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Linguagem e Diálogo Bakhtin

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1. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa, Marcos Bagno, 7' ed. 
2. Linguagem & comunicação social- visões da linguística moderna, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, 2' ed. 
3. Por uma linguística crítica, Kanavillil Rajagopalan, 3' ed. 
4. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 5' ed. 
5. Sistema, mudança e linguagem- um percurso pela história da linguística moderna, Dante Lucchesi 
6. "O português são dois"- novas fronteiras, velhos problemas, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed. 
7. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed. 
8. A linguística que nos faz falhar- Investigação crítica 
Kanavillil Rajagopalan, Fábio Lopes da Silva [orgs.] -sob demanda 
9. Do signo ao discurso- Introdução à filosofia da linguagem, Inês Lacerda Araújo, 2' ed. 
10. Ensaios de filosofia da linguística, ]o sé Borges Neto 
11. Nós cheguemu na escola, e agora?, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 2' ed. 
12. Doa-se lindos filhotes de poodle-Variação linguística, mídia e preconceito, M" Marta Pereira Scherre, 2' ed. 
13. A geopolítica do inglês, Yves Lacoste [org.], Kanavillil Rajagopalan 
14. Gêneros- teorias, métodos, debates,]. L. Meurer, Adair Bonini, Désirée Motta-Roth [ orgs.], 2' ed. 
15. O tempo nos verbos do português urna introdução a sua interpretação semântica 
Maria Luiza Monteiro Sales Corôa 
16. Considerações sobre a fala e a escrita- fonologia em nova chave, Darci lia Simões 
17. Princípios de linguística descritiva, M. A. Perini, 2' ed. 
18. Por uma linguística aplicada IN disciplinar, Luiz Paulo da Moita Lopes, 2' ed. 
19. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística 
U. Weinreich, W Labov, M. I. Herzog, 2' ed. 
20. Origens do português brasileiro, Anthony ]ulius Naro, Maria Marta Pereira Scherre 
21. Introdução à gramaticalização- Princípios teóricos & aplicação 
Sebastião Carlos Leite Gonçalves, Maria Célia Lima-Hernandes, 
Vânia Cristina Casseb-Galvão [orgs.] 
22. O acento em português- Abordagens fonológicas, Gabriel Antunes de Araújo [org.] 
23. Sociolinguística quantitativa- Instrumental de análise, Gregory R. Guy, Ana Maria Stahl Zilles 
24. Metáfora, Tony Berber Sardinha 
25. Norma culta brasileira- desatando alguns nós, Carlos Alberto Faraco 
26. Padrões sociolinguísticos, William Labov 
27. Gênese dos discursos, Dominique Maingueneau 
28. Cenas da enunciação, Dominique Maingueneau 
29. Estudos de gramática descritiva- as valências verbais, Mário A. Perini 
30. Caminhos da linguística histórica- "Ouvir o inaudível", Rosa Virgínia Mattos e Silva 
31. Limites do discurso ensaios sobre discurso e sujeito, Sírio Possenti 
32. Questões para analistas do discurso, Sírio Possenti 
33. Linguagem & diálogo- as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco 
IEDITOII: Marcos Marcionilo 
CAPA E PROJETO GRÁFICO: Andréia Custódio 
CoNSELHO EDITORIAL: Ana Maria Stahl Zilles [Unisinos] 
Carlos Alberto Faraco [UFPR] 
Egon de Oliveira Rangel [PUCSP] 
Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, lpol] 
Henrique Monteagudo [Univ. de Santiago de Compostela] 
Kanavillil Rajagopalan [Unicamp] 
Marcos Bagno [UnB] 
Maria Marta Pereira Scherre [UFRJ, UnB] 
Rachei Gazolla de Andrade [PUC-SP] 
Salma Tannus Muchail [PUC-SP] 
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB] 
CIP-IlRASil. CATAlOGAÇÃO NA FONTE 
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, 11.1 
F2251 
Faraco, Carlos Alberto 
Linguagem & diálogo: as ideias lingufsticas do círculo de 
Bakhtin I Carlos Alberto Faraco.- São Paulo: Parábola Editorial,2009. 
168p.(Lingua[gem] ;33) 
Inclui bibliografia 
ISBN 978-85-88456-96-9 
1. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975.2. 
Linguística.3. Linguagem e línguas- Filosofia. 4. Literatura 
-Estética.!. Título. 11. Série. 
09-2257 
Direitos reservados à 
PARÁBOLA EDITORIAL 
Rua Sussuarana, 216- lpiranga 
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transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, 
incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada ~m qualquer sistema ou banco de 
dados sem permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda. 
ISBN: 978-85-88456-96-9 
© do te)duas consciências, dois sujeitos. Enquanto a expli­
cação aponta para o necessário (i.e., o intelecto contempla as coisas 
mudas em busca de relações necessárias), a compreensão aponta 
para o possível, po:rque é uma operação sobre o significado que, 
sendo em grande parte efeito da interação, do encontro de cosmo­
visões e orientações axiológicas, envolve sempre uma dimensão de 
pluralidade. Desvelam-se, nessa operação, aspectos semânticos não 
s 
~ 
G 
o 
-------------------------....... ----~-"---
reiteráveis do signo, decorrentes justamente do fato sua produção 
~ e recepção serem sempre contextualizadas (singulares, evênticas). 
~ 
3 O limite da exatidão nas ciências naturais é a identidade (a garan-
3 
~ tia de controle da natureza, fundada no pressuposto da necessidade 
das relações, é justamente a reprodutibilidade do experimento); nas 
ciências humanas, a exatidão consiste na capacidade de não fundir 
em um só os dois sujeitos; ou, nas palavras de Bakhtin, de sobrepujar 
a alteridade daquilo que é outro sem o transformar em qualquer coisa 
que é para si (Para uma metodologia das ciências humanas, p. 169)2. 
Marilia Amorim, em seu livro O pesquisador e seu outro: Bahhtin nas ciências huma­
nas, explora, de maneira rica e interessante, essa concepção bakhtiniana das ciências 
humanas como espaço de tensão dialógica. 
CAPÍTULO DOIS 
CRIAÇÃO IDEOLÓGICA 
E DIALOGISMO 
UMA TEORIA MATERIALISTA DA 
CHAMADA CRIAÇÃO IDEOLÓGICA 
orno vimos no capítulo anterior, Voloshi­
nov e Medvedev tinham como projeto 
intelectual explícito, em seus trabalhos 
da segunda metade da década de 1920, 
contribuir criticamente para a construção 
de uma teoria de base marxista da criação 
ideológica. 
Voloshinov se concentrou na questão da lin­
guagem, desenvolvendo basicamente dois 
pontos: uma discussão crítica dos estudos linguísticos de sua época 
(em especial em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem) e a apre­
sentação da tese de que os enunciados do cotidiano e os enunciados 
artísticos têm um chão comum - estão ambos no interior da grande 
corrente da comunicação sociocultural e têm ambos uma dimensão 
axiológico-social em sua significação (ver seus artigos O na 
vida e o discurso na poesia e As fronteiras entre e 
Voloshinov envolveu-se também com a temática da subjetivida­
de, desenvolvendo uma discussão crítica da psicanálise (em especial 
em seu livro Freudismo) e da psicologia de seu tempo (ver particu­
larmente o cap. I-3 de Marxismo e filosofia da linguagem e o cap. 
I-2 de Freudismo) e formulando um conceitual sociológico sobre a 
natureza da consciência. 
Medvedev, por sua vez, direcionou sua reflexão para o estudo 
da literatura, tendo como ponto de partida uma pormenorizada crí­
tica das ideias dos formalistas. 
Nos capítulos 1 e 2 de seu livro O método formal nos estudos li­
terários, Medvedev, depois de apresentar o estudo da literatura como 
um ramo dos estudos da criação ideológica, traça o que poderia ser 
lido como diretrizes gerais para um estudo de base materialista e 
sócio-histórica do universo da criação ideológica. 
· Como ideologia é uma palavra "maldita" (pelas incontáveis sig­
nificações sociais que pode veicular), é importante - para evitar 
costumeiros mal-entendidos- deixar claro o sentido que ela tem na 
obra de Medvedev (e, de fato, de todo o Círculo de Bakhtin). 
Nos textos do Círculo, a palavra ideologia é usada, em geral, 
para designar o universo dos produtos do "espírito" humano, aquilo 
que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imate­
rial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento 
idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num voca­
bulário de sabor mais materialista). 
Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o 
universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, 
a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais 
(para usar certa terminologia da tradição marxista). 
A palavra ocorre também no plural para designar a pluralidade 
de esferas da produção imaterial (assim, a arte, a ciência, a filosofia, o 
direito, a religião, a ética, a política são as ideologias). É com esse uso 
no plural que Medvedev inicia seu livro, dizendo que o estudo da 
literatura é um ramo do estudo das ideologias, com este abarcando 
todas as áreas da criatividade intelectual humana citadas acima. 
Esses termos (ideologia, ideologias, ideológico) não têm, portan­
to, nos textos do Círculo de Bakhtin, nenhum sentido restrito e nega­
tivo. Será, portanto, inadequado lê-los nestes textos com o sentido de 
"mascaramento do real", comum em algumas vertentes marxistas. 
Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente 
a axiológico. Aqui é importante lembrar que, para o Círculo, a signifi­
cação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa 
sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer 
enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico- para eles, 
não existe enunciado não-ideológico. E ideológico em dois sentidos: 
qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no 
interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa 
sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a pró­
pria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica). r 
Voloshinov, ao iniciar seu livro Marxismo e filosofia da lin­
guagem, também identifica ideologia com o universo da produção 
imaterial humana. Diz ele que "as bases de uma teoria marxista das 
ideologias - as bases para os estudos do conhecimento científico, 
da literatura, da religião, da moral etc.- estão estreitamente ligadas 
aos problemas da filosofia da linguagem" (p. 9). 
E, logo adiante, dirá que tudo o que é ideológico (isto é - en­
tenda-se bem-, todos os produtos da cultura dita imaterial) possui 
significado; é, portanto, um signo. E conclui com a afirmação de que 
"sem signos não existe ideologia" (p. 9), querendo com isso dizer 
que o universo da criação ideológica é fundamentalmente de nature­
za semiótica, afirmação reiterada na página seguinte: 
O domínio da ideologia coincide com o domínio dos signos. Eles 
são mutuamente correspondentes. Ali onde um signo se encontra, 
encontra-se também ideologia. Tudo o que é ideológico possui valor 
semiótico (p. lO). 
É essa identificação do ideológico com o semiótico que vai dar 
ao Círculo o fundamento para construir sua teoria materialista para 
o estudo dos processos e produtos da cultura imaterial; o fundamen­
to de sua filosofia da cultura. 
Voltando ao texto de Medvedev, observamos que, como ponto 
de partida, ele considera inadequadas todas as abordagens positivis­
tas e idealistas da criação ideológica. As primeiras, porque se perdem 
num empiricismo atomista (concentram-se no estudo dos objetos 
ideológicos - obras de arte, por exemplo - tomando-os isolada­
mente, desaguando num detalhismo sem sentido ou numa fetichi­
zação do artefato). As segundas, porque entendem toda a criação 
ideológica ou como produto de uma consciência individual isolada; 
ou como localizada no reino de "puras ideias", "puros valores" e "for­
mas transcendentes" (p.4). 
Para Medvedev, ambas as abordagens perdem de vista o fato de 
que a criação ideológica é sempre social e histórica, não podendo, 
por isso, ser reduzida nem à sua superfície empírica (como se fosse 
um rol de meros fenômenos isolados), nem fechada e autocontida no 
mundo de uma consciência individual ou no reino das "puras ideias". 
Pelo seu caráter intrinsecamente sócio-histórico, a criação ideológica 
exige, para ser estudada, um conceitual e um método de natureza 
sociológica, para cujo delineamento ele se propõe contribuir. 
Nesse processo, lembra, de saída, que todos os produtos da cria­
ção ideológica são objetos dotados de materialidade, isto é, são parte 
concreta e totalmente objetiva da realidade prática dosseres humanos 
(não se podendo estudá-los, portanto, desconectados dessa realidade). 
E existem como tal corporificados em algum material semiótico 
definido (i. e., numa determinada linguagem - tomado o termo 
aqui em sentido amplo), ou seja, um produto da criação ideológica 
é sempre um signo. 
para Medvedev (como para todo o Círculo de Bakhtín), os 
signos são intrinsecamente sociais, isto é, são criados e interpretados 
no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o 
intercâmbio social. Os signos emergem e significam no interior de re­
lações sociais, estão entre seres socialmente organizados; não podem, 
assim, ser concebidos como resultantes de processos apenas fisiológi­
cos e psicológicos de um indivíduo isolado; ou determinados apenas 
por um sistema formal abstrato. Para estudá-los, é indispensável si­
tuá-los nos processos sociais globais que lhes dão significação. 
Por outro lado, Medvedev expõe outra premissa fundamental 
para seu raciocínio (e para o pensamento do Círculo como um todo): 
nós, os seres humanos, não temos relações diretas, não mediadas, 
com a realidade. Todas as nossas relações com nossas condições de 
existência - com nosso ambiente natural e contextos sociais - só 
ocorrem semioticamente mediadas. Vivemos, de fato, num mundo 
de linguagens, signos e significações. 
Em outros termos, o real nunca nos é dado de forma direta, 
crua, em si. Sobre isso, Bakhtin já dizia, em Para uma .filoso.fi~ do 
ato, que "O dado puro não pode ser realmente experienciado" ,Cp. 
32). Nós nos relacionamos com um real informado em matéria signi­
ficante, isto é, o mundo só adquire sentido para nós, seres humanos, 
J 
quando semioticizado. E mais: como a significação dos signos envol­
ve sempre uma dimensão axiológica, nossa relação com o mundo é 
sempre atravessada por valores. 
~rc--' 
Bakhtin, em O discurso no romance (p. 276), apresenta este 
pressuposto do Círculo, dizendo que qualquer palavra (qualquer 
enunciado concreto) encontra o objeto a que ele se refere já recober­
to de qualificações, envolto por uma atmosfera social de discursos, 
por uma espécie de aura heteroglóssica (i.e., por uma densa e tensa 
camada de discursos). 
A relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do 
termo) nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente: nossas pa­
lavras não tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos 
CfJ 
õ 
o 
3 
~ 
·~ 
u 
sociais que recobrem as coisas. Essa relação palavra/coisas, diz este 
autor, é complicada pela interação dialógica das várias inteligibilida­
des socioverbais que conceitualizam as coisas ( p. 277). 
Essa concepção é, então, apresentada na sequência do texto 
pela bela figura do raio de luz: 
Se nós imaginarmos a intenção de uma tal palavra, isto é, sua dire­
cionalidade para o objeto1, na forma de um raio de luz, então o jogo 
vivo e irrepetível de cores e luz nas faces da imagem que ele constrói 
pode ser explicado como a dispersão espectral da palavra-raio, não 
no interior do objeto em si( ... ), mas antes como sua dispersão espec­
tral numa atmosfera cheia de palavras alheias, julgamentos de valor 
e acentos através da qual o raio passa em seu caminho em direção ao 
objeto; a atmosfera social da palavra, a atmosfera que cerca o objeto, 
faz as faces da imagem cintilar (p. 277). 
É nesse sentido que os textos do Círculo vão dizer recorrente­
mente, que os signos não apenas refletem o mundo (não são ape­
nas um decalque do mundo); os signos também (e principalmen-
te) refratam o mundo._É_~~~11~~~?1?~~1~\TE:~~~s_so A~ ~ri'lg~mu.t~S~.O ~-~ ~u-~~o em matér!a stgrljficam~ 
sempre atravessad() p~la refr~~ão dos quadros axiológicos. 
A DOUTRINA DA REFRAÇÃO 
No processo de referenciação, realizam-se, portanto, duas ope­
rações simultâneas nos signos: eles refletem e refratam o mundo. 
Quer dizer: com os signos podemos apontar para uma realidade que 
lhes é externa (para a materialidade do mundo), mas o fazemos sem­
pre de modo refratado. E refratar significa, aqui, que com nossos 
signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos 
Note-se que Bakhtin, neste texto, usa diversas vezes a palavra intenção no sentido 
filosófico de intencionalidade (termo corrente na fenomenologia), isto é, de direciona­
lidade para um objeto e não no sentido mais comum de desejo, vontade, propósito. 
-na dinâmica história e por decorrência do caráter sempre múl­
tiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos 
) 
- diversas interpretações (refrações) desse mundo. Nessa mesma 
direção, Medvedev dirá que "no horizonte ideológico de uma época 
ou grupo social, não há uma, mas várias verdades mutuamente con­
traditórias" (p. 19). 
Essas várias verdades equivalem aos diferentes modos pelos 
quais o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos huma­
nos. Como resultado da heterogeneidade de sua práxis, os grupos 
humanos vão atribuindo valorações diferentes (e até contraditórias) 
aos entes e eventos, às ações e relações nela ocorrentes. É assim que 
a práxis dos grupos humanos vai gerando diferentes modos de dar 
sentido ao mundo (de refratá-lo), que vão se materializando e se 
entrecruzando no mesmo material semiótico. 
A refração é, desse modo, uma condição necessária do signo na 
concepção do Círculo de Bakhtin. Em outros termos, para o Círculo, 
não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações 
não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um siste­
ma semântico ab~trato, único e atemporal, nem pela referência a u~ 
mundo dado umforme e transparentemente, mas são construídas 
na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de ex­
periências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e 
confrontos de valorações e interesses sociais. 
~El...?_?l&!l()S~não podem ser unívocos (moi1ossêmicQs);~aberta e infinita. 
Anteriormente, em O problema do conteúdo, do material e da 
forma na arte verbal (1924), Bakhtin, embora ainda não falando em 
termos de signos e semiose, já fazia referência a essa dinamicidade do 
universo das significações, quando apresentava qualquer ato da cria­
ção ideológica como vivendo essencialmente nas fronteiras (p. 274). 
Para ele um domínio cultural (uma esfera da criação ideológica) 
' 
não deve nunca ser pensado como tendo uma espécie de todo espa-
cial (um território interno), mas deve ser visto como vivendo sempre 
na intersecção de múltiplas fronteiras. E isso porque cada ponto de 
vista criativo (que implica sempre uma tomada de posição axiológica) 
toma-se necessário e indispensável somente em correlação com ou­
tros pontos de vista criativos (com outras posições axiológicas). 
Essa dinamicidade intrínseca ao universo da criação ideológi­
ca (ao universo das significações) será recoberta, em textos futuros, 
pela metáfora do diálogo (que tantas confusões tem gerado e à qual 
voltaremos adiante). 
Neste ponto, é importante deixar registrado que a reação ao 
caráter infinito (centrífugo) da semiose humana será parte inerente 
ao jogo dos poderes sociais. As vontades sociais de poder tentarão 
sempre estancar, por gestos centrípetos, aquele movimento: tentarão 
impor uma das verdades sociais (a sua) como a verdade; tentarão 
submeter a heterogeneidade discursiva (controlar a multidão de dis­
cursos); monologizar (dar a última palavra); tomar o signo monova­
lente (deter a dispersão semântica); finalizar o diálogo. 
Contudo, Bakhtin, ao fim de sua vida, talvez lembrando suas 
discussões sobre a carnavalização e seu conceito de plurilinguismo 
dialogizado (ver adiante), terminará seu último manuscrito com a 
seguinte observação: 
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limi-
tes para o contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimita-
do e para um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, isto é, 
aqueles que nasceram no diálogo dos séculos passados, não podem 
nunca ser estabilizados (finalizados, encerrados de uma vez por to- \ 
das) - eles sempre se modificarão (serão renovados) no desenrolar 
subsequente e futuro do diálogo. Em qualquer momento do desen­
volvimento do diálogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de 
sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos do 
desenrolar posterior do diálogo eles são relembrados e receberão vi-
gor numa forma renovada (num contexto novo). Nada está morto de 
maneira absoluta: todo sentido terá seu festivo retomo. O problema 
da grande temporalidade (p. 170). 
VOLOSHINOV E BAKHTIN SOBRE O MESMO TEMA 
Numa síntese da discussão anterior, podemos dizer que para 
Medvedev o universo da criação ideológica tem um caráter material 
Lembra "A ordem do discurso do Foucault
(é parte concreta e totalmente objetiva da realidade prática dos seres 
humanos), histórico (não pode ser reduzido a processos fisiológicos 
e psicológicos de individuas isolados) e sociossemiótico (se corpori­
fica em signos, emergindo e significando nos complexos processos 
do intercâmbio social). 
Além disso, como os processos semióticos só refletem o mun­
do refratando-o, os signos são espaços de encontro e confronto de 
diferentes índices sociais de valor, plurivalência que lhes dá vida e 
movimento, caracterizando o universo da criação ideológica como 
uma realidade infinitamente móvel. 
Voloshinov, em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem (em 
especial nos cap. 1-2 e II-4), ao discutir a significação, voltará a en­
fatizar o pressuposto forte do Círculo de que a enunciação de um 
~i~no é sempre.té(mbém aenunciélção de índices sociais de valor, i~~9 
é, a enunciação de um signo tem efeitos de sentido que decorremfljl~ 
posg.QW:dadeAe ~Sl.l!não apenas no sentido mais comum do termo nos 
estudos linguísticos (isto é, as estratificações visíveis nas marcas dia­
letais stricto sensu, aquelas decorrentes do tempo, da distribuição geo­
gráfica e social dos falantes), mas fundamentalmente pela saturação 
da linguagem pelas axiologias sociais, pelos índices sociais de valor. 
Lembremos que, até o fim da década de 1920 (período em que 
está se elaborando esse conceitual do Círculo de Bakhtin), a ciência 
da linguagem verbal- embora estivesse construindo, numa certa 
esfera, uma teorização que pressupunha um objeto unitário e ho­
mogêneo- já vinha trabalhando com a perspectiva da heteroge­
neidade em pelo menos duas direções: a da estratificação temporal 
(quer dizer, o tempo diversifica; as línguas se diferenciam no eixo 
temporal); e a da estratificação espacial (quer dizer, a distribuição 
geográfica dos falantes gera diversidade; é possível, portanto, corre­
lacionar formas diferentes e geografias diferentes). 
Ao mesmo tempo, a ciência da linguagem verbal já estabelecera 
que a estratificação geográfica poderia refletir tempos diferentes, no 
sentido que alguns dialetos são mais conservadores e outros mais 
inovadores e têm percursos históricos diferentes. Articulavam-se aí 
as duas estratificações. 
Já se percebera também que o contato entre as línguas em certas 
circunstâncias era também fator de diversificação, resultando, mui­
tas vezes, no desenvolvimento dos pidgins e dos crioulos. 
Contudo, a ciência da linguagem verbal se ocupava (e se ocupa) 
fundamentalmente da estratificação das formas gramaticais. Seu in­
teresse era (e continua sendo) correlacionar formas gramaticais com 
o tempo e o espaço geográfico. 
Na década de 1960, a criação da sociolinguística veio acrescen­
tar a essas duas estratificações uma terceira: aquela que estabelece 
uma correlação sistemática entre as formas gramaticais e a estrutura 
social. E disso resultou um grau maior de percepção da complexi­
dade das línguas, isto é, elas passam a ser vistas como um complexo 
emaranhado das diferentes estratificações, emaranhado em que se 
correlacionam as variações geográficas, sociais e temporais. 
Ora, o Círculo de Bakhtin, na década de 1920, vai apontar para 
uma estratificação não propriamente e apenas de formas gramaticais' 
(o signo pode ser materialmente o mesmo), mas para uma estratifi­
cação dada por diferentes axiologias, dada pelo processo sócio-histó­
rico de saturar a linguagem de índices sociais de valor. 
~~.~_?~Dt!dQ, (!quilo que chamamos de língua não é só um 
~n~().9:ifu§og~ vari.edadesgeográficas, temporais e sociais (como 
~~1!!'!.1!1 él. dialetologia, a.l!ggut~tjq hi2tQQC:él. t: a ?()c:Joligguísti-
Todo esse universo de variedades formais está também atraves::­
sado outra estratificação, que é dada índices sociais deva­
lor oriundos da diversificada experiência sócio-histórica dos grupos 
~"'""-""~-·-~~~-~~---'~MA palavra diálogo, contudo, tem várias significações sociais, o que 
pode afetar a recepção do pensamento do Círculo. O próprio Bakhtin, 
como veremos abaixo, criticou, em vários momentos, a idéia de um 
dialogismo estreito. É preciso, por isso, neste ponto, fazer até mesmo 
um esforço de compreensão do sentido de diálogo nos trabalhos do 
Círculo para termos condições de explorar seu poder heurístico. 
A palavra diálogo designa, comumente, determinada forma 
composicional em narrativas escritas, representando a conversa dos 
personagens. Pode designar também a sequência de fala dos perso­
nagens no texto dramático, assim como o desenrolar da conversação 
na interação face a face. 
Os membros do Círculo de Bakhtin não são teóricos do diálogo 
nesses sentidos. Não lhes interessa o estudo da forma-diálogo como 
tal, seja na composição escrita ou no texto dramático, seja na interação 
face a face. Desse modo, não constitui objeto de suas preocupações 
a maneira como se dá a troca de turnos entre participantes 
de uma conversa, como faz hoje, por exemplo, a chamada análise 
da conversação. Nem desenvolver um estudo de práticas conversa­
cionais de um grupo humano qualquer, como se faz, por exemplo, 
desde a década de 1960, na chamada etnografia da fala ou da comu­
nicação - por mais interessantes que possam ser essas análises. 
Em seu manuscrito O problema do texto (provavelmente escrito 
em 195911960), Bakhtin diz (p. 124) sobre isso: 
O diálogo concreto (a conversação cotidiana, a discussão científica, o 
debate político, e assim por diante). As relações entre réplicas de tais 
diálogos são um tipo mais simples e mais externamente visíveis de 
relações dialógicas. As relações dialógicas, no entanto, não coinci­
dem de modo algum, é claro, com relações entre réplicas do diá­
logo concreto - elas são muito mais amplas, mais variadas e mais 
complexas (destaque acrescido). 
Portanto, o evento do diálogo face a face (aquilo que eles chamam, 
em vários momentos, de diálogo em sentido estrito do termo) estará no 
foco de atenção do Círculo, mas não como forma composicional e sim 
como" um documento sociológico altamente interessante",(conforme 
se pode ler em Problemas da poética de Dostoievski- apêndice I, p. 
280), isto é, como um espaço em que mais diretamente se pode obser­
var a dinâmica do processo de interação das vozes sociais. 
Em outras palavras, podemos dizer que, no caso específico da 
interação face a face, o Círculo de Bakhtin se ocupa não com o diálogo 
em si, mas com o que ocorre nele, isto é, com o complexo de forças que 
nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali. 
Interessam-lhe, de fato, as forças que se mantêm constantes em 
todos os planos da interação social, desde os eventos mais banais e 
fugazes do cotidiano, até as obras mais elaboradas do vasto espectro 
da criação ideológica. O que lhes interessa é aquilo a que Voloshinov 
se refere como o "colóquio ideológico em grande escala" (Marxismo 
e filosofia da linguagem, p. 95) ou que Bakhtin chama de "o simpósio 
universal" (Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, p. 293). 
Cfj 
õ 
o 
3 
.ê 
e;: 
u 
Assim, o evento do diálogo face a face só interessa como um dos 
muitos eventos em que se manifestam as relações dialógicas - que 
são mais amplas, mais variadas e mais complexas do que a relação 
existente entre as réplicas de uma conversa face a face. O objeto efe­
tivo do dialogismo é constituído, portanto, pelas relações dialógicas 
nesse sentido lato ("mais amplas, mais variadas e mais complexas"). 
Sob essa perspectiva, o diálogo face a face vai também interessar 
ao Círculo como um dos espaços em que se dá, por exemplo, o en­
trecruzamento das múltiplas verdades sociais, ou seja, como um dos 
muitos espaços em que ocorre diálogo no sentido amplo do termo, 
isto é, a confrontação das mais diferentes refrações sociais expressas 
em enunciados de qualquer tipo e tamanho postos em relação. 
O Círculo, portanto, olha para o diálogo face a face do mesmo 
modo que olha para uma obra literária, um tratado filosófico, um 
texto religioso, isto é, como eventos da grande interação sociocultu­
ral de qualquer grupo humano; como espaços de vida da consciência 
socioideológica; como eventos atravessados pelas mesmas grandes 
forças dialógicas (as forças da heteroglossia dialogizada). 
I::;so não significa que o Círculo não distinga as especificidades 
de cada um desses espaços de vida da consciência socioideológica. 
Boa parte de seus textos vai precisamente no sentido de estudar essas 
especificidades, em especial no que diz respeito à criação literária. 
No entanto, é característica do pensamento do Círculo o con­
tínuo reportar-se às práticas do cotidiano, valorizando-as como es­
paços em que já estão embutidas as bases da criação ideológica mais 
elaborada e as fontes da sua contínua renovação. 
As raízes dessa valorização do cotidiano estão certamente no 
envolvimento filosófico inicial de Bakhtin com o mundo da vida (cf., 
em especial, Para uma filosofia do ato), mas também no embate do 
Círculo com a poética dos formalistas - que se sustentava precisa­
mente numa radical distinção entre a linguagem poética e a lingua­
gem do cotidiano. 
Para Bakhtin e o Círculo, ao contrário, trata-se de aproximá-las 
porque nelas, no fundo, estão em funcionamento as mesmas forças: 
estão ambas situadas na grande corrente da comunicação sociocul­
tural e nas duas se materializam tomadas de posição axiológicas e 
relações dialógicas (cf., em especial, a discussão de Medvedev sobre 
essa questão no cap. 5 de O método formal nos estudos literários). 
Voloshinov, nesse sentido, explicita uma distinção - que apa­
recerá mais à frente também no texto de Bakhtin O problema dos 
gêneros do discurso (do início da década de 1950) - entre duas 
esferas da criação ideológica: a ideologia do cotidiano e os sistemas 
ideológicos constituídos (cf. em especial Marxismo e filosofia da lin­
guagem, p. 19-21 e p. 91- 92). 
A primeira esfera compreende a totalidade das atividades so­
cioideológicas centradas na vida cotidiana, desde os mais fortuitos 
eventos (um acidental pedido de informação na rua) até aqueles que 
se associam diretamente com os sistemas ideológicos constituídos (a 
leitura de um romance, por exemplo). 
A segunda esfera compreende a totalidade das práticas socioi­
deológicas culturalmente mais elaboradas, como as artes, as ciências, 
o direito, a filosofia, a religião etc. 
Obviamente, Voloshinov não entende estas duas esferas como 
realidades independentes, mas em estreita interdependência. Ele vê 
a esfera dos sistemas ideológicos constituídos como se consolidando 
a partir das práticas da ideologia do cotidiano e, ao mesmo tempo, 
se renovando continuamente por meio de um vínculo orgânico com 
estas mesmas práticas que abrigam, segundo ele, os indicadores pri­
meiros e mais sensíveis das mudanças socioculturais e 
ainda mais, [indicadores] de mudanças ainda em processo de incre­
mento, ainda sem um formato definido e não ainda amoldados em sis­
temas ideológicos já regularizados e integralmente definidos (p. 19). 
Essas mudanças socioculturais vão encontrar mais tarde sua , , 
expressão nas produções ideológicas mais elaboradas que, por sua 
\ 
vez, acabam por exercer uma forte influência sobre as práticas do 
cotidiano. 
Em cada uma dessas esferas, desenvolve-se, em cada época e 
em cada grupo social, um conjunto de gêneros de formas da comu­
nicação socioideológica (p. 20)- que Bakhtin chamará adiante de 
gêneros do discurso, distinguindo os gêneros primários (aqueles da 
ideologia do cotidiano) e os gêneros secundários (aqueles dos sis­
temas ideológicos constituídos). Voltaremos a este tema específico 
no capítulo três. 
Por ora, destacamos apenas que a valorização das práticas so­
cioideológicas do cotidiano, o pressuposto da uniformidade das 
forças que dinamizam ambas as esferas e a propostade tratá-las 
em constante inter-relação assentam as bases para uma teoria das 
práticas socioculturais que não despreza o cotidiano, nem super­
valoriza as esferas mais elaboradas. Não se perde numa fragmen­
tação empiricista, nem se condena ao determinismo inexorável de 
grandes estruturas. 
RELAÇÕES DIALÓGICAS 
Voloshinov, particularmente, é quem mais se ocupa com o 
evento do diálogo face a face. Isso, porque, segundo ele (conforme 
se pode ler no artigo A construção do enunciado, p. 124), é aí que se 
pode encontrar a chave para o entendimento daquilo que ocorre nos 
enunciados das esferas mais elaboradas da criação ideológica, como, 
por exemplo, nos enunciados literários. 
Em todas as suas discussões, ele alerta sempre o leitor para o 
fato de que tudo o que ocorre no diálogo face a face é de caráter 
intrinsecamente social, isto é, a interação face a face não pode, em 
nenhum sentido, ser reduzida ao encontro fortuito de dois seres em­
píricos isolados e autossuficientes, soltos no espaço e no tempo, que 
trocam enunciados a esmo. 
A interação face a só pode ser adequadamente analisada -
mesmo quando a consideramos em sua absoluta singularidade, como 
evento único e irrepetível-, projetando-a na grande torrente da inte­
ração social: ela precisa ser vista como um evento do "simpósio univer­
sal", do "colóquio ideológico em grande escala". É necessário~ portanto, 
dimensioná-la como estrutura socioideológica, naqual os intera,ctantes 
sã~~~~? soc~almente orgar~izaª()~, situados e agindc)num COJJ:lplexo 
quadro de relações socioculturais, no interior do qual se manifestam 
~.~~·-·~~"á'-~"--'--'''·'-"··"'--- ------" ~"--'~,.--.-o- .. -.-&.0•' -- - .- -" --
relações dialógicas (1JD sentido bakhtiniano da expressão). 
Bakhtin, no capítulo 5 de seu livro Problemas da poética de Dos­
toievski, ao distinguir as tarefas da linguística e da disciplina que ele 
chama de metalinguística (nome traduzido mais frequentemente por 
translinguística, para evitar confusões com o uso mais corrente do 
termo metalinguística), diz: 
A linguística reconhece, é claro, a forma composicional da "fala dialo­
gada" e estuda suas características sintáticas e léxico-semânticas. No 
entanto, ela as estuda como fenômenos puramente linguísticos, isto 
é, no plano da língua; é incapaz de abordar a natureza específica das 
relações dialógicas entre as réplicas num diálogo (p. 182-3). 
Vamos encontrá-lo no futuro, em seu manuscrito inacabado O 
problema do texto, criticando explicitamente a "concepção estreita de 
dialogismo" que o compreende apenas como uma forma composi­
cional do discurso (p. 117). Nesse mesmo texto, ele vai caracterizar 
as relações dialógicas como relações de sentido que se estabelecem 
entre enunciados, tendo como referência o todo da interação verbal 
e não apenas o evento da interação face a face. 
-~-ssim, quaisq11er enunciaª()~, se postos lado a lado no pla­
!_l()_dgsentido, "acabam por estabelecer 11ma relação dialógica" (p. 
117). -~esmo enunciados separados um do outro no tempo e no 
esp~~o e que nada sabem um do outro, se confrontados no plano 
d~~entido, revelarão relações dialógicas (p.124). E isso em qual­
quer ponto do vasto universo da criação ideológica, do intercâm­
bio sociocultural. 
As relações dialógicas - diz Bakhtin no mesmo manuscrito 
(p. 124) - não podem ser reduzidas a relações de ordem lógica, 
linguística (no sentido estrito do termo), psicológica, mecânica ou 
natural. São relações de sentido de um tipo especial que se estabele­
cem entre enunciados ou mesmo no interior de enunciados (quando 
marcados, por exemplo, pela chamada bivocalídade). 
Essa mesma temática foi apresentada por Bakhtin no cap. 5 do 
seu livro Problemas da poética de Dostoievshi. :2SL1l_i, e! e primeiramen­
te afirmaque não há relações dialógicas 11~lí!l:gua enquanto objetQ, 
da linguística, isto é? não há relações dialógicas e!ltre elementos d~"«· 
um sistema linguístico (por exemplo, entre palavras em um dicioná.­
ri~,entre morfemas? entrepalavras de uma sentença etc.). Também 
não há tais rela~.C:~~-dialógicas entre ele1ll~l};t()~M~ç_~lll t,~xto ou en~re 
g:~t()s~q1la~sl-2 apgrd_ados por um viés estritamente ling11ístico; nem 
entre unidades sintáticas ou ~-~~E~ :pr:()E()Siçõ~s_quando _ig}léllll1.Bakhtin 
arrola, então, várias outras situações em que se pode reconhecê-las, 
dizendo (p. 121): 
A compreensão estreita de dialogismo como debate, polêmica ou pa­
ródia. Estas são as formas externamente mais óbvias, embora rudi­
mentares, de dialogismo. A confiança na palavra do outro, a recepção 
reverencial (a palavra de autoridade), o aprendizado, a busca pelo sen­
tido profundo e sua natureza obrigatória, a concordância, suas infinitas 
gradações e nuanças (mas não suas limitações lógicas e restrições pura­
mente referenciais), a estratificação de um significado que se sobrepõe 
a outro, de uma voz que se sobrepõe a outra voz, fortalecimento por 
meio da fusão (mas não identificação), a combinação de muitas vozes 
(um corredor de vozes) que amplia a compreensão, o afastamento para 
além dos limites do compreendido, e assim por diante. 
DIÁLOGO É CONSENSO? 
Isso posto, é necessário lembrar ainda que a palavra diálogo, 
no uso corrente, tem também uma significação social marcadamente 
positiva, que remete a 'solução de conflitos', a 'entendimento', a 'ge­
ração de consenso'. 
Ora, essa significação também não ocorre como tal no pensa­
mento do Círculo de Bakhtin. Seus membros não são, portanto, teó­
ricos do consenso ou apologistas do entendimento. Ao contrário, 
tentam dar conta da dinâmica das relações dialógicas num contexto 
social dado e observam que essas relações não apontam apenas na 
direção das consonâncias, mas também das multissonâncias e disso­
nâncias. Delas pode resultar tanto a convergência, o acordo, a ade­
são, o mútuo complemento, a fusão, quanto a divergência, o desa­
cordo, o embate, o questionamento, a recusa. 
E, para enfatizar esse entendimento multidirecional do funcio­
namento das relações dialógicas - e não apenas na direção do con­
senso, do entendimento, do acordo - , lembramos aqui a expressão 
tenso combate díalógico ocorre nas fronteiras" que Bakhtin usa, 
em seu caderno de notas de 1970/1971 (p. 143), para caracterizar a 
dinâmica das relações dialógicas. 
Voloshinov, por seu turno, ao tratar da pluralidade de acentos 
avaliativos das expressões verbais, dá também destaque a essa idéia 
do "tenso combate dialógico". Diz ele em seu livro de filosofia da 
linguagem (p. 80): 
De fato, qualquer enunciado concreto, de um modo ou outro ou em 
um grau ou outro, faz uma declaração de acordo ou de desacordo 
com alguma coisa. Os contextos não estão apenas justapostos, como 
se alheios uns aos outros, mas encontram-se num estado de tensão 
constante, ou de interação e conflitos ininterruptos. 
Fica claro, então, que o Círculo de Bakhtin entende as relações 
dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portan­
to, não apenas coexistem, mas se tensionam nas relações dialógicas. 
Mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao 
dizer de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros di­
zeres (outras vozes sociais): aceitar incondicionalmente um enuncia­
do (e sua respectiva voz social) é também implicitamente (ou mesmo 
explicitamente) recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que 
podem se opor dialogicamente a ela. 
É nesse sentido que Bakhtin vai dizer, em O discurso no roman­
ce (p. 272), que qualquer enunciado é uma unidade contraditória e 
tensa de duas tendências opostas da vida verbal, as forças centrípetas 
e as forças centrífugas. 
Assim, o diálogo, no sentido amplo do termo ("o simpósio uni­
versal"), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as 
vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam 
forças centrípetas (aquelas que buscam impor certa centralização 
verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas 
(aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, 
por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso 
de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hi­
bridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc.). 
Bakhtin, ao apresentar sua concepção axiologicamente estratifi­
cada da linguagem (a heteroglossia) e sua dialogização (a heteroglos­
sia dialogizada), aponta também, portanto, para a existência de jogos 
de poder entre as vozes que circulam socialmente, manifestados nas 
tendências centrípetas e correlacionados a condições sócio-históri­
cas específicas. 
Ao qualificar as forças centrípetas como monologizantes, é pre­
ciso observar que elas não deixam de ser dialógicas: elas também 
constituem um gesto responsivo no oceano da heteroglossia. Em 
outras palavras, a atitude discursiva monológica é intrinsecamente 
dialógica- como, aliás, na concepção do Círculo, todas as manifes­
tações verbais. 
HETEROGLOSSIA DIALOGIZADA E LUTA DE CLASSES 
Mesmo reconhecendo os jogos de poder, Bakhtin- diferente­
mente de Voloshinov - não estabelece em nenhum momento uma 
vinculação estreita entre vozes sociais e classes sociais. Há sim, no 
conceitual do plurilinguismo dialogizado, luta social entre as dife­
rentes "verdades sociais", mas não uma correlação estreita entre essas 
lutas e a chamada luta de classes. 
Também não há em seus textos nenhuma perspectiva de supe­
ração definitiva dos jogos de poder. O processo dialógico é conce­
bido como infindo, inesgotável. As forças centrífugas - das quais 
talvez o riso e a carnavalização sejam as mais fortes- corroem con­
tinuamente todos os esforços de centralização discursiva. Assim, na 
lógica de Bakhtin, não há (nem nunca haverá) um ponto de "síntese 
dialética", de "superação definitiva das contradições". 
contudo, estabelece explicitamente uma vinculação 
estreita entre classes sociais e a estratificação socioaxiológica da lingua­
gem, descrevendo esta como decorrente daquela. Nessa linha, afirma 
que classe social e comunidade semi ótica não se confundem na medida 
em que as diferentes classes sociais se servem da mesma língua, atraves­
sando-a, no entanto, com diferentes (e contraditórios) índices de valor. 
Por isso, em suas palavras, o signo se toma a arena onde se desenvolve 
a luta de classes (Marxismo e filosofia da linguagem, p. 23). 
Neste mesmo texto, ele diz também que a classe dominante ten­
ta tomar monovalente o signo- que é, no entanto, sempre poliva­
lente -,imprimindo-lhe, com este gesto, um caráter de deformação 
do ser a que remete o signo. 
Voloshinov, no entanto, não fecha adequadamente a questão 
que propõe. Fica irresolvida, em seus textos, a conjunção da teoria 
da refração (todo e qualquer signo refrata necessariamente o mundo) 
- que implica a existência simultânea de "várias verdades sociais" 
- e uma teoria da divisão da sociedade em classes - que explici-
tamente atribui a verdade a uma das classes (o proletariado), aquela 
que revolucionariamente construirá uma sociedade sem classes. 
Em nenhum momento, Voloshinov teoriza sobre como seria dis­
cursivamente uma sociedade sem classes. Desapareceria a refração dos 
signos? Desapareceria a estratificação axiológica da linguagem? Esta­
riam, na sociedade sem classes, esgotados os processos dialógicos? 
No texto em que ele mais extensa e abertamente discute essa 
questão (A palavra e sua função social- publicado em 1930), fica 
bastante clara sua dificuldade em juntar as duas teorias, em harmo­
nizar a (eterna) refração com a redenção da sociedade sem classes. 
De um lado, ele reitera a teoria da refração, isto é, nenhuma 
palavra reflete seu objeto de forma totalmente acurada ('objetiva'), 
nenhuma palavra é a fotografia daquilo que ela significa (p. 144). O 
signo, portanto, sempre refrata o mundo. E repisa sua velha tese de 
que as refrações "em última análise são inevitavelmente condiciona­
das por relações de classe" (p. 144). 
'~ 
Destaca, porém, que na linguagem de cada classe há sempre um 
grau particular de correspondência entre o verbal e a obje­
tiva, cabendo ao proletariado o ponto de vista que mais intimamente 
se aproxima da "lógica objetiva da realidade" (p.146). Quer dizer: Vo­
loshinov assume que a linguagem do proletariado também refrata o 
mundo (não é, portanto, integralmente não refratada), mas a refração é 
menor do que aquela que ocorre em outras classes sociais. Em nenhum 
momento, porém, este autor esclarece como estabelecer estes graus de 
refração e de correspondência com a "lógica objetiva da realidade". 
Ao admitir que a linguagem do proletariado também refrata o 
mundo, Voloshinov acaba por se comprometer com o infindo, com o 
inesgotável (tão característico do pensamento do Círculo de Bakhtin), 
com a não superação definitiva das contradições, o que - parece -
introduz um conflito com o conceitual marxista dominante à época 
em seu país. Assim é que ele diz (p. 145) que a pessoa real vive na 
história, "no eternamente turbulento mar da luta de classes que não 
conhece nenhum descanso, nenhuma pacificação" (ênfase acrescida). 
No fundo, o problema que perseguia os membros marxistas do 
Círculo de Bakhtin era como costurar com as ortodoxias de seu tem­
po um conceitual que cultiva, como pressuposto básico, a idéia do 
não fechamento, do inesgotável, do inacabamento, do movimento 
infindo. Ou, dito de outra forma, como aderir a uma verdade (que se 
propagava como a verdade e tinha o aparelho do Estado a seu lado) 
e, ao mesmo tempo, aceitá-la como também refratada. E, se refratada 
(sempre refratada), passível de ser dessacralizada na atmosfera do 
plurilinguismo dialogizado. 
RESUMINDO O TEMA DA DIALOGIA 
Numa síntese, podemos dizer que o Círculo de Bakhtin - desde 
sua virada linguística por volta de 1925/1926- vai progressivamente 
pavimentando o caminho em direção à adoção, por volta de 1928/1929, 
diálogo como a grande metáfora que dará um arremate às reflexões 
do Círculo sobre a linguagem e sobre a criação ideológica em sua totali­
dade, bem como sustentará as discussões futuras do próprio Bakhtin. 
Os primeiros textos em que a grande metáfora do diálogo apa­
rece como tal são os dois livros de 1929: aquele assinado por Vo­
loshinov sobre filosofia da linguagem e o de Bakhtin sobre Dostoie­
vski. Vamos encontrar, pela primeira vez, uma extensa discussão das 
chamadas relações dialógicas (Problemas da poética de Dostoievski, 
p. 182-185), bem como a expressão diálogo em sentido amplo (Mar­
xismo e filosofia da linguagem, p. 95) para designar o complexo das 
relações dialógicas, a dinâmica dos signos e das significações enten­
dida como se realizando responsivamente de modo similar às répli­
cas de um diálogo face a face. 
As raízes dessa metáfora estão, contudo, já nos primeiros textos 
de Bakhtin, naqueles em que as relações um/outrem (a inter-ação, 
portanto) são extensamente discutidas, embora ainda sem a inter­
venção substancial e constitutiva da linguagem, como ocorrerá à 
frente. O que temos nesses primeiros textos dos inícios da década de 
1920 é uma espécie de metafísica da interação, em que as relações 
um/outrem são ainda fundadas num jogo que passa pela visão (o 
olhar de fora e o excesso de visão são categorias centrais aqui) e não 
propriamente pela linguagem. 
A partir do texto O discurso na vida e o discurso na poesia, pu­
blicado por Voloshinov em 1926, a linguagem entra em cena, seja 
em suas manifestações no cotidiano (na 'vida'), seja na criação ideo­
lógica em sentido amplo; e a interação passa a ser assumida de modo 
claro como uma realidade fundamentalmente social e semiótica. 
Mesmo as referências aos enunciados da conversa cotidiana 
buscam mostrar como o "pequeno fato social imediato" (Freudismo, 
p. 175) se integra no quadro maior da interação prática do respecti­
vo grupo social, no intercâmbio social contínuo desse determinado 
grupo. Nesse sentido, os enunciadores rião são vistos como seres 
empíricos, mas como um complexo de posições sociais avaliativas. 
No texto de 1926, encontramos Voloshinov asseverando que 
enunciar é tomar uma posição social avaliativa (p. 16); é posicionar­
se frente a outras posições sociais avaliativas, já que falamos sempre 
numa atmosfera social saturada de valorações. 
Esta formulação de Voloshinov reproduz, de certa forma, afirma­
ção de Bakhtin em seu texto O autor e o herói na atividade estética. 
Nele, lemos (p. 4) que, na vida cotidiana, nós reagimos (responde­
mos) valorativamente às manifestações dos que nos cercam. Esta visa­
da axiológica é, como já destacamos, um dos pilares do edifício teórico 
bakhtiniano. O que Voloshinov faz é reelaborá-la projetando-a na lin­
guagem. Assim, em seus termos, enunciar é responder, como aparece 
em seu artigo de 1928 (As correntes mais recentes do pensamento lin­
guístico no Ocidente, p. 43), no qual vai destacar também que o enun­
ciado não só responde como se põe para uma resposta (p. 43). 
Essa segunda afirmação anuncia o tema caro ao Círculo (e que 
vai ser formulado pelo próprio Voloshinov no livro sobre filosofia da 
linguagem): o da compreensão responsiva. Para ele, o processo de com­
preensão não podia ser entendido como passivo, como mera decodifi­
cação de uma mensagem. A compreensão é um processo ativo Qá que 
tem de lidar com o novo e não com o recorrente do enunciado) em que 
se opõe "à palavra do locutor uma contrapalavra" (p. 102); "a compre­
ensão é uma resposta a um signo por meio de outros signos" (p. ll). 
Finalmente, chegamos aos textos de 1929 em que explicitamente 
a dinâmica da criação ideológica, a interação social em todas as suas 
esferas, a enunciação e o enunciado, a compreensão responsiva, a orga­
nização interna do próprio enunciado e a construção e funcionamento 
da consciência são abrangidos pela grande metáfora do diálogo. 
A UTOPIA BAKHTINIANA 
A propósito do tema do diálogo no Círculo de Bakhtin, há ain­
da outro aspecto que precisa ser considerado. O diálogo é aí mais 
que apenas uma grande metáfora para tratar de assuntos de determi­
nada semiótica social, de uma filosofia da linguagem. Bakhtin não é 
apenas o filósofo das relações dialógicas em sentido amplo; o diálogo 
é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que poderíamos 
considerar como sua grande utopia. 
É costume lembrar que Bakhtin viveu boa parte de sua vida adulta 
sob um regime totalitário, tendo sido, inclusive, vítima de perseguição 
política, o que resultou em prisão, num exílio de seis anos no Cazaquis­
tão e num ostracismo de trinta anos em cidades provincianas, já que, 
como antigo prisioneiro político, era alcançado pela proibição do regime 
stalinista de fixar residência e trabalhar em grandes centros urbanos. 
Apesar disso, parece que nunca lhe faltou o impulso utópico, a 
crença de que outro mundo era possível; ou, para usar suas próprias 
palavras, parece que nunca lhe faltou o senso de fé, isto é (conforme 
se lê em Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski), 
não fé (no sentido de uma fé específica na ortodoxia [na religião or­
todoxa], no progresso, no homem, na revolução etc.), mas um senso 
de fé, isto é, uma atitude integral (por meio da pessoa como um todo) 
em relação a um valor superior e supremo (p. 294). 
Parece bem claro, pelo conjunto de seus textos, que o "valor 
superior e supremo" para Bakhtin era a heteroglossia e sua dialogi­
zação infinda; ou, em outros termos, a pluralidade dialogizada das 
vozes e, neste meio heterogêneo, a resistência a qualquer processo 
centrípeto, monologizador. 
O texto em que mais explicitamente se vê esse seu impulso utó­
pico, é precisamente o manuscrito que acabamos de citar. Escrito em 
1961, consiste em uma série de apontamentos e reflexões com vistas 
à revisão de seu livro de 1929. Essa revisão lhe fora solicitada por 
professores da Universidade de Moscou, que haviam recentemente 
redescoberto seu trabalho (naqueles anos do degelo político pro­
piciado pelo governo de N. Kruschev) e lhe haviam proposto uma 
nova edição, que viria a ser publicada em 1963. 
É nesse manuscrito preparatório dessa nova edição que Bakhtin 
deixa emergir suautopia. Expõe aí sua idéia de que a vida humana é 
por sua própria natureza dialógica. Nesse sentido, 
Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, 
dar atenção, responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diá­
logo, uma pessoa participa integralmente e no correr de toda sua vida: 
com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e 
com todos os seus feitos. Ela investe seu ser inteiro no discurso e 
esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio 
universal (p. 293). 
Neste "simpósio universal", a morte absoluta (o não-ser) é o es­
tado de não ser ouvido, de não ser reconhecido, de não ser lembrado. 
Isto porque ser significa se comunicar, significa ser para um outro e, 
pelo outro, ser para si mesmo (p. 287). A subjetividade se constitui e 
se move no denso caldo do simpósio universal, sendo a alteridade e a 
intersubjetividade, portanto, absolutamente indispensáveis: 
Eu não posso me arranjar sem um outro, eu não posso me tornar eu 
mesmo sem um outro; eu tenho de me encontrar num outro para 
encontrar um outro em mim (p. 287) 
Nesse sentido, Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência 
de monologização da existência humana, isto é, de negar a existên­
cia de um outro eu com iguais direitos e iguais responsabilidades. 
Uma atitude monológica ou um modelo monológico do mundo é 
autocentrado e insensível às respostas do outro; não as espera e não 
reconhece nelas nenhuma força decisiva; pretende ser a última pala­
vra (p. 292-293). 
Como forma de sobrepujar o monologismo, só há, para Bakhtin, 
a via do diálogo sem fim, que ele considera a única forma de preservar 
a liberdade do ser humano e de seu inacabamento (p. 291); uma re­
lação, portanto, em que o outro nunca é reificado; em que os sujeitos 
não se fundem, mas cada um preserva sua própria posição de extraes­
pacialidade e excesso de visão e a compreensão daí advinda (p. 299). 
E 
De certa forma, o que Bakhtin parece estar defendendo aqui 
é sua utopia de um mundo polífônico, no qual a multiplicidade de 
vozes ~plen~\T~l~n!e_s e de consciências independentes e não fundíveis 
tem direito de cidadania- vozes e consciências que circulam e in­
teragem num diálogo infinito. 
Lembremos, por oportuno, que o termo polifonia, adotado por 
Bakhtin do vocabulário da música, foi por ele usado para qualificar 
o projeto estético realizado por Dostoievski em seus romances da 
maturidade. 
Bakhtin considerava que Dostoievski havia criado um gênero 
romanesco novo, caracterizado pelo fato de que nele 
aparece um herói cuja voz é construída exatamente como a voz do 
próprio autor num romance de tipo comum. Uma palavra do herói 
sobre si mesmo e sobre seu mundo é tão plena quanto a palavra do 
autor costuma ser; não está subordinada à imagem objetificada do 
herói como apenas uma de suas características, nem serve ela de por­
ta-voz da palavra do autor. Ela possui extraordinária independência 
na estrutura da obra; é como se soasse ao lado da palavra do autor, 
coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalen­
tes dos outros heróis (p. 7). 
O termo, portanto, tem, em princípio, um sentido bastante es­
pecífico: ele é introduzido no vocabulário bakhtiniano para designar 
o modo novo de narrar que, segundo Bakhtin, havia sido criado por 
Dostoievski. Polifonia não pode, desse modo, ser confundido com he­
teroglossia ou plurivocidade, que são termos utilizados por Bakhtin 
para designar a realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo 
ân~lo da multiplicidade de línguas sociais ("o plurilinguismo real"). 
É inadequado não distinguir os termos aqui principalmente 
porque a estratificação socioaxiológica da linguagem não gera neces­
sariamente uma realidade polifônica. Polifonia não é, para "[).~!última 
e definitiva palavra. Um mundo em que qualquer gesto centrípeto 
será logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da 
polêmica, da paródia, da ironia. 
É esse Bakhtin utópico que nos convida a renunciar aos hábitos 
monológicos (p. 272); e a aprender com o próprio Dostoievski en­
quanto criador do romance polifônico (p. 36). 
E, na utopia de superar toda e qualquer monologização da exis­
tência humana, Bakhtin viu no carnaval - entendido não como 
uma festa específica, mas como todo um modo de apreender o mun­
do ("um senso carnavalesco do mundo", p. 107)- uma poderosa 
força vivificante e transformadora da vida cultural, dotada de uma 
vitalidade indestrutível, porque "nada absolutiza, apenas proclama 
a alegre relatividade de tudo" (p. 125), justamente ao permitir uma 
vida às avessas, em que 
as leis, proibições e restrições que determinam a estrutura e a ordem 
da vida ordinária, não carnavalesca, são suspensas durante o carnaval: 
o que se suspende antes de tudo é a estrutura hierárquica e todas as 
formas correlatas de terror, reverência, piedade e etiqueta- isto é, tudo 
aquilo que resulta da desigualdade sócio-hierárquica ou de qualquer ou­
tra forma de desigualdade entre as pessoas (inclusive a etária) (p. 122). 
Nesse sentido, a festa em si é importante apenas na medida em 
que, ao viver o carnaval, podemos visualizar a possibilidade de outro 
mundo, de negar o atual e afirmar o possível (mesmo que isso ocorra 
apenas no limite dos dias festivos). Contudo, mais importante que a 
festa é o senso carnavalesco do mundo (o carnaval, neste sentido, é, 
no dizer de Bakhtin, funcional e não substantivo, p. 125). 
É este senso ~JE:P.~Q.C::I2~9.ji}§1TJ:!!!1~Q!~.~- de um senso carnavalesco do mundo (p. 107)- vai de­
senvolver extensamente a questão desse senso carnavalesco em sua 
análise da obra de Rabelais (Rabelais e seu texto que teve 
uma história bastante peculiar: foi escrito na década de 1940 e apre­
sentado como tese de doutoramento ao Instituto Gorki de Literatura 
Universal em 1946. A defesa, porém, cobriu um período de quase 
oito anos! Só em 1952 foi-lhe concedido finalmente um título aca­
dêmico, mas não o de doutor. 
Para entender o episódio, é necessário lembrar que, ao tempo 
de sua defesa, logo após a Segunda Guerra Mundial, o governo stali­
nista voltava a apertar o cerco às atividades culturais. A relativa libe­
ralização que ocorrera durante a Guerra desaparecia e retomavam-se 
os controles policialescos das atividades intelectuais, que eram obri­
gadas a se submeter às linhas estreitas do dirigismo oficial. 
Ora, a tese de Bakhtin nada tinha a ver, de fato, com os dogmas 
do oficialismo. Desse modo, colocava a banca em situação muito de­
licada: era impossível negar as muitas qualidades do trabalho, mas, 
ao mesmo tempo, aprová-lo poderia trazer para os membros da ban­
ca pesadas consequências. A saída foi postergar a decisão por anos a 
fio e, ao cabo do processo, conceder-lhe apenas o título de candidato 
e não propriamente o de doutor (para detalhes deste processo, cf. 
Pan'kov 1998 e 1999). 
Nesse texto, Bakhtin retoma seu percurso de filósofo do riso, 
que se iniciara nos trabalhos em que elaborou sua teoria do romance 
(nas décadas de 1930 e 40), em especial em Da pré-história do dis­
curso romanesco. 
Nesta teoria, o romance é apresentado como o gênero literário plu­
riestilístico, plurilíngue e plurivocal por excelência. Bakhtin o reconhece 
como uma forma relativamente nova, mas põe em evidência sua longa 
história. Argumenta (p. 50) que suas raízes estão no riso e no plurilin­
guismo - que, segundo ele, são os fatores historicamente responsáveis 
pela descentração e relativização da consciência humana, processo que, 
em termos artísticos, encontrará no romance sua expressão. 
o 
ü o 
'~ 
i5 
Seu arg111nento é que a humanidade vai construindo hist()ri­
camente, por meio do riso e da percepção do plurilinguismo, 
c~n~ciê~cia descentrada (que se percebe uma entre muitas), chama­
dapor ele figurativamente de consciência galileana. 
O riso participa organicamente desse processo porque tudo 
dessacraliza e relati~za. Rir dos discursos deixa clara sua upJl~terali­
dade e seus limites, descentrando-os, portanto. A consciê~c!a" socio-
,..,_..-,~~~·,-~~~,~-,- ,-- ~ -- ,,_ - - ,- - -- - ,, --~-- ,-,, -
ideológica passa a percebê-los como~apenas uns~ntre muito~."t; em 
suas relações tensas e contraditórias. O riso destrói, assirn' .. ~"~J~;t?ssas 
paredes que aprisionaram a consciência no seu próprio discurs(), na 
sua própria linguagern (p. 6Q). 
Por outro lado, a percepção do plurilinguismo (da multidão 
das línguas alheias e, principalmente, de seu esclarecimento recípro­
co, p. 51) faz ver que a "minha língua" e a "minha cultura" não são 
únicas, são apenas uma entre muitas. Essa percepção liberta a cons­
ciência dos limites de um unilinguismo fechado e impermeável (p. 
61): dá-lhe a dimensão da diversidade linguística e do emaranhado 
de conflitos interlinguísticos (isto é, entre as línguas ditas nacionais) 
e intralinguísticos (isto é, no interior da realidade estratificada da 
própria língua). Nas palavras do próprio Bakhtin (p. 65): 
Lá onde as línguas e as culturas se vivificaram mutuamente, a língua 
se tornou algo inteiramente diferente, sua própria natureza mudou: 
no lugar de um mundo linguístico ptolomaico, único e fechado, apa­
rece o mundo galileano, aberto e com muitas línguas mutuamente se 
vivificando. 
É dessa consciência galileana que nascerá o romance como o 
gênero literário que dá forma estética à plurivocidade social. É isso 
que nos diz Bakhtin no seu texto O discurso no romance (p. 366): 
O romance é a expressão de uma percepção galileana da língua, 
uma percepção que nega o absolutismo de uma língua única e uni­
tária - isto é, que se recusa a reconhecer sua própria língua como 
o único centro semântico-verbal do mundo ideológico. É uma per-
cepção que se tornou consciente da vasta plenitude das línguas 
nacionais e, mais precisamente, das línguas sociais - das quais 
todas são igualmente capazes de ser "línguas da verdade", mas, em 
assim sendo, são igualmente relativas, reificadas, limitadas, já que 
são apenas línguas de grupos sociais, de profissões e de outras di­
mensões da vida cotidiana (p. 367). 
O filósofo italiano Augusto Ponzio, em seu livro sobre filosofia 
da linguagem (Ponzio, 1994), aproveita esse raciocínio de Bakhtin 
e estende-o para justificar a própria construção histórica de uma 
consciência filosófica. 
Segundo ele (cap. 10), a consciência filosófica só se tornou de 
fato possível como produto da consciência do plurilinguismo. Só 
quando a língua foi percebida como não unitária, mas pluridiscur­
siva - isto é, só quando se percebeu que se fala significativamente 
do mesmo mundo por meio de registros conceituais e axiológicos 
diferentes (por diferentes línguas ou vozes sociais)- é que emergiu 
uma consciência filosófica, uma consciência que vive precisamente 
do confronto desses diferentes dizeres significativos. Filosofar, se­
gundo Ponzio (p. 260), é pôr-se em relação com o dizer do outro; é, 
para usar os termos de Bakhtin, estabelecer relações dialógicas com 
os enunciados e as vozes alheias. 
Claro, diz Ponzio, este embate pluridiscursivo gerou duas di­
reções: uma monologizante e outra dialogizada; uma que expulsa 
o sofista da ágora (para usar a imagem de Foucault em A ordem do 
discurso) e a outra quemencionados e a alguns artigos também publicados 
de Voloshinov e Medvedev. 
a assinatura 
Esse fato trouxe para os estudos bakhtinianos uma generalizada 
confusão quanto à autoria desses textos. Até hoje, nenhum argu­
mento convincente conseguiu resolver essa dúvida criada, ao que 
tudo indica, artificialmente por lvanov. 
O contínuo e infrutífero debate acabou por diVidir a recepção 
daqueles textos em três direções: 
a) a primeira é a daqueles que respeitam as autorias das edi­
ções originais e, por consequência, só reconhecem como 
da autoria do próprio Bakhtin os textos publicados sob seu 
nome ou encontrados em seus arquivos; 
b) a segunda direção é a daqueles que atribuem a Bakhtin to­
dos os textos ditos disputados; 
c) há, por fim, uma solução de compromisso que inclui os 
dois nomes na autoria. Assim, Freudismo e Marxismo e filo­
sofia da linguagem são atribuídos a Bakhtin!Voloshinov; e O 
método formal nos estudos literários, a Bakhtin/Medvedev. 
Neste livro, adotamos a primeira direção. E há várias razões 
para isso. Em primeiro lugar, entendemos que atribuir a cada um 
dos autores os textos publicados sob seus respectivos nomes é uma 
forma adequada de respeitar sua memória- o que não é irrelevante, 
considerando o lado trágico de suas existências. 
Mais importante, porém, é nãD perder a diversidade de pen­
samento do grupo, suas múltiplas e inegáveis inter-relações e sua 
apreciável riqueza. Isso. tudo sem esquecer que Bakhtin, a partir da 
década de 1960 e até a ~ua morte,. teve várias oportunidades concre-
' taS: de reivindicar a a~toria dos .textos mencionados e nunca o fez. 
Considerando que DS três intelectuais envolvidos tiveram fortes la­
. ços de amiz~de, encontraram-se regularmente durante dez anos ( 1919-
1929)num estudos e partilharam um conjunto expressivo de 
ideias, adotamos também a denominação que se tomou corrente 
para identificar o conjunto da obra: o Círculo de Bakhtin. 
É importante lembrar que essa denominação foi-lhes atribuí­
da a posteriori pelos estudiosos de seus trabalhos, já que o próprio 
grupo não a usava. A escolha do nome de Bakhtin, neste caso, é ple­
namente justificável, tendo-se em conta que de todos foi ele quem 
produziu, sem dúvida, a obra de maior envergadura. 
o CíRCULO DE BAKHTIN 
Antes de prosseguir, parece útil apresentar alguns dados sobre o 
Círculo. Trata-se de um grupo de intelectuais (boa parte nascida por 
volta da metade da década de 1890) que se reuniu regularmente de 
1919 a 1929, primeiro em Nevei e Vitebsk e, depois, em São Peters­
burgo (à época rebatizada de Leningrado). 
Era constituído por pessoas de diversas formações, interesses inte­
lectuais e atuações profissionais (um grupo multidisciplinar, portanto), 
incluindo, entre vários outros, o filósofo Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan 
I. Kanaev, a pianista Maria V Yudina, o professor e estudioso de literatura 
Lev V Pumpianski e os três que vão nos interessar mais de peno neste 
livro: Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev. 
Sobre Voloshinov, sabe-se que trabalhava como professor e, de 
início, tinha seus interesses voltados para a história da música, vin­
do, porém, a se formar em estudos linguísticos em 1927, dedicando­
se, em seguida, a estudos pós-graduados na mesma área. Medvedev, 
formado em direito, teve uma carreira de educador e de gestor na 
área da cultura. Desenvolveu intensa atividade no jornalismo cultu­
ral e ensinou literatura no Instituto Pedagógico Herzen, em Lenin­
grado. Voloshinovveio a falecer em 1936, vitimado pela tuberculose; 
e Medvedev, provavelmente em 1940, vítima dos expurgos políticos 
que varreram a URSS no fim da década de 1930. 
Bakhtin, por sua vez, teve formação em estudos literários. Atuou 
como professor, embora sem vínculos institucionais (principalmente 
por problemas de saúde) até ser preso em 1929. Condenado a um 
exílio no Cazaquistão, só pôde encontrar um emprego permanente 
depois da Segunda Guerra Mundial, tornando-se professor de lite­
ratura do Instituto Pedagógico (depois, Universidade) de Saransk 
(Mordóvia), donde se aposentou em 1969, passando seus últimos 
anos de vida na região de Moscou, onde faleceu em 1975. 
Apreciando sua obra retrospectivamente e considerando a am­
plidão de seus temas e a densidade de suas reflexões, o melhor que se 
pode dizer dele (seguindo hoje uma tendência internacional) é que 
foi um filósofo, talvez um dos mais importantes do século XX, embo­
ra seu ostracismo por mais de trinta anos tenha impedido a circulação 
e o debate de suas ideias até praticamente a década de 1970. 
Os membros do Círculo que recebeu seu nome, tinham em co­
mum, conforme se pode ler em Clark & Holquist (p. 65), uma pai­
xão pela filosofia e pelo debate de ideias, o que é facilmente percep­
tível nos textos que nos legaram. Mergulhavam fundo nas discussões 
de filósofos do passado, sem deixar de se envolver criticamente com 
autores de seu tempo. 
Podemos acrescentar a essa paixão outra que, progressivamen­
te, invade os interesses do Círculo, em especial em seus tempos de 
Leningrado: a paixão pela linguagem. 
PROBLEMAS DE RECEPÇÃO 
Além da confusão em torno da autoria de certos textos publi­
cados nos anos 1920, a recepção da obra do Círculo de Bakhtin, 
quando de sua reentrada em cena de meados da década de 1960 em 
diante, foi, para dizer o menos, bastante tumultuada. Basta lembrar, 
nesse sentido, que o material veio vindo à luz na Rússia sem nenhu­
ma ordem cronológica e sua publicação levou mais de vinte anos 
para se completar, desde a reedição do livro sobre Dostoievski em 
1963 até a edição, em 1986, de Para uma ato. Ironica­
mente, o primeiro dos textos mais longos escritos por Bakhtin foi o 
último a ser publicado! 
De certa forma, o mesmo aconteceu com a chegada das obras 
no Ocidente: não houve nenhuma ordem cronológica na sua divul­
gação, que, por sua vez, levou perto de vinte e cinco anos para se 
completar, desde as primeiras traduções em 1968 (ano em que apa­
receram a edição em italiano da obra sobre Dostoievski e a edição em 
inglês da obra sobre Rabelais) até a tradução para o inglês de Para 
uma filosofia do ato em 1993. 
Além disso, é preciso registrar que nem sempre as traduções fo­
ram feitas com o devido cuidado. Bastaria lembrar o caso da primei­
ra tradução do livro sobre Dostoievski para o inglês. Alguns outros 
exemplos mais pontuais podem ser lidos em Souza (1999, p. 42-53) 
e Castro (1997). 
Acrescente-se a isso tudo o fato de que boa parte dos textos 
do próprio Bakhtin é constituída de manúscritos inacabados, alguns 
apenas rascunhados, o que nos deixa, sem dúvida, numa situação de 
não poucas dificuldades quanto à apreensão de seu pensamento. 
No Brasil, a recepção das ideias do Círculo teve também suas 
peculiaridades. Além de não poucos problemas de tradução, o pen­
samento do Círculo, com bastante frequência e durante muitos anos, 
foi identificado quase exclusivamente ao livro Marxismo e filosofia 
da linguagem, o primeiro a ser publicado em português (em 1979). 
Por outro lado, em especial pelo viés do discurso pedagógico 
(mas não apenas), houve uma banalização de termos como diálogo, 
interação e gêneros do discurso, retirados do vocabulário do Círculo, 
mas claramente despojados de sua complexidade conceitual (con­
forme argumentaremos mais à frente). 
E, por fim, cabe lembrar a confusão que se criou com o termo 
polifonia, seja por ser ele tomado inadvertidamente como sinônimo 
3 
.~ 
u 
o o 
de heteroglossia (ou seja pelo sentido que ele tem 
no quadro de referência do linguista francês O. Ducrot, nem sem­
pre claramente distinguido, entre nós, de seu sentido em Bakhtin1 
Comentaremos esta questão peculiar no capítulo dois. Desde já, po­
rém, recomendamos aos leitores interessados a discussão do concei­
to bakhtiniano de polifonia em Tezza (2002 e 2003). 
DOIS GRANDES PROJETOS 
Quando se observa em conjunto a obra do Círculoo acolhe com todos os direitos. É porque teve 
de enfrentar a pluridiscursividade que a filosofia gerou tendências 
universalizantes, unificadoras, marcadas pela quimera de silenciar a 
heterogeneidade e estancar a dialogia. 
Por isso, Ponzio vai propor (cap. 12) que a filosofia da lingua­
gem seja o espaço do desenredamento crítico dos processos sociais 
geradores de significação (298) e dos processos de reificação e abso­
lutização dos discursos (301). 
8 
Q 
SUJEITO 
É no interior do complexo caldo da heteroglossia e de sua dia­
logização que nasce e se constitui o sujeito. A realidade linguística 
se apresenta para ele primordialmente como um mundo de vozes 
sociais em múltiplas relações dialógicas - relações de aceitação e 
recusa, de convergência e divergência, de harmonia e de conflitos, 
de interseções e hibridizações. 
É nessa atmosfera heterogênea que o sujeito, mergulhado nas 
múltiplas relações e dimensões da interação socioideológica, vai-se 
constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo 
tempo, suas inter-relações dialógicas. É nesse sentido que Bakhtin 
várias vezes diz, figurativamente, que não tomamos nossas palavras 
do dicionário, mas dos lábios dos outros. 
Como a realidade linguístico-social é heterogênea, nenhum su­
jeito absorve uma só voz social, mas sempre muitas vozes. Assim, 
ele não é entendido como um ente verbalmente uno, mas como um 
agitado balaio de vozes sociais e seus inúmeros encontros e entre­
choques. O mundo interior é, então, uma espécie de microcosmo 
heteroglóssico, constituído a partir da internalização dinâmica e 
ininterrupta da heteroglossia social. Em outros termos, o mundo in­
terior é uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas rela­
ções de consonâncias e dissonâncias; e em permanente movimento, 
já que a interação socioideológica é um contínuo devir. 
Nesse processo de construção socioideológica do sujeito, as vo­
zes funcionarão de diferentes modos. Algumas entrarão como vozes 
de autoridade e outras como vozes internamente persuasivas (nos 
termos de Bakhtin em O discurso no romance, p. 342ss.). 
A palavra de autoridade, em seus variados tipos, é aquela que nos 
interpela, nos cobra reconhecimento e adesão incondicional. Trata-se 
de uma palavra que se apresenta como uma massa compacta, encap-
impermeável, resistente a bivocalizações. E, por isso 
tudo, é uma palavra que "não se pode pronunciar em vão" (p. 342). 
Já a palavra que se apresenta como internamente persuasiva é 
aquela que aparece como uma entre outras muitas. Transita, por­
tanto, nas fronteiras, é centrífuga, é permeável às bivocalizações e 
hibridizações, abre-se continuamente para a mudança. 
O embate e as inter-relações dialógicas dessas duas categorias 
do discurso (em seus diferentes tipos e graus) são determinantes da 
história da consciência ideológica individual. Quanto mais as vozes 
forem funcionalmente de autoridade para o sujeito, mais monoló­
gica (ptolomaica) será sua consciência; quanto mais internamente 
persuasivas as vozes, mais galileana será sua consciência. 
Nosso mundo interior, portanto, é, em sua essência, sociossemióti­
co (sem signos não há consciência) e, por isso mesmo, heterogêneo, na 
medida em que a realidade linguístico-social é heterogênea (plurilíngue). 
E sua dinâmica interior decorre da dialogização desta heterogeneidade. 
Sobre isso, diz Voloshinov (em Marxismo e filosofia da lingua­
gem, p. 13) que a consciência toma forma e existência nos signos 
criados por um grupo social no processo de sua interação social. A 
consciência individual se alimenta de signos; deriva deles seu cresci­
mento; reflete sua lógica e leis. 
Esta lógica é precisamente a da interação socioideológica, isto 
é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogizado. É 
esta dinâmica social que, internalizada, desencadeia o moto contí­
nuo da atividade psíquica. 
Nossos enunciados emergem - como respostas ativas que são 
no diálogo social - da multidão das vozes interiorizadas. Eles são, 
assim, heterogêneos. Desse ponto de vista, nossos enunciados são 
sempre discurso citado, embora nem sempre percebidos como tal, já 
que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em 
nós sem que percebamos sua alteridade (na figura bakhtiniana, são 
palavras que perderam as aspas). 
o ,.., 
~· 
a 
o 
ü 
3 ,__,; 
i5 
Outras, contudo, estão na nossa memória discursiva como pala-
(isto é, -~~~~~T11l!lC:~~~----~"-"~·--"~do sujeito 
e de sua atividade, não houve, em princípio, lugar teórico para a 
questão do inconsciente psicanalítico. Os membros do Círculo co­
nheciam evidentemente as formulações freudianas. Contudo, não as 
incorporaram em suas reflexões. Ao contrário, reagiram criticamente 
a elas - Voloshinov em especial. 
Em seu livro Freudismo (de 1927), ele desenvolve uma expo­
sição e crítica de vários aspectos da teoria freudiana. Reconhece sua 
magnitude e seu caráter inovador. Reconhece também a complexida­
de do mundo psíquico e os conflitos que o atravessam (e, nesse sen­
tido, é herdeiro de Freud). Recusa, porém, com base em argumentos 
sociológicos de certa inspiração marxista, o modo como Freud teori­
za sobre esse mundo, em especial o viés fisiológico e subjetivista que, 
3 
segundo Voloshinov, sustenta a psicanálise freudiana. Para o psi-
quismo é fundamentalmente linguagem e, por isso, socioideológico. 
Mesmo recusando Voloshinov sente-se atraído (e desafiado) 
' 
pela "descoberta freudiana" e tenta esboçar (cap. 9) uma formulação 
que interpreta o inconsciente e os conflitos psíquicos como resultan­
tes da luta, no interior, de diferentes motivos socioideológicos. 
Nem Voloshinov, nem os outros membros do Círculo voltaram a 
essa temática. Por outro lado, o pesado discurso marxista (marcado, 
sem dúvida, pelas pressões da conjuntura em que o livro foi escrito) 
pode velar as qualidades polêmicas do texto de Voloshinov e impedir 
que se avance, oitenta anos depois de sua publicação e considerando 
a história posterior da psicanálise, um diálogo produtivo entre a con­
cepção de linguagem do Círculo e as teorias do inconsciente. 
Tal diálogo adquire particular interesse na atual conjuntura dos 
estudos linguísticos, em que as teorias que propuseram uma incor­
poração teórica do inconsciente psicanalítico na análise da lingua­
gem, embora tenham contribuído para uma relevante problematiza­
ção do dizer e de suas significações, não foram ainda muito além de 
genéricas declarações de princípio - talvez porque o inconsciente 
mais se esconda do que se revele. 
Saber se há, de fato, incompatibilidade epistemológica entre um 
olhar bakhtiniano e um olhar psicanalítico é tema complexo e que 
transcende os objetivos e limites deste livro. No entanto, entendemos 
ser uma questão pertinente um eventual diálogo entre esses dois mun­
dos, em especial considerando que ambos os olhares pressupõem a 
alteridade, a heterogeneidade, o conflito, a singularidade e, em espe­
cial, a linguagem - mesmo que em planos teóricos diferentes. 
SER AUTOR 
O tema do autor e da autoria está presente, em maior ou menor 
grau, em quase todos os escritos conhecidos de Bakhtin. Trata-se de um 
tema uma extensa elaboração de natureza filosófica Gá que, 
desde cedo, Bakhtin esteve empenhado em construir uma estética geral) 
e que conheceu diferentes desdobramentos a cada novo retomo a ele. 
Já no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin dis­
tingue o autor pessoa (isto é, o escritor, o artista) do autor criador 
(isto é, a função estético-formal engendradora da obra, o pivõ que 
sustenta a unidade do todo esteticamente consumado). 
O autor criador é entendido fundamentalmente como uma po­
sição estético-formal cuja característica básica está em materializar 
certa relação axiológica com o herói e seu mundo: ele os olha com 
simpatia ou antipatia, distância ou proximidade, reverência ou crítica, 
gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura, ge­
nerosidade ou crueldade, júbilo ou melancolia, e assim por diante. 
Obviamente, embora os exemplos estejam aqui apresentados em 
construções alternativas, é preciso não perder de vista que uma efeti­
va posição axiológica nunca é um todo uniforme e homogêneo, mas 
agrega múltiplas e heterogêneas coordenadas. A simpatia pelo herói e 
seu mundo poderá, por exemplo, ser nuançada por uma crítica melan­
cólica; a reverência, por uma suave e sutil ironia, e assim por diante. 
É esse posicionamento valorativo que dá ao autor criador a for­
ça de constituir o todo: é a partir dela que se criará o herói e o seu 
mundo e se lhes dará o acabamento estético. 
No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na 
arte verbal (escrito em 1924), Bakhtin amplia o escopo da posição 
axiológica do autor criador, incluindo nela tanto o herói e seu mun­
do, quanto a forma composicional e o material, isto é, o todo estético 
materializa escolhas composicionais e de linguagem que resultam 
também de um posicionamento axiológico. 
Se podemos dizer que a distinção autor pessoa/autor criador é hoje 
um lugar-comum nas teorizações estéticas, ainda assim as considerações 
bakhtinianas trazem ao conceito de autor criador uma substância pecu­
liar ao caracterizá-lo fundamentalmente como uma posição axiológica. 
Para se as bases dessa conceituação, é importante 
reiterar que, para Bakhtin, ag~and~fo~ça que move o univ~~so 
práticas culturais são precisamente as posições socioavaliativas 
t~S}l~!l!~ dinâmica de múltiplas i~~eE:E~J~SQ~§It;?p()n~i.vas. 
Em outras palavras, todo ato cultural se move numa atmosfe­
ra axiológica intensa de interdeterminações responsivas, isto é, em 
todo ato cultural assume-se uma posição valorativa frente a outras 
posições valorativas (conforme se pode ler em seu ensaio O problema 
do conteúdo, do material e da forma na arte verbal). 
Desse modo, qualquer texto tem, como seu ponto de partida 
e como seu elemento estruturante, um posicionamento axiológico, 
uma posição autoral. No ato artístico, especificamente, a realidade 
vivida Qá em si atravessada por diferentes valorações sociais porque 
a vida se dá num complexo caldo axiológico) é transposta para um 
outro plano axiológico (o plano da obra): o ato estético opera sobre 
sistemas de valores e cria novos sistemas de valores. 
No ato artístico, aspectos do plano da vida são destacados (iso­
lados) de sua eventicidade, são organizados de um modo novo, su­
bordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem auto­
contida e acabada. E é o autor criador - materializado como certa 
posição axiológica frente a certa realidade vivida e valorada - que 
realiza essa transposição de um plano de valores para outro plano de 
·valores, organizando um novo mundo (por assim dizer) e sustentan­
do essa nova unidade. 
O autor criador é, assim, quem dá forma ao conteúdo: ele não 
apenas registra passivamente os eventos da vida (ele não é um este­
nógrafo desses eventos), mas, a partir de certa posição axiológica, 
recorta-os e reorganiza-os esteticamente. 
O ato criativo envolve, desse modo, um complexo processo de 
transposições refratadas da vida para a arte: primeiro, porque é um 
autor criador e não o autor pessoa que compõe o todo estético -há 
aqui, portanto, já um deslocamento refratado à medida que o autor 
criador é uma posição axiológica conforme recortada pelo autor pes-
soa. para usar um comentário tardio de Bakhtin (em seus apon­
tamentos de 1970-71, p. 152), a posição autoral é, no fundo, uma 
máscara - autorar é assumir uma máscara (determinada 
posição axiológica, determinada voz social). Nesse sentido, Bakhtin 
entende que não há enunciado em que se possa encontrar uma face; 
encontramos sempre ali um autor criador (uma máscara, portanto). 
Por outro lado, a transposição de planos da vida para a arte se 
dá não por meio de uma isenta estenografia (o que seria impossível 
na concepção bakhtiniana), mas a partir de um certo viés valorativo 
(aquele consubstanciado no autor criador). 
O autor criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Re­
fratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recorta­
da pelo viés valorativo do autor pessoa; e refratante porque é a partir 
dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida. 
Lembremos, a propósito disso, que, para o Círculo de Bakhtin, 
os processos semióticos- quaisquer que sejam eles- ao mesmo 
tempoem que refletem, sempre refratam o mundo. Em outras pa­
lavras, a semiose não é um processo de mera reprodução de um 
mundo "objetivo", mas de remissão a um mundo múltipla e hetero­
geneamente interpretado - isto é, aos diferentes modos pelos quais 
o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos em 
cada momento de sua experiência histórica. 
A distinção autor pessoa/autor criador - tratada de maneira 
geral em O autor e o herói na atividade estética - vai ser retomada 
por Bakhtin em seu manuscrito inacabado O problema do texto em 
linguística, filologia e nas ciências humanas (provavelmente escrito 
por volta de 1960). 
Neste texto, aquela distinção recebe uma nova formulação sus­
tentada agora na filosofia da linguagem que Bakhtin havia desenvol­
vido no seu ensaio O discurso no romance (redigido em 1934-1935). 
Ela passa a ser caracterizada como envolvendo um necessário deslo­
camento no plano da linguagem - entendida linguagem aqui não 
no sentido gramatical do termo, nem no sentido político-cultural da 
língua unitária, mas no sentido construído em O no roman­
ce, qual seja, a linguagem concebida como heteroglossia - como 
um conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes ou línguas sociais, isto 
é, um conjunto de formações verboaxiológicas. 
No ato artístico, há, então, um complexo jogo de deslocamentos 
envolvendo as línguas sociais, pelo qual o escritor (que é aquele que 
tem o dom da fala refratada) direciona todas as palavras para vozes 
alheias e entrega a construção do todo artístico a uma certa voz. 
Essa voz criativa (isto é, o autor criador enquanto elemento es­
tético-formal) tem de ser sempre, segundo insiste Bakhtin, uma voz 
segunda, ou seja, o discurso do autor criador não é a voz direta do 
escritor (do autor pessoa), mas um ato de apropriação refratada de 
uma voz social qualquer de modo a poder ordenar um todo estético. 
A linguagem não deslocada (isto é, se a voz do escritor enquanto 
pessoa permanece como tal) é, para Bakhtin, ingênua e inadequada para 
a autêntica criação estética. O escritor é, então, a pessoa capaz de traba­
lhar numa linguagem enquanto permanece fora dessa linguagem. 
Mesmo que a voz do autor criador seja a voz do escritor como 
pessoa, ela só será esteticamente criativa se houver deslocamento, 
isto é, se o escritor for capaz de trabalhar em sua linguagem perma­
necendo fora dela. 
No livro sobre Dostoievski, Bakhtin apresenta esse necessário 
deslocamento com um vocabulário anterior à sua filosofia da lingua­
gem, dizendo que as ídeias do escritor, quando entram na obra, mu­
dam sua forma de existência: transformam-se em imagens artísticas 
das ídeias, isto é, não são as ideias do escritor como tais que entram 
no todo estético, mas sua refração. 
Essa mesma compreensão já aparecia no texto O autor e o herói 
na atividade estética quando Bakhtin dizia que mesmo que o escritor 
coloque suas ideias na boca do herói, não são mais suas ideias porque 
estão precisamente na boca do herói e se conformam ao seu todo. 
No ensaio O no romance, esse deslocamento fundador do 
ato estético está sintetizado (agora sob os pressupostos da filosofia da 
linguagem) da seguinte maneira: trata-se de dizer "Eu sou eu" na lin­
guagem de outrem; e de dizer, na minha linguagem, "Eu sou outro". 
Essa concepção do necessário deslocamento presente no ato 
de trabalhar uma linguagem estando fora dela remete àquilo que 
Bakhtin chama, em seu ensaio sobre o autor e o herói, de o princípio 
esteticamente criativo na relação autor/herói, qual seja, o princípio 
da exterioridade: é preciso estar fora; é preciso olhar de fora; é pre­
ciso um excedente de visão e conhecimento para poder consumar o 
herói e seu mundo esteticamente. 
Posto em termos de linguagem, o princípio da exterioridade 
(a lógica imanente da criação estética) demanda do escritor que ele 
desista de sua linguagem, saia dela, liberte-se dela, olhe-a pelo olho 
de outra linguagem, desloque-a para outrem ao mesmo tempo em 
que se desloca para outra linguagem. 
Em outros termos, é necessário que a consciência artística se 
libere da prisão da linguagem que se impõe como única e absoluta 
(conforme está discutido no ensaio Da pré-história do discurso roma­
nesco); que se libere da hegemonia aprisionadora do imaginário de 
uma língua unitária e da língua como mito (isto é, como uma forma 
absoluta de significar) e se deixe vagar livremente pela heteroglossia. 
No fundo, a formulação da distinção autor pessoa/autor criador 
em termos de deslocamentos no plano da linguagem é apenas um 
outro modo de apresentar a conceituação primeira de Bakhtin. Pri­
mordialmente, ele nos apresenta o autor criador (enquanto elemento 
estético-formal) como uma posição axiológica que dá unidade ao 
todo artístico. Neste outro momento, Bakhtin caracteriza o autor 
criador como a voz social que dá unidade ao todo artístico. 
Este segundo modo de enunciar apenas transpõe a primeira con­
ceituação para o quadro de referências da filosofia da linguagem de­
lineada na década de 1930. Nela- ao conceber a linguagem como 
heteroglossia - Bakhtin vai dar materialidade verbal às posições so-
c 
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o 
"' 
cioaxiológicas que passam a ser entendidas como vozes ou línguas so­
ciais, isto é, como formações em que confluem formas léxico-gramati­
cais e uma semântica cujo dominante são os índices sociais de valor. 
Em suma, a função estético-formal de autor criador é, nos dois 
casos, uma posição axiológica. A única diferença é que, no segundo 
momento, essa posição se reveste de materialidade verbal e o autor 
criador passa a ser identificado à voz social que cria e sustenta a uni­
dade do todo artístico. 
Por ser uma função imanente ao todo estético e por definir-se 
como uma posição axiológica, o autor criador (a voz segunda) é, para 
Bakhtin, pura relação: não se trata de um ente físico (não é possível 
encontrar nas ruas Dom Casmurro como tal), mas de uma função 
narrativa imanente que condensa, num todo estético, determinado 
feixe de relações valorativas. Ou, como aparece formulado no fim de 
O autor e o herói na atividade estética, a posição axiológica do autor 
criador é um modo de ver o mundo, um princípio ativo de ver que 
guia a construção do todo estético e direciona o olhar do leitor. 
Dentre incontáveis exemplos possíveis, escolhemos Angústia para 
ilustrar essa discussão. Obviamente, Luís da Silva, o autor criador da 
narrativa, não é Graciliano Ramos, o escritor do romance. É um ente 
interno ao romance, puramente relaciona!; é uma voz social refratada 
esteticamente (i. e, transposta para o plano estético); é uma posição 
socioaxiológica que poderíamos caracterizar como a do funcionário 
pobre, "um Luís da Silva qualquer" (p. 19), solitário e amargo, viven­
do uma vida monótona e estúpida, cheio de "tristeza e raiva" (p.6). 
Só enxerga uma paisagem em que "tudo [é] feio, pobre, sujo" 
(p. 36), em que nada tem qualquer sentido. Despreza profundamen­
te os outros e se vê por eles desprezado ("sujeitos remediados que 
me desprezam porque sou um pobre diabo", p. 6; "Rua do Comér­
cio. Lá estão os grupos que me desgostam", p.9). 
Vive fechado em si, ruminando, com amargor, sua insignificân­
cia de ser abjeto a seus próprios olhos. Mesmo seu interesse por 
Marina não pode ser classificado por um caso de amor (sentimento 
que, de fato, não existe em Luís da Silva); é antes uma atração carnal 
por uma mulher que ele sequer estima. O que lhe dói é perdê-la para 
Julião Tavares, a quem votava um desprezo total ("o homem odioso 
que tinha tudo, mulheres, cigarros", p. 182). Essa situação vai acirrar 
seus ressentimentos e seus ódios. 
É dessa posição axiológica integralmente negativa que Luís da 
Silva constrói sua angustiante narrativa, narrativa que se afunda em 
penosas recordações e em doentios redemoinhos psíquicos em que 
delírio e realidade se mesclam quase sem distinção. 
A AUTOBIOGRAFIA E A AUTOCONTEMPLAÇÃO 
Anecessidade do princípio da exterioridade no ato criador poderia 
ser questionada no caso da autobiografia. Nesta, escritor e herói aparen­
temente coincidem. Bakhtin, porém, toma a autobiografia precisamente 
para reiterar seu postulado geral de que sem deslocamento não há ato 
criador (conforme se pode ler em O autor e herói na atividade estética). 
Para ele, a autobiografia não é (e não pode ser) um mero dis­
curso direto do escritor sobre si mesmo, pronunciado do interior do 
evento da vida vivida. Ao escrever uma autobiografia, o escritor pre­
cisa se posicionar axiologicamente frente à própria vida, submeten­
do-a a uma valoração que transcenda os limites do apenas vivido. 
Para isso (para posicionar-se axiologicamente frente à própria 
vida), o escritor precisa dar a ela certo acabamento, o que ele só alcan­
çará se distanciar-se dela, se olhá-la de fora, se tornar-se um outro em 
relação a si mesmo. Em outros termos, ele precisa se auto-objetificar, 
isto é, precisa olhar-se com certo excedente de visão e conhecimento. 
O ato de autocontemplação no espelho motiva reflexão seme­
lhante em Bakhtin. Pode parecer, numa abordagem superficial desse 
fenômeno, que estamos, de fato, nos vendo diretamente como os 
outros nos veem. No entanto, diz Bakhtin, vemos no espelho uma 
face que nunca temos efetivamente na vida vivida: vemos apenas um 
reflexo do nosso exterior e não a nós mesmos em termos nosso 
exterior, porque estamos em frente ao espelho e não no seu interior. 
O que fazemos, então, quando em frente ao espelho, à falta des­
sa efetiva possibilidade (de nos vermos a nós mesmos inteiramente 
abarcados pelo nosso exterior) é nos projetarmos num possível outro 
peculiarmente indeterminado, com cuja ajuda tentamos encontrar 
uma posição axiológica em relação a nós mesmos. Nesse sentido, 
nunca estamos sozinhos frente ao espelho: um segundo participante 
está sempre implicado no evento da autocontemplação. 
Em seu caderno de notas de 1943 (conforme traduzidas e publi­
cadas por Tatiana Bubnova em Hacia una filosofía del acto ético. De los 
borradores. Y otros escritos, p. 14 7), Bakhtin volta a esse tema, desta­
cando a complexidade que se esconde atrás da aparente simplicidade 
da autocontemplação. É ingênuo pensar, diz ele, que no ato de olhar­
se no espelho há uma fusão, uma coincidência do extrínseco com o 
intrínseco. O que ocorre, de fato, é que, quando me olho no espelho, 
em meus olhos olham olhos alheios; quando me olho no espelho, não 
vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a 
mim mesmo com os olhos do mundo- estou possuído pelo outro. 
Essas reflexões todas têm, como pano de fundo, o pressuposto 
bakhtiniano forte do primado da alteridade, no sentido de que tenho 
de passar pela consciência do outro para me constituir (ou, num vo­
cabulário mais hegeliano, o eu-para-mim-mesmo se constrói a partir 
do eu-para-os-outros; cf. Apontamentos de 1970-1971). 
Ü TEMA DO AUTOR NO CíRCULO DE BAKHTIN 
Dos outros membros do Círculo de Bakhtin, apenas Voloshinov 
vai se ocupar do tema do autor, dedicando a ele boa parte do seu ar­
tigo O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado em 1926. 
O núcleo sua discussão é muito similar ao de Bakhtin: ela é 
Lcu.uu,_u ... formulada em termos de posições axiológicas. Para Voloshi­
nov, o todo estético condensa uma complexa rede de relações axio­
lógicas envolvendo três grandes constituintes imanentes: o autor, o 
receptor e o herói. 
Ele deixa claro também que o autor não se confunde com o es­
critor, nem o receptor com o público reaL Trata-se, nos dois casos, de 
funções imanentes, constitutivas da obra. Cada uma delas consubs­
tancia (de forma refratada) posições valorativas sociais e, em relações 
recíprocas, determinam, do interior, a forma do todo estético. 
Se no texto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin pen­
sa a forma artística como expressão da relação axiológica do autor 
criador com o herói (e só muito tangencialmente faz referência ao 
receptor imanente), Voloshinov como que complementa aquela dis­
cussão, detalhando as referências ao terceiro elemento (o receptor 
imanente) nessa relação. 
O autor criador tem uma relação axiológica com o herói, mas 
nunca perde de vista os posicionamentos axiológicos do receptor 
imanente, seja frente ao mesmo herói, seja frente à própria relação 
do autor criador com o herói. Em outras palavras, o autor criador 
fala do herói, mas sempre atento ao que os outros pensam do herói 
e da própria relação dele com o herói. 
A relação autor/herói fica assim mais claramente atravessada 
pelos diálogos sociais, pelas interdeterminações responsivas. O re­
ceptor imanente é a função estético-formal que permite transpor 
para o plano da obra manifestações do coro social de vozes. 
CAPÍTULO TRÊS 
A FILOSOFIA DA 
LINGUAGEM 
BAKHTIN E VoLOSHINOV SOBRE A LINGUAGEM 
s dois pensadores do Círculo que escre­
veram mais explicitamente sobre ques­
tões de linguagem foram Bakhtin e Vo­
loshinov: A filosofia da linguagem que 
construíram, não está, porém, apresen­
tada integralmente num único texto, até 
mesmo porque sua elaboração se esten­
deu no tempo. Ela vai se constituindo ao 
longo da segunda metade da década de 
1920, o período mais produtivo do Círculo como tal, até sua dissolução 
-por força das circunstâncias a que já nos referimos- em 1929. 
Bakhtin voltará, posteriormente, a essa temática, ampliando-a e 
complementando-a. Trata-se, portanto, de um pensamento construí­
do coletivamente num primeiro momento e que continua evoluindo 
depois da dispersão do grupo. 
O próprio Bakhtin, em carta de 1961 a V Kozhinov pode 
ser lida em Bocharov, p. 1016), afirma que os três livros fim dos 
anos 1920 (O nos Marxismo e 
losofia da linguagem e Problemas da poética de Dostoievshi) estão 
baseados numa concepção comum de linguagem - construída ao 
tempo em que os três autores "estavam trabalhando em contato cria­
tivo muito próximo" (p. 1016). E adiante acrescenta: 
Até hoje me mantenho fiel à concepção de linguagem e fala que foi 
pela primeira vez apresentada, de modo incompleto e nem sempre in­
teligível, naqueles livros, embora, é claro, a concepção tenha evoluído 
nos últimos trinta anos. 
Desse modo, para apreender essa filosofia da linguagem numa 
visão de conjunto, é preciso percorrer e aproximar vários dos textos 
do Círculo e do próprio Bakhtin. No correr deste capítulo, apresen­
taremos os passos do processo de construção dessa filosofia, ao mes­
mo tempo em que tentaremos fazer uma apresentação de seus eixos 
principais. Por ora, deixamos arrolados, em ordem cronológica, os 
textos de cada um desses autores em que questões de linguagem 
foram discutidas. 
De Voloshinov: 
- O discurso na vida e o discurso na poesia (1926); 
- O freudismo: um esboço crítico (1927); 
- As correntes mais recentes do pensamento linguístico no Oci-
dente (1928); 
- Marxismo e filosofia da linguagem (1929); 
- Estilística do discurso literário (1930) - que compreen-
de os três artigos: "O que é a linguagem?", "A estrutura do 
enunciado" e "A palavra e sua funçao social"; 
-"As fronteiras entre poética e linguística" (1930). 
De Bakhtin: 
- Problemas da poética de Dostoievski (192911963); 
- "O discurso no romance" (1934-35); 
- Rabelaís e seu mundo (1945/1965); 
(1952-53); 
"(1974). 
Cabem aqui duas observações: 
a) os três últimos textos de Bakhtin são, de fato, manuscritos 
inacabados, com muitas de suas partes apenas esboçadas; 
b) tópicos de linguagem ocorrem esparsamente nas várias no­
tas de caderno, em especial nas de 1970-1971. 
Por fim, lembramos que tainbém no livro de Medvedev há con­
siderações sobre a linguagem, boa parte delas muito semelhantes às 
formulações dos outros dois autores. Em todo caso, a elas faremos 
referência sempre que pertinente. 
As RELAÇÕES COM A LINGUÍSTICA 
Como destacamos anteriormente, o Círculo de Bakhtin conhe­
ceu, por volta de192511926, uma virada linguística, isto é, a questão 
da linguagem passou a ser central em suas reflexões e reorientou 
todos os trabalhos daí para a frente. O marco inicial dessa virada 
é o artigo O discurso na vida e o discurso na poesia, publicado por 
Voloshinov em 1926. 
No entanto, antes dessa virada já encontramos, nos textos de 
Bakhtin, reflexões esparsas sobre a linguagem. Ela, contudo, não é 
ainda colocada como o núcleo articulador do seu pensamento, nem 
ele se concentra em dizer como a está concebendo. 
Apesar disso, podemos afirmar que as grandes coordenadas . 
da concepção de linguagem que o Círculo construiu depois, já es­
tavam presentes em Para uma filosofia do ato, particularmente as 
seguintes: 
a) a perspectiva da refraçao avaliatíva de nossas relações com 
o mundo - fundamento da futura concepção da linguagem 
como estratificada axiologicamente e do conceitual da hetero­
glossia, isto é, da multiplicidade das vozes ou línguas sociais; 
b) a relação eu/outro- fundamento da grande metáfora dialó­
gica do Círculo, que vai orientar sua compreensão da dinâ­
mica da cultura imaterial e donde emerge a filosofia do riso 
de Bakhtin e seu conceitual da heteroglossia dialogizada, da 
bivocalização, do discurso citado; 
c) o destaque à unicidade dos eventos do mundo da vida- que 
sustentará, no futuro, a insistência do Círculo em aproximar 
sistematicamente as práticas de linguagem do cotidiano e 
aquelas das diferentes esferas da criação ideológica. 
Foi preciso, porém, submeter essas grandes coordenadas concei­
tuais a uma semioticização sociologizada para redesenhar-lhes o per­
fil heurístico: foi preciso perceber sua materialização em linguagem e, 
ao mesmo tempo, perceber a linguagem para além de uma concepção 
apenas formal, dimensionando-a nas relações sociointeracionais. 
No texto O problema do conteúdo, do material e da forma na arte 
verbal (de 1924),já está claro que a questão da linguagem estava co­
meçando a tomar corpo nas reflexões de Bakhtin. Neste texto, nós o 
encontramos afirmando que os enunciados concretos emergem sem­
pre num contexto cultural semântico-axiológico e asseverando que, 
desse modo, não há e nem pode haver enunciados neutros (p. 292) 
- o dizer assevera valores, isto é, sempre que enun~~~~~~~~~~~ 
mos também uma J20sição axiológica. 
-~· u,~Y/Z"h~-~?"-'~~~r;,o,,•V~- -·· '' '"' m, '•, '-,~,":; ·~- ''~' '- •- ••- -' 
terconectado valor e~.:::.:'~!\l'"'~fl~±.'=''· 
Ao abordar especificamente os enunciados da arte verbal, Bakhtin 
afirma que eles devem ser estudados como fenômenos puramente 
verbais (p. 293), mas tal estudo é insuficiente para a análise estética, 
na medida em que o que entra no todo estético não é a língua na sua 
condição gramatical (a língua em si), mas fundamentalmente a língua 
como realidade semântico-axiológica; "não é a foE:!l:(lli~g~~_gS:~..9.:':1~. 
entra no todo estético, mas sua significação axiológica" (p. 299). 
~"~~-••·--··~~--··-~~--••---·~- '-"··-··~-~--~-•••••-~~- ~~de 
uma ciência e menos ainda de um método para abordá-lo. O máximo 
que podemos dizer, seguindo o raciocínio heideggeriano discutido no 
capítulo um, é que o Ser da linguagem "em sua totalidade concreta e 
viva" está interpelando Bakhtin - que lhe responde com uma filoso­
fia da linguagem e não propriamente com uma nova ciência. 
Por outro lado, podemos observar que há no discurso bakhti­
niano uma relação bastante positiva com a linguística. Ou, em ou­
tros termos, Bakhtin nunca põe a linguística em questão: aceita sua 
especificidade (isto é, o estudo do verbal em si- ver O problema do 
texto, p. 120), considera legítimas e justificáveis as abstrações opera­
das pela linguística (Problemas da poética de Dostoievski, p. 181) e 
toma o sistema gramatical como um dado, caracterizando-o por sua 
virtualidade (O problema do texto, p. 118). 
Ele apenas considera que a linguística, embora necessária, é in­
suficiente para o estudo da comunicação verbal em si, nos termos 
em que ele a entende, isto é, para o estudo das formas desta comu­
nicação, da natureza dos enunciados concretos, das relações dialógi­
cas, dos gêneros do discurso (O problema do texto, p. 118). 
Nesse sentido, há uma clara diferença entre ele e Voloshinov. 
Este é um crítico contumaz da linguística, em especial de sua pers­
pectiva formal (que ele designa de objetivismo abstrato). Seu argu­
mento básico aqui é que a noção de sistema sincrônico não tem 
qualquer objetividade (cf. cap. II-2 de Marxismo e filosofia da lin­
guagem) e, portanto, é um erro persegui-lo cientificamente. 
Em nenhum momento, ele propõe criar uma segunda ciência: 
para ele basta redirecionar criticamente a linguística, incorporando­
lhe a enunciação como objeto (p. 96). Mesmo o estudo das formas 
linguísticas como tais só é possível, segundo ele, no interior de uma 
teoria da enunciação: 
Enquanto a enunciação, em sua inteireza, continuar sendo terra in­
cognita para o linguista, será impossível falar de uma compreensão 
genuína, concreta, não escolástica das formas sintáticas (p. 110). 
E afirma, como princípio geral, que o estudo das formas gra­
maticais deve estar metodologicamente situado no ponto de chegada 
dos estudos linguísticos e não no ponto de partida (p. 95-96): 
Daquilo que acabamos de estabelecer, segue que a ordem metodolo­
gicamente fundada do estudo da linguagem deve ser: 
(1) as formas e os tipos de interação verbal em conexão com suas 
condições concretas; 
(2) as formas de enunciações particulares, de atos particulares de di­
zer, em ligação estreita com a interação de que são constituintes 
- i.e., os gêneros do discurso na ideologia do cotidiano e na cria­
ção ideológica como determinadas pela interação verbal; 
(3) um reexame, a partir dessa nova base, das formas da língua em 
sua apresentação linguística usual. 
Assim, enquanto Bakhtin considera que o linguista está cor­
reto em abordar os elementos linguísticos no contexto fechado do 
sistema da língua (O problema do texto, p. 120), Voloshinov critica 
precisamente o fato de o pensamento linguístico ter perdido, sem 
esperança, qualquer sentido do todo verbal (p. 110). 
Essa negação algo radical de uma perspectiva formal para o es­
tudo da linguagem tem, porém, seu preço. Segundo nossa avaliação, 
ela traz para Voloshinov algumas problemas de coerência interna. E 
isso é particularmente visível quando ele, ao discutir a relação falan­
te/signo, argumenta que os falantes, na interação concreta, não se 
orientam por um sistema abstrato de formas, mas pela significação 
que a forma adquire no contexto singular da enunciação: 
Podemos expressar isso da seguinte maneira: o que importa para o fa­
lante sobre uma forma linguística não é ser ela um sinal estável e sempre 
autoequivalente, mas ser um signo sempre mutável e adaptável (p.68). 
Introduz, então, uma distinção entre sinal e signo, apresentan­
do o primeiro como o nível da recorrência e do estável e o segundo 
como o nível do sempre mutável e adaptável. Embora essa distinção 
faça sentido no conjunto de sua reflexão (na medida em que ele quer 
precisamente enfatizar a plurissignificação do signo nos diferentes 
contextos de enunciação), ele não deixa esta relação sinal/signo su­
ficientemente bem resolvida no plano teórico. Isso, segundo nosso 
ponto de vista, porque Voloshinov não consegue lidar com clareza 
com a especificidade gramatical, negando-lhe pertinência num pon­
to de seu texto e pressupondo-a em outro. 
Embora alguns estudiosos da linguagem cheguem mesmo a 
negar essa especificidade, parece-nos, de fato, impossível tratar a 
linguagem verbal sem considerá-la. Podemos, é claro, criticar as in­
suficiências dos modelos gramaticais existentes e até mesmo tentar 
criar outros levando em conta o pressuposto de Voloshinov (i. e., 
de que o estudo não escolástico das formas linguísticas como tais 
só se faz produtivamente no interior de uma teoria da enunciação). 
Contudo, parece-nos que não podemos ignorar sua materialidade ou 
dela escapar: ela, sem dúvida, constitui um dos incontornáveis do 
objeto linguagem, no sentido heideggeriano do duplo incontornável 
da ciência (ver Ensaios e conferências, p. 50-57 em particular). 
O próprio Voloshinov não a ignora em seu quadro de refe­
rência. Assim, ao discutir a significação do enunciado (cap. II-4 de 
Marxismo e filosofia da linguagem), ele inclui as formas linguísticas 
como parte inalienável do enunciado e a significação calculável nes­
tas formas (que ele identifica como os aspectos semânticos que são 
reiteráveis e sempre iguais em qualquer situação em que o enuncia­
do ocorre) como parte inseparável da significação deste. 
Em outrasp_alavras, o plano da sinalidade é parte constitutiva 
~_plano da significação do enunciado. Assim,sua semântica com-
po~~aria necessariamente duas dimensões em estreita correlação: a 
significação dada pela estrutura (reiterável e sempre igual) e a signi­
ficaç~~~~dapela enunciação (o sempre mutável e adaptável)- ou 
seja, o mesmo (sinal) que é sempre outro (signo). 
Como formulação semântica geral, parece-nos uma diretriz 
adequada: ela constitui, de fato, o núcleo de qualquer discussão per­
tinente sobre a significação da linguagem. Ela antecipa, por várias 
décadas, o desafio que continua a nos perseguir nas disciplinas da 
significação, isto é, engendrar modelos semânticos capazes de sub­
sumir esta correlação. 
Apesar de, na discussão das bases de sua semântica, Voloshinov 
não recusar pertinência à materialidade do linguístico como tal, ele 
parece perder-se um pouco no tratamento dessa questão no capítulo 
em que introduz a distinção sinal/signo (cap. II-2). 
A discussão que se desenvolve neste ponto do livro deixa-nos a 
forte impressão de que Voloshinov parece ter confundido o sistema 
sincrõnico conforme definido pelo objetivismo abstrato com o (irre­
cusável) aspecto estrutural da língua e, ao recusar um, acabou por 
recusar o outro, criando para si mesmo um vácuo teórico: ele não 
consegue falar do enunciado sem admitir que há nele uma face rei­
terável (que ele chama de sinalidade); no entanto, não encontra ele­
mentos para caracterizar sua natureza e termina por fazer a afirmação 
claramente esdrúxula de que o componente de sinalidade existe na 
língua, mas não como constituinte da língua como tal (p. 69). O que 
poderia ser isso que existe na língua, mas não é constituinte dela? 
Obviamente o fato de o elemento de sinalidade ser "dialeti-
' 
camente eclipsado pela nova qualidade de signo" (p. 69) não lhe 
tira a especificidade estrutural. Voloshinov parece ter confundido os 
planos da sentença e do enunciado; e, ao recusar uma linguística de 
sistema, não encontra uma alternativa para lidar com aquela especi­
ficidade que fica mal situada em seu conceitual: o sinal - a forma 
linguística com tal- é sem ser! 
E 
As origens das dificuldades de Voloshinov parecem estar em 
sua clara filiação (embora crítica) à filosofia da linguagemde Hum­
boldt. Ao apresentar e criticar as duas principais correntes do pen­
samento linguístico de seu tempo (Parte li de Marxismo e filosofia 
da linguagem), Voloshinov descarta radicalmente o objetivismo abs­
trato, argumentando que o sistema sincrônico, pedra angular dessa 
corrente, não tem objetividade - em direta oposição ao que sobre 
isso afirmava Saussure no Curso de linguística geral (p. 23)- e é, 
portanto, um erro persegui-lo. 
Sua crítica ao subjetivismo individualista, contudo, é menos ra­
dical. Ele não aceita seu compromisso de base com uma concepção 
individualista do falante e de sua atividade linguística - isto é, o fato 
de seus atos de dizer serem entendidos como expressões de uma cons­
ciência puramente individual; ou, em outros termos, sua incapacidade 
de compreender a natureza social do enunciado e da enunciação. 
No entanto, Voloshinov considera corretos os outros pressu­
postos de base da tradição humboldtiana (p. 93 e 94): tomar a enun­
ciação como a realidade concreta da linguagem e não separar a forma 
linguística de sua substância ideológica. Em outras palavras, ele se 
filia a essa tradição (em oposição à tradição racionalista- em que 
nada enxerga de correto), dando-lhe, porém, uma perspectiva socio­
lógica. Suas cinco teses, apresentadas ao fim do capítulo 11-3, sinte­
tizam esses dois posicionamentos: a linguagem é apresentada como 
atividade (como energeia), mas seus princípios são caracterizados 
como de natureza sociológica. 
Ao filiar-se à tradição humboldtiana, Voloshinov, ao mesmo 
tempo em que lhe dá um caráter novo (ao sociologizá-la), herda as 
dificuldades daquele pensamento para tratar do gramatical propria­
mente dito, na medida em que este é visto, naquela tradição, como 
ponto de chegada e não como ponto de partida da linguagem, ou 
seja, como um a posteriori e não como um a priori da atividade 
o 
p 
linguística. Esta não é um mero produto de um sistema que lhe pre­
existe (como a entende o racionalismo linguístico), mas o sistema 
resulta da atividade elaboradora do espírito. 
A obra de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) sobre a lingua­
gem costuma ser apresentada como extensa e dificilmente suscetível 
de sistematização. Ele era dono de uma erudição enciclopédica e de 
uma paixão pelas línguas. Sua vida abastada lhe deu condições de 
estudos, viagens e contatos contínuos com grande parte da intelec­
tualidade européia de seu tempo. Era, portanto, um intelectual de 
interesses múltiplos, o que, com certeza, contribuiu para uma pro­
dução não facilmente sistematizável. 
A esse respeito, é interessante reproduzir as palavras de E. Cassirer 
(1874-1945) que, em seu livro A filosofia das formas simbólicas (1923), 
muito se inspirou nas reflexões de Humboldt (e foi leitura de cabeceira 
de Voloshinov que- segundo reporta Mika Lahteenmãki (2002, p. 193) 
- havia inclusive iniciado uma tradução desse texto para o russo): 
Essencialmente, Humboldt é um pensador sistemático, mas ele se mostra 
hostil a toda e qualquer técnica de sistematização apenas exterior. Ocorre, 
assim, que seu empenho em sempre apresentar em cada um dos pontos de 
sua análise simultaneamente a totalidade de sua concepção da linguagem 
resulta na ausência de uma distinção clara e inequívoca desta totalidade. 
Os seus conceitos nunca são os produtos puros e livres da análise lógica; 
neles, ao invés, vibra sempre uma tonalidade estética do sentimento, uma 
atmosfera artística, que anima a exposição, mas, ao mesmo tempo, enco­
bre a articulação e a estrutura das idéias. (p. 140-141) 
Em outras palavras, Humboldt é antes de tudo um filósofo da 
linguagem e não propriamente um linguista no sentido estrito do 
termo: o que parece lhe interessar, antes de qualquer coisa, é o Ser 
da linguagem e não a formulação de um método de análise de um 
"objeto calculável". Daí, talvez, a suposta falta de senso de sistemati­
zação que alguns lhe atribuíram. 
Ao que se sabe, Humboldt estudou línguas extensamente: co­
nheceu muitas das gramáticas de línguas ameríndias feitas pelos 
m1sswnános; manteve contato epistolar permanente com pesqui­
sadores de línguas indígenas da América do Norte; esteve no País 
Basco para conhecer-lhe a língua; e, frequentando em Paris a École 
des Langues Orientales Vivantes, entrou em contato com línguas da 
Ásia (em especial, as semíticas, o chinês e a língua kawi, da ilha de 
Java). A esta última, Humboldt destinou sua investigação de maior 
porte, publicada postumamente em 1836, contendo uma introdução 
de caráter mais geral, em que encontramos suas concepções sobre a 
natureza da linguagem. 
Para ele, linguagem e pensamento constituem uma unidade. 
Nesse sentido, a língua não é entendida apenas como a manifesta­
ção externa do pensamento (algo que vem depois do pensamento), 
mas aquilo que o torna possível. Ela tem, nesse sentido, um caráter 
constitutivo, viabilizando a elaboração conceitual e os atos criativos 
da mente. É por isso que Humboldt afirma ser a língua um processo, 
uma atividade (energeia) e não um produto (ergon). 
Ela é, ao mesmo tempo, algo que permanece (o ergon acumula­
do que cada geração recebe e que constitui, no seu conjunto, a visão 
de mundo da nação, o espírito do povo - bem de acordo com o 
ideário do pensamento romântico, do qual Humboldt foi um dos 
formuladores) e algo transitório (porque é inerentemente energeia, 
isto é, trabalho mental criativo contínuo, um verdadeiro ato artístico 
que opera permanentemente sobre o ergon, reconfigurando-o). 
É interessante destacar o grande fundamento semântico (e não 
propriamente gramatical) da concepção de Humboldt: um elaborar 
contínuo do intelecto (energeia) e o resultado desse processo, o acú­
mulo histórico desse trabalho (ergon) -que constitui a cosmovisão 
da nação, o espírito do povo. 
Ora, Voloshinov incorpora essas duas facetas, sociologizando-as: 
o elaborar contínuo é precisamente o jogo de significações sempre no­
vas que se dão no processo de interação social - a linguagem como 
uma energeía social. Já o ergon perde o caráter unitário de referência 
a 'povo' ou 'nação' e se mostra socialmente estratificado em diferentes 
índices sociais de valor, em diferentes horizontes sociais 
não se trata mais de uma, mas de múltiplas cosmovisões. 
Voltando ao pensamento de Humboldt, vale lembrar que, se, 
de um lado, a diversidade das línguas o fascinava, ele acreditava que 
por detrás dela havia uma única forma geral, um modo único de ser 
- energeia: 
Pois na linguagem a individualização de uma conformidade geral é 
tão maravilhosa que podemos dizer com igual correção que a huma­
nidade como um todo tem uma só língua e que cada ser humano tem 
a sua própria (p. 53). 
Em outras palavras, a capacidade de individualizar a forma ge­
ral da linguagem (enquanto atividade constitutiva) é a mesma na 
humanidade como um todo e em cada indivíduo em particular. 
Desse modo, sua concepção universalizante não diz respeito a 
uma gramática universal entendida como um sistema, mas como uma 
dinâmica mental de elaboração da expressão. Num certo sentido, en­
tão, Humboldt se aproxima da tradição universalizante que atravessa 
os séculos e tem suas formulações bem conhecidas no século XX, mas 
afasta-se de todas elas por conceber a língua não como um sistema 
gramatical, mas como uma atividade mental sistemática de elabora­
ção. Para ele, a gramática como tal (como um a priori) e a comunica­
ção são absolutamente acessórias, vêm depois e nunca antes daquilo 
que é o essencial, isto é, o trabalho elaborador do espírito. 
Vale a pena, neste ponto, voltar ao texto de Cassirer e reproduzir 
a súmula que ele faz do pensamento de Humboldt sobre esse tema 
específico, trecho em que fica clara a indisposição geral da tradição 
humboldtiana com a questão especificamente gramatical: 
A fragmentação da linguagem em palavras e regras será sempre um 
trabalho grosseiro e inútil da análise científica - poisa essência da 
linguagem não reside jamais nestes elementos ressaltados pela abstra­
ção e pela análise, mas tão somente no trabalho eternamente repetido 
que realiza o espírito para tomar o som articulado capaz de expressar o 
pensamento. Em cada língua, este trabalho tem início em determinados 
pontos centrais, expandindo-se, a partir deles, para diversas direções 
-e apesar disso, esta multiplicidade de processos criadores se funde 
afinal, não na unidade objetiva de uma criação, mas na unidade ideal 
de uma atividade que, em si, está subordinada a regras específicas. A 
existência do espírito só pode ser concebida em atividade e como ativi­
dade, e o mesmo é válido para cada existência particular que somente 
é apreensível e possível através do espírito. Consequentemente, o que 
denominamos de essência e forma da linguagem nada mais é do que o 
elemento permanente e uniforme que podemos detectar, não em uma 
coisa, mas no trabalho realizado pelo espírito para fazer o som articu­
lado expressão de um pensamento (p. 146-147). 
Este trabalho mental elaborador, com as mesmas propriedades 
criativas, em Voloshinov- a contrapelo de toda a tradição hum­
boldtiana - é social, isto é, resulta da internalização da lógica dos 
signos, que é a lógica da interação socioaxiológica (como vimos em 
detalhe no capítulo dois). 
Assim, em sua perspectiva, o falante é social de ponta a ponta 
("a única definição objetiva possível da consciência é sociológica", p. 
13). Mas, ao mesmo tempo, ele é individual de ponta a ponta. Quer 
dizer: o fato de seu psiquismo ser integralmente social não lhe tira 
a individualidade, porque seu mundo mental não é uma realidade 
estática, mas dinâmica (e, portanto, criativa- pressuposto funda­
mental de Humboldt). 
Essa dinamicidade mental decorre do fato de o psiquismo refle­
tir a lógica da comunicação sociocultural, isto é, a lógica das relações 
dialógicas, do encontro tenso (e até contraditório) das múltiplas lín­
guas sociais. Também para Voloshinov, "a existência do espírito só 
pode ser concebida em atividade e como atividade", mas seu móvel 
é social e não puramente individual. Diz ele: 
A consciência toma forma e vida no material semiótico criado, por 
um grupo organizado, no processo de sua interação social. A consci­
ência individual se alimenta de signos; ela retira deles seu desenvolvi-
mento; ela reflete sua lógica e leis. A lógica da consciência é a lógica 
da comunicação socioideológica, da interação semiótica de um grupo 
social (p. 13). 
Em suma: Voloshinov adota a concepção de Humboldt de lin­
guagem como atividade, mas muda radicalmente o eixo de sua ar­
ticulação ao atribuir-lhe um caráter inerentemente social, em que 
a interação, longe de ser acessória (como era para Humboldt), é 
essencial. Desse modo, o trabalho elaborador mental contínuo não 
precede a comunicação, embora seja a comunicação, ao alimentar 
de signos a consciência e dar-lhe a lógica das relações dialógicas, 
que o torna possível. 
Voloshinov, ao sociologizar a concepção de Humboldt, recupe­
ra o poder heurístico daquela filosofia e abre nova direção para os 
estudos linguísticos que desejam enfocarque permanece viva entre nós. 
Embora não se possa dizer que esta seja uma questão resolvi­
da entre os estudiosos da linguagem, acreditamos não ser incorreto 
afirmar que há certa crença, entre boa parte deles, de que tal divisão 
de trabalho é pertinente (mesmo que não assumam, como axioma, o 
caráter biológico do estrutural). 
Por outro lado, não se pode esquecer que entre os que ad­
mitem (e defendem) uma divisão de trabalho entre o estudo da 
estrutura e o estudo das práticas de linguagem, há aqueles que 
consideram ser o uso da linguagem incognoscível cientificamen­
te. É o caso de Chomsky (2000), que sugere ter a linguagem na­
tural apenas sintaxe (no sentido que o termo tem em sua teoria) 
e pragmática (p. 132). Este último termo é usado aí num sentido 
amplo, recobrindo as questões da língua em uso. Para ele, estas 
questões estão fora do alcance do conhecimento científico, pelo 
menos de uma ciência que ele classifica de naturalística (cap. 4) e 
parecem antes constituir mistérios - que nunca serão resolvidos 
pela mente humana (p. 133). 
Bakhtin talvez concordasse em parte com Chomsky, se lembrar­
mos que, para ele, o estudo das práticas de linguagem não é da alça­
da das Naturwissenschaften, mas das Geisteswissenschaften. Ou, em 
outros termos, o estudo das práticas de linguagem é tarefa de "uma 
disciplina de interpretação e não de uma física de tipo novo". Con­
tudo, Bakhtin certamente recusaria o pressuposto de que as práticas 
de linguagem são incognoscíveis, já que ele chegou a propor uma 
disciplina para estudá-las- a translinguística. 
De todas as disciplinas linguísticas contemporâneas, é a análise 
do discurso aquela da qual mais diretamente se aproximaria o proje­
to de uma translinguística. 
Não é fácil sintetizar em poucas linhas os projetos e pressu­
postos da análise do discurso, particularmente se considerarmos a 
diversidade teórica que aí encontramos. No entanto, parece correto 
afirmar que uma teoria do discurso é fundamentalmente uma teoria 
da significação do dizer, privilegiando aquilo que está aquém e além 
da estrutura, isto é, o já dito (a memória discursiva) e os efeitos de 
sentido do dizer em dada circunstância. 
Ora, Bakhtin concebeu a translinguística precisamente para se 
ocupar da enunciação e dos seus sentidos. Não lhe interessava, em 
princípio, uma semântica da estrutura linguística em si (embora não 
a descartasse), mas o estudo da significação do enunciar, em especial 
dos efeitos de sentido das relações dialógicas. 
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Por outro lado, a teoria do discurso assume hoje como pressu­
posto de base (e explicitamente inspirado em Bakhtin) a heteroge­
neidade constitutiva dos discursos e dos enunciados, o que implica 
abandonar qualquer concepção homogênea de formação discursiva 
e de enunciado. Os discursos constituem um emaranhado 
seções enunciativas e e_~~ão dispersos por diferentes formaçõe~~s 
~---·--~~----~~-·--~-----·~---·--h-> .--"'0 ~ --·~~~ --~~--- -----· '··- ----· ---·---- ----- "'"' ~ ---~--~--~~~- -~ '~= 
enunciados emergem desse gce,(lnO heterog~neo e estão mais 
nos explicitamente marcados pela heterogeneidade que os constitui. 
---· -- -----------------· -----~--~------""~ 
Nessa perspectiva, é interessante lembrar que Bakhtin elabo­
rou um conceitual em que ~~~-e~ ~ociais não têm p_f()Qriamente 
11m espaço interior: elas vivem nas fronteiras (são
2 
portanto, hete-: 
rogêneas), vivem em pontos de contínua tensão socioaxiológica, de 
contínuas interanimações, contraditorie9-ad~s, entrecruzamentos e 
reconfigurações. 
Por outro lado, ao identificar enunciação e posicionamento axio­
lógico, Bakhtin e o Círculo deram à teoria do discurso um interessante 
viés para a apreensão dos fundamentos da heterogeneidade discursiva, 
do processo de inscrição da história na língua e de sua dinâmica. 
A proximidade da concepção bakhtiniana e da teoria contem­
porânea do discurso fica bastante evidente quando observamos um 
dos aproveitamentos heuristicamente mais produtivos do conceitual 
de Bakhtin na área dos estudos linguísticos - as formulações de ] . 
Authier-Revuz sobre a questão da heterogeneidade discursiva. Essas 
formulações tiveram, conforme destaca G. Williams (p. 164), um 
profundo impacto e influência nos desdobramentos e redesenhos da 
teoria contemporânea do discurso. 
Por fim, é interessante comentar que alguns analistas viram a filo­
sofia do Círculo de Bakhtin como precursora da chamada pragmática 
- entendida como o componente da análise linguística que, somado 
à sintaxe e à semântica, foi proposto como necessário para se dar conta 
de aspectos da significação que decorrem do uso da língua ou daquilo 
que os falantes fazem contextualmente com seus enunciados. 
Williams (p. 203-204) aproveita a argumentação de Boutet 
(1994) rejeitar essa relação. Segundo ele, Boutet: 
rejeita tal interpretação, afirmando que a ênfase de Bakhtin em anali­
sar as formas gramaticais e discursivas em relação a situações sociais 
concretas de enunciação e o modo como sua teoria semântica repousa 
na tensão dinâmica entre o tema e o significado de uma enuncia­
ção conduzem, em última análise, a uma crítica radical do empreen­
dimento pragmático. Boutet afirma que nem consenso social, nem 
negociação participam como princípios organizativos da interação 
verbal nos trabalhos de Bakhtin. Ao contrário, a organização se assen­
ta num princípio opositivo envolvendo a natureza contraditória da 
atividade linguística e da interação. 
Em outras palavras, embora Bakhtin se ocupe, como a pragmática, 
com os fenômenos da língua situada, ele ultrapassa em muito os limites 
desta disciplina porque não interessa a ele calcular as significações que 
decorrem da relação de um enunciado com o contexto imediato de sua 
enunciação ou com a intenção do falante (em outros termos, não lhe 
interessa o significado do falante, no sentido que a pragmática deu a 
esta expressão), mas as relações dialógicas entre enunciados- relações 
de significação que não se reduzem aos contextos imediatos, mas se 
constituem no encontro de diferentes vozes/ línguas sociais. 
A FILOSOFIA DA LINGUAGEM DO CíRCULO 
NUMA VISÃO DE CONJUNTO 
Como dissemos anteriormente, Voloshinov e Bakhtin são os 
dois membros do Círculo que mais extensamente discutiram o tema 
da linguagem. Construíram em conjunto, na segunda metade da dé­
cada de 1920, uma concepção de linguagem que- ampliada nos 
textos e manuscritos de Bakhtin posteriores a 1930- singulariza o 
Círculo no contexto da história das idéias linguísticas. 
Nosso objetivo agora é, depois de ter destacado vários de seus 
aspectos, apresentar essa concepção numa visão de conjunto, reite-
rando que estamos diante de uma reflexão geral de natureza filosófi­
ca (uma formulação sobre o Ser da linguagem) e não de proposições 
de natureza científica (formulação de método para análise um 
"objeto calculável"). 
Podemos dizer que o Círculo parte da asserção de que a reali­
dade fundamental da linguagem é o fenômeno social da interação 
verbal (Marxismo e filosofia da linguagem, p. 94) .. li~2~~ s."entidg, .que seja", sendo o diá­
logo face a face apenas um destes muitos tipos. 
Por outro lado, os eventos interacionais- sejam aqueles das esfe­
ras do cotidiano, sejam aqueles das esferas mais especializadas da cria­
ção socioideológica - são sempre compreendidos como situados num 
complexo quadro de relações socioculturais. Os eventos estão, portan­
to, sempre correlacionados com a situação social mais imediata e com 
o meio social mais amplo, ambos se entrecruzando em cada evento e 
tendo aí papel condicionador dos atos de dizer e de sua significação. 
Mais imE_orta11~~,p_orérr1, é lembrar .... _k ..•. ·--········ 
si q11e interessam, mas aquilo que neles acontece, isto é, as rela­
ções dialógicas em sentido amplo, conforme çli§cutimos no capítulo 
dois. Assim, o Círculo não se propõe reci11~!- a questão. do dizer à 
esfera das relações interindividuais (com_() pres.s1Jpõe, por exerrrpl()_,_ 
uma abordagem etnometodológica) ou à esfera das relações sociais 
o modo de interação ent~e grupos humanos (como 
pressupõe a etnografia da comunicação). Seu foco efetivo de atenção 
são as relações dialógicas, entendidas como relações de sentido que 
decorrem da responsividade (da tomada de posição axiológica) ine­
rente a todo e qualquer enunciado. 
Os sujeitos que se envolvem nessas relações dialógicas não são 
entes autônomos e pré-sociais, mas indivíduos socialmente organi­
zados .. !~_§Q_§jggi:figt_cl.i~~:Lqueos suj~itos se definem como feixes de 
re!_asêí.~S?.Qç:iais:_s:o!ls~ituem-se e vivem nestes feixes q11e são múlti­
pJ.()§1.1l~!~J:'.iativos (envolvem-se em múltiplas dessas esferas da ativida­
d~humana), são também seres que transitam por múltiplos gêneros 
do discurso, isto é, realizam seu dizer por meio de diferentes gêneros 
correlacionados às diferentes esferas da atividade. 
Todo o dizer, por estar imbricado com a práxis humana (social 
e histórica), está também saturado dos valores que emergem des­
sa práxis. Essas diferentes "verdades sociais" (essas diferentes refra­
ções do mundo) estão materializadas semioticamente e redundam 
em diferentes vozes ou línguas sociais que caracterizam a realidade 
da linguagem como profundamente estratificada (heteroglóssica) e 
atravessada pelos contínuos embates entre essas vozes - a infinda 
heteroglossia dialogizada. 
Esta pode ser caracterizada como uma espécie de guerra de 
discursos, em que estão em permanente tensão forças centrípetas 
'~ u 
(centralizadoras, monologizadoras, que tentam apagar ou submeter 
a heteroglossia) e forças centrífugas (que resistem à monologização e 
multiplicam a heteroglossia). 
Os enunciados emergem nesse caldo heteroglóssico e nos pon­
tos de tensão entre essas forças. Têm uma face ~erbalJo dito)e uma 
face não verbal (o presumido - que amarra a significação do enun­
ciado ao horizonte ~ocial amplo, ao aquém da estrutura). 
Os enunciados manifestam-se fundamentalmente como uma 
tomada de posição axiológica, como uma resposta ao já dito. Sua 
significação comporta sempre esse estrato valorativo. Ela, portanto, 
não é dada apenas pelo verbal (pela estrutura), mas também pela 
correlação entre o verbal e os horizontes sociais de valor. 
Por outro lado, ao ser dito, o enunciado espera uma resposta. 
E, ao mesmo tempo, por ser heterogeneamente constituído (o enun­
ciado de um contém enunciados ou fragmentos de enunciados de 
outrem), está atravessado por uma dialogização interna (a bivoca­
lização - nome que recobre os processos pelos quais mais de uma 
voz e mais de um acento avaliativo ressoam no mesmo enunciado). 
ÜS GÊNEROS DO DISCURSO 
O atual uso inflacionado no Brasil - em especial no discurso 
pedagógico posterior à reforma do ensino de 1996- da expressão 
gêneros do discurso, tendo o texto de Bakhtin como referência, é o 
que nos motiva a discutir em mais detalhes essa questão. Interessa­
nos, particularmente, expor à crítica certa cristalização do conceito 
em sua transposição pedagógica. 
Não será demais começar por uma breve referência etimológica. A 
palavra gênero remonta à base indoeuropéia * gen- que significa 'gerar', 
'produzir'. Em latim, relaciona-se com esta base o substantivo genus, 
generis (significando 'linhagem', 'estirpe', 'raça', 'povo', 'nação') e o ver­
bo gigno, genui, genitum, gignere (significando 'gerar', 'criar', 'produzir', 
'provir'), com o qual se relacionam palavras como genitor, ...,...;,.......,,,~~~; 
Por curiosidade, vale registrar que a palavra germâni­
(criança) remonta àquela mesma base etimológica. 
Como se vê, esse segmento vocabular se desenvolve a partir 
da semântica do processo de gerar (procriar) e dos produtos da 
geração (da procriação). A utilização do termo gênero para desig­
nar tipos de textos é uma extensão da noção de estirpe (linhagem) 
para o mundo dos objetos literários e retóricos. Assim como as 
pessoas podem ser reunidas em linhagens por consanguinidade, 
o mesmo se pode fazer com os textos que têm certas característi­
cas ou propriedades comuns. A noção de gênero serve, portanto, 
como uma unidade de classificação: reunir entes diferentes com 
base em traços comuns. 
Parece que Platão foi o primeiro a falar de gêneros quando, no 
livro IIl da República, divide a mimese (isto é, a representação lite­
rária da vida) em três modalidades: a lírica, a épica e a dramática. 
Aristóteles elaborou, na sequência, dois trabalhos importantes de 
sistematização dos gêneros: na Arte retórica, propôs e estudou três 
gêneros retóricos (o deliberativo, o judiciário e o epidítico); e, na 
Arte poética, buscou tratar da produção poética em si mesma e de 
seus diversos gêneros, explorando extensamente as propriedades da 
tragédia e da epopéia (e, segundo se acredita, da comédia no livro li, 
totalmente perdido). Esses dois trabalhos de Aristóteles foram refe­
rências durante séculos na discussão dos gêneros. 
É interessante observar que, na longa história da teoria dos gê­
neros literários e retóricos, estes foram interpretados muito mais na 
perspectiva dos produtos do que na dos processos (muito embora 
- destaque-se - Aristóteles não separasse as formas de suas fun­
ções e das respectivas atividades sociais em que ocorriam). 
O foco de atenção eram as propriedades formais. Houve, in­
clusive, em vários momentos, uma forte propensão reificadora e, 
por consequência, normativa: as características formais dos gêneros 
foram tomadas como propriedades fixas, como padrões inflexíveis. 
Talvez aqui esteja uma das razões para certo abandono teoria 
dos gêneros, principalmente a partir 
estética clássica. 
crítica do romantismo à 
Fizeram parte do processo de construção da estética romântica 
o questionamento do modelo do teatro clássico (o chamado modelo 
das três unidades: espaço, tempo e personagem) e a percepção do 
anacronismo da epopéia clássica. Nesse sentido, a estética romântica 
pôs em xeque dois dos mais cultuados gêneros da teoria clássica. Ao 
mesmo tempo, vivia-se o desenvolvimento do romance, gênero para 
o qual as teorias tradicionais não forneciam qualquer subsídio analí­
tico e que é ainda hoje motivo de muita polêmica. Pode-se dizer que 
o romantismo abalou profundamente a teoria clássica dos gêneros e 
pôs o tema gêneros numa permanente crise. 
Em contraste com essa crítica, não deixa de ser surpreendente o 
uso inflacionado dode Bakhtin, 
é perceptível a existência de dois grandes projetos intelectuais. Da 
parte de Bakhtin, parece haver, de início, a intenção de construir 
uma "prima philosophía". Seus primeiros textos apontam nessa di­
reção ao se dedicarem extensamente à crítica do que ele chama de 
teoreticismo, isto é, as objetificações da historicidade vivida, obtidas 
pelos processos de abstração típicos da razão teórica. 
A interlocução maior, nesse caso, parece se dar, segundo tem 
apontado a exegese daqueles textos, com problemas filosóficos formu­
lados principalmente pela fenomenologia e por pensadores neokantia­
nos. A estes, o Círculo tinha amplo acesso por meio do filósofo Matvei 
I. Kagan, que se doutorara na Universidade de Marburgo (Alemanha) 
- um dos centros do neokantismo -, onde foi aluno de Hermann 
Cohen, uma das figuras emblemáticas daquele pensamento. 
É preciso, porém, resistir à tentação de logo rotular Bakhtin como 
um filósofo neokantiano. Considerando o todo de sua obra, um pou­
co de cautela não fará mal. Como veremos em mais detalhes adiante, 
Bakhtin, de fato, parece ter encarado como relevantes os problemas for­
mulados por filósofos neokantianos (em especial a questão axiológica) e 
aproveitou-os como fio condutor de suas próprias reflexões. Contudo, 
Cf. Amorim (2001, p. 123, n. 162), para um comentário critico ao conceito de 
polifonia de Ducrot face ao de Bakhtin. 
manteve sempre uma postura crítica frente àqueles filósofos e, mais im­
portante, avançou respostas bastante originais àqueles problemas, res­
postas que dificilmente poderiam ser classificadas como neokantianas. 
O segundo grande projeto intelectual de membros do Círculo, 
claramente visível nos textos de Voloshinov e de Medvedev, publi­
cados entre 1925 e 1930, era contribuir para a construção de uma 
teoria marxista da chamada criação ideológica, ou seja, da produção 
e dos produtos do "espírito" humano; ou, para usar um termo mais 
corrente num certo vocabulário marxista, uma teoria das manifesta­
ções da superestrutura. 
Tratava-se de uma área em que havia um grande vazio teórico 
no pensamento marxista e que acabou atraindo vários pensadores, 
nas décadas de 1920 e 1930, tanto na Rússia, quanto no Ocidente. 
As contribuições de Voloshinov e de Medvedev nessa direção 
têm duas marcas bem distintas. Primeiro, a crítica sistemática que 
ambos fizeram ao chamado marxismo vulgar, aquele que tenta dar 
conta dos processos e produtos da criação ideológica por meio de 
uma lógica determinista e mecanicista, segundo a qual uma relação 
de causalidade simples, direta, unilinear e unidirecional entre a base 
econômica e as manifestações superestruturais resolveria tudo, sim­
plória e dogmaticamente. 
Segundo, e certamente mais importante, o papel central que 
eles deram à linguagem em suas formulações e as próprias pecu­
liaridades da filosofia da linguagem que elaboraram. Nesse sentido 
específico, pode-se dizer que o Círculo de Bakhtin trouxe uma con­
tribuição original para aqueles debates, cujas implicações heurísticas 
não foram ainda de todo exploradas. 
PRIMA PHILOSOPHIA 
Os primeiros textos de Bakhtin apontam para o objetivo do autor 
de se envolver com a construção de uma reflexão filosófica ampla. Es-
tamos nos referindo principalmente aos dois textos que foram escritos 
provavelmente no início da década de 1920 e que ficaram inacabados 
- Para uma filosofia do ato e O autor e o na estética. 
Vamos encontrar nestes primeiros textos um conjunto muito 
denso e rico de reflexões, que, de uma forma ou de outra, atravessará 
todos os escritos de Bakhtin até o fim de sua vida. No entanto, não 
é objetivo deste livro apresentar e discutir essa temática específica 
(ética e estética), por mais interessante e instigante que ela seja e por 
mais provocadores que sejam os vários debates que ela tem motiva­
do internacionalmente. Por si só, ela exigiria outro livro. 
Apesar disso, no contexto desta apresentação da filosofia da lin­
guagem do Círculo de Bakhtin, é importante dar atenção aqui a pelo 
menos alguns aspectos daquelas reflexões iniciais em razão de sua 
pertinência para a concepção de linguagem que o Círculo formulou. 
Referimo-nos particularmente: 
- à questão da unicidade e eventicidade do Ser; 
-ao tema da contraposição eu/outro; 
-e ao componente axiológico intrínseco ao existir humano. 
Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, parte da asserção de que 
existe um dualismo entre o mundo da teoria (isto é, o mundo do juízo 
teórico, chamado, neste texto, de "mundo da cultura", o mundo em 
que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elabora­
ção teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético) e o mundo da 
vida (isto é, o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de 
seres históricos únicos que realizam atos únicos e irrepetíveis, o mundo 
da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada). 
Esse dois mundos, diz Bakhtin (p. 2), não se comunicam porque 
o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo 
mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que nele não 
há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui 
exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida. 
Mais ainda: para Bakhtin, não é possível superar este dualismo 
partindo do interior da cognição teórica. Essa superação só será alcan-
se subsumir a razão teórica na razão prática, entendida 
--- -
esta como a razão que se orienta pelo evento único do ser e pela unici-
dade de seus atos efetivamente realizados; ou, em outras palavras, que 
se orienta a partir do vivido, i.e., do interior do mundo da vida. 
Esse posicionamento crítico frente à razão teórica, que abstrai o 
ser humano de sua realidade concreta (deixando apenas um esque­
leto de significado- p. 64), que constrói juízos em que eu não me 
encontro, em que eu não existo, será uma das principais constantes 
do pensamento do autor e do Círculo. O evento único e irrepetível 
será sempre uma referência central nas suas elaborações filosóficas. 
Deve ficar claro que essa crítica à razão teórica, ao teoreticismo, 
não é uma negação da cognição teórica. Ao contrário: Bakhtin re­
conhece sua validade; o que ele recusa é sua total desvinculação do 
mundo da vida. Embora seu projeto seja 
uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta da 
experienciação do mundo regida por valores- não com uma funda­
mentação analítica na cabeça, mas com aquele centro real, concreto 
(tanto espacial quanto temporal) donde emergem ou brotam avalia­
ções, asserções e atos e onde os membros constituintes são objetos 
reais, interconectados por relações-eventos concretas no evento sin­
gular do Ser (p. 61), 
ele não esconde o desejo de reconciliar o mundo da cognição teórica 
e o mundo da vida, conforme podemos ler à p. 49: 
Todo o contexto infinito do conhecimento teórico humano possível 
- a ciência - deve se tornar alguma coisa responsivamente conhe­
cida [uznaníe] para mim como um único participante, e isso em nada 
diminui ou distorce a verdade [ístína] autônoma do conhecimento 
teórico, mas, pelo contrário, complementa-a até o ponto em que ela 
se torna uma verdade [pravda] necessariamente válida. 
Bakhtin, desde este seu primeiro texto, será um crítico contu­
maz do racionalismo (p. 29-30), isto é, de um pensamento em que 
interessa o universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento; 
o sistema e jamais o ato individual; um pensamento que contrapõe o 
objetivo (entendido como o único espaço da racionalidade, da com­
preensão lógica) ao subjetivo, ao individual, ao singular (entendido 
como o espaço do fortuito, do irredutível à compreensão lógica). 
Incomoda-lhe a idéia de sistema em que não há espaço para o indi­
vidual, o singular, o irrepetível, o evêntico. 
No fim da vida, no texto inacabado Para uma epistemologia das 
ciênciastermo nos últimos anos. A principal referência des­
sa explosão tem sido o texto O problema dos gêneros do discurso, escrito 
por Bakhtin possivelmente em 1952/1953. Trata-se de um texto inaca­
bado, encontrado entre os papéis do autor e publicado na Rússia pela 
primeira vez numa coletânea de material de seus arquivos em 1979. 
É claramente um fragmento de texto, o que leva os estudiosos 
a afirmar tratar-se provavelmente da parte inicial de um livro a que 
o autor pretendia se dedicar, retomando com mais detalhes questões 
levantadas brevemente naqueles textos do Círculo da segunda meta­
de da década de 1920. 
Bakhtin está discutindo, neste manuscrito, caminhos para um es­
tudo da linguagem como atividade sociointeracional e aponta algumas 
características da unidade deste estudo (o enunciado) em contraste 
com a unidade tradicional dos estudos linguísticos (a sentença). 
Este fragmento de texto está dividido em duas partes. Na pri­
meira, faz-se uma introdução geral do tema, conceituando-se gêne­
ro do discurso, distinguindo-se gêneros primários de secundários e 
correlacionando-se estilo e gênero. 
Na uma extensa discussão sobre o conceito de 
enunciado, como unidade da comunicação socioverbal, em contraste 
com o de sentença, como unidade da língua entendida como sistema 
gramatical abstrato. Bakhtin está, nesta segunda parte, dialogando 
criticamente (sem negar-lhe relevância) com a tradição dos estudos 
linguísticos que se caracteriza por privilegiar o estudo sistêmico 
(imanente) da linguagem verbal e ignorar ou simplificar a realidade 
linguística enquanto interação social, enquanto práticas sociais de 
linguagem. E defende novamente a necessidade de constituir duas 
disciplinas - metodologicamente separadas, mas organicamente 
combinadas - para o estudo da linguagem: 
Mas estes dois pontos de vista sobre o mesmo fenômeno linguístico 
específico não deveriam ser inacessíveis um ao outro e não deveriam 
simplesmente ser substituídos um pelo outro mecanicamente. Eles 
deveriam se combinar organicamente (mantendo, contudo, uma dis­
tinção metodológica muito bem definida entre eles) com base na uni­
dade real do fenômeno linguístico.(. .. ) 
Parece-nos que um estudo da natureza do enunciado e dos gê­
neros do discurso é de fundamental importância para superar aquelas 
noções simplistas sobre a vida do dizer, sobre o assim chamado fluxo 
da fala, sobre a comunicação, e assim por diante- idéias que são ain­
da correntes nos nossos estudos linguísticos. Além disso, um estudo do 
enunciado como a unidade real da comunicação verbal tornará também 
possível compreender mais adequadamente a natureza das unidades da 
língua (como um sistema): as palavras e as sentenças. (p. 66-67) 
Poderíamos nos perguntar, neste ponto, sobre o que diferencia 
a teoria dos gêneros do Círculo de Bakhtin das teorias tradicionais, 
inclusive para entendermos criticamente a apropriação pedagógica 
epidêmica de seu conceitual nos últimos anos. 
Uma característica daquela teoria é que, diferentemente de outras, 
ela não pensa os gêneros em si (muito embora seja esta a perspectiva 
dominante na apropriação pedagógica do conceito), isto é, como con­
juntos de artefatos que partilham determinadas propriedades formais. 
Qsgêneros não são enfocados apenas pelo viés estátiçp do l{IQdu­
to (das formas), mas principalmente pelo viés dinâmiço cia pmduçãuo. 
Isso significa dizer que a teoria do Círculo assevera axiomaticamente 
uma e~treita correlação entre os tipos de enunciados(gêneros) e s11as 
!~!!çS)es na interação sociover[>al;centre os tipos e o que fazemos C()lJl 
eles i11teljgr de uma cl~t~I]Jlinada ativig~d~ social._ 
O ponto de partida de Bakhtin é a estipulação de um vínculo 
orgânico entre a utilização da linguagem e a atividade humana. Para 
ele, todas as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas 
com a utilização da linguagem. E essa utilização efetua-se em forma 
de enunciados que emanam de integrantes duma ou doutra esfera 
da atividade humana. 
Assim, se queremos estudar o dizer, temos sempre de nos reme­
ter a uma ou outra esfera da atividade humana, porque não falamos 
no vazio, não produzimos enunciados fora das múltiplas e variadas 
esferas do agir humano. Nossos enunciados (orais ou escritos) têm~ 
ao contrário? conteúdo temático, organização composicional e estilo 
próprios correlacionados às condições específicas e às finalidades de 
;;d;~~fera de atividad(:.o 
Em outros termos, o que é dito (o todo do enunciado) está 
sempre relacionado ao tipo de atividade em que os participantes 
estão envolvidos. Do mesmo modo, se queremos estudar qualquer 
das inúmeras atividades humanas, temos de nos ocupar dos tipos 
de dizer (dos gêneros do discurso) que emergem, se estabilizam e 
evoluem no interior daquela atividade, porque eles constituem parte 
intrínseca da mesma. 
~mas sempre tem a memória do seu passado, 
das suas origens. O gênero é um representante da memória criativa 
no processo do desenvolvimento literário. Precisamente por isso, o 
gênero é capaz de garantir a unidade e a ininterrupta continuidade de 
seu desenvolvimento. 
Desse modo, Bakhtin articula uma compreensão dos gêneros 
que combina estabilidade e mudança; reiteração (à medida que as­
pectos da atividade recorrem) e abertura para o novo (à medida que 
aspectos da atividade mudam). 
Ele lembra que há gêneros bastante estandardizados como cer­
tos tipos de documentos oficiais, ordens militares, cumprimentos 
e felicitações sociais. Contudo, mesmo estes admitem mudanças, 
ou seja, estão abertos à adequação às condições concretas de uso. 
Bakhtin salienta que esses gêneros altamente estandardizados acei­
tam variações, mesmo que ligeiras, de matizes na entonação expres­
siva; ou sobre eles podem intervir, por exemplo, o jogo das inflexões, 
isto é, sua reacentuação pela mudança de esfera de atividade ou sua 
hibridização (a mistura de gêneros pertencentes a esferas diferentes 
ou à mesma esfera). 
Caracterizando gênero pela estabilidade relativa (admitindo, 
portanto, sua contínua mobilidade e mutabilidade), Bakhtin lança 
as bases de uma teoria que abandona (por reconhecer sua impos­
sibilidade) a tarefa tradicional de recortar tipos bem demarcados; 
de estabelecer uma taxonomia rígida baseada em critérios formais 
puramente sincrônicos. 
É claro que essa nova perspectiva traz uma série de dificulda­
des para a análise que precisarão ser adequadamente enfrentadas. 
O próprio Bakhtin diz (p. 61), reconhecendo essas dificuldades: "A 
extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente 
dificuldade em determinar o caráter genérico do enunciado não de­
vem ser minimizadas". 
Contudo, ele não se propõe fixar o que se move, estancar o que 
flui, nem estabelecer limites claros para aquilo que é necessariamente 
impreciso, já que intrinsecamente vinculado à contingência das ativi­
dades humanas. A imprecisão dos limites e fronteiras se reforça ainda 
mais, no texto de Bakhtin, pelo destaque que ele dá, por exemplo, ao 
fato de que os diferentes gêneros se hibridizam continuamente. 
Isso tudo, no entanto, face a certas recorrências de elementos, 
eventos e ações no interior de cada esfera da atividade, não impede 
que se reconheçam similaridades e que se gerem tipos relativamente 
estáveis de enunciados. De certo modo, a dinâmica da tipificação é 
um processo socialmente construído de gerar significado, baseado 
no reconhecimento de similaridades e analogias. 
No fundo, a idéia da relativa estabilidade leva Bakhtin a an­
tecipar toda uma discussão que se fará posteriormente na teoria 
social de que as atividades humanas não são nem totalmente pre­
visíveis por modelos pré-dados, nem totalmente casuais. As ativi­
dades conhecem recorrência, mas também têm dimensões novas 
em cada contingência. Para compreendê-las (e para envolver-se 
nelas de modo significativo), é fundamental estabelecer contínuas 
inter-relações entre o que recorre e a singularidade; entre o dado 
e o novo; entre o arquivo e o acontecimento (evento); entre a me­
mória e o momento. 
Daí decorre outro aspecto importante dos gêneros do discurso: 
como tipos relativamente estáveis do dizer no interior de uma esfera 
da atividade humana, eles cump_!~~.~I1-ªisJ:>~I1s~yeis funções ~_ocig:­
coçrnitivas. Pela sua estabilidade, eles são elementos organizadores 
«;~..Q:,,.~,~-,"'-~·~·~---~··-•• -------~---~--•-~•~--·~,,,,~.ww,w~ ~ --- ---··--•--·~···"--'-••·---~---.~--·- '-
das ativi~aª-e~ __ ~;J?_()r_~sso, ()Iientam nossa participação e111 detei1lli-
nada esfera de atividade (eles balizam nosso entendimentodasações 
dos outros, assim comosão referência para nossas própriasações): 
Ao gerarem expectativas de como serão as ações, eles nos orien­
tam diante do novo no interior dessas mesmas ações: auxiliam-nos 
a tornar o novo familiar pelo reconhecimento de similaridades e, ao 
mesmo tempo, por não terem fronteiras rígidas e precisas, permitem 
que adaptemos sua forma às novas circunstâncias. 
Nesse aspecto particular, é interessante lembrar que Medvedev, 
em seu livro O método formal nos estudos literários (de 1928), de­
lineia (cf. o capítulo 7) vários aspectos da discussão do Círculo so­
bre gênero. Embora tratando especificamente dos gêneros literários, 
Medvedev levanta questões quanto à relação gêneros/vida social/cog­
nição que podem e devem ser estendidas ao estudo dos gêneros em 
outras esferas da atividade humana. 
Medvedev inicia seu argumento, criticando o pressuposto de 
que os gêneros são apenas formas. Diz ele (p. 129): 
Os formalistas geralmente definem gênero como determinado con­
junto específico e constante de dispositivos com uma dominante 
definida. Como os dispositivos básicos já tinham sido previamente 
definidos, o gênero foi mecanicamente compreendido como sendo 
composto desses dispositivos. Dessa forma, os formalistas não apre­
enderam o significado real de gênero. 
E qual seria o "significado real do gênero"? Precisamente a cor­
relação entre formas e atividades. O gênero não deve ser abstraído da 
esfera que o cria e usa; isto é, abstraído da atividade, de suas coorde­
nadas de tempo-espaço, das relações entre os interlocutores. É nesse 
sentido que Medvedev assevera que o enunciado que se materializa 
no interior de um gênero é, antes de tudo, um ato sócio-histórico 
("Ele ocupa uma posição entre pessoas socialmente organizadas de 
alguma forma", p. 131). 
Desse modo, os gêneros constituem agregados de meios de 
orientação coletiva à frente da realidade; constituem, em outros ter-
mos, meios de conhecimento situado. São modos e meios sócio-his­
tóricos de visualização e conceitualização da realidade ("O processo 
de ver e conceitualizar a realidade não deve ser separado do processo 
de corporificá-lo em formas de um gênero particular", p. 134) que, 
incorporados pelas pessoas, funcionam como modos e meios de co­
nhecer a realidade e nela orientar-se ("Pode-se dizer que a consciên­
cia humana dispõe de uma série de gêneros internalizados para ver e 
conceitualizar a realidade", p .134). 
Por outro lado, novos modos de ver e conceitualizar a realidade 
gerarão novos gêneros ou modificações nos gêneros existentes que, 
por seu turno, nos permitirão ver a realidade de outro modo: 
Novos modos de representação nos forçam a ver novos aspectos da 
realidade visível, mas esses novos aspectos não conseguem clarear 
nosso horizonte e entrar nele significativamente se estiverem faltando 
os novos meios necessários para consolidá-los. Um é inseparável do 
outro (p. 134). 
Tanto para Medvedev quanto para Bakhtin, envolver-se em 
determinada esfera da atividade implica desenvolver também um 
domínio dos gêneros que lhe são peculiares. Em outr:él?_J2alayras, 
às formas 
típicas dos enunciados numa determinada atividade (falamos e escre­
vemos em gêneros; eles orientam nosso dizer) e aprendemos a dizer 
assimilando essas formas típicas no interior da mesma atividade. 
Por fim, é necessário lembrar que Bakhtin, para iniciar o ba­
lizamento do estudo dos gêneros, propõe uma primeira grande 
classificação deles em primários e secundários. Os primeiros são os 
gêneros da vida cotidiana (em geral, embora não exclusivamente, 
orais). Constituem-se e se desenvolvem em circunstâncias de uma 
comunicação verbal espontânea e estão em relação direta com seu 
contexto mais imediato. Trata-se dos gêneros da conversa familiar, 
das narrativas espontâneas, das atividades efêmeras do cotidiano. 
Os segundos aparecem em circunstâncias de uma comunicação 
cultural mais elaborada (em geral, mas não necessariamente, escri­
ta). São os gêneros que se geram e se usam nas atividades científicas, 
artísticas, políticas, filosóficas, jurídicas, religiosas, de educação for­
mal e assim por diante. 
É importante destacar, porém, que Bakhtin não entende esses dois 
tipos de gêneros como duas realidades independentes, mas como inter­
dependentes. Nesse sentido, vale reproduzir suas palavras (p. 62): 
Durante o processo de sua formação, eles absorvem e digerem vá­
rios gêneros primários (simples) que tomaram forma na comunica­
ção verbal imediata. Esses gêneros primários se alteram e assumem 
um caráter especial quando entram nos mais complexos. Perdem sua 
relação imediata com a situação concreta e com os enunciados con­
cretos dos outros. Apenas no plano do conteúdo do romance é que, 
por exemplo, réplicas de um diálogo cotidiano ou cartas encontradas 
nele retêm sua forma e sua significação cotidiana. Elas participam da 
realidade concreta somente por meio do romance como um todo, isto 
é, como um evento artístico-literário e não como um evento da vida 
diária. O romance como um todo é um enunciado do mesmo modo 
que o são as réplicas no diálogo cotidiano ou cartas íntimas (todos 
têm realmente uma natureza comum), mas diferentemente destas, o 
romance é um gênero secundário (complexo). 
Além de destacar essa perspectiva não dicotômica, mas de inter­
relação entre os dois grandes tipos de gêneros, é importante chamar 
a atenção para o fato de que, em muitas de nossas atividades, há uma 
passagem constante do plano secundário para o primário e deste para 
aquele. Lembremos, por exemplo, de uma conferência no contexto 
da educação acadêmica. Trata-se de um gênero secundário bastante 
elaborado no correr da história das atividades acadêmicas, que tem 
certas formas relativamente estáveis de acontecer, mas que se mescla, 
durante sua ocorrência, com gêneros primários de vários tipos, como, 
por exemplo, quando o expositor conta uma piada ou faz uma réplica 
a uma observação espontânea de um ouvinte, e assim por diante. 
Da mesma forma, é interessante observar que a atividade de um 
camelô anunciando seu produto, que poderíamos classificar como 
gênero primário por estar diretamente relacionada com a comuni­
cação prática e espontânea do cotidiano, tem muitas vezes um ar 
de conferência, o que pode servir de exemplo para o fato de que os 
gêneros secundários também influenciam os primários. 
Em síntese, cabe dizer que talvez a apropriação pedagógica da 
noção de gênero do discurso de Bakhtin tivesse sido mais enriquece­
clara do que cristalizadora, se suas reflexões tivessem sido entendidas 
pelo seu caráter inerentemente dinâmico e não tivesse se resumido a 
submetê-las a uma leitura apenas formal dos gêneros. 
ESTILO 
Como mencionamos acima, Bakhtin, ao discutir o conceito de 
gênero do discurso, estabeleceu uma vinculação entre gênero e estilo. 
É interessante, então, fazermos um breve comentário sobre algumas 
das discussões sobre estilo que encontramos nos textos do Círculo, 
em especial considerando o quase total esquecimento dos estudos 
estilísticos no contexto dos estudos linguísticos mais recentes. 
Não é difícil entender os porquês da marginalização desses es­
tudos na segunda metade do século XX, se lembrarmos o domínio 
hegemônico na linguística da perspectiva estrutural sincrônica. Nela 
não há muito espaço - pelas próprias opções de saída (isto é, o 
recorte saussuriano entre Zangue e parole e suas diferentes configura­
ções posteriores)- para a ação do falante. 
O pensamento sistêmico, em seus vários modelos, de certa for­
ma, exclui o sujeito falante como elemento teórico pertinente; ou, 
para aproveitar por extensão a metáfora do gene egoísta da biologia 
(Dawkins), transforma-o no servo da estrutura egoísta (a langue). 
A estilística - ao se definir como o estudo do estilo e ao en­
tender, em boa parte de suas formulações, o estilo como o espaço 
do uso individual da língua (na esteira do pensamento saussuriano); 
ou como o espaço da expressão subjetiva criativa (na perspectiva do 
idealismo linguístico) - só poderia ficar mesmo à margem da trilha 
hegemônica da linguística oficial e, por consequência, receber até a 
pecha de estudo sem efetiva dimensão científica. Restou-lhe, de certo 
modo, contentar-se em ser colocada como a herdeira da velha retó­
rica e em se ocupar com aspectos linguísticos de textos literários em 
que, por suposição, está mais visível a individualização da língua. 
Delimitando como objeto o estilo, entendido, grosso modo, 
como o arranjo do dizer pelo falante, a estilística oscilou, desde seus 
primeiros formuladores, entre dois pólos: ou o estilo é entendido 
- na esteira do trabalho de Charles Bally - como a atualização in­
dividual do sistema (e, nesse sentido, ele já está contido na langue); 
ou o estilo é - na esteira do idealismo linguístico ( Croce, Vossler, 
Spitzer)- a expressão criativa do psiquismo individuaL 
Se no primeiro polo, o falante é devedor das propriedades ge­
rais do sistema; no segundo, o indivíduo, ao manipular os elementos 
linguísticos, é devedor de sua sensibilidade e criatividade psicoló-
gicas. De um temos, então, uma_~e~odologia que busca se 
beneficiar do rigor formal das análises estruturais (achegando-se aos 
fenômenos de estilo, tertdo como pano de fundo as potencialidades 
do sistema); e, de ou_~r_o,"~ma 1ll~~um único espaço (o do sistema); de outro, o imbrica­
menta, percebido por caminhos teóricos cada vez mais densos, de 
variáveis geográficas, sociais, contextuais, históricas com variáveis 
linguísticas vai esgarçando o ~~idealista (a quimera?) de re­
duzir a expressão à atividade puramente individual. 
Podemos afirmar que Bakhtin e seu Círculo estão entre os auto­
res que melhor perceberam essa questão de fundo. Já na década de 
1920, eles criticavam o idealismo linguístico por querer constituir o 
psiquismo individual como a fonte de toda a língua, mostrando que 
sem uma orientação social de caráter apreciativo (axioló~ico) Il~~CJQ~ 
atividade mental. 
Ao mesmo tempo, mostravam que o co~ceito de sistema abs­
trato de formas normativas (a Zangue saussuriana), se fecundo para 
certos fins, era insuficiente para dar conta da enunciação e da signi­
ficação linguística, realidades eminentemente sociais. 
Em decorrência dessas críticas e da construção de outro modo 
de conceber a linguagem (nem só sistema abstrato, nem só expressão 
individual), Bakhtin e seu Círculo discutem extensamente, em dife­
rentes trabalhos, temas ligados à estilística. 
Isso, à primeira vista, poderia parecer paradoxal em estudiosos 
que enfatizam as dimensões sociointeracionais da linguagem. Con­
tudo, embora pensadores de persuasão sociológica, escapam, como 
vimos no capítulo anterior, de um determinismo absoluto do social. 
A riqueza de seu conceitual está em nos obrigar a pensar não por 
dicotomias (o individual X o social) ou pelo hiperdimensionamento 
de um dos pólos, mas por uma intrincada dinâmica em que todo 
falante, sendo uma realidade sociossemiótica, é ao mesmo tempo 
único, singular, e social de ponta a ponta. 
Não há contradição nisso. E a chave que lhes permite unir, no 
falante, a dimensão de ser único com a dimensão de ser inteiramente 
social é, como destacamos anteriormente, a forma como encaram 
a linguagem. Ao assumirem a linguagem como uma realidade so­
cial infinitamente. estratificada, abrem espaço para o individual (e, 
portanto, para estudos estilísticos). A singularidade vai poder se 
materializar nos incontáveis e mesmo imprevisíveis contatos e in-
tersecções inúmeras vozes sociais que participam da constitui-
ção contínua do psiquismo e nele ressoam e se entrecruzam numa 
espécie de moto perpétuo dialógico (cf. Evans). 
É por esse caminho que poderemos entender a argumentação 
daqueles autores segundo a qual a elaboração estilística da enuncia­
ção é uma atividade de seleção, de escolha individual, mas de natu­
reza sociológica, já que o estilo se constrói a partir de uma orientação 
social de caráter apreciativo: as seleções e escolhas são, primordial­
mente, tomadas de posição axiológicas frente à realidade linguística, 
incluindo o vasto universo de vozes sociais. 
Assim, se em Marxismo e filosofia da linguagem, Voloshinov 
argumenta que a elaboração estilística da enunciação é de natureza 
sociológica, é em textos como O discurso no romance e O problema 
dos gêneros do discurso (de Bakhtin) e As fronteiras entre a poética 
e a linguístíca e A estrutura do enunciado (de Voloshinov) que essa 
questão adquire contornos mais precisos. 
Ao articular sua teoria do romance, por exemplo, Bakhtin mos­
tra como, diante desse gênero literário, a estilística tradicional- ao 
compreender o estilo, "no espírito de Saussure: como uma indivi­
dualização da língua geral (no sentido de um sistema de normas 
linguísticas gerais)" - (O discurso no romance, p. 264); ou como 
"expressão direta e espontânea da individualidade do autor" (p. 267) 
-vive insuperáveis dilemas exatamente porque ignora a estratifica­
ção infinita de cada uma das línguas humanas (a chamada hetero­
glossia); e a respectiva (e também infinita) dialogização que atravessa 
aquela estratificação. 
É essa realidade multiforme e complexa que constitui a premissa 
do gênero romanesco; e "qualquer estudo substancial sobre a vida 
estilística da palavra deve começar deste fato fundamental" (p. 296). 
Nesse sJntido, 
A consciência linguística socioideológica concreta, quando se torna 
criativa- isto é, quando ela se torna ativa como literatura- se des-
cobre já cercada pela heteroglossia e, de modo algum, por uma língua 
única e unitária, inviolável e incontestável. A consciência hnguística 
literariamente ativa em qualquer tempo e lugar (isto é, em todas as 
épocas literárias historicamente acessíveis a nós) encontra uma plura­
lidade de "línguas" e não uma língua. A consciência se acha inevitavel­
mente face à necessidade de ter de escolher uma dentre elas (p. 295). 
Essa noção de escolha no espectro da infinita estratificação so­
cial da linguagem - que, em O discurso no romance, serve para 
sustentar a tese do autor de que a singularidade fundamental da es­
tilística romanesca está no tipo de combinação de linguagens sociais 
e de sua dialogização- volta nos outros textos citados, adquirindo, 
em cada um, novas nuanças. 
Em O problema dos gêneros do discurso, por exemplo, a estrati­
ficação social infinita da linguagem é cruzada pela noção de gênero 
do discurso e assim se estabelece um vínculo indissolúvel entre esta 
nova categoria estratificante e estilo. Em A estrutura do enunciado, 
Voloshinov faz um breve exercício de análise estilística do romance 
As almas mortas de Gogól a partir do efeito do contexto sobre as es­
colhas de linguagem; ou, ainda, em As fronteiras entre a poética e a 
linguística em que o mesmo Voloshinov discute extensamente o con­
ceito de 'estilo individual', contrapondo sua concepção sociológica 
ao psicologismo de Croce-Vossler-Spitzer (parte II) e ao formalismo 
de V V Vinogradov (parte III). 
DISCURSO REPORTADO 
É compreensível que o fenômeno linguístico concreto mais 
discutido nos textos de Bakhtin e Voloshinov seja precisamente o 
discurso reportado, isto é, a presença explícita da palavra de outrem 
nos enunciados. 
Este interesse decorre da própria concepção de linguagem do 
Círculo, que enfoca a realidade linguística social e a de cada falan-
te como fundamentalmente heterogênea. Desse modo, o tema do 
discurso reportado (e da bivocalização) emerge naturalmente dos 
destaques do Círculo à estratificação socioaxiológica da linguagem, à 
heterogeneidade das vozes sociais (à heteroglossia) e a sua dialogiza­
ção (à heteroglossia dialogizada), também aos efeitos disso "no pro­
cesso de formação ideológica do indivíduo" (p. 342) -entendido 
basicamente como um processo de absorção valorada da palavra de 
outrem e "na representação artística da palavra de outrem" (p. 350), 
em especial no discurso romanesco. 
Bakhtin, em O discurso no romance, se mostra particularmente 
fascinado pela onipresença, em forma aberta ou velada, da palavra 
de outrem "nos enunciados de um indivíduo social" (p. 354), desde 
a réplica do diálogo familiar até as grandes obras verboaxiológicas. 
No interior de cada enunciado nesta vasta realidade linguística, 
Está se dando uma interação intensa e um embate entre a palavra de 
um e de outrem, um processo no qual elas se opõem mutuamente 
ou se interanimam dialogicamente. O enunciado assim concebido é 
um elemento consideravelmente mais complexo e dinâmico do que 
quando entendido como simplesmente uma coisa que articula a in­
tenção da pessoa que o pronuncia, caso em que se assume o enuncia­
do como um veículo direto, univocal, da expressão (p. 354). 
Ao mesmo tempo, Bakhtin notava que este fenômeno não tinha 
sido ainda suficientemente estudado e apreciado em sua significa­
ção: "Não houve ainda nenhuma apreensão filosófica abrangente de 
todas as ramificações deste fato" (p. 355), isto é, do fato de que um 
dos principais temas do dizer humano é o próprio dizer. 
Anteriormente, Voloshinov dedicara toda a terceira parte de seu 
livro à discussão do discurso reportado, deixando bem visíveis as 
bases de compreensão deste fenômeno pelos membros do Círculo. 
Uma das observaçõesprincipais desse texto é aquela que diz (p. 
144) ser o discurso reportado tanto uma enunciação na enunciação 
como uma enunciação sobre outra enunciação. Em outras palavras, 
para Voloshinov, o discurso reportado não se esgota na citação, mas 
deve ser considerado como um ato que revela também uma apreen­
são valorada da palavra de outrem - o que nos remete novamente 
a uma das proposições básicas do Círculo sobre a linguagem, qual 
seja, sua estratificação socioaxiológica. 
Assim, reportar não é fundamentalmente reproduzir, repetir; 
é principalmente estabelecer uma relação ativa entre o discurso 
que reporta e o discurso reportado; uma interação dinâmica dessas 
duas dimensões. 
É essa relação que constitui, segundo Voloshinov (p. 148), o 
"objeto verdadeiro da pesquisa", porque o discurso reportante e o 
reportado "só têm uma existência real, só se formam e vivem através 
dessa inter-relação, e não de maneira isolada". Ou, em outras pala­
vras, entre os dois discursos estabelecem-se relações dialógicas e eles 
se formam e vivem nessas relações. 
Assim, para Voloshinov, o erro dos pesquisadores que se ocu­
param com as formas de transmissão do discurso de outrem é ter 
sistematicamente divorciado o discurso reportado de seu contexto 
de transmissão. Este contexto envolve não só as sequências verbais 
que incluem o enunciado de outrem, mas também os fins específicos 
com os quais se dá a transmissão (narrativa, processos legais, polêmi­
cas científicas etc.); e, além disso, envolvem também a(s) terceira(s) 
pessoa(s), isto é, a(s) pessoa(s) a quem se destinam as sequências bivo­
calizadas, que condicionam, efetiva ou virtualmente, ajustes no dizer. 
Voloshinov deixa claro que, na análise, não interessa apenas ob­
servar esses elementos em si e reduzidos ao evento empírico de sua 
ocorrência, mas principalmente tomar esse evento como indicador de 
tendências básicas da recepção ativa do discurso de outrem em deter­
minada formação social. Caberia, por exemplo, analisar nessa pers-
----------=~-------------···-------
pectiva as diferentes atitudes sociais frente aos mais div~~?52_s_~iscursos 
~~~~o elas se expressam-~~~-~-;J;~de-repo~t.;";~~ discur~~s.-·-·-
Voloshinov lembra, nesse sentido, que há verdadeiras hierar­
quias sociais de valor e que é importante levar sempre em conta a 
posição que um discurso a ser reportado ocupa nessas hierarquias, 
porque elas afetam as formas de transmissão admissíveis. 
Aceita-se, por exemplo, atravessar um determinado discurso com 
réplicas, comentários, polêmicas, isto é, admitem-se, na citação, os 
diversos tipos do estilo que ele chama (p. 150) de pictórico- aquele 
cuja característica principal é atenuar os contornos exteriores nítidos 
da palavra de outrem? Ou, para usar a terminologia de Bakhtin, o 
discurso reportante toma o discurso reportado como palavra inter­
namente persuasiva? Ou só se aceita citá-lo mantendo a relativa in­
tegridade da voz alheia, isto é, só se admitem as diferentes variantes 
do estilo que Voloshinov chama de linear - aquele cuja tendência 
principal é criar contornos nítidos à volta do discurso citado; aquele 
que toma o discurso reportado como palavra de autoridade? 
Há indícios de mudança nas hierarquias sociais, visíveis, por 
exemplo, a partir da variação das formas de transmissão? Que efeitos 
de sentido decorrem da inversão das hierarquias (quando admitida)? 
Um bom exemplo para fechar estas considerações são as dife­
rentes relações que nossa cultura mantém atualmente com o texto 
bíblico. Enquanto no período medieval, este texto foi tomado como 
palavra de autoridade, hoje há uma total ambivalência em relação a 
ele. No contexto de organizações religiosas cristãs fundamentalistas, 
o texto bíblico, assumido como a palavra de Deus revelada, ocupa 
o ponto máximo de uma hierarquia positiva de valor. Nesse caso, 
não se admite senão reportá-lo monoliticamente (em estilo linear, 
portanto), preservando sua integridade. 
Em outros contextos sociais, porém, o texto bíblico é recebi­
do como um dentre muitos textos literários. Como tal, ele também 
está, normalmente, numa hierarquia positiva de valor (como parte 
do patrimônio literário da cultura), mas não mais tomado como pa­
lavra de autoridade. Por isso, admite as mais diversas bivocalizações 
e ocorre em citações diretas ou em paródias; em citações ironizadas 
ou estilizadas; e assim por diante. 
Para concluir nosso percurso pela filosofia da linguagem do 
Círculo de Bakhtin, é importante relembrar que essa filosofia está 
centrada no pressuposto básico de que a realidade da linguagem é 
o fenômeno social da interação verbal, ou seja, a realidade da lin­
guagem é a dinâmica da responsividade, das relações dialógicas em 
sentido amplo. 
O eixo da responsividade assim posto abre um rico horizonte 
heurístico para discutir inúmeros temas do interesse da filosofia e 
das ciências humanas e sociais, tais como as questões da identida­
de, da subjetividade, da autoria, da intersubjetividade, da alteridade, 
das práticas discursivas em geral e da criação literária em especial. 
São questões que estão profundamente imbricadas e que foram 
centrais durante todo o século XX. Num certo sentido, pode-se dizer 
que foi o século XX que pôs essa temática definitivamente no centro 
do palco, envolvendo o interesse e o trabalho dos mais diferentes 
pensadores. Ela está em formulações religiosas e éticas como em Mar­
tin Buber e Émmanuel Lévinas; na psicologia social de George Mead; 
na teoria da cognição de Lev Vygotsky; na psicanálise de Jacques 
Lacan; e em várias correntes filosóficas, bastando lembrar o existen­
cialismo, oujürgen Habermas, ou Paul Ricoeur. 
Pode-se dizer também que o Círculo de Bakhtin ofereceu, com 
sua concepção de linguagem, uma contribuição bastante específica e 
significativa àquele amplo movimento intelectual que problematiza 
a questão da intersubjetividade e seus temas correlatos. 
Essa grande questão não é, contudo, uma elaboração do sécu­
lo XX. É preciso voltar ao final do século XVIII para encontrar as 
primeiras menções à relevância da relação eu-tu para fazer face a 
questões filosóficas para além da tradicional relação eu-ele (isto é, da 
relação sujeito-objeto). 
Nesse sentido, e se quisermos apreender numa perspectiva de 
grande temporalidade a contribuição do pensamento do Círculo de 
Bakhtin para essa temática, é preciso entendê-la tanto como parte 
dos interesses intelectuais do século XX, quanto como parte de uma 
tradição intelectual que começou nos fins do XVIII. 
Estamos aproveitando, neste ponto, a distinção bakhtiniana en­
tre uma perspectiva de pequena temporalidade e outra de grande tem­
poralidade para a história do pensamento (cf. a questão discutida no 
texto Resposta a uma pergunta do Conselho Editorial da 'Novy Mir'). 
Ao propor um estudo de grande temporalidade, o que se quer 
é transcender um pouco a pequena temporalidade, a temporalidade 
imediata e próxima das teorizações, e olhá-las como parte de uma 
reflexão maior que, embora dispersa, difusa, heterogênea e não ne­
cessariamente contínua, se estende no tempo, isto é, não começa 
com as teorizações de hoje, nem nelas se esgota. 
A interação e a linguagem na interação são fenômenos de alta 
complexidade por envolverem múltiplos fatores em múltiplas rela­
ções. Se alguns desses fatores e relações estão razoavelmente descri­
tos (como, por exemplo, certas pressões da cena enunciativa sobre o 
que e como se pode dizer nela), boa parte escapa ainda de uma apre­
ensão mais consistente (e aqui podemos citar, entre outros exemplos, 
o processo de aquisição da linguagem e os modos de interveniência 
das formações do inconsciente no dizer e no agir dos interactantes). 
É preciso, portanto, reconhecer, de início, que estamos ainda muito 
distantes de uma apreensão teoricamente integrada desses fenôme­
nos que envolvem múltiplos fatores em múltiplas relações. 
Nessesentido, a interação e a linguagem na interação continuam 
recobertas por aquilo que o filósofo Heidegger (Ensaios e conferên­
cias, p. 54-55) chamava de duplo incontomdvel: não podemos, pela 
sua relevância para a compreensão das questões humanas, escapar 
de estudá-las (não podemos contomd-las no sentido de nos desviar 
delas); e não dispomos de qualquer teoria capaz de contomd-las (no 
sentido de traçar uma linha teórica que as contenha). 
Pode-se dizer que a interação passou a ser objeto de estudo cien­
tífico a partir do começo do século XX. Talvez se possa estabelecer a 
obra do pensador pragmatista norte-americano George Herbert Mead 
(1863-1931) como uma espécie de marco fundacional desse empre­
endimento que começa na psicologia social e cria uma tradição que 
se estende para a sociologia e para a antropologia norte-americanas. A 
interação será tema básico da chamada etnometodologia (donde vão 
emergir as diferentes vertentes da análise da conversa); e será tema bá­
sico da etnografia da comunicação e da sociolinguística interacional. 
Toda essa tradição nos tem mostrado, de um lado, como respon­
demos constitutivamente às condições contextuais imediatas; e, de 
outro, como práticas culturais recorrentes moldam nossas interações. 
Se, pelas vicissitudes da vida acadêmica, essas duas grandes ver­
tentes pouco se encontraram no passado, é cada vez mais clara a ne­
cessidade de ir além do evento em si, mas sem perder sua dinâmica. 
Há, por exemplo, o persistente problema da relação das dimen­
sões do individual e das dimensões do social. Era já uma questão central 
para George Mead, que almejava construir uma abordagem psicológica 
que fosse uma alternativa quer aos defensores da introspecção como 
único meio de acesso ao mundo interior, quer ao behaviorismo radi­
cal de Watson, que recusava qualquer relevância ao mundo interior. A 
saída de Mead foi definir o self como uma realidade intrinsecamente 
social que se constrói no processo de interação sociossimbólica. 
Ele recusava abordagens psicológicas que tivessem como fun­
damento o primado do indivíduo, na medida em que este, por ser já 
efeito da interação, não pode ser o ponto de partida das teorizações 
e análises psicológicas. 
Seu foco era, portanto, a construção do sujeito como efeito da 
interação. Não há, propriamente, nele um estudo específico da lin­
guagem na interação para além do reconhecimento do seu papel 
constitutivo dos processos sociointeracionais e da construção do su­
jeito. O que merece especial destaque em Mead é a sua concepção da 
linguagem não como estrutura, mas como ação- ação intersubjeti­
va que, como tal, se internaliza e se torna ação intrassubjetiva. Pro­
cesso semelhante defenderá Vygotsky para fundamentar sua teoria 
da cognição humana, isto é, a cognição vista como uma atividade 
que se dá primeiro na interação e é internalizada, trazendo para o 
interior o movimento do exterior. 
Essas intrigantes semelhanças axiomáticas que emergem em di­
ferentes pontos do tempo e do espaço, muitas vezes sem que seus 
autores cheguem a se conhecer, devem servir para nós de indicado­
res de caminhos heuristicamente produtivos, se entendermos que 
as semelhanças não são meras coincidências, mas desvelam pontos 
cruciais para o desdobramento do trabalho teórico. 
Nesse sentido? parec~.quep(l área dos estudos da interação não 
podemos fugir do axioma d~ que o intersubjetivo se toma intras­
~~~j~~~V:?' isto é, de que o movimento externo se toma movimento 
interno. A questão crucial é saber como se dá esse processo. Solu­
ções integralmente deterministas não são satisfatórias. Parece que boa 
parte dos teóricos interacionistas quer compreender a subjetividade 
como emergindo do social, quer compreender a interação como con­
dicionada por vários fatores, mas, ao mesmo tempo, não quer perder 
nem as singularidades da subjetividade, nem o novo, o inusitado, o 
imprevisível, o inesperado dos eventos de interação. Ou seja, nem o 
primado do indivíduo, nem o determinismo absoluto da estrutura. 
George Mead, por exemplo, tentou fundamentar esse não-de­
terminismo por meio de duas grandes coordenadas. Primeiro, as­
sumindo que o social nunca é um dado homogêneo, mas sempre 
heterogêneo. O social contém uma multiplicidade daquilo que ele 
chama de "outros generalizados" (que poderíamos entender como 
conjuntos de .~ç()e_s~r~PE~sentações, valpres_e atituc1es que circulam 
numa determinada sociedade; ou, em outra terminologia, o conjun­
to dos pré-construídos sócio-históricos). 
Desse modo, nenhum sujeito fica confinado nos limites de um 
único "outro generalizado", mas emerge de relações simultâneas ou 
consecutivas com vários "outros generalizados", muitos deles opos­
tos entre si, contraditórios, conflitivos. Essa realidade sempre hete­
rogênea e cheia de contradições gera desequilíbrios e tensões que 
inviabilizam qualquer fechamento determinista mecânico dos pro­
cessos interacionais e de seus efeitos. 
Por outro lado, o caráter dinâmico (ativo e não-mecânico) do 
mundo interior também restringe o determinismo, na medida em que, 
a partir da contínua polarização entre o "me" e o "eu" (nos termos de 
Mead), geram-se respostas singulares e não totalmente previsíveis. 
Em suma, a heterogeneidade e a contradição são os motores da 
relação externo/interno e da dinâmica do interno. 
O "me" é o "eu social", isto é, o resultado da internalização do 
conjunto de atitudes e dizeres dos outros em relação ao self (o que 
sou para os outros); o "eu" é a resposta ativa ao "me", isto é, o "eu" re­
sulta do processo intrapsíquico ativo pelo qual cada um se subjetiviza 
(se singulariza) respondendo às estruturas semioticizadas do "me". 
Em outras palavras, podemos dizer que na complexa viagem de 
nossa individualização, somos instados a responder ao "eu social" in­
ternalizado, mas, tendo de lidar com a heterogeneidade e seus con­
flitos - cada resposta vai ter necessariamente um caráter específico, 
portanto, imprevisível. 
Formulação muito parecida encontramos em Bakhtin. Ao que 
se saiba, Bakhtin não chegou a conhecer a obra de Mead. Novamen­
te, as semelhanças não podem, porém, ser vistas como meras coin­
cidências, na medida em que, no fundo, revelam problemas cruciais 
da área dos estudos da interação. Diz ele em O discurso romanesco: 
"O vir a ser axiológico de um ser humano é o processo de assimilar 
seletivamente as palavras alheias" (p. 341). Ou, em outra formula­
ção, "deve-se ter em conta também a importância psicológica em 
nossas vidas do que os outros dizem sobre nós e a importância, para 
nós, da compreensão e interpretação dessas palavras alheias (a 'her­
menêutica viva')" (p. 338), ou seja, o produto do meu processamen­
to do dizer, do interagir dos "outros generalizados". 
Também aqui há o reconhecimento do papel constitutivo do 
que os outros dizem de nós e o papel ativo do psiquismo no pro­
cessamento desse dizer. Embora não haja um detalhamento desse 
processo psíquico - o que transcendia os interesses imediatos da­
quele autor-, é importante deixar em destaque, para não perder de 
vista a complexidade do psíquico, o pressuposto de que o psiquismo 
tem - mesmo imerso na dinâmica da interação e dela emergindo 
- uma autonomia e uma ação própria. 
E acrescentemos: essa autonomia e ação própria se realizam 
atravessadas também pela condição de seres desejantes, dimensão 
trazida para o debate pelas vertentes psicanalíticas e não considera­
da, no plano teórico, nem por Mead, nem por Bakhtin; e, aliás, tra­
dicionalmente desconsiderada pelos estudos interacionais em geral, 
quando não banalizada ou barbarizada. 
Se detalhamos um pouco a perspectiva de George Mead, é por­
que ela parece conter alguns dos problemas fundamentais dos estu­
dos científicos que se realizarão adiante no século XX e que ainda 
constituem, muitos deles, problemas não suficientemente equacio­
nados. Vamos dar atenção aqui a doispontos em particular. 
Um primeiro diz respeito ao fato de que a linguagem, na intera­
ção, tem de ser tratada necessária e primordialmente como atividade 
e não como estrutura. No entanto, permanece entre nós o problema 
de como construir uma teoria que equacione estrutura e atividade; 
que case adequadamente, por exemplo, sentença e enunciado ou 
sentença/enunciado/enunciação. 
Nesse caso, cabe perguntar: é suficiente pensar a atividade ver­
bal na interação como apenas um processo de atualização do sistema 
(como pressupõem tradicionalmente as linguísticas formais)? Ou as 
especificidades da atividade (as chamadas pressões da interação, o 
caráter aparentemente teleológico da atividade verbal) se inscrevem 
na estrutura (como pressupõem as linguísticas 
pelo menos, as teses da Escola de Praga)? 
Se a resposta aqui for positiva, como se dá essa inscrição? A ati­
vidade é mero epifenômeno da ordem da língua ou a ordem da lín­
gua é epifenômeno das funções interacionais que ela cumpre? Ou há 
ainda outras dimensões a serem aqui consideradas? Os interactantes 
são meros usuários de uma língua pré-dada ou eles, quando em ação 
conjunta (interação), também agem com e sobre a língua? A língua 
é apenas um conjunto de signos (um produto) ou é um processo 
de contínua diferenciação? (Nesse sentido, que leitura de Saussure 
devemos privilegiar: a língua como um tesouro ou a língua como o 
jogo contínuo das diferenças?) 
Ou, para além da problemática sentença/enunciado, a linguagem 
como atividade é melhor tratada a partir de macroestruturas? Quais 
são elas? E como essas macroestruturas (os gêneros do discurso, por 
exemplo) condicionam a não-aleatoriedade das sequências verbais aí 
construídas ou coconstruídas (assumindo, como se tem feito e como 
parece inevitável, o caráter não aleatório dessas sequências)? 
Parece óbvia a importância de todas essas questões. No entanto, 
não parece existir ainda uma sintaxe, micro ou macro, que responda 
com adequação e abrangência às demandas de uma perspectiva que 
pense a linguagem primordialmente como atividade, como interação. 
É comum se ler, em textos interacionistas, a declaração de prin­
cípio de que, sem se descuidar da questão estrutural, a ênfase esta­
rá nos processos verbointeracionais. No entanto, o silêncio sobre a 
questão estrutural é claro sinal de um problema que nos acompanha, 
como dissemos antes, pelo menos desde que Humboldt formulou, 
no início do século XIX, sua idéia da língua como atividade (embora 
não primordialmente como interação). 
Por ora, parece não haver nenhuma saída para a tradicional di­
visão do trabalho: estrutura lá, atividade cá. A primeira como objeto 
uma linguística stricto sensu e a segunda, pelo enorme 
conjunto de fatores envolvidos, visualizada como objeto de um con­
sórcio de disciplinas (para nos mantermos nas coordenadas heurísti­
cas de Saussure sobre esta questão- cf. introdução, cap. IV, p. 2 7 do 
Curso de línguística geral). 
Se não há no horizonte uma teorização que nos forneça as bases 
para pensar o estrutural a partir da atividade (o estrutural como ponto 
de chegada e não como ponto de partida, como pleiteava programati­
camente Voloshinov, p. 96), lemos, com certo espanto, num Chornsky 
mais recente (2000, p. 132), a asserção de que a estrutura (a sintaxe) é 
cientificamente cognoscível, mas a atividade, face à sua heterogeneidade, 
complexidade e imprevisibilidade, não o é: constitui antes um conjunto 
de mistérios que nunca serão resolvidos pela mente humana (p. 133). 
Essa posição rompe com o que tem sido uma espécie de senso 
comum entre os linguistas estruturais, que tradicionalmente defen­
dem o primado da estrutura, mas não excluem do escopo da ciência 
a atividade, mesmo que a atribuam como objeto a um consórcio de 
disciplinas científicas. 
Pela última formulação chomskiana, desaparece a divisão do tra­
balho. Não na direção de uma teoria integrada, mas pela exclusão do 
escopo da ciência daquilo que ele chama de pragmática. Se antes, dis­
putávamos a direção da flecha (se da estrutura para a atividade ou se 
da atividade para a estrutura), hoje temos de lidar com este tertius que 
coloca sob suspeita nossas crenças de que, ao lidarmos com a interação 
e com a linguagem na interação, estamos fazendo ciência. Um desafio 
que nos perseguirá, no futuro imediato, será, portanto, debater e des­
lindar essa questão: fazemos ciência ou estamos lidando com um con­
junto de mistérios que nunca serão resolvidos pela mente humana? 
Um segundo ponto que gostaríamos de voltar a pautar aqui é 
o fato de que as teorizações sobre linguagem e interação enfrentam 
(como Mead e tantos outros pesquisadores enfrentaram) o proble­
ma de como relacionar o social e o individual. Passado um século 
de investigações e teorizações, o desafio heurístico continua sendo, 
em grande parte, o de relacionar dinamicamente estes dois pólos 
tradicionais nas ciências sociais, evitando a todo custo reduzir esse 
problema a uma dicotomia. 
A crítica de quase dois séculos às filosofias individualistas, idea­
listas do sujeito já deveria ser suficiente para assentarmos, em qual­
quer estudo da interação e da linguagem na interação, um princípio 
geral de que não se pode dar ao indivíduo a primazia sobre os "ou­
tros generalizados" e sobre as relações sociais, o que não significa (e 
aqui mora o grande desafio) deixar a singularidade desaparecer num 
caldo integralmente determinista. 
Em outras palavras, não reduzir a interação a encontros for­
tuitos de mônadas autossuficientes; nem assujeitar os interactantes 
às estruturas, de modo a tornar incompreensível o inusitado, o im­
previsível e a resposta criativa. Não ignorar o que se passa local­
mente nos eventos interacionais (cuja relevância ficou visível pelas 
análises de fundo etnometodológico), mas não reduzir a interação ao 
exclusivamente local. Para isso, não perder, por exemplo, as lições 
das investigações antropológicas que nos apontam a relevância dos 
repertórios, sempre heterogêneos, de práticas culturais como condi­
cionantes dos eventos interacionais. E, ainda mais, não perder igual­
mente as lições de certa tradição européia de estudos discursivos de 
que a interpelação dos interactantes não se faz só pelo local ou pelas 
práticas culturais, mas também pelas estruturas do inconsciente e 
pelos pré-construídos histórico-axiológicos que condicionam o que 
pode ou não ser dito, o que deve ou não ser dito e fazem nosso dizer 
significar pela memória discursiva que nele ressoa. 
O desafio é como não perder toda essa complexidade e como 
não se perder nela: não dar primazia ao local, mas não ignorá-lo; não 
recusar o pré-dado cultural e historicamente construído, mas não in­
vocá-lo deterministicamente; não ignorar o poder interveniente das 
formações do inconsciente, mas não entregar-se a uma psicanálise 
selvagem; não desconsiderar as teias do interdiscurso, mas não se 
satisfazer com paráfrases ingênuas ou condenações inquisitoriais. 
Nesse ponto específico, parece que estamos em melhor situação 
teórica para o estabelecimento de um princípio geral do que no caso 
da face estrutural. É muito difícil hoje, considerando a crítica de mais 
de um século às filosofias idealistas, individualistas do sujeito, susten­
tar uma concepção teórica que assuma o indivíduo como axioma. 
O caminho para incorporar uma concepção relacional de base 
está traçado, e as melhores soluções, reforçadas por variadas reflexões 
filosóficas, colocam a linguagem como pedra angular do edifício, desde 
que, obviamente, não a tomemos como uma realidade homogênea. 
Nesse sentido, é bastante engenhosa (e heuristicamente pode­
rosa) a formulação que Bakhtin e seu Círculo deram a essa questão. 
Eles propuseram - com base em sua concepção da linguagem como 
interação social e em sua concepção sociossemiótica da consciência 
-uma articulação entre o individual e o social de naturezanão-di­
cotômica e, ao mesmo tempo, não-determinista e não-idealista. 
Segundo eles, como vimos no capítulo dois, são os signos que 
constituem o alimento da consciência, isto é, a consciência individu­
al toma forma e existência à medida que interioriza os signos sociais. 
Nesse processo, ela não só os absorve como tais, mas absorve prin­
cipalmente sua lógica. 
Esta lógica é precisamente aquela da interação socioaxiológica, 
isto é, a lógica das relações dialógicas, do plurilinguismo dialogiza­
do. É essa dinâmica social, que, internalizada, desencadeia o moto 
contínuo (a autonomia) da atividade psíquica. 
Por isso tudo, pode-se dizer que, para o Círculo de Bakhtin, a 
consciência é social de ponta a ponta (a origem do seu alimento e 
da sua lógica é externa - a heteroglossia dialogizada) e singular de 
ponta a ponta (os modos como cada consciência responde às suas 
condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um 
evento único do Ser). 
Em outras palavras, é a linguagem que funda, para Bakhtin e 
seu Círculo, a articulação social/individual. Sua materialidade per-
mite uma abordagem não-ideahsta da consciência; sua heterogenei­
dade, uma abordagem não-determinista; e sua dinâmica 
é o ponto de convergência do individual e do social. 
A INTERAÇÃO COMO TEMA FILOSÓFICO 
Antes de ser um objeto de análise científica, a interação foi tema 
da reflexão filosófica já desde o século XVIII. Essa reflexão emerge 
como parte de um movimento que, entre outras motivações, buscava 
saídas para os percalços e embaraços trazidos por concepções solipsis­
tas do sujeito - do sujeito que se autodefine, que reconhece sua exis­
tência por si e a partir de si, que é senhor do próprio conhecimento. 
Para entender melhor a pertinência e a conjuntura da entrada 
em cena da relação eu-tu, é preciso lembrar, primeiramente, que o 
indivíduo (empírico ou, primordialmente na filosofia, transcenden­
tal), já desde o século XVI, é o grande elemento axiomático do pen­
samento moderno. Dele se deduz todo o resto. 
Um dos grandes emblemas dessa perspectiva é, certamente, o 
sujeito do cogito, o sujeito transparente a si mesmo no ato imediato 
de refletir sobre si e de dar fundamento à sua atividade cognitiva. 
Para além do sujeito, a relação que importa é a do sujeito com o ob­
jeto (a relação eu-ele), a relação cognitiva em si do indivíduo. 
A se confiar na leitura que Robert G. Solomon (1983) faz desse 
período, pode-se dizer que, da história da filosofia moderna - de 
Descartes e Locke a Kant- os outros (i.e., os tus) estão silenciosa­
mente ausentes. E, excluindo as inúmeras diferenças existentes entre 
as várias formulações desse modo de pensar, poderíamos ir adiante 
e dizer que essa linhagem de pensamento continua forte ainda hoje 
- apesar de todas as sucessivas críticas - como o substrato orga­
nizador de importantes reflexões, seja na filosofia, seja na ciência, 
sobre a subjetividade, a cognição e a linguagem, para ficar apenas 
em algumas áreas. 
A outra linhagem - aquela que vai, aos poucos, assumir a in­
tersubjetividade como axiomática e, por isso, vai fazer crescer a idéia 
de que é impossível pensar o ser humano fora das relações com 
0 
outro e vai pôr em xeque o primado do eu- emerge no contexto da 
filos~fia alemã do século XVIII, o que é um tanto quanto paradoxal, 
considerando que para os filósofos desse período o eu é ainda 
0 
nú­
cleo estruturador do seu entendimento das questões humanas. 
Trata-se, contudo, de um momento particularmente interessante 
da h~stória moderna que tem seus impactos sobre os modos de pen­
sar. E o período em que as principais sociedades européias começam 
a sentir agudamente os efeitos de um grande ciclo de mudanças: os 
efeitos socioeconômicos da Revolução Industrial e os efeitos políticos 
da Revolução Inglesa e da Revolução Francesa (R. Williams, 1958). 
No primeiro caso, o novo modo de organizar a produção e 0 
trabalho, com suas consequências, como a urbanização intensa e 
o ~edesenho das sociedades até então fundamentalmente agrárias, 
va1 tornar o trabalho (o agir transformador humano), por exemplo, 
tema de reflexão filosófica sistemática. 
No segundo caso, a percepção de que havia possibilidades con­
cretas de o agir humano coletivo redundar em significativas mudanças 
na organização política da sociedade começa a corroer uma perspecti­
va solipsista de compreensão do pensamento e da ação humana. 
Desse modo, a dinâmica da história vai forçando um redire­
cion~mento das elaborações intelectuais. Nesse longo processo, foi 
prec1so compreender, primeiro, que o si não existe sem 0 outro, isto 
é, foi preciso compreender o primado constitutivo das relações e da 
alteridade. E, depois, foi preciso colocar a linguagem como constitu­
tiva dessas relações. 
Para o primeiro momento, é fundante a elaboração de Hegel 
em Fenomenologia do espírito (1807), texto em que se delineiam as 
coordenadas da dialética do reconhecimento, em que 0 eu só apare­
ce como presença de si para si mesmo pela mediação do outro: "A 
consciência de si é em si e para si quando e porque é em si e para si 
para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido" 126) 
Essa formulação específica é apenas um degrau do grande edifício 
que Hegel constrói na Fenomenologia, mas tem sido intertexto, marca­
do ou não, de várias formulações posteriores, inclusive as de Bakhtin. 
Antes de Hegel, o filósofo Friedrichjacobi (1743-1819) parece ter 
sido o primeiro a reclamar, explicitamente, a paternidade do tema da 
intersubjetividade. No prefácio à edição de 1815 da obra David Hume 
über dm Glaubm, em nota de rodapé, Jacobi (1994:554) declara ter 
sido o primeiro a proclamar inequivocamente, em sua obra sobre Spi­
noza (publicada 1785, com uma nova e ampliada edição em 1789), a 
proposição "O eu é impossível sem o tu" ("Kein du, kein ich"). 
Contudo, a proposição de Jacobi estava ligada a uma temática 
teísta e emergiu no contexto de sua crítica à concepção de Spinoza 
de um Deus transcendental que, contrária a todas as representações 
antropomórficas de Deus, terminava por identificá-lo com a Nature­
za (o seu famoso dito Deus sive Natura). 
Ora, para Jacobi, essa argumentação era inteiramente inaceitá­
vel. Para ele (fiel a sua formação pietista, atitude religiosa que defen­
de que nada se interpõe entre Deus e o crente; que entre eles há uma 
relação direta de sentimento e não de pensamento conceitual), Deus 
tem de ser um outro; ele não pode ser uma substância indistinta na 
Natureza, nem apenas um conceito ou um valor abstrato, mas é um 
ser transcendente, uma personalidade real ("Eu acredito numa causa 
inteligente e pessoal do mundo." -Jacobi 1946, p. 111) que, ao se 
dar a conhecer a nós pela experienciação de um sentimento anterior 
e acima da razão, também determina a individuação do eu. Em ou­
tros termos, é só na relação com o tu que o eu pode se perceber como 
distinto. Vale aqui também o dito anterior de Jacobi de que o eu é 
impossível sem o tu. Em outras palavras, parajacobi não pode haver 
um eu exceto em referência a um tu que o transcenda. 
Essa questão será retomada pelo filósofo Ludwig Feuerbach 
(1804-1872). Suas referências a uma razão intersubjetiva são bas-
tante dispersas. No entanto, há um trecho, em 
de 1866, que é suficiente para mostrar a direção 
de seu pensamento. Dizia ele: 
Certamente que o idealismo sabe( ... ) que sem tu não há eu, mas este 
ponto de vista no qual há um eu e um tu, é para ele apenas o empírico, 
não o transcendental, quer dizer, verdadeiro, não é o primeiro e origi­
nário, mas um ponto de vista subordinado, que é válido para a vida, 
mas não para a especulação (Gesammelte Werke, vol. 11, p. 176). 
Fica claro, por este trecho, que para Feuerbach o intersubjetivo 
tem um papel constitutivo ("transcendental, primeiro, originário") e não 
apenas subordinado. Ele elevou a interação ao estatuto de dimensão a 
príori, condição transcendentalda existência. Desse modo, ele substi­
tuiu a razão autossuficiente por uma razão relacional e a subjetividade 
isolada pela subjetividade relacional, efeito da relação intersubjetiva. 
Na sequência, vamos encontrar, nesta linhagem filosófica, Mar­
tin Buber (1878-1965), que, explicitamente inspirado em Feuerba­
ch, escreveu seu influente livro de 1923 Ich und Du (Eu e tu, na 
tradução brasileira). 
Buber identifica (em Buber 1948) Feuerbach, a par de Jacobi, 
como pai do princípio da intersubjetividade. Foi ele, segundo Buber, 
que retirou o fundamento teísta da formulação de Jacobi e deu-lhe 
um fundamento inter-humano. Com isso, pôde estatuir também a 
intersubjetividade como um a príori para uma nova filosofia, isto 
é, uma filosofia capaz de superar o solipsismo tradicional. Nesse 
sentido, Buber considerava a obra de Feuerbach como um segun­
do recomeço do pensamento moderno depois da descoberta do eu 
pelo idealismo. Nesse sentido, havia nas formulações de Feuerbach, 
segundo Buber, um evento copernicano. 
Buber aprofunda essa perspectiva, construindo em seu livro 
uma espécie de ontologia da relação (resumida em seu slogan de 
sabor bíblico: "No princípio, é a relação"), uma ontologia da inter­
relação como o modo humano de existência e, por consequência, 
uma ética do inter-humano. 
.:) 
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::l 
A alteridade precede e é constitutiva da identidade, da ipseida­
de ("Ich werde am Du"- "Me tomo na relação com o Tu"). Devo à 
presença do Tu minhas possibilidades existenciais. Toda e qualquer 
função psíquica só se desenvolve, bem ou mal, na presença do outro. 
Ser reconhecido é a pedra angular da construção do Eu: ser visto, 
reconhecido, respeitado. 
Do caráter constitutivo, estruturante da inter-relação decorrem 
os fundamentos de uma ética do inter-humano. O Tu tem o dever 
de reconhecer o Eu (como dirá Bakhtin, mais tarde- no seu texto 
Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, de 1961-, "A morte 
absoluta - o não-ser - é o estado de não ser ouvido, de não ser 
reconhecido, de não ser lembrado. Ser significa ser para um outro, e 
por meio do outro, ser para si mesmo."- p. 287). 
Por outro lado, o Eu tem o dever de reconhecer o Tu, o que signi­
fica, fundamentalmente, responder ao Tu. O Eu é instado a responder. 
Desse conjunto de reflexões filosóficas, emerge uma primeira 
questão crucial para os estudos da interação e da linguagem na in­
teração: cabe-nos apenas descrever e explicar os fenômenos ou, ao 
identificar o papel nuclear, estruturante da dialética do reconheci­
mento, cabe-nos também cuidar da grande dimensão ética que per­
passa a interação? 
O filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1995) criticava qualquer 
abordagem meramente intelectualista da interação. Para ele, há uma 
inter-relação originária irredutível à mera compreensão intelectuaL 
Ou, em outras palavras, não é possível reduzir a interação ao pro­
posicional, porque antes de ser mero objeto de conceitualização, a 
interação é desde sempre uma relação que nos obriga a responder à 
face (à exterioridade do outro): antes e para além de ser objetificada, 
a inter-relação é, portanto, vivida. 
Dentre todos os filósofos que puseram o foco de suas reflexões 
na interação, foi Bakhtin o que mais avançou em termos de uma 
análise da linguagem. 
Bakhtin estava familiarizado com essa rede de pensadores. De 
sua da obra fundante de Hegel, nos dá uma pequena pista nas 
notas de caderno de 1970-1971 (p. 137), quando alinha algumas con­
siderações sobre a consciência que o ser humano adquire de si mesmo 
e diz: "A reflexão do si no outro empírico por quem o si tem de passar 
para alcançar o eu paramim mesmo", uma quase-paráfrase de HegeL 
Por outro lado, foi leitor e admirador de Buber, mas- é im­
portante destacar- suas reflexões sobre a relação eu/outro, em Para 
uma filosofia do ato, foram escritas alguns anos antes de Buber pu­
blicar seu livro em 1923. 
Conhecia a obra de jacobi e fez dela um aproveitamento bas­
tante curioso: utilizou a noção de Deus como o grande outro (ou a 
alteridade absoluta) não para sustentar uma reflexão teísta, mas no 
processo de caracterização do herói confessional na literatura, con­
forme se pode ler em O autor e herói na atividade estética (p. 144). 
Pode-se dizer, portanto, que as diferentes abordagens da temáti­
ca filosófica da intersubjetividade estavam bem presentes no horizon­
te do pensamento de Bakhtin e de seu Círculo. Há, claro, um longo 
caminho entre as primeiras formulações da temática da intersubjeti­
vidade, no século XVIII, até se chegar, cento e tantos anos depois, ao 
Círculo de Bakhtin com sua teoria das relações dialógicas que colo­
cou, com maestria, a linguagem no cerne desta problemática. Mas, 
pelo rápido percurso que fizemos, fica já bem claro que sua filosofia 
pode ser vista como parte de uma linhagem intelectual que tomou 
forma a partir da percepção básica de que o si não é sem o outro. 
REFERÊNCIAS 
BIBLIOGRÁFICAS 
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Toward a Philosophy of the Act. Translated by V Liapunov. Austin: University of Texas 
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Author and Hera in the Aesthetic Activity, in: Art and Answerability: Early Philosophi­
cal Essays by M. M. Bakhtin. Translated by V Liapunov. Austin: University of Texas 
Press, 1990, p. 4-256. 
c) O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal (1924) 
The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art. In: Art and Answerability: 
Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin, p. 257-325. 
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Problems of Dostoevskys Poetics. Translated by C. Emerson. Minneapolis: University 
ofMinnesota Press, 1984. 
e) O discurso no romance (1934-1935) 
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Translated by C. Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 
1981, p. 259-422. 
f) Da pré-história do discurso romanesco (1935-1936) 
From the prehistory of novelistic discourse, in: The Dialogic Imagination: Four Essays 
by M. M. Bakhtin, p. 41- 83. 
g) Rabelais e seu mundo (194611965) 
Rabelais and his World. Translated by H. Iswolsky Cambridge: MIT Press, 1968. 
h) O problema dos gêneros do discurso (1952-1953) 
The Problem of Speech Genres, in: Speech Genres & Other Late Essays. Translated by 
V W McGee. Austin: University ofTexas Press, 1986, p. 60-102. 
i) Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski (1961) 
Toward a Reworking of the Dostoevsky Book, in: Prob!ems of Dostoevsky~ Poetics. 
Appendix li, p. 283-302. 
j) O problema do texto (1959-1961) 
The Problem of tke Text in Linguistics, Philology, and the Human Scíences: an Experi­
ment in Philosophical Analysis, in: Speech Genres & Other Late Essays, p. 103-131. 
l) Resposta a uma pergunta do conselho editorial da 'Novy Mir' (1970) 
Response to a Questionfrom the 'Novy Mir' Editorial Stafj, in: Speech Genres & Other 
Late Essays, p. 1-7. 
m) Notas de caderno -1943-1963 
De los borradores, in: Hacia una filosofia de! acto ético. De los borradores y otros escri­
tos. Trad. T. Bubnova. Barcelona: Anthropos; San Juan: Universidad de Puerto Rico, 
1997, p. 138-178. 
n) Notas de caderno -1970-1971 
From Notes Made in 1970-71, in: Speech Genres & Other Late Essays, p. 132-158. 
o) Para uma metodologia das ciências humanas (1974) 
Toward a Methodology for the Human Sciences, in: Speech Genres & Other Late Es­
says, p. 159-172. 
- P. N. MEDVEDEV 
a) As tarefas imediatas da ciência histórico-líterdria (1928) 
'The Immediate Tasks Facing Literary-Historical Science', in: Bakhtin School Papers. 
Ed. by A Shukman. Russian Poetics in Translation, Oxford, (lO): 75-91, 1983. 
b) O método formal nos estudos líterdrios (1928) 
The Formal Method in Literary Scholarship: a Critica! Introduction to Sociological 
Poetics. Translated by A]. Wehrle.Cambridge: Harvard University Press, 1985. 
-V N. VOLOSHINOV 
a) O discurso na vida e o discurso na poesia (1926) 
Discourse in Life and Discourse in Poetry. In: Bakhtin School Papers. Ed. by A Shuk­
man, p. 5-29. 
b) Freudismo (1927) 
Freudism: a Critica! Sketch. Translated by L R.Titunik. Bloomington: Indiana Univer­
sity Press, 1987. 
c) As correntes mais recentes do pensamento línguístico no Ocidente (1928) 
The Latest Trends in Línguistic Thought in the West, in: Bakhtin School Papers. Ed. by 
A Shukman, p. 31-49. 
d) Marxismo e filosofia da linguagem (1929) 
Marxism and the Phílosophy of Language. Translated by L Matejka & L R.Titunik. 
New York: Seminar Press, 1973. 
e) As fronteiras entre a poética e a linguística (1930) 
Les frontieres entre poétique et linguistique, in: ToDOROV, T. Mikhall Bakhtine: le prín­
cipe dialogique. Paris: Seuil, 1981, p. 243-284. 
j) Estilística do discurso literdrio- que reúne os artigos: O que é a linguagem?, A cons­
trução do enunciado, A palavra e sua função social (1930) 
Líterary Stylístics- What is Language?, The Construction of the Utterance, The Word 
and íts Social Function, in: Bakhtin School Papers. Ed. by A. Shukman, p. 93-152. 
II- Obras do Círculo de Bakhtin em português 
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Ra­
belais. Trad. Y F Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da UnB, 1987. 
__ .Estética da criação verbal. Trad. P Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 
__ . O freudismo: um esboço critico. Trad. P Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2001. 
__ (VoLOCHINOV, V N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do 
método sociológico na ciência da linguagem. Trad. M. Lahud e Y. F Vieira. São Paulo: 
HUCITEC, 1997. 
Problemas da poética de Dostoievski. Trad. P Bezerra. Rio de janeiro: Forense Univer­
sitária, 2008. 
__ . Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. A F Bemardini et al. São 
Paulo: Editora da UNESP e HUCITEC, 1988. 
III - Demais obras citadas 
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Edi­
tora, 2001. 
ARisTóTELES. The Complete Works of Aristotle. Org.: BARNES,]. Princeton: Princeton University 
Press, 1984. 
BocHAROV, S. Conversations with Bakhtin. PMLA- Publications of the Modem Language 
Association of America, vol. 109, n. 5, oct/1994, p. 1009-1024. 
BRAn, B. Ironia em perspectiva polifõnica. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. 
BUBER, M. What is Man?, in __ In Between Man and Man. NewYork: Macmillan, 1948. 
__ .Eu e Tu. São Paulo: Editora Moraes, 1977. 
CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. I- a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 
2001. 
CASTRO, E. R de. O irreversível e o á poro, in BRAn, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e constru­
ção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p. 357-368. 
CHOMSKY, N. New Horizons in the Study ofLanguage and Mind. Cambridge: Cambridge Uni­
versity Press, 2000. 
CLARK, K & HoLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998. 
EMERSON, C. Introduction: Dialogue on Every Comer, Bakhtin in Every Class, in MANDELKER, 
A. (org.). Bakhtin in Contexts: Across the Disciplines. Evanston: Northern University 
Press, 1995, p. l-30. 
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__ . Marxísm and Literature. Oxford: Oxford University Press, 1977. 
, 
INDICE DE AUTORES 
E DE OBRAS CITADOS 
A construção do enunciado 59, 64 
A estrutura do enunciado 100, 137, 138 
A filosofia das formas simbólicas ll O 
Amorím 16, 40, 44 
Angústia 94 
A ordem do discurso 83 
A palavra e sua .funçào social 71, 100 
As almas mortas 138 
As correntes mais recentes do pensamento lin­
guístico no Ocidente 34, 74, 100 
As fronteiras entre a poética e a lingutstica 46, 
137, 138 
As tarefas imediatas da ciência histórico­
literária 34 
Authier-Revuz 118 
Bakhtin 7, 9, lO, 11, 12, 13, 14, 15, 
16, 17, 18, 19,20,21,22,23,24,25, 
26,27,29,30,31,32,34,35,36,38, 
39,40,41,42,43,44,49,50,52,53, 
55,56,58,59,60,61,62,63,64,65, 
66,67,68,69, 70, 73, 74, 75, 76, 77, 
78, 79,80,81,82,83,84,86,88,89, 
90,91,92,93,94,95,96,97,99, 100, 
101, 102, 103, 104, 105, 106, 114, 
115, 116, 117, 118, 119, 122, 124, 
125, 126, 127, 128, 129, 131, 132, 
133, 136, 137, 138, 139, 141, 142, 
146, 147, 151, 154, 156, 157 
Bally 134 
Bocharov 31, 100 
Boutet 119 
Brait 40 
Buber 142, 155, 157 
Bubnova 96 
C assirer 110, 112 
Castro 15 
Chklovski 32 
Chomsky 117, 149 
Círculo de Bakhtin 9, 10, 11, 13, 14, 16, 
17, 18, 19,24,26,27,28,29,30,32, 
33,34,35,39,40,46,47,48,49,50, 
51,54,56,57,58,60,61,62,63,66, 
68,69, 72, 73, 74, 79,86,87,91,96, 
99, 100, 101, 102, 103, 118, 119, 
120, 124, 125, 126, 130, 133, 136, 
138, 139, 140, 142, 143, 151, 157 
Clark 14 
Cohen 16 
Croce 134, 138 
Curry 114humanas (p. 169), ele voltará a este mesmo ponto e dirá, 
comentando o estruturalismo, que é contra uma formalização e uma 
despersonalização sistemáticas. 
Bakhtin reconhece, naquele primeiro texto (p. 19), que a filo­
sofia moderna, dentro de seus propósitos e perspectivas, alcançou 
grande sofisticação em suas elaborações. Entretanto, para ele, essa 
filosofia não pode pretender ser uma filosofia primeira porque nada 
consegue dizer sobre o ser-como-evento único. 
Uma filosofia primeira que trabalhe de dentro da unicidade do 
ser e do evento não existe- diz ele (p. 19)- e mesmo os caminhos 
que levam à sua criação parecem estar esquecidos. 
Contudo, ele quer recuperar a possibilidade de tal filosofia pri­
meira, uma filosofia cujo procedimento não será construir conceitos, 
proposições e leis universais sobre o mundo do ato efetivamente rea­
lizado (em outras palavras, não se orientará pela "pureza" abstrata, te­
órica do ato), mas só poderá se viabilizar como uma fenomenologia 
daquele mundo (p. 32), como uma forma do pensamento que Bakhtin 
chama de participativo, não-indiferente, isto é, o pensamento daqueles 
que sabem como não separar seu ato realizado do produto dele, mas 
sim como relacionar ambos ao contexto único e unitário da vida e 
buscam determiná-los naquele contexto como uma unidade indivisí­
vel (p. 19, nota de rodapé). 
Essa insistência de Bakhtin no trato do singular, do único, do 
irrepetível tem como base uma extensa reflexão sobre a existência do 
ser humano concreto. O argumento (p. 40) se assenta na estrutura 
do eu moral que intui sua unicidade, que se percebe único, quere­
conhece estar ocupando um lugar único que jamais foi ocupado por 
alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro. 
Ao se perceber único (de dentro de sua própria existência e não 
como um juízo teórico), este sujeito não pode ficar indiferente a esta 
sua unicidade; ele é compelido a se posicionar, a responder a ela: não 
temos álibi para a existência (p. 40). 
Assume, desse modo, a responsabilidade por sua unicidade 
("Eu sou concreto e insubstituível e, por consequência, devo realizar 
minha unicidade"- p. 41) e compreende que deve realizá-la por­
que "aquilo que pode ser feito por mim não pode ser jamais feito por 
outro alguém" (p. 40). 
E esta realização da unicidade se dá na ação, no ato individual 
e resp;;;:;á~l(~ã;-indiferente). Nesse sentido, viver é agir (p. 43) e 
agir em relação a tudo o que não é eu, em relação ao outro (p. 42). 
No fim desse manuscrito (p. 74-75), Bakhtin volta a insistir na 
relação eu/outro. Anteriormente (p. 60), ele já tinha destacado que 
reconhecer minha unicidade e realizá-la no ato individual e respon­
sável não significa que o eu vive só para si. 
Agora, ele vai afirmar que o princípio constitutivo maior do 
mundo real do ato realizado é precisamente a contraposição concre­
ta eu/outro: 
A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e 
essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o 
outro: eu mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os 
momentos concretos do Ser são distribuídos e dispostos (p. 74). 
O eu e o outro são, cada um, um universo de valores. O mesmo 
mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valo­
rações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos. 
Eessas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que 
são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados): 
é na contraposição de valores que os fl.tos concretos se realizam; é 
no pla~o dessa contraposição axiológica (é no plano 
portanto) que cada um orienta seus atos. 
alteridade, 
Nesse sentido, Bakhtin dirá no manuscrito O autor e na 
atividade estética (p. 187-188) que viver significa tomar uma posi­
ção axiológica em cada momento, significa posicionar-se em relação 
a valores. Vivemos e agimos, portanto, num mundo saturado de va­
lores, no interior do qual cada um dos nossos atos é um gesto axio­
logicamente responsivo num processo incessante e contínuo. 
Bakhtin encerra seu manuscrito Para uma filosofia do ato com o 
comentário de que essa contraposição axiológica eu/outro, embora já 
presente em algumas formulações morais, é ainda desconhecida da fi­
losofia moral como um todo, não encontrou uma expressão científica 
adequada, nem foi pensada em sua essenc1alidade e integralidade. 
Apreciando o conjunto da sua obra, podemos afirmar que seu 
grande projeto intelectual foi precisamente este: repor essa questão e 
investigar sua essencialidade. 
Essas grandes coordenadas unicidade do ser e do evento 
(e a co~~~q~~~te~necessidade de não separar o grundo da teoria do 
mundo da vida), a relação ell/outro e a dim~:n,sãQaxiológica- serão, 
portanto, ()S~Lxo~ constantes e nucleares do pensamento bakhtinia­
no e de seus pares: 
Citemos alguns exemplos. 
Bakhtin discutirá extensamente, em O autor e herói na ativida­
de estética, que o processo estético pressupõe um olhar de fora, isto 
é, um eu posicionado do lado de fora em relação ao outro para poder 
enformá-lo esteticamente. 
Nesse texto e em O problema do conteúdo, do material e da for­
ma na arte verbal (de 1924), Bakhtin elabora toda uma reflexão esté­
tica assentada na responsividade axiológica, tema que Voloshinov re­
toma em O discurso na vida e o discurso na poesia (de 1926), dando 
especial destaque ao fato de que a entonação (a tomada de posição 
axiológica) é o chão comum do enunciado na vida e na arte. 
O mesmo Voloshinov, em seu livro Marxismo 
(de 1929), funda sua teoria do signo e do significado, bem 
como sua crítica ao objetivismo abstrato em linguística nos mesmos 
pressupostos: a consciência do falante não se orienta pelo sistema da 
língua, mas pelo novo, pelo irrepetível do enunciado, pelo concreto 
de sua singularidade, pelo seu horizonte social avaliativo. 
Medvedev, em seu livro O método formal nos estudos literários 
(publicado em 1928), elabora sua crítica à teoria da linguagem poé­
tica dos formalistas tomando como ponto de referência o mundo 
da vida, isto é, mostrando (p. 75ss.) que o conceito de linguagem 
cotidiana de que se valiam os formalistas para sustentar sua doutrina 
da linguagem poética era excessivamente esquemático (e, portan­
to, inadequado) por perder de vista as forças gerativas em operação 
contínua na interação diária. 
Um último exemplo é a tese de Bakhtin sobre Rabelais. Ao ana­
lisar a obra do autor francês e destacar sua relevância para a história 
literária, Bakhtin salienta precisamente que é com este escritor que 
se opera a passC urso de linguística geral 1 09, 149 
pré-história do discurso romanesco 
93 
David Hume über den Glauben l 54 
Dawkins 134 
Descartes 152 
Dilthey 41, 42 
Dom Casmurro 94 
Dostoievski 15, 29, 30, 35, 40, 73, 77, 78, 
79,80,92,103 
Ducrot 16 
Duvakin 35 
Eikhenbaum 32 
Emerson 35, 36 
Ensaios e conferências 37, 107, 143 
Escola de Praga 148 
Estilística do discurso literário l 00 
Eu e tu 155 
Evans 137 
F enomenologia do Espírito 
Feuerbach 154, 155 
Feys 114 
Foucault 83 
Franchi 114 
Freud 33,87 
153 
Freudismo 11, 12, 31, 33, 46, 73, 87 
Gogól 138 
H abermas 142 
Hacia una filosofía del acto ético. De 
los borradores. Y otros escritos 96 
Hegel 153, 154, 157 
Heidegger 36, 37, 381 143 
Holquist 14 
Humboldt 109, 110, 111, 112, 113, 114, 148 
Jch und Du 155 
J
acobi 154, 155, 157 
jakobson 32 
bim e Souza 40 
13, 16 
152 
Kozhinov 30, 100 
Kruschev 75 
L acan 142 
Lãhteenmãki 11 O 
Lévinas 142, 156 
Literatura i Marxiszm 34 
Locke 152 
M andelker 35 
Marr 29 
Marxismo e filosofia da linguagem 11, 12, 
15,23,29,33,34,40,45,46,47,54, 
59,61,63,67, 71, 73,85, 100, lOS, 
107, 109, 120, 137 
Mead 142, 144, 145, 146, 147, 149 
Medvedev 11, 12, 13, 17,23, 27,28, 29, 
30,31,32,33,34,39,42,45,46,47, 
48,49,51,52,53,63, 101,130,131, 
160 
Nietzsche 38 
O autor e herói na atividade estética 18, 
22,95, 24, 74,89, 91, 92, 94, 97,157 
O discurso na vida e o discurso na poesia 22, 
31,46, 73,96, 100,101 
O discurso no romance 24, 49, 52, 55, 58, 
67,69,82,84,91,92,93, 100,137, 
138, 139 
O discurso romanesco 146 
O freudismo: um esboço critico 100 
O método formal nos estudos literários ll, 
12,23,34,46,63, 100,130 
O problema do conteüdo, do material e da 
forma na arte verbal 22, 24, 39, 52, 89, 
90, 102 
O problema dos gêneros do discurso 63, 101, 
104, 124, 137, 138 
O problema do texto 42, 59, 60, 61, 65, 67, 
91, 101, lOS, 106 
O problema do texto em linguística, filologia e 
nas ciências humanas 91 
O que é a linguagem? 29, 100 
n'kov 81 
Para uma epistemologia das ciências 
humanas 20 
Para uma filosofia do ato 15, 18, 22, 23, 25, 
49,55,62, 101,157 
Para uma metodologia das ciências humanas 
42,44,101 
Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski 
61, 75,86,156 
Podgórzec 78 
Ponzio 28, 83 
Problemas da poética de Dostoievski 40, 61, 
65,66, 73, 79,100,103, lOS, 127 
D abelais 15, 23, 35, 81 
ftRabelais e seu mundo 81, 100 
racionalismo 19 
Ramos 94 
Resposta a uma pergunta do Conselho Edito­
rial da 'Novy Mir' 14 3 
Ricoeur 142 
Sakulin 31,32,33 
Saussure 109, 137, 148, 149 
Seminários de Zollikon 37, 38 
Solomon 152 
Souza 15 
Spinoza 154 
Spitzer 134, 138 
Tezza 16, 32, 78, 79 
Tynyanov 32 
über Spiritualismus und Materialismus 155 
V inogradov 34, 138 
Voloshinov 11, 12, 13, 17, 22, 23, 24, 
27,28,29,30,31,32,33,34,35,39, 
45,46,47,53,54,59,61,63, 64,67, 
69, 70, 71, 72, 73, 74,85,87,88,96, 
97,99, 100,101, lOS, 106,107,108, 
109, 110, 111, 113, 114, 115, 119, 
120, 137, 138, 139, 140, 141, 149 
Vossler 134, 138 
Vygotsky 142, 145 
W atson 144 
Williams 28, 116, 118, 119, 153 
zhirmunsky 32 
w o 
p 
p 
Gtexto O autor e o herói na atividade estética), Bakhtin dirá que 
viver é assumir uma posição avaliativa a cada momento; é posicio­
nar-se com respeito a valores. 
f>. ~~la~~a viva não conhece, portanto, um obj~tQJum "herói"~ 
no vocabulário posterior do Círculo) como algo JQtatitude plenamente coincidente com as pretensões 
científicas do próprio marxismo) e uma cobrança de rigor metodo­
lógico de qualquer proposta que se apresentasse como de inspira­
ção marxista. Segundo eles, eram incompatíveis com o pensamento 
marxista quaisquer propostas que não respeitassem suas premissas 
de base: o materialismo, o monismo metodológico, o caráter social e 
histórico de todas as questões humanas. 
Como dissemos antes, saber quão marxistas eram essas suas 
críticas e propostas ultrapassa nossos objetivos neste livro. Mas é 
certo que os dois claramente investiram esforços no sentido de con­
tribuir para uma problemática de interesse marxista. Por outro lado, 
é inegável que os dois (no rico contexto heurístico do Círculo de 
Bakhtin) assinaram textos que contêm uma dimensão inovadora, 
especificamente no trato da linguagem, da estética, da literatura e 
da criação ideológica em geral. Essa dimensão inovadora é de espe­
cial interesse para todos aqueles - marxistas ou não - que dese­
jam pensar os processos e produtos culturais a partir de uma base 
materialista e histórico-social. 
Sugerimos ao leitor interessado em aprofundar o assunto a lei­
tura de dois autores consagrados (de formação marxista) que, segun­
do entendemos, conseguiram situar bem esse aspecto do pensamen­
to do Círculo de Bakhtin e aquilatar adequadamente a relevância 
das contribuições de Voloshinov e Medvedev. Trata-se de Raymond 
Williams (1977) e Augusto Ponzio (1980, 1981 e 1994). 
Por fim, vale a pena destacar uma questão peculiar da relação 
desses autores com sua conjuntura. Assim como há uma inegável con­
tribuição de Voloshinov e Medvedev à discussão de questões do inte­
resse do marxismo; e assim como é relevante dar destaque aos belos 
textos que nos foram legados (ainda tão prenhes de significados para 
nossos debates contemporâneos), é preciso deixar claro também que, 
em alguns momentos de seus textos, Voloshinov particularmente faz 
claras concessões a linhas oficiais que, nos últimos anos da década de 
1920, começavam a tomar corpo no establishment acadêmico soviéti­
co e a adquirir um estatuto de dogma (o que trazia pesadas consequên­
cias políticas para qualquer dissidência). Isso deixa alguns pontos de 
seus textos profundamente datados e, como tal, abertos ao mesmo 
tipo de crítica de fundamentos que ele aplicou a outros autores. 
Talvez a mais marcada dessas concessões sejam as apologias ao 
pensamento do linguista N. Y. Marr que aparecem, sem maiores da­
nos, em Marxismo e filosofia da linguagem (que, de resto, é uma 
obra monumental), mas dominam praticamente toda a argumenta­
ção do mais pobre de seus textos, o artigo O que é a linguagem?, 
publicado em 1930. 
VIRADA LINGUÍSTICA 
Destacamos anteriormente que a questão da linguagem mar­
ca de modo bastante peculiar a contribuição do Círculo de Bakhtin 
para o pensamento contemporâneo. A entrada dessa questão nas 
preocupações do Círculo, por sua vez, foi responsável por dar novas 
direções ao desenvolvimento de seu próprio pensamento. Pode-se 
dizer, nesse sentido, que ocorre, nos debates destes intelectuais, uma 
espécie de virada linguística por volta de 192511926. 
Se, como observamos acima, a questão da linguagem aparece 
apenas esporadicamente e de modo apenas incipiente nos primeiros 
textos de Bakhtin, seus textos posteriores (do livro sobre Dostoievski 
para a frente, isto é, a partir de 1929) se articularão tendo sempre 
como eixo um determinado conceitual sobre a linguagem, em 
termos gerais, está delineado principalmente nos textos assinados 
por Voloshinov na segunda metade da década de 1920; e que co­
nhecerá alguns importantes desdobramentos em textos de Bakhtin 
da década de 1930 em diante. 
Há, portanto, por volta de 1925/1926, uma confluência do Cír­
culo para a temática da linguagem. Nela se casarão as preocupações 
nucleares de Bakhtin (a temática axiológica, a questão do evento úni­
co do Ser e a relação eu/outro), o interesse acadêmico de Voloshinov 
(que se dedicava, nessa época, a estudos linguísticos) e o projeto 
deste e de Medvedev de elaborar um método sociológico para os 
estudos da linguagem, da literatura e das manifestações da chamada 
cultura imaterial como um todo. 
Esse casamento de perspectivas na formulação de uma teoria 
da linguagem mostra, de um lado, a força heurística da pluralidade 
de pontos de vista que se encontravam no Círculo; e, de outro, vai 
redirecionar os trabalhos de cada um de seus membros. 
Enquanto Voloshinov vai, até 1930, se concentrar principalmen­
te no detalhamento da teoria da linguagem (com algumas incursões 
no terreno das questões estéticas), Medvedev, no mesmo período, vai 
ocupar-se com os fundamentos do que ele chama de estudo das ideo­
logias (num certo sentido deste termo -ver discussão adiante, no ca­
pítulo dois), no interior da qual estará uma poética dita sociológica. 
O pensamento de Bakhtin, por sua vez, se tornou fortemente 
sociologizado a partir do livro sobre Dostoievski. Pode-se dizer que 
seus grandes temas iniciais permanecem, mas são retrabalhados a 
partir de um ponto de vista mais sociologicamente articulado, que 
se alicerça na teoria da linguagem e da cultura que o Círculo vinha 
formulando nos anos anteriores. 
O tema da linguagem se tornou tão forte para os membros do 
Círculo que o próprio Bakhtin, em uma carta dirigida a V Kozhinov 
em (transcrita em Bocharov, p. 1016), afirmou ser a concepção 
de linguagem o elemento que unia o pensamento do grupo. A diver­
sidade de interesses que apontamos acima acabou por encontrar na 
concepção de linguagem seu elemento de convergência. 
Esse tema da linguagem aparece, pela primeira vez de forma 
mais sistemática, no texto O discurso na vida e o discurso na poesia, 
assinado por Voloshinov e publicado em 1926 na revista Zvezda, 6. 
É interessante observar que, no ano anterior, este mesmo autor 
publicara na mesma revista outro artigo e nele não havia nenhuma 
menção à temática da linguagem. Tratava-se de uma apresentação 
crítica dos fundamentos da psicanálise, tendo como objetivo contra­
por-se a marxistas que faziam a apologia do pensamento freudiano e 
que tentavam uma acomodação da psicanálise e do,marxismo. Esse 
tema voltará em 1927 na forma de livro (Freudismo), incluindo, ago­
ra sim, uma extensa discussão sobre a linguagem, que passa a ter, 
aliás, um papel nuclear na argumentação do autor. 
Também no texto de 1926 é claro o objetivo de criticar aqueles 
marxistas que estariam subscrevendo uma proposta analítica corren­
te (formulada por Sakulin) que dividia o estudo da arte entre uma 
abordagem imanente (que não poderia ser sociológica) e uma abor­
dagem histórico-causal (que deveria ser sociológica). O argumento 
do texto vai no sentido de que a arte é imanentemente sociológica 
e, portanto, tal divisão seria contrária aos fundamentos do método 
marxista - o monismo e a historicidade. 
Para demonstrar essa sua tese, Voloshinov assume a existência 
de um chão comum aos enunciados artísticos (poéticos) e aos enun­
ciados cotidianos ambos se materializam na grande corrente 
_,,.,,' ·- -· -' v'~~'''" 
da i!l~~E~s;ão sociocultural e envolvem tomadas de posições axiolá:-
gicas): É importante destacar que esse pressuposto (que será apro­
fundado por Medvedev em seu livro de 1928 e estará presente em 
toda a obra posterior de Bakhtin) se contrapõe de modo frontal ao 
pensamento formalista, que se articulava precisamente sobre uma 
oposição radical entre linguagem poética e linguagem cotidiana. 
3 
B 
0 
o 
Depois de enunciar aquele pressuposto, Voloshinov desenvolve 
uma discussão sobre características da linguagem na vida cotidiana, 
estendendo-a, na sequência, à análise do enunciado artístico. É a 
primeira vez que, em textos do Círculo, se funda uma análise esté­
tica sobre uma análise da linguagem, o que será comum nos textos 
futuros do Círculo e do próprio Bakhtin. 
Destaque-seque a discussão de Voloshinov nesse texto não tem 
a questão da linguagem propriamente como objeto, mas a questão da 
literatura. É para elucidar o problema do enunciado artístico que ele 
inicia uma reflexão sobre o enunciado em geral, partindo, para isso, 
do enunciado do dia a dia. O que estava lhe interessando, nesse mo­
mento, era mostrar que as forças que funcionam num tipo de enun­
ciado são da mesma natureza daquelas que funcionam no outro. 
Adiante, sem perder de vista a questão do enunciado literário, 
ele ampliará suas reflexões, envolvendo-se, inclusive, com uma longa 
discussão sobre a própria linguística. Por ora, concentra-se em fazer 
frente à teorização dos formalistas, contrapondo-se a seu conceito de 
"linguagem poética" e à oposição radical que eles estabeleciam entre 
a linguagem dita ordinária e a linguagem dita poética. 
Nestes mesmos anos de 1925/1926, Medvedev publica dois arti­
gos sobre estudos literários. Num primeiro, discute o pensamento das 
principais figuras do chamado método formal, que estava em evidência 
na Rússia na primeira metade da década de 1920. Resenha criticamente 
artigos e livros de autores como R.Jakobson, V Chklovski, B. M. Eikhen­
baum, V M. Zhirmunsky e Y. N. Tynyanov (que, diga-se de passagem, 
viriam a ser grandes referências dos estudos literários no Ocidente, na 
década de 1970), apontando as limitações de suas proposições estéticas. 
Medvedev voltará a essa crítica, aprofundando-a, no seu livro de 1928 
- cf. Tezza (2003) para uma pormenorizada análise do pensamento 
formalista e das críticas do Círculo de Bakhtin àquela estética. 
Num segundo artigo, Medvedev faz uma crítica às ideias de P 
N. Sakulin, que, conforme se podia observar no texto de 1926 de 
Voloshinov, atraíam alguns estudiosos marxistas. Sakulin propuse-
ra, no início anos 1920, numa tentativa de conciliar os estudos 
literários tradicionais com a poética formalista e com o marxismo, 
que as obras literárias deveriam ser analisadas por dois métodos dis­
tintos: o método formal para o estudo imanente da obra e o método 
sociológico para o estudo histórico-causal (entendido como o estudo 
das influências do extraliterário). 
A argumentação de Medvedev, contrária a essa proposta, tem 
dois eixos: primeiro, a tese cara ao Círculo de Bakhtin de que as obras 
literárias - na medida em que condensam valores sociais em múl­
tiplas dimensões- são sociológicas de ponta a ponta; e, segundo, 
que a proposta de Sakulin, com seu dualismo, era intrinsecamente 
incompatível com o marxismo, que é um pensamento monista. 
Esses quatro artigos são característicos daquilo que se poderia 
chamar de crítica ideológica, num certo sentido da expressão. Os 
dois autores, em tom polêmico e cheio de ironias, realizam uma lei­
tura crítica do pensamento de Freud, dos formalistas e de Sakulin, 
pondo sob rigoroso escrutínio seus pressupostos e fundamentos. 
Com base nessa leitura, aproveitam para criticar tanto o mar­
xismo vulgar, quanto pensadores marxistas que buscavam conciliar 
simploriamente marxismo e psicanálise; ou aceitavam acriticamente 
uma divisão de tarefas, nos estudos literários, entre o método formal 
e o método sociológico. 
Lendo esses artigos sem perder de vista o conjunto da obra 
como referência, fica claro que tanto Voloshinov quanto Medvedev 
estavam buscando, pelas críticas aos teóricos de seu tempo, limpar o 
terreno para, nos anos seguintes, lançar suas próprias teorias, o que 
acontecerá na forma de livro. 
Voloshinov voltará, com mais fôlego, ao pensamento freudiano 
na obra Freudísmo: um ensaio crítico, publicada em 1927, e à teoria 
da linguagem na obra Marxismo e filosofia da linguagem: problemas 
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, publi­
cado em 1929 (com segunda edição já no ano seguinte). 
Medvedev, por seu turno, voltará ao pensamento formalista no 
seu livro O método nos estudos uma crí­
tica à poética sociológica, publicado em 1928. Nele, o autor busca 
situar os estudos literários, sob uma perspectiva marxista, no quadro 
amplo do que ele designa de estudo das ideologias (num certo sentido 
deste termo, conforme vamos discutir em detalhes no capítulo dois). 
Tanto este texto quanto Marxismo e filosofia da linguagem foram 
precedidos por artigos que, publicados ambos em 1928 na revista Li­
teratura i Marxi.szm, resumiam parte da argumentação dos livros: de 
Medvedev o artigo As tarefas imediatas da ciência histórico-literária 
(que apareceu no n. 3); e de Voloshinov o artigo As correntes mais 
recentes do pensamento linguístico no Ocidente (publicado no n. 5). 
Por fim, Voloshinov, em 1930, publica quatro artigos dentro 
ainda da temática da linguagem: três em que retoma a teoria do 
enunciado e um último sobre as fronteiras entre a poética e a lin­
guística, que é, basicamente, uma extensa crítica às concepções do 
linguista russo V V Vinogradov e uma reiteração do quadro concei­
tual anteriormente elaborado. 
Mas, nessas alturas, com Bakhtin preso e exilado na Ásia, o Cír­
culo como tal não mais existia. Sobre o pensamento construído em 
conjunto nos anos 1920, cairá um pesado silêncio de mais de trinta 
anos. Haverá, sim, retomadas e desdobramentos, mas, agora, na pena 
solitária de um grande pensador esquecido na província e quase só 
na forma de manuscritos que nunca se completarão e de notas espar­
sas em gastos cadernos escolares. Voloshinov morre de tuberculose 
em 1936 e Medvedev, que fora desde 1919 um homem do aparelho 
soviético de Estado, desaparece nos expurgos políticos da segunda 
metade da década de 1930, provavelmente fuzilado em 1940. 
fiLÓSOFOS OU CIENTISTAS? 
Estabelecer com precisão uma rigorosa distinção entre filosofia 
e ciência não é, evidentemente, tarefa fácil. Para destacar essa difi-
culdade de um lado, mencionar que foi (e é) projeto de al-
guns filósofos dar à filosofia um caráter científico, apagando, assim, 
especificidades e fronteiras. Por outro lado, no âmbito das ciências 
sociais e humanas, há toda uma tradição hermenêutica (com a qual, 
aliás, Bakhtin se identificava) que opera antes no plano do conceito 
e da interpretação do que no da prova empírica, aproximando-se, 
portanto, de certo modo de fazer filosofia. 
Apesar dessa dificuldade, parece-nos relevante, para melhor 
apreciar o pensamento do Círculo de Bakhtin, fazer, neste ponto, 
uma incursão por esta complexa área. Nosso objetivo é argumentar 
que esse pensamento é de caráter eminentemente filosófico e não 
propriamente científico. 
Reconhecer isso traz uma série de consequências fortes para os 
modos como nos apropriamos dele em nossas reflexões e estudos. 
Entendemos que muitas das atribulações das tentativas de utilização 
desse pensamento decorrem, em boa parte, de ele ser tomado pelo 
que não é. 
Quando as primeiras obras de Bakhtin chegaram ao Ocidente 
Qustamente os livros sobre Dostoievski e sobre Rabelais), a recepção 
inicial o classificou logo como um teórico da literatura. 
A chegada, poucos anos depois, do texto de Voloshinov sobre a 
linguagem (incluindo uma extensa discussão crítica das teorias lin­
guísticas correntes em seu tempo) e a confusão sobre a autoria leva­
ram, então, muitos leitores a visualizar um Bakhtin linguista. 
Contudo, a progressiva divulgação de outros textos, em espe­
cial aqueles escritos no início da década de 1920, foi revelando que 
Bakhtin era, antes de mais nada, um filósofo, face à abrangência de 
sua temática e os objetivos de sua reflexão. 
Ele mesmo, aliás, se entendia como tal, conforme revela em 
entrevista a Viktor Duvakin em 1974 (citada por Caryl Emerson na 
introdução ao livro organizado por Amy Mandelker). Perguntado 
se ele era mais um filósofo do que um filólogo, Bakhtin respondeu: 
z: 
~ 
~ l Ol 
::0 
c 
...J 
"' i;! 
':.3 
o 
"Mais um filósofo. E assim permaneço até os dias de hoje. Eu sou um 
filósofo. Um pensador [myshtdT (p. 192, n. ll). 
Bakhtin não se via, portanto, comoum homem de ciência, preso 
à esteira estreita da positividade e da modelização formal. Pelo seu 
próprio pressuposto de base (i. e., nunca perder de vista, na reflexão, 
a eventicidade da existência, do mundo da vida), Bakhtin se colocava 
fora de uma racionalidade propriamente científica e desenvolvia um 
modo de pensar mais globalizante- o que, no dizer de Emerson (p. 
9-10), seria uma predisposição da própria tradição filosófica russa. 
Segundo ela, o vocábulo myslitel' (pensador) tem especiais res­
sonâncias na cultura acadêmica russa. Um mys1itel' (um pensador) 
pode ser eclético e excêntrico; ele é mais livre que o cientista para 
transcender as fronteiras de disciplinas e metodologias estabelecidas. 
Em suas próprias palavras (p. 10): 
No caso de Bakhtin, o termo sugere uma pessoa que está menos pre­
ocupada em aplicar suas ideias à literatura do que em utilizar a litera­
tura, seletivamente e num alto nível de inspiração, para ilustrar suas 
ideias. É de alguma forma interessante que a autodesignação altiva de 
Bakhtin e sua trajetória intelectual tenham-se tornado agora marcas 
identificadoras dele e não suas imperfeições. 
Para construirmos uma melhor compreensão desse ponto, po­
deríamos talvez dizer que Bakhtin era um filósofo no sentido heide­
ggeriano do termo. 
Heidegger, em suas discussões sobre a ciência moderna, ela­
borou uma distinção entre um pensamento de natureza filosófica 
(besinnliches Denken) e um pensamento de natureza científica (re­
chnendes Denken). 
Grosso modo, podemos resumi-la da seguinte forma: no primei­
ro caso, temos um pensamento que busca apreender o mundo em 
seus sentidos mais amplos. O adjetivo alemão besinnlích pertence 
à família da palavra sinn (sentido), à qual se alia também o verbo 
besinnen (refletir sobre, meditar) e poderia ser traduzido por (pensa­
mento) reflexivo, meditativo, cogitativo. 
No segundo caso, temos um pensamento que calcula, que com­
partimentaliza o mundo para "examinar-lhe as contas". O adjetivo 
está relacionado com o verbo (calcular) e poderia 
ser traduzido por (pensamento) calculador, contabilizador. 
Não há nessa partição nenhuma negação da ciência; apenas uma 
reflexão que destaca o fato de que o pensamento científico não é a única 
forma rigorosa de exercício da razão. O besinnliches Denken não só tem 
lugar, como é indispensável, no sentido de que permite uma reflexão 
mais livre das amarras dos modelos científicos, admitindo um espectro 
mais amplo de interpretações, de correlações, de problematizações. 
Subjacente a essa distinção, há um interesse em não diluir a 
filosofia na ciência; em preservar as diferenças e especificidades de 
cada uma dessas formas de conhecimento; e, principalmente, em 
estabelecer, num mundo dominado pelo pensamento científico, um 
espaço para outra racionalidade. 
Vale repetir aqui que Heidegger expressamente diz, nos Seminá­
rios de Zollikon, não haver, naquela distinção, uma hostilidade contra a 
ciência (p. 122), mas uma crítica à "sua [da ciência] pretensão ao abso­
luto, a ser o parâmetro de todas as verdades" (p. 136). E essa crítica tem 
especial significado no conjunto da filosofia heideggeriana, cujo eixo foi 
precisamente superar o esquecimento do Ser praticado pela metafísica, 
(re)colocar na agenda filosófica a questão do Ser, do sentido do Ser. 
Ora, a ciência como tal não se coloca essa questão mais ampla. 
Para funcionar, ela precisa, de fato, abandonar o sentido do Ser. Por 
isso, diz Heidegger, a ciência não pensa (Ensaios e conferências, p. 
115). A racionalidade científica se funda no gesto primeiro de calcu­
labilizar o mundo, isto é, ela precisa ver o mundo como objetidade 
calculável para que possa predeterminá-lo o tempo todo (Seminá­
rios, p. 177). Só assim é que a ciência pode instalar-se num domínio 
de objetos e alcançar seus resultados. Não pensar é, portanto, sua 
vantagem: basta-lhe submeter-se ao primado do método - "a pró­
pria ciência: nada mais é do que método" (Seminários, p. 136). 
Sobre isso, Heidegger, nos mesmos Seminários (p, 
154), retoma a frase de Nietzsche- "Não é a vitória da ciência que 
destaca o nosso século XIX, mas sim a vitória do método sobre a 
ciência" -e oferece-lhe uma interpretação dizendo que o método 
não somente está a serviço da ciência, mas acima dela: a ciência é 
dominada pelo método, É ele que "determina o que deve ser objeto 
da ciência e de que maneira ele seja acessível, isto é determinado em 
sua objetidade", Assim, 
o principal não é a natureza, como ela interpela o homem a partir de 
si, mas o que é determinante é como o homem deve representar a 
natureza a partir da intenção de dominá-la, 
Nessa perspectiva, a questão do Ser, pela sua amplitude, está 
fora do alcance da ciência (do rechnendes Denken) e exige outra ra­
cionalidade (a do besinnlíches Denken), Exige não um pensamento 
operador de calculabilidade, mas um pensamento que pensa o sen­
tido do Ser, um pensamento que "se entrega ao inesgotável do que é 
digno de ser questionado" (Ensaios, p, 59), 
Ora, quando observamos o modo de Bakhtin elaborar suas re­
flexões, nunca vamos encontrá-lo ocupado em ver o mundo como 
objetidade calculável e, em consequência, em construir um mode­
lo instrumentalizante de uma análise científica, Em outras palavras, 
nunca vamos encontrá-lo ocupado com o rechnendes Denken, Seu 
interesse está antes posto numa reflexão ampla que se entrega ao 
inesgotável da existência, ao sentido da criação estética e do Ser da 
linguagem, Ou, para usar um vocabulário heideggeriano, podemos 
dizer que Bakhtin não vai ao mundo tomar-lhe as contas, mas se dei­
xa interpelar pelo fazer estético, pela literatura e pela linguagem, 
Sua preocupação, desde o início, com o evêntico, com o único, 
com o singular, e sua crítica ao teoreticismo são já evidências da 
direção filosófica e não científica do seu pensamento, Sua explícita 
recusa, no fim da vida, do estruturalismo e do formalismo (correntes 
de pensamento que cultivaram precisamente uma espécie de fé cega 
na ciência) e sua discussão das ciências humanas como fundamen­
talmente hermenêuticas reiteram essa direção, 
Por fim, é curioso observar certo eco heideggeriano avant 
lettre na forma como Bakhtin, no texto O problema do conteúdo, do 
material e da forma na arte verbal (1924), apresenta a construção 
pela linguística de seu objeto precisamente como um ato de subme­
tê-lo (dominá-lo) metodologicamente, Em suas palavras: 
Somente desse modo, isolando e liberando o constituinte puramente 
verbal da palavra e criando uma nova unidade verbal com suas subdi­
visões concretas, é que a linguística submete metodologicamente seu 
objeto (p, 292-293), 
E logo adiante: 
Somente ao se libertar consistentemente de uma propensão metafísica 
(da substancialização e objetivização da palavra), de uma sobrepre­
sença da lógica, do psicologismo e do esteticismo, é que a linguística 
construiu seu caminho em direção a seu objeto, postulou-o metodo­
logicamente e, desse modo, tornou-se pela primeira vez uma discipli­
na científica (p, 293), 
Num tempo colonizado pela ciência, é compreensível que mui­
tos vão aos textos de Bakhtin (e do Círculo) em busca precisamente de 
método; aproximem-se deles na expectativa de encontrar um modus 
faciendi, um conjunto de procedimentos para a análise literária e para 
a análise linguística, O resultado mais visível desse equívoco (isto é, 
de se tomar os textos do Círculo pelo que não são) é transformar ca­
tegorias filosóficas em categorias científicas, em categorias de método 
(polifonia, diálogo, camavalização são, talvez, os casos mais clássicos 
desse processo), 
Mesmo os trabalhos de Voloshinov e Medvedev, comprome­
tidos com o pressuposto de cientificidade do pensamento mar­
xista, dificilmente podem ser lidos como contendo recortes de 
"objetos calculáveis" e formalizações de proposições de método 
(sem o que a ciência não pode funcionar), "f:les sãoantes dis­
cussões dos fundamentos de uma ciência da ling~agem, de UJ11a 
poética sociológica ou de um estudo das ideologias (no sentido 
que este termo tem nos textos do Círculo). Constituem, portanto, 
~eflexões sobre as condições de possibilidade dessas disciplinas e, 
desse ~~do, são texto~-tipicamente filosóficos, mais próprios do 
besinnliches Denken. 
Em suma: ao percorrermos os te-xtos do CírculQ_(i~_l?_

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