e com o marxismo,
que as obras literárias deveriam ser analisadas por dois métodos dis
tintos: o método formal para o estudo imanente da obra e o método
sociológico para o estudo histórico-causal (entendido como o estudo
das influências do extraliterário).
A argumentação de Medvedev, contrária a essa proposta, tem
dois eixos: primeiro, a tese cara ao Círculo de Bakhtin de que as obras
literárias - na medida em que condensam valores sociais em múl
tiplas dimensões- são sociológicas de ponta a ponta; e, segundo,
que a proposta de Sakulin, com seu dualismo, era intrinsecamente
incompatível com o marxismo, que é um pensamento monista.
Esses quatro artigos são característicos daquilo que se poderia
chamar de crítica ideológica, num certo sentido da expressão. Os
dois autores, em tom polêmico e cheio de ironias, realizam uma lei
tura crítica do pensamento de Freud, dos formalistas e de Sakulin,
pondo sob rigoroso escrutínio seus pressupostos e fundamentos.
Com base nessa leitura, aproveitam para criticar tanto o mar
xismo vulgar, quanto pensadores marxistas que buscavam conciliar
simploriamente marxismo e psicanálise; ou aceitavam acriticamente
uma divisão de tarefas, nos estudos literários, entre o método formal
e o método sociológico.
Lendo esses artigos sem perder de vista o conjunto da obra
como referência, fica claro que tanto Voloshinov quanto Medvedev
estavam buscando, pelas críticas aos teóricos de seu tempo, limpar o
terreno para, nos anos seguintes, lançar suas próprias teorias, o que
acontecerá na forma de livro.
Voloshinov voltará, com mais fôlego, ao pensamento freudiano
na obra Freudísmo: um ensaio crítico, publicada em 1927, e à teoria
da linguagem na obra Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, publi
cado em 1929 (com segunda edição já no ano seguinte).
Medvedev, por seu turno, voltará ao pensamento formalista no
seu livro O método nos estudos uma crí
tica à poética sociológica, publicado em 1928. Nele, o autor busca
situar os estudos literários, sob uma perspectiva marxista, no quadro
amplo do que ele designa de estudo das ideologias (num certo sentido
deste termo, conforme vamos discutir em detalhes no capítulo dois).
Tanto este texto quanto Marxismo e filosofia da linguagem foram
precedidos por artigos que, publicados ambos em 1928 na revista Li
teratura i Marxi.szm, resumiam parte da argumentação dos livros: de
Medvedev o artigo As tarefas imediatas da ciência histórico-literária
(que apareceu no n. 3); e de Voloshinov o artigo As correntes mais
recentes do pensamento linguístico no Ocidente (publicado no n. 5).
Por fim, Voloshinov, em 1930, publica quatro artigos dentro
ainda da temática da linguagem: três em que retoma a teoria do
enunciado e um último sobre as fronteiras entre a poética e a lin
guística, que é, basicamente, uma extensa crítica às concepções do
linguista russo V V Vinogradov e uma reiteração do quadro concei
tual anteriormente elaborado.
Mas, nessas alturas, com Bakhtin preso e exilado na Ásia, o Cír
culo como tal não mais existia. Sobre o pensamento construído em
conjunto nos anos 1920, cairá um pesado silêncio de mais de trinta
anos. Haverá, sim, retomadas e desdobramentos, mas, agora, na pena
solitária de um grande pensador esquecido na província e quase só
na forma de manuscritos que nunca se completarão e de notas espar
sas em gastos cadernos escolares. Voloshinov morre de tuberculose
em 1936 e Medvedev, que fora desde 1919 um homem do aparelho
soviético de Estado, desaparece nos expurgos políticos da segunda
metade da década de 1930, provavelmente fuzilado em 1940.
fiLÓSOFOS OU CIENTISTAS?
Estabelecer com precisão uma rigorosa distinção entre filosofia
e ciência não é, evidentemente, tarefa fácil. Para destacar essa difi-
culdade de um lado, mencionar que foi (e é) projeto de al-
guns filósofos dar à filosofia um caráter científico, apagando, assim,
especificidades e fronteiras. Por outro lado, no âmbito das ciências
sociais e humanas, há toda uma tradição hermenêutica (com a qual,
aliás, Bakhtin se identificava) que opera antes no plano do conceito
e da interpretação do que no da prova empírica, aproximando-se,
portanto, de certo modo de fazer filosofia.
Apesar dessa dificuldade, parece-nos relevante, para melhor
apreciar o pensamento do Círculo de Bakhtin, fazer, neste ponto,
uma incursão por esta complexa área. Nosso objetivo é argumentar
que esse pensamento é de caráter eminentemente filosófico e não
propriamente científico.
Reconhecer isso traz uma série de consequências fortes para os
modos como nos apropriamos dele em nossas reflexões e estudos.
Entendemos que muitas das atribulações das tentativas de utilização
desse pensamento decorrem, em boa parte, de ele ser tomado pelo
que não é.
Quando as primeiras obras de Bakhtin chegaram ao Ocidente
Qustamente os livros sobre Dostoievski e sobre Rabelais), a recepção
inicial o classificou logo como um teórico da literatura.
A chegada, poucos anos depois, do texto de Voloshinov sobre a
linguagem (incluindo uma extensa discussão crítica das teorias lin
guísticas correntes em seu tempo) e a confusão sobre a autoria leva
ram, então, muitos leitores a visualizar um Bakhtin linguista.
Contudo, a progressiva divulgação de outros textos, em espe
cial aqueles escritos no início da década de 1920, foi revelando que
Bakhtin era, antes de mais nada, um filósofo, face à abrangência de
sua temática e os objetivos de sua reflexão.
Ele mesmo, aliás, se entendia como tal, conforme revela em
entrevista a Viktor Duvakin em 1974 (citada por Caryl Emerson na
introdução ao livro organizado por Amy Mandelker). Perguntado
se ele era mais um filósofo do que um filólogo, Bakhtin respondeu:
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"Mais um filósofo. E assim permaneço até os dias de hoje. Eu sou um
filósofo. Um pensador [myshtdT (p. 192, n. ll).
Bakhtin não se via, portanto, comoum homem de ciência, preso
à esteira estreita da positividade e da modelização formal. Pelo seu
próprio pressuposto de base (i. e., nunca perder de vista, na reflexão,
a eventicidade da existência, do mundo da vida), Bakhtin se colocava
fora de uma racionalidade propriamente científica e desenvolvia um
modo de pensar mais globalizante- o que, no dizer de Emerson (p.
9-10), seria uma predisposição da própria tradição filosófica russa.
Segundo ela, o vocábulo myslitel' (pensador) tem especiais res
sonâncias na cultura acadêmica russa. Um mys1itel' (um pensador)
pode ser eclético e excêntrico; ele é mais livre que o cientista para
transcender as fronteiras de disciplinas e metodologias estabelecidas.
Em suas próprias palavras (p. 10):
No caso de Bakhtin, o termo sugere uma pessoa que está menos pre
ocupada em aplicar suas ideias à literatura do que em utilizar a litera
tura, seletivamente e num alto nível de inspiração, para ilustrar suas
ideias. É de alguma forma interessante que a autodesignação altiva de
Bakhtin e sua trajetória intelectual tenham-se tornado agora marcas
identificadoras dele e não suas imperfeições.
Para construirmos uma melhor compreensão desse ponto, po
deríamos talvez dizer que Bakhtin era um filósofo no sentido heide
ggeriano do termo.
Heidegger, em suas discussões sobre a ciência moderna, ela
borou uma distinção entre um pensamento de natureza filosófica
(besinnliches Denken) e um pensamento de natureza científica (re
chnendes Denken).
Grosso modo, podemos resumi-la da seguinte forma: no primei
ro caso, temos um pensamento que busca apreender o mundo em
seus sentidos mais amplos. O adjetivo alemão besinnlích pertence
à família da palavra sinn (sentido), à qual se alia também o verbo
besinnen (refletir sobre, meditar) e poderia ser traduzido por (pensa
mento) reflexivo, meditativo, cogitativo.
No segundo caso, temos um pensamento que calcula, que com
partimentaliza o mundo para "examinar-lhe as contas". O adjetivo
está relacionado com o verbo (calcular) e poderia
ser traduzido por (pensamento) calculador, contabilizador.
Não há nessa partição nenhuma negação da ciência; apenas uma
reflexão que destaca o fato de que o pensamento científico não é a única
forma rigorosa de exercício da razão. O besinnliches Denken não só tem
lugar, como é indispensável, no sentido de que permite uma reflexão
mais livre das amarras dos modelos científicos, admitindo um espectro
mais amplo de interpretações, de correlações, de problematizações.
Subjacente a essa distinção, há um interesse em não diluir a
filosofia na ciência; em preservar as diferenças e especificidades de
cada uma dessas formas de conhecimento; e, principalmente, em
estabelecer, num mundo dominado pelo pensamento científico, um
espaço para outra racionalidade.
Vale repetir aqui que Heidegger expressamente diz, nos Seminá
rios de Zollikon, não haver, naquela distinção, uma hostilidade contra a
ciência (p. 122), mas uma crítica à "sua [da ciência] pretensão ao abso
luto, a ser o parâmetro de todas as verdades" (p. 136). E essa crítica tem
especial significado no conjunto da filosofia heideggeriana, cujo eixo foi
precisamente superar o esquecimento do Ser praticado pela metafísica,
(re)colocar na agenda filosófica a questão do Ser, do sentido do Ser.
Ora, a ciência como tal não se coloca essa questão mais ampla.
Para funcionar, ela precisa, de fato, abandonar o sentido do Ser. Por
isso, diz Heidegger, a ciência não pensa (Ensaios e conferências, p.
115). A racionalidade científica se funda no gesto primeiro de calcu
labilizar o mundo, isto é, ela precisa ver o mundo como objetidade
calculável para que possa predeterminá-lo o tempo todo (Seminá
rios, p. 177). Só assim é que a ciência pode instalar-se num domínio
de objetos e alcançar seus resultados. Não pensar é, portanto, sua
vantagem: basta-lhe submeter-se ao primado do método - "a pró
pria ciência: nada mais é do que método" (Seminários, p. 136).
Sobre isso, Heidegger, nos mesmos Seminários (p,
154), retoma a frase de Nietzsche- "Não é a vitória da ciência que
destaca o nosso século XIX, mas sim a vitória do método sobre a
ciência" -e oferece-lhe uma interpretação dizendo que o método
não somente está a serviço da ciência, mas acima dela: a ciência é
dominada pelo método, É ele que "determina o que deve ser objeto
da ciência e de que maneira ele seja acessível, isto é determinado em
sua objetidade", Assim,
o principal não é a natureza, como ela interpela o homem a partir de
si, mas o que é determinante é como o homem deve representar a
natureza a partir da intenção de dominá-la,
Nessa perspectiva, a questão do Ser, pela sua amplitude, está
fora do alcance da ciência (do rechnendes Denken) e exige outra ra
cionalidade (a do besinnlíches Denken), Exige não um pensamento
operador de calculabilidade, mas um pensamento que pensa o sen
tido do Ser, um pensamento que "se entrega ao inesgotável do que é
digno de ser questionado" (Ensaios, p, 59),
Ora, quando observamos o modo de Bakhtin elaborar suas re
flexões, nunca vamos encontrá-lo ocupado em ver o mundo como
objetidade calculável e, em consequência, em construir um mode
lo instrumentalizante de uma análise científica, Em outras palavras,
nunca vamos encontrá-lo ocupado com o rechnendes Denken, Seu
interesse está antes posto numa reflexão ampla que se entrega ao
inesgotável da existência, ao sentido da criação estética e do Ser da
linguagem, Ou, para usar um vocabulário heideggeriano, podemos
dizer que Bakhtin não vai ao mundo tomar-lhe as contas, mas se dei
xa interpelar pelo fazer estético, pela literatura e pela linguagem,
Sua preocupação, desde o início, com o evêntico, com o único,
com o singular, e sua crítica ao teoreticismo são já evidências da
direção filosófica e não científica do seu pensamento, Sua explícita
recusa, no fim da vida, do estruturalismo e do formalismo (correntes
de pensamento que cultivaram precisamente uma espécie de fé cega
na ciência) e sua discussão das ciências humanas como fundamen
talmente hermenêuticas reiteram essa direção,
Por fim, é curioso observar certo eco heideggeriano avant
lettre na forma como Bakhtin, no texto O problema do conteúdo, do
material e da forma na arte verbal (1924), apresenta a construção
pela linguística de seu objeto precisamente como um ato de subme
tê-lo (dominá-lo) metodologicamente, Em suas palavras:
Somente desse modo, isolando e liberando o constituinte puramente
verbal da palavra e criando uma nova unidade verbal com suas subdi
visões concretas, é que a linguística submete metodologicamente seu
objeto (p, 292-293),
E logo adiante:
Somente ao se libertar consistentemente de uma propensão metafísica
(da substancialização e objetivização da palavra), de uma sobrepre
sença da lógica, do psicologismo e do esteticismo, é que a linguística
construiu seu caminho em direção a seu objeto, postulou-o metodo
logicamente e, desse modo, tornou-se pela primeira vez uma discipli
na científica (p, 293),
Num tempo colonizado pela ciência, é compreensível que mui
tos vão aos textos de Bakhtin (e do Círculo) em busca precisamente de
método; aproximem-se deles na expectativa de encontrar um modus
faciendi, um conjunto de procedimentos para a análise literária e para
a análise linguística, O resultado mais visível desse equívoco (isto é,
de se tomar os textos do Círculo pelo que não são) é transformar ca
tegorias filosóficas em categorias científicas, em categorias de método
(polifonia, diálogo, camavalização são, talvez, os casos mais clássicos
desse processo),
Mesmo os trabalhos de Voloshinov e Medvedev, comprome
tidos com o pressuposto de cientificidade do pensamento mar
xista, dificilmente podem ser lidos como contendo recortes de
"objetos calculáveis" e formalizações de proposições de método
(sem o que a ciência não pode funcionar), "f:les sãoantes dis
cussões dos fundamentos de uma ciência da ling~agem, de UJ11a
poética sociológica ou de um estudo das ideologias (no sentido
que este termo tem nos textos do Círculo). Constituem, portanto,
~eflexões sobre as condições de possibilidade dessas disciplinas e,
desse ~~do, são texto~-tipicamente filosóficos, mais próprios do
besinnliches Denken.
Em suma: ao percorrermos os te-xtos do CírculQ_(i~_l?_