Prévia do material em texto
Autoras: Profa. Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão Profa. Sandra Heloísa Nunes Messias Colaboradores: Prof. Thiago Macrini Profa. Veronica Soares Farmacologia Professoras conteudistas: Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão / Sandra Heloísa Nunes Messias Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão Graduada em 2002 pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Ciências Biológicas – Modalidade Médica. Mestre (2005) e doutora (2009) em Ciências, com ênfase em Farmacologia, pela Unifesp e licenciada em Química pelas Faculdades Oswaldo Cruz (2011). É professora titular da UNIP desde 2010, onde leciona m áreas como análise físico-química, bases analíticas do laboratório clínico, embriologia e farmacologia para os cursos de biomedicina, enfermagem e nutrição. Também ministrou a disciplina de Farmacologia para o curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo (2010-2011). É coordenadora auxiliar do curso de Biomedicina da UNIP, campus Chácara Santo Antônio, desde 2011. Na mesma instituição, foi membro do Comitê de Ética no período de 2011 a 2017 e, desde 2012, atua na Comissão de Qualificação das Avaliações (CQA). Sandra Heloísa Nunes Messias Biomédica graduada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestre em Farmacologia pela mesma instituição e doutora em Patologia Ambiental e Experimental da Universidade Paulista (UNIP). É professora titular de Farmacologia e, atualmente, é coordenadora geral do curso de Biomedicina da UNIP, conselheira honorária do CFBM-CRBM, membro do Comitê de Ética de Pesquisa em Animais da UNIP, do Corpo Editorial do Journal of the Health Sciences Institute – Revista do Instituto de Ciências da Saúde (UNIP) – e do Banco de Avaliadores (BASis) do Inep, e delegada do Conselho Regional de Biomedicina (CRBM-1) na região de Descalvado, em São Carlos. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P314f Patrão, Marília Tavares Coutinho da Costa. Farmacologia / Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão, Sandra Heloísa Nunes Messias. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 256 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Farmacologia. 2. Sistema nervoso. 3. Sistema digestório. I. Patrão, Marília Tavares Coutinho da Costa. II. Messias, Sandra Heloísa Nunes. III. Título. CDU 615 U512.13 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Giovanna Oliveira Ana Fazzio Sumário Farmacologia APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................ 10 Unidade I 1 FARMACOCINÉTICA ........................................................................................................................................ 11 1.1 Formas farmacêuticas e vias de administração ....................................................................... 14 1.1.1 Vias de administração local ................................................................................................................ 16 1.1.2 Vias de administração sistêmica ....................................................................................................... 17 1.2 Absorção .................................................................................................................................................. 21 1.2.1 Transporte através das membranas biológicas ........................................................................... 22 1.2.2 Características teciduais que influem na absorção dos fármacos ...................................... 24 1.2.3 Influência do pH na absorção dos fármacos ............................................................................... 27 1.2.4 Interações medicamentosas que alteram a absorção dos fármacos ................................. 33 1.3 Distribuição ............................................................................................................................................. 33 1.3.1 Cinética de distribuição dos fármacos ........................................................................................... 36 1.3.2 Interações medicamentosas que alteram a distribuição dos fármacos ........................... 37 1.4 Biotransformação ................................................................................................................................. 38 1.4.1 Reações de fase I ..................................................................................................................................... 39 1.4.2 Reações de fase II ................................................................................................................................... 42 1.4.3 Interações medicamentosas que alteram a biotransformação dos fármacos ............... 42 1.5 Excreção ................................................................................................................................................... 43 1.5.1 Excreção renal .......................................................................................................................................... 43 1.5.2 Excreção biliar .......................................................................................................................................... 45 1.5.3 Outras vias de excreção ........................................................................................................................ 46 1.5.4 Interações medicamentosas que alteram a excreção dos fármacos ................................. 47 1.6 Parâmetros farmacocinéticos de importância na prática clínica ..................................... 47 1.6.1 Concentração máxima (Cmax) ou pico de concentração plasmática ............................... 48 1.6.2 Área sob a curva (AUC) ......................................................................................................................... 48 1.6.3 Tempo de meia-vida plasmática (t1/2) .......................................................................................... 48 1.6.4 Volume de distribuição ......................................................................................................................... 49 1.6.5 Clearance .................................................................................................................................................... 50 2 FARMACODINÂMICA ..................................................................................................................................... 51 2.1 Alvos moleculares da ação de fármacos: enzimas, canais iônicos e proteínas transportadoras ........................................................................................................................ 52 2.1.1 Enzimas .......................................................................................................................................................52 2.1.2 Canais iônicos ........................................................................................................................................... 55 2.1.3 Proteínas transportadoras ................................................................................................................... 55 2.2 Alvos moleculares da ação de fármacos: receptores ............................................................. 56 2.2.1 Receptores ionotrópicos ...................................................................................................................... 57 2.2.2 Receptores enzimáticos ....................................................................................................................... 59 2.2.3 Receptores acoplados à proteína G ................................................................................................. 60 2.2.4 Receptores intracelulares .................................................................................................................... 63 2.2.5 Regulação da atividade dos receptores ......................................................................................... 66 2.3 Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco-receptor ........................... 68 Unidade II 3 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO SIMPÁTICO ...................................................................... 78 3.1 Sistema nervoso autônomo: visão geral..................................................................................... 78 3.1.1 Principais características anatômicas ............................................................................................. 79 3.1.2 Principais aspectos da fisiologia do sistema nervoso autônomo ....................................... 80 3.1.3 Neurotransmissores autonômicos: biossíntese e biotransformação ................................. 81 3.1.4 Subtipos de receptores adrenérgicos e muscarínicos .............................................................. 85 3.1.5 Etapas da neurotransmissão autonômica .................................................................................... 87 3.1.6 O mecanismo de retroalimentação negativa e o controle da atividade dos nervos autonômicos ......................................................................................................................................... 88 3.1.7 Principais ações do sistema nervoso autônomo ........................................................................ 89 3.2 Farmacologia do sistema nervoso simpático ............................................................................ 91 3.2.1 Simpatomiméticos de ação direta: visão geral ........................................................................... 91 3.2.2 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas endógenas ............................................ 92 3.2.3 Simpatomiméticos de ação direta: catecolaminas sintéticas............................................... 95 3.2.4 Simpatomiméticos de ação direta: outras monoaminas ........................................................ 97 3.2.5 Simpatomiméticos de ação indireta ou mista ............................................................................ 98 3.2.6 Simpatolíticos de ação direta ............................................................................................................ 99 3.2.7 Simpatolíticos de ação indireta/mista ..........................................................................................103 4 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO PARASSIMPÁTICO, DO GÂNGLIO E DA JUNÇÃO NEUROMUSCULAR .........................................................................................................................104 4.1 Farmacologia do sistema nervoso parassimpático ...............................................................104 4.1.1 Parassimpatomiméticos de ação direta .......................................................................................104 4.1.2 Parassimpatomiméticos de ação indireta ...................................................................................109 4.1.3 Parassimpatolíticos de ação direta ................................................................................................ 112 4.1.4 Parassimpatolíticos de ação indireta ............................................................................................ 116 4.2 Farmacologia do gânglio autonômico e da junção neuromuscular .............................116 4.2.1 Fármacos que atuam sobre o gânglio autonômico ................................................................ 116 4.2.2 Fármacos bloqueadores neuromusculares ................................................................................. 118 4.2.3 Outros fármacos que atuam sobre a junção neuromuscular ............................................ 120 Unidade III 5 FARMACOLOGIA CARDIOVASCULAR E RENAL ..................................................................................125 5.1 Antiarrítmicos e cardiotônicos .....................................................................................................125 5.1.1 Antiarrítmicos ....................................................................................................................................... 127 5.1.2 Cardiotônicos......................................................................................................................................... 130 5.2 Anti-hipertensivos e diuréticos ....................................................................................................134 5.2.1 Fisiopatologia da hipertensão arterial ........................................................................................ 134 5.2.2 Regulação da hipertensão arterial................................................................................................ 135 5.2.3 Fármacos anti-hipertensivos ........................................................................................................... 139 5.2.4 Associações de fármacos no tratamento da hipertensão arterial ................................... 145 6 FARMACOLOGIA DA DOR E DA INFLAMAÇÃO ...................................................................................146 6.1 Mecanismo de transmissão da dor .............................................................................................146 6.2 Papel dos prostanoides na regulação da sensação dolorosa ............................................150 6.3 Atuação de fármacos sobre a transmissão do estímulo doloroso ..................................151 6.4 Anti-inflamatórios não esteroidais (Aines) ..............................................................................152 6.4.1 Mecanismo de ação dos Aines ....................................................................................................... 153 6.4.2 Principais Aines ..................................................................................................................................... 159 6.5 Anti-inflamatórios esteroidais ......................................................................................................160 6.5.1 Mecanismo de ação dos glicocorticoides .................................................................................. 162 6.5.2 Principais glicocorticoides utilizados na clínica ...................................................................... 166 6.5.3 Principais efeitos adversos ............................................................................................................... 167 6.6 Analgésicos opioides .........................................................................................................................169 6.6.1 Mecanismo de ação dos analgésicos opioides......................................................................... 169 6.6.2 Principais opioides utilizados na clínica ..................................................................................... 172 6.6.3 Tratamento da sobredosageme da dependência aos opioides ........................................ 173 6.7 Anestésicos............................................................................................................................................174 6.7.1 Anestésicos locais ................................................................................................................................ 174 6.7.2 Anestésicos gerais ................................................................................................................................ 176 Unidade IV 7 FARMACOLOGIA DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL E DO SISTEMA RESPIRATÓRIO ...........184 7.1 Aspectos funcionais ..........................................................................................................................184 7.1.1 Atividade neuronal .............................................................................................................................. 184 7.1.2 Neurotransmissores ............................................................................................................................ 187 7.1.3 Relação entre as disfunções na neurotransmissão e as patologias do SNC .................191 7.2 Fármacos de ação central ...............................................................................................................191 7.2.1 Ansiolíticos, sedativos e hipnóticos .............................................................................................. 192 7.2.2 Antidepressivos ..................................................................................................................................... 195 7.2.3 Estabilizadores do humor ..................................................................................................................202 7.2.4 Neurolépticos ........................................................................................................................................ 203 7.2.5 Anticonvulsivantes ...............................................................................................................................207 7.2.6 Antiparkinsonianos ............................................................................................................................. 209 7.3 Fármacos que atuam no trato respiratório ..............................................................................212 7.3.1 Antiasmáticos .........................................................................................................................................212 7.3.2 Antialérgicos ...........................................................................................................................................218 7.3.3 Antitussígenos ........................................................................................................................................219 7.3.4 Terapêutica da DPOC .......................................................................................................................... 220 8 FARMACOLOGIA DO SISTEMA DIGESTÓRIO E TOXICOLOGIA .......................................................222 8.1 Introdução .............................................................................................................................................222 8.2 Conceitos ...............................................................................................................................................223 8.3 Fármacos que alteram a secreção salivar .................................................................................223 8.3.1 Sialogogos .............................................................................................................................................. 223 8.3.2 Antissialógogos ..................................................................................................................................... 223 8.4 Fármacos que alteram o pH estomacal .....................................................................................224 8.4.1 Neutralizadores da secreção gástrica – antiácidos ................................................................ 225 8.4.2 Inibidores da produção de ácido ................................................................................................... 226 8.5 Modificadores de muco gástrico..................................................................................................229 8.6 Análogo de prostaglandina ...........................................................................................................230 8.7 Eliminação de Helicobacter pylori ...............................................................................................230 8.8 Medicamentos que alteram a motilidade ................................................................................231 8.8.1 Estimulantes de peristaltismo .........................................................................................................231 8.8.2 Antiespasmódicos ................................................................................................................................ 232 8.9 Antieméticos ........................................................................................................................................232 8.10 Laxantes ...............................................................................................................................................232 8.11 Toxicologia ..........................................................................................................................................233 8.11.1 Intoxicação ........................................................................................................................................... 235 8.11.2 Vias de exposição ............................................................................................................................... 235 8.11.3 Toxicidade ............................................................................................................................................. 236 8.11.4 Sensibilização ...................................................................................................................................... 236 8.12 Desenvolvimento de produtos cosméticos ...........................................................................237 8.12.1 Matérias-primas ................................................................................................................................ 237 8.12.2 Formulação .......................................................................................................................................... 239 8.12.3 Comprovação da segurança ......................................................................................................... 239 8.12.4 Cosmetovigilância ............................................................................................................................. 242 9 APRESENTAÇÃO A presente disciplina tem como objetivo estudar os aspectos básicos da farmacocinética e da farmacodinâmica aplicados aos principais fármacos de uso terapêutico e experimental, com enfoque nas alterações fisiológicas que eles provocam. Este livro-texto foi elaborado de modo a apresentar, inicialmente, os conceitos relativos à cinética do fármaco no organismo (que compreende as etapas de absorção, distribuição, biotransformação e excreção) e a ação do fármaco em alvos moleculares específicos, o que explica os mecanismos pelos quais ocorrem os efeitos terapêuticos e adversos dessas substâncias. Em seguida, serão abordados os fármacos que atuam sobre o sistema nervoso autônomo e sobre o sistema nervoso somático (junção neuromuscular), o que é de extrema importância, visto que o sistema nervoso autônomo regula o funcionamento de virtualmente todos os órgãos e tecidos do organismo, e o sistema nervoso somático, a atividade do músculo voluntário. Na sequência, iremos estudara ação de fármacos sobre os principais órgãos e sistemas. Serão abordados os fármacos que atuam sobre o sistema cardiovascular (antiarrítmicos, cardiotônicos e anti-hipertensivos) e renal (diuréticos), sobre a dor e a inflamação (anti-inflamatórios, analgésicos simples, anestésicos locais e gerais e analgésicos opioides), sobre o sistema nervoso central (ansiolíticos, antidepressivos, antipsicóticos, antiparkinsonianos e anticonvulsivantes, além do tratamento do mal de Alzheimer e do transtorno bipolar) e sobre o sistema endócrino (fármacos que atuam sobre a tireoide e sobre os órgãos sexuais masculinos e femininos). Durante o seu estudo, é importante ficar atento às seguintes informações: • Qual o mecanismo de ação do fármaco? • Como eu explicaria sua ação terapêutica? • Quais os principais efeitos adversos e como posso explicá-los? Ao final da disciplina, esperamos que você esteja familiarizado com o uso de diferentes fármacos, tanto na terapêutica como na experimentação. Bom estudo! 10 INTRODUÇÃO De acordo com Katzung (2017), a farmacologia é a ciência que estuda os fármacos (do grego pharmacon – fármaco e logos – estudo). Em um sentido amplo, estuda a interação entre substâncias químicas e os sistemas orgânicos. No campo da farmacologia, qualquer substância química que possa produzir uma resposta biológica num organismo vivo é considerada um fármaco. Observação O termo droga é utilizado por alguns autores para designar as substâncias farmacologicamente ativas. O uso desse termo não é recomendado, devendo ser utilizada a designação fármaco. A farmacologia é uma ciência que integra o conhecimento de diferentes áreas (como a bioquímica, a fisiologia e a patologia) e abordagens diversas a respeito dos fármacos. A partir do estudo da ação das substâncias no organismo, é possível explorar não só alternativas terapêuticas, mas também aspectos da fisiologia que são elucidados através do estudo da interação de diferentes substâncias com os sistemas orgânicos. Há divisões teóricas da farmacologia, dependendo do aspecto a ser estudado. A farmacocinética estuda o caminho percorrido pelo fármaco no organismo vivo, desde sua administração até sua completa eliminação. A farmacodinâmica estuda o local e o mecanismo de ação, ações e efeitos, efeitos terapêuticos e efeitos tóxicos dos fármacos. A farmacoterapêutica refere-se à orientação do uso dos medicamentos para prevenção, tratamento e diagnósticos das enfermidades. A farmacognosia estuda a origem, as características, a estrutura e a composição química dos fármacos no seu estado natural e na forma de extratos. A farmacologia clínica preocupa-se com os padrões de eficácia e segurança da administração de medicamentos aos animais ou seres humanos, comparando informações obtidas na população saudável com as obtidas na população doente. Outras subáreas têm surgido nos últimos anos (imunofarmacologia, farmacogenômica, entre outras), em função dos avanços biotecnológicos na área biomédica. 11 FARMACOLOGIA Unidade I 1 FARMACOCINÉTICA O estudo das ações dos produtos naturais sobre o organismo tem suas origens nos primórdios da humanidade, desde quando o homem começou a usar substâncias obtidas na natureza com finalidades medicinais, ou até mesmo visando efeitos nocivos. No entanto, foi somente a partir de meados do século XIX que a farmacologia se consolidou como ciência, como consequência da evolução de outras áreas afins de conhecimento (fisiologia, patologia, bioquímica etc.). Desde então, os fármacos têm sido purificados, caracterizados quimicamente e até mesmo sintetizados em laboratório. Até o momento, desenvolveu-se uma ampla variedade de novos fármacos altamente potentes e seletivos, cujo mecanismo de ação, na maioria das vezes, já foi elucidado. Esse conjunto de informações faz da farmacologia a espinha dorsal da terapêutica racional. Os principais termos utilizados no estudo da farmacologia estão listados a seguir: • Fármaco é qualquer substância ou produto que é usado ou se destina a ser usado para modificar ou explorar sistemas fisiológicos ou estados patológicos. Em outras palavras, os fármacos são substâncias químicas que, ao interagirem com alvos específicos presentes nas células, são capazes de promover alterações das funções fisiológicas pré-existentes. Existem fármacos que são usados como parte da terapêutica de diferentes doenças, enquanto outros apresentam importância puramente experimental. O termo princípio ativo é um sinônimo de fármaco. • Medicamento refere-se ao fármaco (princípio ativo) ou à associação de fármacos que apresentam alguma aplicação terapêutica e/ou diagnóstica, ou seja, destinadas a curar, diminuir, prevenir ou diagnosticar enfermidades. • Remédio é um termo usado para todos os agentes que curam, aliviam ou evitam uma enfermidade, usado de forma abrangente não só para substâncias químicas (fármacos), como também para agentes físicos (massagens, duchas etc.). • Placebo é toda e qualquer substância sem propriedades farmacológicas que é administrada a pessoas ou grupo de pessoas como se tivesse propriedades terapêuticas. O placebo não contém os princípios ativos e é elaborado de forma a ter a aparência exata de um medicamento real, porém é constituído somente de substâncias químicas inativas (como o amido, o açúcar e outros excipientes). Como as pessoas às quais foi administrado o placebo não o sabem, algumas sentem-se melhor e outras chegam até a apresentar efeitos adversos, pois estão sugestionadas a acreditar que estão recebendo uma substância farmacologicamente ativa. Na atualidade, o placebo só pode ser utilizado na pesquisa clínica, que é o estudo da ação de novos medicamentos sobre voluntários saudáveis e doentes e, mesmo assim, com ressalvas. 12 Unidade I De acordo com Fregnani (2015), no processo de desenvolvimento de um novo medicamento, os pesquisadores realizam estudos para compará-lo com o medicamento de escolha já disponível comercialmente. Na ausência de terapia medicamentosa já estabelecida, a comparação é feita com o placebo. Geralmente, metade dos participantes do estudo recebem o novo medicamento e os demais recebem um placebo, de aspecto idêntico. Idealmente, nem os participantes e nem os investigadores devem saber quem recebeu o medicamento e quem recebeu o placebo (esse tipo de estudo chama-se estudo duplo-cego). Quando o estudo é concluído, todas as alterações observadas nos participantes dos dois grupos são comparadas e, para que se justifique seu uso, o novo medicamento deve ter um desempenho substancialmente melhor do que o placebo ou do que o medicamento já comercializado para tratar a doença. • Forma farmacêutica corresponde ao conjunto de características físicas (apresentação) e químicas (composição) do medicamento. É comum um medicamento ser preparado com o mesmo princípio ativo e apresentar doses e formas diferentes. Por exemplo, o Diazepam é comercializado em dosagem de 5 mg e de 10 mg em comprimidos e ampolas. Nesse caso, as formas farmacêuticas são: comprimidos e ampolas. No preparo de uma forma farmacêutica, os fabricantes incorporam excipientes (“veículos” para o princípio ativo), que têm como função aumentar o volume do medicamento, melhorar o seu visual e sabor (por meio de revestimentos e corantes) e também definir o padrão de liberação do princípio ativo, para que ele seja absorvido. Além disso, eles também ajudam a conservar o medicamento. Os medicamentos geralmente têm vários nomes. Para melhor entendermos essa nomenclatura, vamos descrever brevemente como é feito o processo de pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos. A primeira etapa consiste na descoberta de um composto (substância química) com atividade sobre um organismo vivo. Nessa etapa, o fármaco recebe um nome químico, que descreve sua estrutura atômica ou molecular. O nome químico é geralmente muito complexo para uso geral. Na segunda etapa é feito o estudo pré-clínico, que inclui testes in vitro para avaliaçãodas propriedades biológicas das moléculas ativas e também testes in vivo em animais para avaliação da farmacocinética e farmacodinâmica da substância química. É frequente nessa etapa já o uso de uma versão abreviada do nome químico ou um nome em código (por exemplo, PN200110) para facilitar a referência entre os pesquisadores. Na terceira e última etapa do processo, denominada estudo clínico, são realizados estudos em humanos. Esses estudos, de acordo com Rang (2011), são divididos em quatro fases: • Fase 1: o medicamento é testado em voluntários saudáveis. São testadas diferentes vias de administração e doses, e o padrão de absorção e de excreção do fármaco (perfil farmacocinético) é estabelecido. • Fase 2: envolve estudos em um pequeno número de pessoas que têm a doença contra a qual o medicamento possivelmente é eficaz. 13 FARMACOLOGIA • Fase 3: uma quantidade maior de pacientes, tratadas em diferentes centros médicos de pesquisa, recebe o medicamento. Essa amostra maior de pacientes fornece informações sobre efeitos adversos raros ou pouco frequentes. A agência governamental (no Brasil, a Anvisa) aprovará o uso do novo medicamento se os estudos de fase 3 forem satisfatórios. • Fase 4: é voluntária e envolve a farmacovigilância pós-mercado dos efeitos do medicamento. O fabricante do medicamento recebe relatos de médicos e de outros profissionais da área de saúde a respeito dos resultados terapêuticos e de efeitos adversos do medicamento. Alguns medicamentos, por exemplo, apresentaram efeitos tóxicos e foram retirados do mercado depois de seu lançamento inicial. Quando um medicamento é aprovado para comercialização, o princípio ativo recebe um nome genérico (oficial) e um nome comercial (proprietário ou de marca). Por exemplo, a dipirona é um nome genérico, e Novalgina®, Neosaldina® e Anador® são nomes comerciais das formas farmacêuticas produzidas por diferentes laboratórios. Os nomes genéricos e comerciais devem ser exclusivos, para impedir que um medicamento seja confundido com outro. Para evitar possível confusão, todo nome comercial proposto deve ser aprovado pela Anvisa. O nome comercial é desenvolvido pela empresa que solicita aprovação para o medicamento e o identifica como propriedade exclusiva de tal empresa (patente). O medicamento comercializado pelo laboratório que o desenvolveu em primeiro lugar é denominado medicamento de referência, pois foi a partir dele que foram realizados os estudos pré-clínicos e clínicos que descrevemos anteriormente (exemplo: Novalgina® é o nome comercial de referência do medicamento dipirona). Quando o medicamento não está protegido por patente, a empresa pode comercializar seu produto com o nome genérico ou com um nome comercial. Os medicamentos genéricos são comercializados pelo nome oficial (exemplo: dipirona), enquanto os medicamentos similares são comercializados por outros laboratórios, utilizando outros nomes comerciais, diferentes do medicamento de referência (Neosaldina® e Anador®, por exemplo). Assim, em resumo: • Os medicamentos de referência são os primeiros a serem comercializados, utilizando-se um nome comercial. Passaram por testes pré-clínicos e clínicos para a avaliação de sua eficácia e são patenteados. • Os medicamentos genéricos são produzidos por outros laboratórios e comercializados pelo nome oficial do princípio ativo, após a queda ou a quebra da patente. • Os medicamentos similares são produzidos por outros laboratórios e comercializados utilizando-se outros nomes comerciais, após a quebra ou a queda da patente. Por determinação da Anvisa, os medicamentos de referência, genéricos e similares de um mesmo princípio ativo precisam ser bioequivalentes, ou seja, apresentar a mesma dosagem e a mesma taxa de absorção, o que garante que, em qualquer tempo, a concentração plasmática seja a mesma nos três casos. 14 Unidade I A maioria dos medicamentos genéricos, embora mais baratos do que os medicamentos de nome comercial correspondentes, possuem a mesma eficácia e a mesma qualidade deles, exatamente pela necessidade de se realizar testes de bioequivalência com o medicamento de referência. A farmacocinética é o estudo do movimento do fármaco no interior de um organismo vivo e envolve a avaliação de como o fármaco é absorvido, distribuído, biotransformado e excretado. Na prática, um fármaco deve ser capaz de alcançar seu local de ação pretendido após a administração, em quantidade e por tempo adequado para que seja observada ação farmacológica. A partir de agora, vamos estudar as principais formas farmacêuticas e vias de administração dos fármacos. Em seguida, serão abordadas cada uma das quatro etapas da farmacocinética: absorção, que é a passagem do fármaco do local de administração para a circulação sistêmica; distribuição, que é a passagem do fármaco do sangue para os diferentes órgãos e sistemas; biotransformação ou metabolismo, que se refere às alterações da estrutura química do fármaco, visando sua eliminação; e excreção, que é a saída do fármaco do organismo. Veja a figura a seguir: 1 Absorção (entrada) 4 Excreção (saída) 2 Distribuição 3 Biotransformação Fármaco no local da administração Fármaco no plasma Fármaco ou metabólitos na urina, na bile ou nas fezes Metabólitos nos tecidos Fármaco nos tecidos Figura 1 – Etapas da farmacocinética Fonte: Clark et al. (2013, p. 1). 1.1 Formas farmacêuticas e vias de administração Os medicamentos são apresentados em diferentes formas farmacêuticas, e esse parâmetro influencia a velocidade e a extensão da absorção do fármaco. As principais formas farmacêuticas estão descritas no quadro a seguir: 15 FARMACOLOGIA Quadro 1 – Principais formas farmacêuticas Estado físico Forma farmacêutica Principais características Sólidos Pó O medicamento apresenta-se na forma de cristais, necessitando de diluente para sua administração Comprimido É um cristal submetido a uma compressão em molde, geralmente discoide Cápsula O medicamento em pó é envolvido por uma camada de amido ou gelatina de consistência dura, a fim de impedir seu contato com a mucosa oral e facilitar a deglutição Drágea É um comprimido revestido com uma camada de açúcar, geralmente polido, com ou sem corante. O revestimento faz com que a absorção ocorra preferencialmente no intestino. Quando as drágeas são pequenas, são denominadas pílulas Supositório É uma forma sólida revestida por gelatina ou manteiga de cacau, que se desfazem à temperatura do corpo, possibilitando a absorção. Indicada para aplicação retal Óvulo Forma sólida, revestida por gelatina, de formato ovoide, para aplicação vaginal. Pastilha Comprimido achatado e circular indicado para dissolução na boca e absorção pela mucosa oral Semissólidos Pomada O fármaco é dissolvido em uma base gordurosa, de consistência macia, devendo ser aplicado topicamente na pele ou nas mucosas Creme O fármaco é dissolvido em uma base aquosa e oleosa. Também utilizado para aplicação tópica Pasta É uma forma farmacêutica de consistência macia, aquosa, que contém 20% de pó Líquidos Solução É um preparado líquido que apresenta uma ou mais substâncias dissolvidas, formando uma mistura homogênea Xarope À solução aquosa do fármaco são adicionados açúcar e aromatizantes Suspensão O pó contendo o medicamento encontra-se disperso no meio líquido, sem estar dissolvido, formando um sistema heterogêneo, bifásico. Quando em repouso, as partículas se depositam no fundo do frasco Tintura É um preparado de álcool que contém o princípio ativo extraído de um vegetal ou mineral Elixir Solução composta de álcool, açúcar, água e agente medicinal, destinada à administração oral Gasosos Gás Para administração inalatória de substâncias que, à temperatura ambiente, encontram-se no estado gasoso. Exemplo: o anestésico inalatório óxido nitroso (N2O) Aerossol As partículas sólidas ou líquidas do fármaco são distribuídas em névoa ou acondicionadas em recipiente pressurizado (“bomba”) Fonte: Pivello(2014, p. 3-10). Cada uma das formas farmacêuticas descritas é adequada para a administração por uma ou mais vias específicas. A escolha da via de administração apropriada em uma determinada situação depende de fatores relacionados ao fármaco e ao paciente. 16 Unidade I São fatores que podem interferir na escolha da via de administração de um fármaco: • propriedades físico-químicas (estado físico, solubilidade, estabilidade, pH, irritação); • local da ação desejada (localizado e acessível ou sistêmico e não acessível); • taxa e extensão da absorção do fármaco a partir de diferentes locais da administração, bem como volume a ser administrado; • ação do suco gástrico e/ou de enzimas do trato digestório e metabolismo de primeira passagem; • rapidez com a qual o efeito do fármaco tem que ser observado (tratamento de rotina ou de emergência); • necessidade de se ter precisão na quantidade de fármaco absorvido (por exemplo, na via intravenosa, existe a certeza da quantidade de fármaco que atingiu a circulação sistêmica); • condição clínica do paciente (idade do paciente e se ele se encontra consciente, presença de vômito e diarreia etc.). Observação O metabolismo de primeira passagem é a biotransformação do fármaco, pelo fígado e/ou pela microbiota intestinal, antes de ele atingir a circulação sistêmica. De forma geral, as vias de administração podem ser divididas em locais e sistêmicas. 1.1.1 Vias de administração local Conforme Yellepedi (2016), as vias de administração local só podem ser usadas para lesões localizadas em regiões acessíveis e para administração de fármacos cuja absorção sistêmica seja mínima ou ausente. Assim, as concentrações ideais do fármaco são atingidas no local desejado, sem que haja exposição do restante do organismo ao fármaco. Consequentemente, os efeitos adversos sistêmicos ou a toxicidade são mínimos ou ausentes. Para os fármacos que são absorvidos a partir de uma via local de administração (por exemplo, a pele), ela pode servir como via de administração sistêmica. Um exemplo é o adesivo transdérmico de fentanila (Durogesic®) aplicado na pele. As vias de administração locais são divididas em: • Tópica: refere-se à aplicação externa do fármaco numa superfície, para uma ação localizada. É geralmente mais conveniente para o paciente. Os fármacos podem ser administrados com eficiência nas lesões localizadas na pele, na mucosa orofaríngea e nasal, nos olhos, no canal auditivo, no canal anal ou na vagina. 17 FARMACOLOGIA Outras formas de administração tópica incluem os fármacos não absorvidos e administrados por via oral para ação na mucosa gastrointestinal (por exemplo, o sucralfato), a inalação de fármacos que atuam nos brônquios (por exemplo, o salbutamol) e as soluções aplicadas na uretra (por exemplo, a iodopovidona). • Tecidos mais profundos: certas áreas profundas podem ser acessadas usando uma seringa e uma agulha, mas o fármaco deve estar em uma forma que a absorção sistêmica seja limitada, como ocorre na injeção intra-articular (por exemplo, o acetato de hidrocortisona na articulação do joelho) e na infiltração ao redor de um nervo ou injeção intratecal (por exemplo, a lidocaína). • Suprimento arterial: a injeção intra-arterial próxima é usada para meios de contraste na angiografia; medicamentos antineoplásicos podem ser infundidos na artéria femoral ou braquial para localizar o efeito em condições de câncer nos membros. 1.1.2 Vias de administração sistêmica O fármaco administrado por vias sistêmicas deve ser absorvido até a corrente sanguínea e distribuído por todo o organismo, incluindo o local da ação, através da circulação. As principais vias de administração sistêmica são: Oral A administração por via oral é o modo mais frequente de administração de fármacos. É mais segura, mais conveniente, não invasiva e geralmente indolor. Para a administração por essa via, o fármaco não precisa ser estéril e geralmente não é necessária assistência de profissional qualificado para realizar a administração ao paciente, o que faz da via oral a via mais econômica. As formas farmacêuticas sólidas (pós, comprimidos, cápsulas, drágeas, comprimidos) e líquidas (elixires, xaropes, emulsões, misturas) podem ser administradas por via oral. Fármacos administrados por essa via precisam ser engolidos, e a absorção ocorrerá principalmente na mucosa do estômago e do intestino. Entre as desvantagens ou limitações da administração de fármacos por via oral, temos: • O início da ação dos fármacos é mais lento e, portanto, não é uma via adequada para emergências. • Fármacos com sabor desagradável (por exemplo, o cloranfenicol) são difíceis de administrar. Para contornar esse problema, eles podem ser acondicionados em cápsulas, por exemplo. • A administração por via oral pode causar náuseas e vômitos. • Não pode ser usado em pacientes não cooperantes, inconscientes ou apresentando vômitos. 18 Unidade I • Após a administração por via oral, a absorção do fármaco pode ser variável e irregular, sendo que certos fármacos não são absorvidos (por exemplo, a estreptomicina). • Há fármacos que são destruídos pelas enzimas digestivas (por exemplo, a penicilina G e a insulina) ou pelo fígado (por exemplo, a testosterona e a lidocaína). Esses fármacos geralmente são administrados por outras vias. Sublingual Na via sublingual, o comprimido contendo o fármaco é colocado sob a língua ou é esmagado na boca e espalhado sobre a mucosa oral. Apenas medicamentos lipossolúveis e não irritantes podem ser administrados por essa via. A absorção é relativamente rápida, sendo que o início da ação pode ser observado em minutos. Embora seja um pouco inconveniente, pode-se cuspir a forma farmacêutica após a obtenção do efeito desejado. A principal vantagem é que o medicamento, uma vez absorvido, passa diretamente para a circulação sistêmica, sem sofrer metabolismo hepático de primeira passagem. Infelizmente, poucos medicamentos disponíveis no mercado podem ser administrados por via sublingual (por exemplo, gliceril trinitrato). Retal A via de administração retal pode ser usada quando o paciente está inconsciente ou está apresentando vômitos recorrentes. No entanto, a maioria dos pacientes a considera como uma via de administração bastante inconveniente e, muitas vezes, constrangedora. Certos medicamentos irritantes ou de sabor desagradável também podem ser colocados no reto, como supositórios ou como enema para efeito sistêmico. A absorção pela via retal é lenta, irregular e muitas vezes imprevisível. O medicamento absorvido após a administração pela via retal passa para as veias hemorroidais externas (cerca de 50%) e cai na circulação sistêmica sem atingir o fígado, porém o medicamento absorvido que passa para as veias hemorroidais internas atinge o fígado, ou seja, sofre metabolismo de primeira passagem. Medicamentos irritantes podem causar inflamação retal. Cutânea Fármacos altamente lipossolúveis podem ser aplicados sobre a pele e serão absorvidos de forma lenta e prolongada até a circulação sistêmica. O fármaco pode ser incorporado em uma pomada, creme ou gel e ser aplicado em uma área específica da pele. Sistemas terapêuticos transdérmicos são adesivos de várias formas e tamanhos que liberam o fármaco numa taxa constante na circulação sistêmica através da pele. Nesses sistemas, ele é mantido em um reservatório entre um filme de suporte oclusivo e uma membrana de microporos de controle de taxa, cuja superfície inferior possui um adesivo impregnado com a dose inicial do fármaco. A camada adesiva é protegida por outro filme que deve ser retirado imediatamente antes da aplicação. 19 FARMACOLOGIA O fármaco é liberado na superfície da pele por difusão para absorção percutânea na circulação. Embora mais caros, eles fornecem concentrações plasmáticas do fármaco sem flutuações, minimizando as variações interindividuais e os efeitos adversos. Eles também são mais convenientes – muitos pacientes preferemadesivos transdérmicos aos comprimidos orais do mesmo fármaco, o que garante maior adesão ao tratamento. Em alguns pacientes pode ocorrer irritação local e eritema, mas geralmente são manifestações leves. Inalatória Líquidos e gases voláteis são administrados por inalação para ação sistêmica (por exemplo, os anestésicos gerais halotano, isoflurano e o óxido nitroso). A absorção ocorre na ampla superfície dos alvéolos, e o início da ação do fármaco é muito rápido. Quando a administração é interrompida, o medicamento difunde-se novamente do tecido para a circulação sistêmica e é rapidamente eliminado no ar expirado. Vapores irritantes (por exemplo, éter) causam inflamação do trato respiratório e aumentam a secreção. Nasal A membrana mucosa do nariz pode absorver facilmente alguns poucos medicamentos (por exemplo, insulina, agonistas do GnRH e desmopressina). Com isso, evita-se a ação dos sucos digestivos e o metabolismo hepático de primeira passagem. Observação Em junho de 2019, a Anvisa autorizou a comercialização da insulina inalável. Trata-se de um pó, comercializado em cartuchos com três tipos de dosagem, semelhante às “bombinhas” para asma. A substância é levada ao pulmão e absorvida pela corrente sanguínea e, assim, reduz os níveis de glicemia (CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA, 2019). Além de evitar as injeções de insulina após cada refeição, o pico de ação da insulina inalável (50 minutos) é menor do que o da aplicada por via subcutânea (30 a 40 minutos), o que proporciona melhor controle da glicemia. Parenteral Convencionalmente, o termo parenteral refere-se à administração por injeção, que leva o fármaco diretamente ao fluido tecidual ou sangue, sem ter que atravessar a mucosa enteral (gastrointestinal). Assim, as limitações relacionadas à administração oral (enteral), como as náuseas e os vômitos decorrentes da irritação gástrica, podem ser contornadas com a administração parenteral. 20 Unidade I O início da ação do fármaco administrado por via parenteral é mais rápida, o que é um aspecto importante em emergências. As vias parentéricas (ou parenterais) podem ser empregadas em pacientes inconscientes, não cooperativos ou com vômito. Não há riscos de interferência de alimentos ou sucos digestivos com o fármaco. Não há metabolismo de primeira passagem. Quanto às desvantagens das vias parenterais, as principais são: a preparação deve ser esterilizada, o que torna essa via mais cara; a técnica é invasiva e dolorosa; é necessária a assistência de outra pessoa, embora a autoinjeção seja possível (por exemplo, insulina para diabéticos); há possibilidade de lesão tecidual local e, em geral, a via parenteral é considerada mais “arriscada” que a oral. As principais vias parenterais são: • Subcutânea (s.c.): o fármaco é administrado no tecido subcutâneo, que é ricamente suprido pelos nervos (fármacos irritantes não podem ser injetados), mas é menos vascularizado (a absorção é mais lenta que a intramuscular). Apenas pequenos volumes podem ser injetados pela via subcutânea. A autoinjeção é possível, porque não é necessária uma penetração profunda. Preparações de repositório (depósito) que são suspensões aquosas podem ser injetadas para ação prolongada. • Intramuscular (i.m.): o fármaco é injetado em um dos grandes músculos esqueléticos – deltoide, tríceps, glúteo máximo, reto femoral etc. O músculo é menos rico em suprimentos de nervos sensoriais (irritantes leves podem ser injetados) e é mais vascularizado, o que aumenta a velocidade de absorção. É menos dolorosa, mas a autoinjeção geralmente é impraticável, porque é necessária uma penetração profunda (veja a figura a seguir). Preparações de depósito (soluções oleosas e suspensões aquosas) podem ser injetadas por essa via. Injeções intramusculares devem ser evitadas em pacientes tratados com anticoagulantes, pois podem produzir hematoma local. Injeção subcutânea Injeção intramuscular Epiderme Derme Músculo Tecido subcutâneo Figura 2 – Diferença entre a injeção intramuscular e a subcutânea Fonte: Clark et al. (2013, p. 3). 21 FARMACOLOGIA • Intravenosa (i.v.): o fármaco pode ser injetado na forma de bolus (administração da quantidade total do fármaco de uma só vez) ou pode ser infundido lentamente durante horas em uma das veias superficiais. O fármaco atinge diretamente a corrente sanguínea, e os efeitos são produzidos imediatamente, o que é extremamente útil em emergências. A camada íntima das veias é insensível, e o fármaco é diluído no sangue; portanto, mesmo fármacos altamente irritantes podem ser injetados pela via intravenosa, mas os riscos são tromboflebite da veia injetada e necrose dos tecidos adjacentes, se ocorrer extravasamento. Devem ser injetadas por via intravenosa apenas soluções aquosas (não é possível a administração de suspensões, pois as partículas do fármaco podem causar embolia). A dose necessária do fármaco é menor pela via intravenosa, pois a etapa de absorção é ultrapassada (100% do fármaco administrado atinge a circulação sistêmica) e podem ser infundidos até grandes volumes (veja a figura a seguir). Essa é a via de administração mais “arriscada”, pois os órgãos vitais como coração, cérebro etc. são expostos a altas concentrações do fármaco. 100 0 0 30 60 Tempo (minutos) 5 mg de midazolam por via intravenosa 5 mg de midazolam por via intramuscularC on ce nt ra çã o no p la sm a (n g/ m L) 90 200 Figura 3 – Concentração plasmática do midazolam no plasma, após injeção de doses equivalentes (5 mg) por via intravenosa e intramuscular. Observe que o pico de concentração plasmática é maior quando o fármaco é administrado por via intravenosa, uma vez que, nesse caso, o fármaco é administrado diretamente na circulação sistêmica Fonte: Clark et al. (2013, p. 3). • Injeção intradérmica: é uma rota utilizada apenas para fins específicos. O fármaco é injetado na pele, produzindo uma espécie de bolha (por exemplo, vacina BCG, testes de sensibilidade). 1.2 Absorção Conforme Tracy (2011), absorção é a passagem do fármaco do local de administração para a circulação sistêmica. Essa passagem ocorre através do tecido íntegro e, portanto, envolve vários processos específicos, que incluem a administração do fármaco, sua dissolução nos líquidos corporais e a passagem pela membrana plasmática das células. A medida da quantidade de fármaco que é absorvido a partir do local é denominada biodisponibilidade. Por definição, a biodisponibilidade é a fração do fármaco inalterado que atinge a circulação sistêmica. Quando duas formas farmacêuticas contendo uma mesma dose de 22 Unidade I determinado fármaco apresentam a mesma biodisponibilidade, dizemos que as formas farmacêuticas são bioequivalentes. Lembrete Quando afirmamos que um medicamento genérico é bioquivalente ao medicamento de referência, estamos dizendo que a velocidade e a extensão da absorção desses dois medicamentos é a mesma. Para que o fármaco seja absorvido, ele deverá atravessar barreiras biológicas, como as camadas da pele, o endotélio vascular, o epitélio gastrointestinal e a barreira hematoencefálica. Essas barreiras são constituídas de células, unidas entre si por diferentes tipos de junções intercelulares e banhadas por um líquido intersticial que apresenta composição química própria. A composição química desse líquido e as características físico-químicas da molécula do fármaco influenciam grandemente a absorção dos fármacos. As principais características físico-químicas do fármaco que influem na absorção são: • Lipossolubilidade: quanto mais apolar a molécula for, maior a solubilidade da droga na membrana plasmática, e mais fácil a travessia pelo mecanismo de difusão passiva. • Hidrossolubilidade: fármacos polares e/ou muito grandes só atravessam a membrana das células quando existem sistemas transportadores específicos ou poros hidrofílicos que facilitam a passagem pela membrana. Esse parâmetro também influi na velocidade de dissolução dofármaco nos meios biológicos. • Estabilidade química da molécula do fármaco: permite um maior tempo de ação. • Massa molecular: é a estimativa do tamanho e do volume das moléculas do fármaco. Quanto maior a molécula do fármaco, maior a massa molecular e mais difícil será a passagem pela membrana plasmática. • Comportamento da molécula do fármaco em diferentes pHs: fármacos de caráter ácido e de caráter básico comportam-se de maneira específica de acordo com o pH da solução. 1.2.1 Transporte através das membranas biológicas Para que um fármaco possa atingir seus alvos intracelulares ou atravessar uma barreira, deve ser capaz de atravessar a membrana plasmática. Esse processo ocorre por difusão simples, por difusão facilitada, por transporte ativo ou por endocitose/pinocitose (veja a figura a seguir). 23 FARMACOLOGIA Difusão passiva Difusão facilitada Transporte ativo Endocitose/pinocitose Fármaco Fármaco Fármaco Proteína transportadora Meio extracelular Ciroplasma ATP ADP Proteína transportadora com atividade ATPase Fármaco com alta massa molecular Membrana Membrana plasmáticaplasmática Difusão passiva de um fármaco hidrosolúvel através de um canal ou poro aquoso (aquaporina) Difusão passiva de um fármaco lipossolúvel a partir da dissolução na membrana plasmática Figura 4 – Mecanismos de transportes do fármaco através da membrana Adaptada de: Clark et al. (2013, p. 6). Todas as células do organismo humano são delimitadas por uma membrana plasmática constituída de uma bicamada de fosfolipídeos. Esses fosfolipídeos apresentam uma região hidrofóbica e uma região hidrofílica, posicionada em contato com os ambientes aquosos de dentro e de fora da célula. Além dos componentes lipídicos, as membranas biológicas contêm numerosas proteínas diferentes. Algumas dessas proteínas estão apenas ancoradas à superfície interna ou externa da membrana plasmática, enquanto outras (proteínas transmembranares) atravessam a membrana plasmática e, portanto, estão em contato tanto com o meio intra quanto com o meio extracelular. A porção hidrofóbica da membrana plasmática representa uma importante barreira para o transporte dos fármacos. As pequenas moléculas apolares são lipossolúveis e, portanto, são capazes de difundir-se facilmente através das membranas e atingir o meio intracelular. Um exemplo são os hormônios esteroidais (cortisol, estrógeno, testosterona etc.). Sintetizados a partir do colesterol, eles atravessam livremente a membrana plasmática das células, onde irão ativar seus alvos moleculares. Conforme já discutido anteriormente, as moléculas apolares dissolvem-se livremente na camada lipídica da membrana, difundindo-se prontamente através das membranas celulares. A solubilidade do fármaco na membrana é função de seu coeficiente de partição óleo/água, parâmetro que indica a porcentagem de fármaco dissolvido nos compartimentos aquoso e oleoso do tecido, e de seu coeficiente de difusão, que é a medida da mobilidade das moléculas na camada lipídica. O transporte do fármaco através da membrana plasmática também depende da sua concentração no microambiente em que a célula está localizada. 24 Unidade I O problema é que a maioria dos fármacos usados na terapêutica são moléculas grandes e polares (hidrossolúveis) o suficiente para que a passagem pela membrana plasmática seja prejudicada. As moléculas que não são suficientemente lipossolúveis precisam de processos especiais para atravessar as membranas biológicas, como canais hidrofílicos funcionais e sistemas específicos de transporte. Algumas proteínas transmembranares possibilitam a passagem dos fármacos e de outras moléculas polares através da membrana. Essas proteínas podem ser carreadoras especializadas em transportar determinada substância endógena e, por extensão, também transportam o(s) fármaco(s) que apresentam estrutura química semelhante a ela. Após a ligação do fármaco com a superfície extracelular dessas proteínas carreadoras, ocorre uma alteração conformacional, que permite que tenha acesso ao interior da célula. O transporte realizado por proteínas carreadoras pode depender de energia, na forma de ATP (transporte ativo) ou não (difusão facilitada). Alguns fármacos ligam-se a receptores de superfície celular específicos, deflagrando um processo denominado endocitose, em que a membrana celular sofre invaginação e forma uma vesícula, a partir da qual é subsequentemente liberado no interior da célula. A difusão através das aquaporinas, glicoproteínas de membrana que formam um poro que atravessa a membrana também é importante. No entanto, os poros formados por essas proteínas apresentam diâmetro muito pequeno – em torno de 0,4 nm – para possibilitar a passagem da maioria das moléculas de fármacos (que geralmente excedem 1 nm de diâmetro). O processo de transporte através das células pode ocorrer por endocitose ou por pinocitose. A pinocitose envolve a invaginação de parte da membrana celular e a captação, dentro da célula, de uma pequena vesícula contendo constituintes extracelulares. O conteúdo da vesícula pode, então, ser liberado dentro da célula ou estruído no outro lado desta. Esse mecanismo parece ser importante para o transporte de algumas macromoléculas (por exemplo, a insulina, que cruza a barreira hematoencefálica por esse processo), mas não para moléculas pequenas. Em um modelo biológico ideal, o fármaco irá penetrar na célula por difusão simples até que suas concentrações nos meios intracelular e extracelular sejam iguais. A velocidade de difusão depende da área de exposição da membrana ao fármaco e da espessura e da permeabilidade da membrana e do gradiente de concentração do fármaco através dela. 1.2.2 Características teciduais que influem na absorção dos fármacos No tecido epitelial, as células são justapostas, ou seja, mantêm muito pouco espaço entre si, pois estabelecem muitas junções intercelulares com as células vizinhas. Há muito pouco material extracelular entre essas células. Assim, para atravessar a barreira epitelial, as moléculas devem atravessar pelo menos duas membranas celulares (a interna e a externa). Isso também ocorre em relação à passagem pela mucosa gastrointestinal e do túbulo renal. A passagem do fármaco pela célula endotelial, por sua vez, é facilitada, devido ao espaço entre elas. A célula endotelial é do tipo achatada, de espessura variável que recobre o interior dos vasos sanguíneos. 25 FARMACOLOGIA Nos capilares, elas são organizadas de maneira descontínua, formando lacunas, que são preenchidas por uma matriz frouxa de proteínas que atuam como filtros, de forma que só permitem a passagem de moléculas menores. A permeabilidade do endotélio varia de um tecido para outro: em alguns órgãos, especialmente no sistema nervoso central e na placenta, existem junções firmes (zônulas de oclusão ou tight junctions) entre as células endoteliais, e o endotélio vascular é envolvido numa camada impermeável de células periendoteliais, de forma que as substâncias pouco lipossolúveis não penetram facilmente, o que evita lesões no cérebro ou no feto. Em outros órgãos, como o baço e o fígado, o endotélio não é contínuo, tornando possível a livre passagem de substâncias químicas entre as células. Outros fatores, como a vascularização do tecido no qual o fármaco foi administrado e a extensão de tecido disponível para a absorção, também interferem na absorção dos fármacos. A via oral é a principal via de administração de fármacos e, por esse motivo, iremos estudar mais a fundo os fatores que regulam a absorção por essa via. Em geral, cerca de 75% de um fármaco administrado por via oral é absorvido no período de 1 a 3 horas, mas numerosos fatores, alguns fisiológicos e outros relacionados com a formulação, alteram essa absorção. Os principais fatores são: a presença ou não de conteúdo intestinal, a intensidade e a frequência dos movimentos peristálticos, o fluxo sanguíneo esplâncnico, o tamanho das partículas dofármaco e suas características físico-químicas, a forma farmacêutica etc. Durante a primeira fase dos ensaios clínicos, a influência da alimentação sobre a absorção dos fármacos é analisada. A presença de alimento no tubo digestório altera fluxo de sangue esplâncnico e, quanto mais vascularizada a área de absorção, maior tende a ser a velocidade dela. De fato, diversos fármacos (por exemplo, o propranolol) alcançam uma concentração plasmática mais alta se tomados após uma refeição, provavelmente porque o alimento aumenta o fluxo sanguíneo esplâncnico. No entanto, a absorção dos fármacos pela mucosa do trato gastrointestinal também resulta de outros fatores, como o perfil de lipossolubilidade/hidrossolubilidade do fármaco, as características do alimento ingerido e até mesmo a frequência dos peristaltismos. O movimento excessivamente rápido do conteúdo intestinal observado em alguns tipos de diarreia pode, por exemplo, comprometer a absorção. O tamanho da partícula e a formulação exercem importantes efeitos sobre a absorção. Duas formas farmacêuticas contendo a mesma dose de determinado fármaco podem apresentar padrões distintos de absorção, por conta das características da formulação, daí a necessidade da realização dos testes de bioequivalência. Esses testes são realizados dissolvendo-se as formas farmacêuticas em condições controladas; elas serão bioequivalentes se o padrão de liberação do princípio ativo for idêntico entre elas. Os produtos terapêuticos são formulados de modo a produzir as características de absorção desejadas. As cápsulas podem ser projetadas para permanecer intactas por algumas horas após a ingestão para 26 Unidade I retardar a absorção; os comprimidos podem ter um revestimento resistente para produzir o mesmo efeito. Em alguns casos, faz-se uma mistura de partículas de liberação lenta e rápida na mesma cápsula, a fim de promover uma absorção rápida, mas sustentada. Sistemas farmacêuticos mais elaborados incluem diversas preparações de liberação modificada que tornam possível administração menos frequente. Tais preparações não somente aumentam o intervalo entre as doses, como também reduzem os efeitos adversos relacionados com os altos picos de concentração plasmática após a administração de uma formulação convencional (veja a figura a seguir). 11 22 33 44 55 Forma farmacêutica: 1. Revestimento entérico 2. Comprimido cápsula 3. Xarope, solução 4. Liberação estendida 5. Liberação retardada Figura 5 – Padrão de absorção dos fármacos por via oral, de acordo com a forma farmacêutica. As regiões do tubo digestório nas quais a absorção ocorre em maior velocidade estão sombreadas em vermelho Fonte: Lüllmann e Jürgen (2000, p. 11). Quando os fármacos são engolidos, geralmente a intenção é que sejam absorvidos e causem efeito sistêmico, porém existem exceções. A administração da vancomicina por via oral, por exemplo, visa a eliminação do Clostridium difficile da luz intestinal em pacientes com colite pseudomembranosa. Caso se deseje que esse antibiótico produza efeitos sistêmicos, deve-se administrá-lo por via intravenosa, pois sua absorção por via oral é lenta e incompleta. Outros exemplos são a mesalazina, que é comercializada em formulações contendo revestimento acrílico que somente sofre degradação no íleo terminal, e cólon proximal, que constitui seu local de ação. 27 FARMACOLOGIA Fármacos administrados por via oral são absorvidos através do revestimento do estômago ou do intestino delgado. Em alguns casos, alguns alimentos ou algum outro fármaco podem reduzir a absorção de outro fármaco. Por exemplo, a tetraciclina é um antibiótico com capacidade quelante de íons cálcio, ferro, magnésio e alumínio. Dessa forma, a tetraciclina não é absorvida adequadamente se for tomada no período de uma hora após a ingestão de alimentos ou de complexos vitamínicos que contenham cálcio (por exemplo, o leite e os laticínios). Além disso, a presença de alimentos no sistema digestório pode alterar a motilidade intestinal e interferir com a absorção do medicamento. Uma precaução importante é evitar a administração de alimentos por uma hora antes ou algumas horas depois de ter tomado um fármaco, ou tomar diferentes fármacos com um intervalo de pelo menos duas horas. A forma farmacêutica de um fármaco pode interferir na absorção, de forma que os fármacos na forma líquida são mais bem absorvidos que aqueles na forma sólida, pois nesse último caso deve ocorrer dissolução para que haja absorção do princípio ativo. Em relação à área de absorção e à concentração do fármaco, existe uma correlação positiva entre esses fatores e o grau de absorção. Ou seja, quanto maior a circulação sanguínea e/ou a concentração do fármaco na área de absorção, maior a taxa de absorção. A aplicação local de calor ou massagens pode aumentar a circulação local, aumentado a taxa de absorção do fármaco administrado. Por outro lado, o emprego de vasoconstritores pode limitar a circulação local e, consequentemente, a taxa de absorção. 1.2.3 Influência do pH na absorção dos fármacos A capacidade de atravessar barreiras hidrofóbicas é fortemente influenciada pela lipossolubilidade do fármaco. A velocidade de difusão de uma substância depende principalmente de seu tamanho molecular, pois o coeficiente de difusão é inversamente proporcional à raiz quadrada da massa molecular da substância. Consequentemente, enquanto moléculas grandes se difundem mais lentamente do que as pequenas, a variação de acordo com a massa molecular é pouco significativa. Os fármacos, em sua maioria, são substâncias químicas com propriedades de ácidos fracos ou bases fracas e, portanto, em solução aquosa se apresentam parcialmente ionizados. A proporção entre a fração ionizada e a fração não ionizada de um fármaco é determinada pelo pH do meio onde ele se encontra dissolvido e da sua constante de dissociação (pKa). A difusão desses fármacos através das membranas biológicas é grandemente afetada pelo seu grau de ionização. A concentração do fármaco em cada um dos lados da membrana é determinada pela constante de dissociação de ácido (pKa) do fármaco e pelo gradiente de pH através da membrana. Para os fármacos que são ácidos fracos – como o fenobarbital e a aspirina –, a forma protonada (HA) não apresenta carga elétrica e, portanto, atravessa a membrana plasmática com facilidade. Essa forma protonada predomina em pH ácido e, portanto, fármacos que são ácidos fracos apresentam alta velocidade de absorção em pHs ácidos, como no estômago. Ao atingir o meio intracelular, mais básico, o fármaco de caráter ácido é desprotonado, e passa a ter carga elétrica (A-), o que faz com que ele tenha 28 Unidade I menor probabilidade de atravessar novamente a membrana apical das células da mucosa e voltar para a luz do estômago (“sequestro”). Observação O pKa é um parâmetro que representa o valor de pH em que 50% das moléculas do fármaco encontra-se em sua forma ionizada (com carga elétrica). No caso dos fármacos que são bases fracas, é observado o oposto: a forma protonada apresenta carga elétrica (BH+) e, portanto, a absorção não é favorecida em pH ácido. Por outro lado, a forma não protonada (B), que predomina em pH básico (por exemplo, no intestino), conseguirá atravessar a membrana com facilidade. Ao atingir o meio intracelular, ocorre nova protonação, e a forma ionizada fica “sequestrada” no interior da célula (veja a figura a seguir). Membrana lipídica Membrana lipídica Compartimento corporal Compartimento corporal Compartimento corporal Compartimento corporal A. Ácido fraco A. Base fraca Figura 6 – Difusão da forma não ionizada de um ácido fraco (A) ou de uma base fraca (B) através da bicamada lipídica Fonte: Clark et al. (2013, p. 7). Para um ácido fraco, A, a reação de ionização é: HA Ka H+ + A- Sendo: HA = forma molecular, protonada, do fármaco de caráter ácido. H+ = próton livre. A- = forma ionizada, não protonada, do fármaco de caráter ácido.Ka = constante de dissociação do ácido, que indica a relação entre as concentrações da forma protonada e da forma não protonada nas condições do equilíbrio. 29 FARMACOLOGIA No equilíbrio, a constante de dissociação do ácido, Ka, é expressa como: ] [ [ ] A · H Ka HA − + = Onde: [A-] = concentração, em mol/L, da forma ionizada do fármaco. [H+] = concentração, em mol/L, de prótons livres. [HA] = concentração, em mol/L, da forma não ionizada do fármaco. Rearranjando a equação e transformando-a em uma função logarítmica, que é a melhor forma de trabalharmos com concentração de prótons livres (H+) em solução, uma vez que a concentração deles cresce exponencialmente em resposta às condições do meio, temos: [ ]HA H Ka· A + − = [ ]HA log H logKa log A + − − = − − Por definição, o valor negativo do logaritmo, na base 10, da concentração de H+ em solução (-log[H+]) é denominado pH (potencial hidrogeniônico). De maneira semelhante, -logKa passa a ser denominado pKa. Assim, temos: [ ]HA pH pKa log A− = − ou, reorganizando a fórmula, [ ] A pH pKa log HA − = + Essa equação chama-se equação de Henderson-Hasselbalch. Ela estima a relação entre as concentrações da forma não ionizada e ionizada do fármaco em determinado pH, de acordo com seu pKa (que expressa o pH no qual 50% das moléculas do fármaco encontram-se na forma não ionizada e a outra metade, na forma ionizada). 30 Unidade I Podemos expressar a equação da seguinte maneira: [ ] [ ] forma não protonada pH pK log forma protonada = + De maneira semelhante, aplicando-se a fórmula a uma equação de dissociação de uma base fraca que, em solução, comporta-se da seguinte maneira: BH+ Kb B + H+ Sendo: BH+: forma ionizada, protonada, do fármaco de caráter básico. H+: próton livre. A-: forma molecular, não protonada, do fármaco de caráter básico. A equação de Henderson-Hasselbach correspondente é a seguinte: [ ]B pH pKb log BH+ = + Onde: [B] = concentração, em mol/L, da forma não ionizada do fármaco de caráter básico. [H+] = concentração, em mol/L, de prótons livres. [BH+] = concentração, em mol/L, da forma ionizada do fármaco. Por exemplo, consideremos o exemplo hipotético de um fármaco fracamente ácido com pKa = 4. No estômago, que apresenta pH = 1, temos: [ ] A pH pKa log HA − = + [ ] A 1,0 4,0 log HA − = + 31 FARMACOLOGIA [ ] A log 3,0 HA − = − [ ] 3 A 10 HA − − = Ou seja, a proporção entre a concentração da forma ionizada e a forma molecular é igual a 10-3 ou 0,001 (para cada uma partícula na forma ionizada A-, existem 1.000 partículas na forma molecular): [ ] 3 A 1 HA 10 − = [ ] A 1 HA 1000 − = Sob o ponto de vista da absorção, podemos afirmar que, no estômago, a forma protonada (HA, não ionizada) do fármaco encontra-se numa concentração 1.000 vezes maior do que a forma desprotonada (A-, ionizada), ou seja, 99,9% do fármaco estão na forma molecular, não ionizada, nesse ambiente ácido. Como a forma molecular consegue atravessar a membrana plasmática com maior velocidade, a absorção do fármaco, nessas condições, é favorecida. Se realizarmos o mesmo cálculo considerando o pKa do fármaco (pKa = 4) e o pH do plasma (pH = 7,4, porém vamos usar o valor aproximado de pH = 7), teremos o seguinte: [ ] A pH pKa log HA − = + [ ] A 7,0 4,0 log HA − = + [ ] 3 A 10 HA − = [ ] A 1000 HA 1 − = 32 Unidade I Portanto, no plasma, a relação entre a concentração das formas não protonada e protonada se inverte, e temos 99,9% do fármaco na forma ionizada, forma que praticamente não atravessa de volta a membrana plasmática das células. Portanto, nessas condições, o fármaco tende a ficar “sequestrado” no plasma. Utilizando o mesmo raciocínio, para uma base fraca (por exemplo, petidina, pKa de 8,6) em um meio alcalino (por exemplo, no intestino), a maior parte do fármaco está na forma protonada (B, não ionizada). Em um compartimento de pH = 7,6, por exemplo, a forma protonada encontra-se numa concentração 10 vezes maior do que a da forma desprotonada (BH+, ionizada), de forma que 90% do fármaco encontra-se na forma molecular, sem cargas, nesse ambiente básico, e a absorção é favorecida. Um cálculo semelhante para o estômago, cujo pH é de cerca de 1, demonstra que a situação é invertida, com a maior parte do fármaco na forma desprotonada, com cargas. Portanto, no estômago a absorção ocorre lentamente, pois a maioria das moléculas do fármaco encontram-se na forma ionizada. Concluindo, a razão entre as formas ionizada e não ionizada de um fármaco é determinada pelo seu pKa e pelo pH do compartimento. Presume-se que a forma não ionizada possa atravessar a membrana e consequentemente alcançar concentrações iguais em cada compartimento do organismo, e que a forma ionizada não consegue atravessá-la. O resultado é que, no equilíbrio, a concentração total (ionizada + não ionizada) do fármaco será diferente em cada compartimento do organismo, sendo possível fazer as seguintes generalizações: • Fármacos de caráter ácido apresentam maior velocidade de absorção em compartimentos de pH ácido (nos quais predomina a forma HA) e maior velocidade de excreção em urina básica (na qual predomina a forma A-). • Fármacos de caráter básico apresentam maior velocidade de absorção em compartimentos de pH alcalino (nos quais predomina a forma B) e maior velocidade de excreção em urina ácida (na qual predomina a forma BH+). Deve-se mencionar que a partição pelo pH não é o principal determinante do local de absorção de fármacos no trato gastrointestinal. Isso ocorre em razão da enorme área de absorção das vilosidades e microvilosidades intestinais, comparada com a área de absorção do estômago, que é muito menor, diminuindo, assim, sua importância. Desse modo, a absorção de um fármaco ácido, como a aspirina, é aumentada por fármacos que aceleram o esvaziamento gástrico (por exemplo, metoclopramida) e retardada por fármacos que o reduzem (por exemplo, a propantelina), apesar de o pH ácido do estômago favorecer a absorção de ácidos fracos. A partição pelo pH tem algumas consequências muito importantes na clínica: • A acidificação da urina acelera a eliminação de bases fracas e retarda a de ácidos fracos, enquanto a alcalinização da urina tem o efeito oposto: reduz a eliminação de bases fracas e aumenta a de ácidos fracos. 33 FARMACOLOGIA • O aumento do pH do plasma (por exemplo, pela administração de bicarbonato de sódio) faz com que ácidos fracos sejam extraídos do SNC para o plasma. O oposto é verdadeiro, ou seja, a redução do pH do plasma (por exemplo, pela administração de um inibidor da anidrase carbônica, como a acetazolamida) faz com que ácidos fracos sejam concentrados no sistema nervoso central, aumentando sua neurotoxicidade. Portanto, caso um paciente apresente intoxicação por ácido acetilsalicílico, por exemplo, deve-se alcalinizar a urina, o que pode ser atingido com a administração de bicarbonato de sódio ou de acetazolamida. Ambas aumentam o pH urinário e, portanto, facilitam a eliminação dos salicilatos. Por outro lado, o bicarbonato reduz a distribuição de salicilatos no sistema nervoso central, enquanto a acetazolamida a aumenta. 1.2.4 Interações medicamentosas que alteram a absorção dos fármacos Em algumas situações, pode ser desejável retardar a absorção, para produzir um efeito local prolongado ou para prolongar as ações sistêmicas. Essas interações são denominadas benéficas ou intencionais, pois são vantajosas do ponto de vista terapêutico. Por exemplo, a adição de epinefrina (adrenalina) ao anestésico local reduz a absorção do anestésico na circulação sistêmica, prolongando apropriadamente seu efeito; a formulação de insulina com protamina e zinco produz uma forma de ação prolongada. Outras interações causam prejuízo terapêutico e são, por esse motivo, denominadas interações não intencionais ou fortuitas.Por exemplo, o fármaco A pode interagir física ou quimicamente com o fármaco B no intestino e inibir a sua absorção: tanto os íons cálcio quanto os íons ferro formam complexos insolúveis com a tetraciclina, retardando a sua absorção; a colestiramina, uma resina de ligação ao ácido biliar, se liga a diversos fármacos (por exemplo, a varfarina e a digoxina), inibindo a sua absorção se for administrada simultaneamente. A absorção gastrointestinal é retardada por fármacos que inibem o esvaziamento gástrico, como a atropina e os opioides, ou acelerada por fármacos que promovem o esvaziamento gástrico (por exemplo, a metoclopramida). Por esse motivo, é necessário examinar atentamente a bula dos medicamentos, a fim de saber se o medicamento em questão pode ou não ser associado aos medicamentos que alteram o trânsito intestinal. 1.3 Distribuição Conforme Tracy (2011), distribuição é o movimento do fármaco pela circulação sanguínea sistêmica até os diversos tecidos do organismo (por exemplo, tecidos adiposo, muscular e cerebral) e dos tecidos para a circulação sanguínea sistêmica. A distribuição de um fármaco ocorre primariamente através do sistema circulatório, enquanto o sistema linfático contribui com um componente menor. Na maioria das vezes, uma vez administrado, o fármaco será absorvido e passará para a circulação sistêmica, sendo distribuído rapidamente pelo organismo. 34 Unidade I A distribuição não é uniforme em todo o organismo, sendo que os fármacos hidrossolúveis têm tendência de permanecerem no sangue e no líquido ao redor das células (espaço intersticial) e os fármacos lipossolúveis tendem a concentrar-se nos tecidos adiposos. Há ainda alguns fármacos que se concentram em órgãos específicos, porque os tecidos nessa região têm uma afinidade diferenciada pelo fármaco, promovendo sua retenção (por exemplo, o iodo na glândula tireoide). A velocidade de penetração dos fármacos nos diferentes tecidos também é desigual, de forma que um fármaco altamente lipossolúvel atravessa rapidamente a barreira hematoencefálica, atingindo de forma eficiente o cérebro, ao passo que um fármaco hidrossolúvel não tem a mesma facilidade de atravessar essa barreira. Alguns fármacos têm capacidade de se acumular em determinados tecidos, que atuam, portanto, como reservatórios. Esses tecidos liberam lentamente o fármaco na circulação sanguínea sistêmica, evitando a redução rápida dos níveis sanguíneos da substância e prolongando, assim, seu efeito. Alguns fármacos, como os que se acumulam nos tecidos adiposos, saem dos tecidos tão lentamente que circulam na corrente sanguínea por dias após a pessoa ter parado de tomar o medicamento. A maioria das moléculas do fármaco, uma vez no compartimento sanguíneo, se ligam de maneira reversível às proteínas presentes no plasma – principalmente à albumina, mas também à betaglobulina e à glicoproteína ácida, entre outras. Esses fármacos geralmente são transferidos da corrente sanguínea para os tecidos muito lentamente, uma vez que somente a fração livre do fármaco tem capacidade de deixar o plasma para alcançar seu local de ação. Entre as frações livre e ligada do fármaco existe um equilíbrio dinâmico, de forma que quando a fração livre abandona a circulação, uma nova porção do fármaco ligado se libera das proteínas, refazendo esse equilíbrio. Dessa forma, a ligação às proteínas plasmáticas atua como um reservatório de fármaco potencialmente ativo na corrente sanguínea (veja a figura a seguir). 35 FARMACOLOGIA Efeito Efeito Célula-alvo Fármaco que Fármaco que não se liga não se liga às proteínas às proteínas plasmáticasplasmáticas Fármaco Fármaco que se liga que se liga às proteínas às proteínas plasmáticasplasmáticas Fármaco ligado Fármaco ligado às proteínas às proteínas plasmáticasplasmáticas Biotransformação Excreção renal Tempo Tempo Concentração plasmática Concentração plasmática Fármaco livre Excreção renal Biotransformação Célula-alvo Figura 7 – Efeitos da ligação do fármaco às proteínas plasmáticas sobre a ação, a biotransformação e a excreção do fármaco Fonte: Lüllmann e Jürgen (2000, p. 31). Se houver alterações nos níveis dessas proteínas plasmáticas, como nas hipoproteinemias, ocorre aumento da toxicidade dos fármacos que apresentam alta afinidade a essas proteínas, pois a concentração do fármaco livre no plasma aumentará. De maneira semelhante, a administração concomitante de dois ou mais fármacos que se ligam à mesma proteína plasmática pode resultar numa concentração plasmática da forma livre de um ou de ambos os fármacos mais alta do que o esperado, devido à competição pelo mesmo sítio de ligação. A concentração aumentada de fármaco livre (desligado das proteínas plasmáticas) pode resultar em efeitos terapêuticos e/ou tóxicos exacerbados. Nesses casos, podemos deduzir que será necessário ajustar o esquema de dosagem de um ou de ambos os fármacos, de modo que a concentração de fármaco livre possa retornar à sua faixa terapêutica. Entretanto, na prática, esse tipo de ajuste é difícil de ser realizado, pois, muitas vezes, a taxa de excreção é aumentada quando os fármacos são deslocados de seus sítios de ligação nas proteínas plasmáticas e passam a se encontrar livres no plasma. Os fármacos abandonam a via circulatória para o espaço intercelular pela difusão através das membranas celulares dos capilares ou ainda por poros ou fenestrações presentes nas paredes dos 36 Unidade I capilares. A velocidade com que a concentração de um determinado fármaco livre atinge o equilíbrio entre o plasma e o líquido dos demais compartimentos depende basicamente do grau específico de vascularização de um determinado tecido. Esse equilíbrio é atingido mais rapidamente em órgãos bem perfundidos, como o coração, o fígado, os rins e o cérebro (denominados compartimentos centrais), do que em outros órgãos, cujo aporte de sangue é menor (pele, ossos e depósitos de gordura, denominados compartimentos periféricos). A distribuição de um determinado fármaco pode variar de pessoa para pessoa. Por exemplo, pessoas obesas e idosos (que apresentam, em geral, maior proporção de gordura corporal) tendem a armazenar uma grande quantidade de fármacos lipossolúveis, ao passo que pessoas muito magras podem armazenar relativamente pouco. Os distúrbios hepáticos reduzem a síntese proteica, podendo produzir proteínas anômalas, alterar enzimas hepáticas ou promover variações na bilirrubinemia. Em particular, a cirrose hepática e a hepatite por vírus podem diminuir a ligação de diversos fármacos às proteínas plasmáticas, como a fenitoína, o diazepam e o clordiazepóxido, o que acarreta mudanças farmacocinéticas importantes. Algumas disfunções renais podem levar a hipoproteinemia, causando também alterações farmacocinéticas relevantes. A idade do indivíduo determina alterações fisiológicas importantes que podem levar a alterações significativas na farmacocinética. Assim, os recém-nascidos têm níveis menores de proteínas plasmáticas, além da presença de uma proteína chamada alfafetoproteína, que não tem a capacidade de se ligar aos fármacos. Isso resulta em uma maior proporção de fármaco livre e, consequentemente, maior disponibilidade dele, o que pode causar aumento da ação farmacológica ou até mesmo um efeito tóxico. Em contrapartida, nos indivíduos idosos há redução do clearance, do volume total de água e da massa muscular e aumento dos depósitos de gordura corporal. Esses fatores, em conjunto, podem acarretar aumento do volume de distribuição de fármacos lipossolúveis e diminuição desse parâmetro farmacocinético nos fármacos hidrossolúveis. Na gravidez, ocorre aumento do volume plasmático da gestante e também alteração na concentração plasmática das proteínas, o que pode levar a alterações nas proporções das ligações dos fármacos a essas proteínas e, consequentemente, mudanças nos parâmetros farmacocinéticos. 1.3.1 Cinética de distribuição dos fármacos À medida que os fármacos vão sendo absorvidos,sua concentração plasmática aumenta, até atingir um pico (concentração plasmática máxima). Em seguida, o fármaco presente no compartimento intravascular distribui-se rapidamente para outros compartimentos do corpo, o que faz com que a concentração plasmática do fármaco caia gradativamente. Mesmo quando se atinge o equilíbrio dessas concentrações plasmáticas do fármaco no compartimento vascular e nos locais de distribuição, a sua concentração plasmática continua declinando, devido à biostransformação e à eliminação do fármaco livre no plasma. À medida que este vai sendo excretado, suas moléculas presentes nos diferentes tecidos vão sendo gradativamente difundidas novamente para o sangue, até a total excreção. Por esse motivo, quando existe um reservatório para o fármaco, sua excreção tende a ser lenta. 37 FARMACOLOGIA O declínio da concentração plasmática de um fármaco pode ser estudado com o uso de um modelo de quatro compartimentos, constituídos pelo sangue, tecidos altamente vascularizados, tecido muscular e tecido adiposo. Imagine um medicamento administrado por bolus intravenoso: a concentração plasmática máxima do fármaco (pico de concentração) é alcançada logo após a administração e corresponde à dose administrada. Em seguida, a concentração do fármaco aumenta em primeiro lugar no compartimento que engloba os tecidos altamente vascularizados, visto que o elevado fluxo sanguíneo recebido favorece cineticamente a entrada do fármaco nessas regiões. No entanto, geralmente o tecido muscular e o tecido adiposo exibem maior capacidade de captar o fármaco do que o compartimento altamente vascularizado. O tecido adiposo, em particular, devido à grande quantidade de lipídeos no interior de suas células, é frequentemente aquele que apresenta maior potencial de captar um fármaco lipossolúvel. Ele irá se difundir lentamente desse tecido, devido à baixa vascularização deste: por conta dos diferentes graus de vascularização, em geral os fármacos tendem a sair mais rapidamente do compartimento altamente vascularizado, seguidos do tecido muscular e, por fim, do tecido adiposo. O padrão de distribuição do fármaco também depende do estado geral do paciente. Por exemplo, a massa muscular tende a diminuir com a idade, o que diminui a contribuição da captação muscular nesse parâmetro. Observa-se o efeito oposto em um atleta, que apresenta maior massa muscular. Como terceiro exemplo, podemos esperar que um indivíduo obeso tenha maior capacidade de captação de um fármaco no tecido adiposo. 1.3.2 Interações medicamentosas que alteram a distribuição dos fármacos Quando dois fármacos, A e B, competem pela ligação a uma mesma proteína plasmática, sua distribuição é afetada de maneira dependente da afinidade do fármaco por essa proteína. Suponha que o fármaco A apresente alta afinidade de ligação a uma proteína plasmática e o fármaco B baixa afinidade. O fármaco A, que apresenta maior afinidade pela proteína, permanece ligado a ela por mais tempo e, como consequência, sua liberação para o plasma ocorre de maneira mais lenta e gradual. Assim, podemos dizer que o tempo de meia-vida plasmática do fármaco A aumenta na presença do fármaco B. Observação Tempo de meia-vida plasmática é o tempo necessário, a partir do momento da aplicação, para que a concentração plasmática do fármaco caia pela metade. Por outro lado, o fármaco B, que apresenta menor afinidade pela proteína plasmática, tende a permanecer livre no plasma, o que, em um primeiro momento, resulta em uma maior quantidade de fármaco distribuído aos diferentes órgãos e tecidos. Isso pode resultar em aumento das respostas terapêuticas induzidas pelo fármaco B – afinal, a maioria das respostas farmacológicas é dose-dependente –, mas também no aparecimento de efeitos tóxicos, geralmente observados frente a concentrações mais elevadas. Em paralelo, o fármaco B é eliminado mais rapidamente do organismo: a concentração de 38 Unidade I fármaco B livre no fígado e em outros órgãos metabolizadores também aumenta, o que leva a uma maior taxa de biotransformação e excreção. O resultado final é diminuição do tempo de meia-vida plasmática do fármaco B na presença do fármaco A. Um exemplo desse tipo de interação é a associação da varfarina, um anticoagulante, com o pentobarbital, um sedativo hipnótico. O pentobarbital se liga com maior afinidade à albumina e, como consequência, a concentração plasmática da varfarina livre aumenta. Essa condição resulta, em um primeiro momento, numa maior probabilidade de se desenvolver hemorragias (pois o efeito terapêutico da varfarina sobre a coagulação é exacerbado), mas também na diminuição do tempo de meia-vida plasmática desse anticoagulante (pois existe uma maior proporção de fármaco livre no plasma disponível para ser biotransformado e excretado). Há muitos exemplos em que fármacos, além de competirem com outras substâncias pela ligação às proteínas plasmáticas, também reduzem a excreção do fármaco deslocado, o que aumenta a chance de desenvolvimento de efeitos tóxicos. Os salicilatos, por exemplo, deslocam o metotrexato de sua ligação com a albumina e reduzem a sua secreção para o interior do néfron. Diversos antiarrítmicos (quinidina, verapamil e amiodarona, por exemplo) deslocam a digoxina, usada no tratamento da insuficiência cardíaca, do seu sítio de ligação no tecido, enquanto reduzem, ao mesmo tempo, a sua eliminação renal. Como consequência, aumenta a chance de desenvolvimento de efeitos tóxicos relacionados ao aumento das concentrações plasmáticas de digoxina (alterações cardiovasculares, como arritmias e contraturas, aumento do tônus parassimpático, confusão mental, convulsões etc.). 1.4 Biotransformação Tracy (2011) afirma que a biotransformação consiste na alteração, mediada por enzimas, da estrutura química do fármaco, visando sua eliminação do organismo. As reações de biotransformação consistem na adição de moléculas conjugadas que aumentam a hidrossolubilidade do fármaco, favorecendo sua eliminação. Diversos órgãos têm a capacidade de biotransformar diferentes substâncias, incluindo os fármacos. Os rins, o trato gastrointestinal, os pulmões, a pele e outros tecidos expressam uma série de enzimas capazes de alterar a estrutura química de uma variedade de fármacos. No entanto, o fígado é o órgão que contém a maior diversidade e quantidade de enzimas e, portanto, é o principal órgão envolvido na biotransformação dos fármacos. Na biotransformação hepática, os fármacos que são suficientemente lipossolúveis adentram os hepatócitos e, além disso, alguns fármacos hidrossolúveis são transportados para o citoplasma dessas células por intermédio de proteínas transportadoras localizadas na membrana plasmática. Uma vez no interior dos hepatócitos, as moléculas do fármaco ligam-se às enzimas de maneira específica, obedecendo o modelo chave-fechadura. A enzima atua como um catalisador, ou seja, diminui a energia de ativação necessária para que seja realizada determinada alteração na molécula do seu substrato (que, neste caso, é o fármaco). Como resultado, é gerado um metabólito, que é o produto da biotransformação do fármaco. Na maioria das vezes, o metabólito não apresenta atividade farmacológica e é excretado mais rapidamente. 39 FARMACOLOGIA Alguns fármacos só apresentam atividade farmacológica depois de biotransformados, são os denominados pró-fármacos, por serem administrados na forma inativa, e apresentarem atividade farmacológica somente após a passagem pelo órgão que o metaboliza. Alguns exemplos são a glutamildopamina, a levodopa, a codeína etc. Essa estratégia pode ser utilizada para facilitar a biodisponibilidade oral, diminuir a toxicidade gastrointestinal e/ou prolongar a meia-vida plasmática do fármaco. Observação Pró-fármaco é um medicamento cujas ações só são observadas após sua biotransformação. O fármaco, portanto, é ingerido na forma inativa e convertido na forma ativa após a biotransformação. Nos medicamentos administradospor via oral, é necessário considerar que todo fármaco absorvido pela mucosa do trato gastrointestinal (com exceção da mucosa oral e dos 2/3 distais da mucosa retal) é obrigatoriamente conduzido para o fígado através da veia porta, antes de ser distribuído para a circulação sistêmica. Uma vez que a maioria dos fármacos é biotransformada nos hepatócitos, esse metabolismo de primeira passagem pelo fígado resulta em diminuição da biodisponibilidade do fármaco. Lembrete Biodisponibilidade é a fração do fármaco inalterado que atinge a circulação sistêmica. As reações de biotransformação são classificadas em reações de fase I e de fase II. As reações de fase I promovem alterações químicas que tornam a molécula do fármaco mais reativa (oxidação, redução e hidrólise), enquanto as reações de fase II promovem a adição de um conjugado à molécula do fármaco, o que aumenta sua hidrossolubilidade. 1.4.1 Reações de fase I O fígado possui uma série de enzimas que catalisam a oxidação, a redução ou a hidrólise de uma série de substâncias químicas. Essas reações tornam a molécula mais instável e, portanto, mais propensa a participar de outras reações químicas. Nesse contexto, podemos dizer que o maior objetivo das reações de fase I é preparar as moléculas do substrato para as reações químicas da fase II, durante as quais ocorrem alterações estruturais mais significativas. O principal sistema enzimático que participa das reações de fase I é o sistema microssomal do citocromo P450 (CYP450), e a reação oxidativa mais comum envolve a adição de um grupo hidroxila ao fármaco. As reações catalisadas incluem N- e O-dealquilação, hidroxilação do anel aromático e da cadeia lateral, formação de sulfóxido, N-oxidação, N-hidroxilação, desaminação das aminas primárias e secundárias e substituição de um átomo de enxofre por um de oxigênio. 40 Unidade I Até o momento, foram identificados 57 genes que codificam enzimas do CYP450. Essas enzimas são organizadas em 18 famílias diferentes, de acordo com suas características funcionais, e estão envolvidas na biotransformação de substâncias exógenas, incluindo fármacos e toxinas, e também na síntese de muitos substratos importantes para o funcionamento do organismo, como os hormônios esteroidais (cortisol, estrógeno, testosterona etc.), os ácidos graxos e os esteróis (como o colesterol e os ácidos biliares). Embora algumas enzimas se liguem especificamente a um único ou a poucos substratos (como a aromatase, que se liga especificamente aos andrógenos, para convertê-los em estrógenos), outros apresentam uma ampla gama de funções, como resultado da ligação a diversos substratos diferentes. Isso garante que uma ampla gama de moléculas seja biotransformada por esse sistema enzimático. A enzimas do citocromo P450 são classificadas de acordo com a organização de seus genes. Elas recebem um número, de acordo com a família à qual pertencem (por exemplo, CYP1, CYP2), e uma letra, que indica a subfamília (por exemplo, CYP1A, CYP2D). Em seguida dessa última letra, é adicionado mais um número, que indica a isoforma (por exemplo, CYP1A1, CYP2D6). Seis enzimas do CYP450 estão envolvidas no metabolismo de 90% dos fármacos. Essas enzimas são a CYP1A2, a CYP2C9, a CYP2C19, a CYP3A5, a CYP2D6 e a CYP3A4. As duas últimas são as mais importantes (veja a figura a seguir). CYP3A4/5 36% CYP2D6 19% CYP2C8/9 16% CYP1A2 11% CYP2C19 8% CYP2E1 4% CYP2A6 3% CYP2B6 3% Figura 8 – Contribuição relativa das principais isoformas do CYP450 na biotransformação dos fármacos Fonte: Clark et al. (2013, p. 15). As enzimas do CYP450 estão ligadas à membrana das células e contêm pigmento heme. Nos seres humanos, essas enzimas são encontradas principalmente no retículo endoplasmático e nas mitocôndrias das células hepáticas. No entanto, elas também são encontradas em muitas outras células do corpo. 41 FARMACOLOGIA Existe uma grande variabilidade interindividual na sequência genética das enzimas do CYP450, o que influencia bastante a taxa de decomposição dos fármacos em cada indivíduo. Um exemplo é a atividade diminuída da N-acetiltransferase, que ocorre principalmente na população negra e acarreta aumento da meia-vida plasmática de uma série de fármacos. O estudo das variações genéticas, denominadas polimorfismos, dos genes que codificam proteínas envolvidas na resposta aos fármacos é realizado pela farmacogenética e pela farmacogenômica. O sequenciamento dos genes que codificam as enzimas do CYP450 permite avaliar se o indivíduo se comportará como um metabolizador lento, intermediário ou rápido de determinado grupo de fármacos. Isso ocorre porque vários dos polimorfismos podem resultar em enzimas que apresentam atividade maior ou menor do que o normal. Assim, conhecer de antemão como se comporta a enzima que será responsável pela biotransformação do fármaco que você está tomando permite que a dose do medicamento seja ajustada, levando-se em conta a velocidade com que suas enzimas trabalham. Saiba mais O site da universidade portuguesa do Algarve tem um banco de dados com diversas dissertações e teses sobre aspectos da farmacogenômica. Acesse e se atualize: Disponível em: https://sapientia.ualg.pt/. Acesso em: 7 jun. 2021. Além da variabilidade genética, outros fatores podem influenciar a função das enzimas do CYP450. O suco de toranja (grapefruit) contém uma molécula chamada flavanol, que apresenta efeitos inibitórios sobre vários representantes do CYP450, o que resulta no retardo da biotransformação de uma série de fármacos e aumenta a chance de ocorrerem efeitos adversos e intoxicação. Outros alimentos ativam as enzimas do CYP450. Os grelhados a carvão e os vegetais crus (por exemplo, brócolis, couve-flor, rúcula, nabo e agrião) são dois exemplos. O fumo ativa o CYP1A2, o que leva ao aumento da biotransformação hepática e à diminuição dos níveis plasmáticos de uma série de fármacos. É por isso que o fumo diminui a eficácia de alguns analgésicos (como o propoxifeno) e de alguns fármacos utilizados para asma (como a teofilina). O etanol é outro agente responsável por induzir uma série de reações enzimáticas. Observação Você já ouviu dizer que o álcool “corta” o efeito de uma série de medicamentos? Isso ocorre porque essa substância atua como um indutor enzimático. 42 Unidade I A biotransformação de medicamentos catalisados por isoenzimas do sistema microssomal hepático (CYP) pode estar aumentada (por exemplo, CYP3A4, CYP2D6, CYP2C9) ou diminuída (por exemplo, CYP1A2, CYP2C19) durante a gestação. Portanto, pode ser necessário ajustar a dose dos fármacos administrados durante esse período. 1.4.2 Reações de fase II Os metabólitos de fase I, de modo geral, são mais hidrossolúveis do que seus fármacos de origem, porém essa maior hidrossolubilidade, na maioria das vezes, não é suficiente para assegurar sua eliminação renal. Por esse motivo, esses metabólitos sofrem reações enzimáticas adicionais de fase II que, em geral, inativam os fármacos quando estes ainda apresentam atividade farmacológica e adicionam conjugados altamente hidrossolúveis, que são facilmente excretados na urina ou na bile. As reações de fase II também são conhecidas como reações de conjugação. Elas envolvem o acoplamento de um grupamento químico ao substrato (que é o metabólito formado nas reações de fase I). Os principais grupamentos adicionados são o glicuronato (reações de glicuronidação), os radicais sulfatos (reações de sulfatação), os acetatos (acetilação), os radicais metil (metilação), a glutationa (conjugação com a glutationa) etc. As reações de metilação e acetilação, ao contrário das demais, não aumentam a polaridade do metabólito, apenas contribuem para sua inativação. 1.4.3 Interações medicamentosas que alteram a biotransformação dos fármacos Uma série de fármacos atuam inibindo ou induzindo a atividade de enzimas relacionadas com as reações de fase I e fase II. Se o indivíduo estiver tomando dois fármacos, A e B, e o primeiro induzira enzima que biotransforma o fármaco B, o resultado será a diminuição da ação e da meia-vida plasmática do fármaco B. Se, ao contrário, o fármaco A for um inibidor da enzima que biotransforma o fármaco B, será observado aumento da meia-vida plasmática deste, com consequente aumento do seu tempo de ação. A rifampicina e o fenobarbital, por exemplo, são indutores das enzimas CYP2C9 e CYP2C10, o que resulta no aumento da velocidade de biotransformação da varfarina, da fenitoína, do ibuprofeno e da tolbutamida. Pelo fato de os barbitúricos, como o fenobarbital, aumentarem a atividade enzimática no fígado, fármacos como a varfarina tornam-se menos eficazes quando administrados concomitantemente. Por isso, às vezes é necessário aumentar a dose de certos fármacos para compensar esse tipo de efeito. Mas se a administração do fenobarbital for interrompida mais tarde, o nível de outros fármacos poderá aumentar de forma drástica, levando a efeitos colaterais potencialmente graves. A cimetidina, um fármaco utilizado no tratamento de úlceras, e os antibióticos ciprofloxacina e eritromicina são exemplos de drogas que inibem (retardam) a atividade das enzimas hepáticas, prolongando a ação da teofilina. A eritromicina afeta o metabolismo da terfenadina e do astemizol (antialérgicos), levando a um acúmulo potencialmente importante desses fármacos. 43 FARMACOLOGIA Após administração do fármaco por tempo prolongado, pode ocorrer aumento da atividade do sistema microssomal hepático induzida por ele. Esse fenômeno é definido como indução enzimática microssomal e leva ao aparecimento de tolerância; o exemplo mais conhecido desse fenômeno é a indução enzimática causada pelo uso contínuo do fenobarbital sódico (Gardenal®). 1.5 Excreção Conforme Tracy (2011), as principais vias de excreção são a renal, a biliar, a pulmonar e a fecal. Outras vias apresentam importância secundária, como a salivar, a mamária, a sudorípara e a lacrimal. A excreção está intimamente ligada à biotransformação, já que uma das funções da biotransformação é gerar compostos mais hidrossolúveis, que possam ser eliminados do organismo com mais facilidade. Os fármacos e seus metabólitos são, na maioria das vezes, eliminados do organismo com a urina e/ou com a bile. A excreção renal é a principal via, uma vez que a urina é o líquido de base aquosa que tem como principal função a eliminação de produtos do metabolismo. Por outro lado, apenas um pequeno número de fármacos é excretado juntamente à bile, sendo eliminado nas fezes. Deve-se salientar que os mesmos fatores que afetam a absorção e a distribuição também poderão afetar o processo de excreção, mas de modo inverso, ou seja, a excreção é mais facilitada caso o fármaco possua elevada massa molecular, seja polar e esteja em sua forma ionizada. A velocidade de excreção renal também sofre influência do pH da urina e do pKa ou pKb do fármaco, de maneira semelhante ao observado na absorção. Observação De maneira geral, fármacos de caráter ácido são bem absorvidos em pH ácido e bem excretados em urina básica. Por outro lado, fármacos de caráter básico são bem absorvidos em pH básico e bem excretados em urina ácida. 1.5.1 Excreção renal O rim tem papel fundamental na homeostase do nosso corpo, pois é o responsável por filtrar os líquidos corporais e eliminar substâncias tóxicas do organismo, além de participar da regulação do equilíbrio ácido-base. Os três mecanismos envolvidos na excreção renal são: a filtração glomerular, a secreção e a reabsorção tubular renal. A filtração glomerular renal é a primeira etapa, que ocorre quando o sangue passa pelo rim, mais especificamente pelo glomérulo. A parede do capilar glomerular é formada por células endoteliais fenestradas, que funcionam como uma barreira filtrante. A diferença de pressão faz com que as substâncias saiam dos vasos do glomérulo e passem para a cápsula de Bowman, formando o filtrado 44 Unidade I glomerular. Esse processo não é seletivo, e todas as moléculas e substâncias pequenas saem em direção à cápsula de Bowman, enquanto as macromoléculas ficam retidas no sangue. Assim, fármacos de baixa massa molecular que não estejam ligados a proteínas plasmáticas, assim como seus metabólitos, são filtrados do sangue. O estado de ionização do fármaco também afeta a velocidade de filtração, de forma que substâncias com carga elétrica negativa têm mais dificuldades em serem filtrados do que aquelas em sua forma molecular, pois ocorre uma interação eletrostática entre o ânion e as cargas negativas do poro capilar. O filtrado glomerular segue por uma série de alças e ductos até atingir o ducto coletor. Durante esse percurso, algumas substâncias podem ser secretadas diretamente nos túbulos renais e outras são reabsorvidas e voltam para a circulação sistêmica. Muitas substâncias de caráter ácido são transportadas para o filtrado glomerular por um sistema que é destinado à secreção de substâncias de ocorrência natural, como o ácido úrico. O ácido acetilsalicílico, por exemplo, pode competir com o ácido úrico pelo mesmo transportador, e com isso pode ocorrer o surgimento da gota, devido ao acúmulo desse excreta nitrogenado no sangue. A reabsorção tubular renal de ácidos e bases fracas em suas formas não ionizadas (lipossolúveis) se processa por difusão passiva no nível dos túbulos proximal e distal. A relação entre a concentração da forma ionizada e a da forma molecular depende do pH da urina e do pKa do fármaco (veja a figura a seguir) e pode ser estimada pela equação de Henderson-Hasselbach, de maneira similar à observada durante o processo de absorção (conforme vimos no tópico Influência do pH na absorção dos fármacos). Sangue pH 7,4 Sangue pH 7,4 Membrana do néfron Membrana do néfron Fármaco de caráter básico Fármaco de caráter ácido Urina pH 6,0 Urina pH 6,0 Figura 9 – Ionização de fármacos de caráter ácido e básico e partição na urina e no sangue em função do pH urinário Adaptada de: Katzung (2004, p. 13). 45 FARMACOLOGIA Fatores fisiológicos ou patológicos que alteram a função renal influenciam a excreção renal de fármacos. Na insuficiência renal, fármacos e metabólitos ativos excretados fundamentalmente pelo rim podem se acumular, ocasionando efeitos tóxicos. Para evitar tal ocorrência, são necessários ajustes nos esquemas terapêuticos. O fator idade figura como um dos principais interferentes na excreção renal de fármacos, pois, com a idade, a velocidade de excreção renal tende a diminuir. Em recém-nascidos e prematuros, a filtração glomerular e o fluxo plasmático renal são, aproximadamente, 30% a 40% inferiores aos dos adultos, somente aproximando-se destes aos três meses de idade. Logo, os parâmetros farmacocinéticos nos recém-nascidos são totalmente diferentes dos observados em adultos, o que deve ser levado em consideração na escolha dos regimes terapêuticos. 1.5.2 Excreção biliar Alguns fármacos e seus metabólitos são excretados com a bile, contra um gradiente de concentração. Transportadores semelhantes aos que existem nos rins também estão presentes nos hepatócitos e secretam ativamente fármacos para a bile. Os fármacos com massa molecular elevada e de natureza anfipática têm maior probabilidade de serem excretados também na bile. Moléculas menores são, em geral, excretadas apenas em quantidades mínimas. A conjugação, especialmente com ácido glicurônico, facilita a excreção biliar. Os fármacos excretados pela bile caem no intestino e podem ser reabsorvidos ativamente pela mucosa intestinal. Esse fenômeno é denominado circulação êntero-hepática, na qual o metabólito de uma substância é excretado por via biliar e, ao chegar no intestino, é reabsorvido pela mucosa intestinal, em um processo que envolve a retirada prévia do conjugado (que, na maioria das vezes, é o glicuronato) pelas enzimas das bactérias que compõem a microbiota intestinal. Ao atravessar a mucosa intestinal, essas substâncias são direcionadas ao fígado, via sistema porta-hepático,onde voltam a ser biotransformadas e excretadas na bile (veja a figura a seguir). 46 Unidade I HepatócitoHepatócito SinusoideSinusoide Vias biliaresVias biliares Veia portaVeia porta Absorção Absorção pela mucosa pela mucosa intestinalintestinal Desconjugação Desconjugação por enzimas por enzimas bacterianasbacterianas Conjugação com Conjugação com glicuronatoglicuronato Excreção biliarExcreção biliar Fármaco Fármaco lipossolúvellipossolúvel Metabólito Metabólito hidrossolúvelhidrossolúvel Excreção reanalExcreção reanal Circulação Circulação entero-hepáticaentero-hepática Figura 10 – Circulação êntero-hepática Fonte: Lüllmann e Jürgen (2000, p. 18). As disfunções hepáticas podem afetar de forma marcante a excreção biliar, não somente por reduzirem a produção de bile, mas também por reduzirem a atividade metabólica. Essas ocorrências podem levar ao acúmulo do fármaco no organismo. 1.5.3 Outras vias de excreção A excreção pulmonar envolve dois aspectos de interesse farmacológico: a excreção pelas glândulas de secreção bronquiolar e a excreção através dos alvéolos. Através dos alvéolos são excretados principalmente gases e substâncias voláteis por difusão simples, não existindo sistemas de transporte especializados. O grau de solubilidade de gás na corrente sanguínea é o fator determinante da excreção pelas vias aéreas, de forma que gases pouco solúveis são mais rapidamente excretados. Outras vias de excreção são de menor importância. A excreção de fármacos no suor, na saliva, no leite e na lágrima depende basicamente de difusão de forma lipossolúvel não ionizada através das células epiteliais das glândulas. Assim, o pKa e o pH são fatores determinantes na quantidade total de fármaco a ser secretado. As substâncias secretadas pela saliva costumam ser deglutidas; logo, seu destino será o mesmo dos fármacos administrados por via oral. 47 FARMACOLOGIA 1.5.4 Interações medicamentosas que alteram a excreção dos fármacos Dois fármacos que competem pela mesma proteína transportadora podem alterar o padrão de excreção de um dos fármacos. Por exemplo, a probenicida e a benzilpenicilina competem pelo transporte para a cápsula de Bowman. A probenecida é preferencialmente transportada, o que retarda a excreção urinária da benzilpenicilina e aumenta sua meia-vida plasmática e a duração da ação farmacológica. Alguns fármacos atuam inibindo a circulação êntero-hepática dos fármacos. O carvão ativado e as resinas de troca iônica podem ser utilizados para esse fim, uma vez que essas substâncias se ligam fortemente à molécula do fármaco, impedindo que ele seja novamente biotransformado e absorvido. 1.6 Parâmetros farmacocinéticos de importância na prática clínica Conforme já mencionado, a farmacocinética é o estudo quantitativo do desenvolvimento temporal dos processos de absorção, distribuição, biotransformação e excreção dos fármacos, que acontecem em sequência e simultaneamente e que determinam uma curva concentração plasmática versus tempo (veja a figura a seguir). Duração da ação TempoPeríodo de latência AUC Início do efeito Faixa terapêutica Pico de concentração plasmática Co nc en tr aç ão p la sm át ic a Figura 11 – Curva de concentração plasmática versus tempo de um fármaco, após administração única, indicando os principais parâmetros farmacocinéticos Adaptada de: https://bit.ly/34YXjGN. Acesso em: 7 jun. 2021. O conhecimento dos parâmetros farmacocinéticos e de como eles são regulados por vários fatores é importante para que a posologia do medicamento seja ajustada com mais precisão e rapidez. A aplicação dos princípios farmacocinéticos para individualizar a farmacoterapia é denominada monitoramento farmacológico terapêutico. Os parâmetros farmacocinéticos de maior relevância são: • o pico de concentração plasmática, que representa a concentração máxima (Cmax) no compartimento vascular; 48 Unidade I • a área sob curva (AUC, do inglês area under the curve), que representa a medida fiel da quantidade de fármaco que é absorvido; • o tempo de meia-vida plasmática (t1/2), que é o tempo que um fármaco leva para reduzir sua concentração plasmática à metade e independe da dose administrada; • o volume de distribuição (Vd), que se refere ao volume total do líquido corporal no qual o fármaco está distribuído; • o clearance, ou depuração do fármaco, que é uma medida da excreção deste. Para a maioria dos fármacos, existe uma relação entre os efeitos farmacológicos e a concentração do fármaco disponível no sangue. As condições fisiopatológicas dos pacientes podem alterar esses parâmetros farmacocinéticos e comprometer o desfecho clínico. 1.6.1 Concentração máxima (Cmax) ou pico de concentração plasmática Após a administração de uma dose padronizada de um fármaco, sua concentração plasmática aumenta, até atingir a concentração sérica máxima. Isso ocorre porque, num primeiro momento, a velocidade de absorção é maior do que a velocidade de distribuição, biotransformação e excreção. O pico de concentração plasmática depende da forma farmacêutica e da via de administração. Na medida em que o fármaco é distribuído, biotransformado e excretado, a concentração no sangue vai diminuindo progressivamente até tornar-se nula. Na administração de doses múltiplas, a concentração do fármaco detectada no sangue antes da administração da dose seguinte (respeitando o intervalo padronizado) corresponde à concentração sérica mínima. 1.6.2 Área sob a curva (AUC) No gráfico da concentração plasmática do fármaco em função do tempo, a área sob a curva é considerada representativa da quantidade total de fármaco absorvido. A biodisponibilidade de um fármaco pode ser determinada pela razão entre a AUC para uma forma de dosagem particular e a AUC para a forma intravenosa, uma vez que, por definição, a concentração do fármaco que atingiu a circulação sistêmica após administração intravenosa corresponde ao total da dose, ou seja, todo o fármaco administrado entra em circulação. Assim, se a AUC do fármaco administrado por via intravenosa é igual a 1 e a AUC após a administração da mesma dose do fármaco por via oral é igual a 0,6, temos que a biodisponibilidade do fármaco é de 60%. 1.6.3 Tempo de meia-vida plasmática (t1/2) A meia-vida é um parâmetro que indica o tempo necessário para que uma grandeza tenha seu valor reduzido para 50% do total. Por exemplo, a meia-vida de um isótopo radioativo é o tempo que demora 49 FARMACOLOGIA para que a radiação emitida pelo isótopo caia pela metade. No contexto da farmacocinética, o tempo de meia-vida plasmática representa o tempo gasto para que a concentração plasmática ou a quantidade original de um fármaco no organismo se reduza à metade. É importante não confundir esse termo com o termo vida média, que indica o total do tempo necessário para que haja total depuração do fármaco do organismo. O tempo de meia-vida é um importante parâmetro farmacocinético. A partir dele, pode-se estimar a rapidez com que ocorre a biotransformação e a excreção, o que permite estimar a duração do efeito farmacológico e o regime posológico adequado. Geralmente, a segunda dose do medicamento é administrada no tempo de meia-vida plasmática. Após a administração de doses repetidas em intervalos que representam a meia-vida plasmática, estabelece-se um equilíbrio, no qual o platô de concentração se mantém constante. Diz-se que a concentração do estado de equilíbrio (Css) é alcançada após 4-6 intervalos de meia-vida: o paciente alcançará 50% de equilíbrio dinâmico após uma meia-vida do fármaco, 75% de equilíbrio dinâmico após duas meias-vidas, 87,5% após três meias vidas e 94% após quatro meias-vidas (veja a figura a seguir). Aumento da concentração plasmática do fármaco após sucessivas doses Doses Meia-vida Tempo Co nc en tr aç ão p la sm át ic a Estabelecimento do equilíbrio (velocidade e extensão de eliminação é igual à de absorção) Figura 12 – Gráfico concentração plasmáticaversus tempo após administração de doses múltiplas Fonte: Lüllmann e Jürgen (2000, p. 49). O tempo de meia-vida plasmática dos fármacos varia de pessoa para pessoa e pode ser influenciado por muitos fatores, como o sexo, a idade, a presença de patologias, a interação com outros fármacos etc. 1.6.4 Volume de distribuição O volume de distribuição (Vd) representa o volume total de líquido necessário para conter todo o fármaco absorvido, de maneira que a concentração dele seja igual à concentração plasmática no estado de equilíbrio dinâmico. 50 Unidade I O Vd é baixo para os fármacos que ficam retidos no compartimento vascular (o fármaco distribui-se preferencialmente no volume sanguíneo) e alto para aqueles que sofrem amplas distribuição pelos tecidos do organismo (o fármaco encontra-se distribuído em diferentes compartimentos do corpo, além do sangue). Por esse motivo, fármacos que são amplamente distribuídos muitas vezes apresentam Vd maior do que o volume de líquido corporal total. Um exemplo é o antiarrítmico amiodarona: seu Vd é de 4.620 L, ou seja, seriam necessários 4.620 L de água para que a amiodarona absorvida atingisse a mesma concentração observada no plasma. Na prática, isso significa que esse fármaco se encontra muito diluído no sangue, pois foi preferencialmente distribuído para outros tecidos. Esse parâmetro, embora não represente de maneira literal o que acontece no corpo, nos fornece uma ideia da dose necessária para se obter efeito terapêutico: para dois fármacos de potência igual, aquele que apresentar maior Vd geralmente necessitará de dose inicial maior para estabelecer uma concentração plasmática terapêutica, pois ele tende a ficar retido em reservatórios. Lembrete Reservatórios são tecidos nos quais os fármacos tendem a permanecer mais concentrados do que no plasma. 1.6.5 Clearance O clearance, ou depuração plasmática, é um parâmetro que permite quantificar o fármaco eliminado na urina, em relação à quantidade presente na circulação sistêmica. É definido como o volume de plasma do qual o fármaco é completamente removido por unidade de tempo e, assim, é expresso em volume por unidade de tempo (mL/min ou L/h). A excreção de um fármaco pode ocorrer por diferentes vias. Somando-se as depurações individuais, obtém-se a depuração sistêmica total. Quando o fármaco é totalmente excretado pelos rins sem sofrer alterações, o clearance renal é calculado dividindo-se a velocidade de excreção urinária (mg/min) pela sua concentração sanguínea (mg/mL). Saiba mais Um exemplo da aplicação dos parâmetros farmacocinéticos pode ser visto em: SOUZA, F. C. et al. Variações interindividuais na farmacocinética clínica de cardiotônicos. Revista Brasileira de Cardiologia, v. 26, n. 3, p. 213 -220, 2013. 51 FARMACOLOGIA 2 FARMACODINÂMICA Antes de iniciar mais uma etapa de nosso aprendizado, vamos relembrar a definição de fármaco: é a molécula que, ao interagir com alvos moleculares específicos presentes nas células e/ou tecidos de um organismo, é capaz de alterar sua fisiologia – na maioria das vezes, no sentido da homeostase. Conhecer de que maneira os fármacos interagem com esses substratos biológicos, e as consequências de tal interação, é de essencial importância na farmacologia e constitui o estudo da farmacodinâmica. Observação A farmacodinâmica é o estudo da interação dos fármacos com alvos moleculares específicos, a partir da qual gera-se uma resposta celular e/ ou tecidual. De maneira simplificada, podemos dizer que, enquanto a farmacocinética avalia “o que o corpo faz com o fármaco”, desde a administração até sua eliminação, a farmacodinâmica estuda “o que o fármaco faz com o corpo”, ou seja, de que maneira determinadas substâncias são capazes de modular mecanismos fisiológicos e, assim, alterar o funcionamento do organismo. Observação Você já se perguntou como, ao tomar um medicamento, o fármaco “sabe” onde tem que atuar? Na verdade, a sua ação é garantida pela combinação de seus parâmetros farmacocinéticos e farmacodinâmicos: o fármaco atinge o local afetado durante a etapa farmacocinética da distribuição e, uma vez nesse local, interage com moléculas-alvo específicas, a fim de alterar o funcionamento das células presentes no local afetado. O estudo da farmacologia remonta do início do século XX. Nessa época, a natureza dos substratos biológicos da ação dos fármacos não era conhecida. Em outras palavras, os pesquisadores da época ainda não conheciam os componentes celulares capazes de interagir com os fármacos, nem como essa interação acontecia. Em 1905, surge o conceito de “substância receptora”, introduzido pelo cientista inglês John Newport Langley, que resume o conhecimento da época: as “drogas” exercem sua ação a partir da combinação química com substâncias receptoras, o que resulta na modulação da fisiologia das células. Lembrete Em farmacologia, “droga”, do inglês drug, é sinônimo de “fármaco”. O uso do termo “droga” não é mais recomendado pela Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental (SBFTe). 52 Unidade I No decorrer do século XX, com o advento de técnicas experimentais que permitiram o estudo mais aprofundado da bioquímica e da biologia molecular, foi possível entender exatamente no que consistem as substâncias receptoras: são macromoléculas, de natureza proteica. Elas são responsáveis, por exemplo: • pela manutenção da estrutura da célula (proteínas estruturais); • pelo transporte de íons e de outras substâncias para fora ou para dentro da célula (proteínas transportadoras); • pela catálise das reações bioquímicas (enzimas); • pela passagem de íons através da membrana plasmática (canais iônicos); • pela ativação de mecanismos intracelulares que resultam na modulação da fisiologia celular (receptores farmacológicos). O quadro a seguir exemplifica cada uma das interações fármaco-receptor descritas anteriormente. Observe o uso do termo mecanismo de ação, que descreve a natureza da interação química entre fármacos e seus alvos moleculares: Quadro 2 – Exemplo de interações entre fármacos e seus alvos moleculares Alvo molecular Exemplo de fármaco Mecanismo de ação Proteínas estruturais Colchicina Se liga à tubulina e, assim, desestabiliza os fusos mitóticos Enzimas Anti-inflamatórios não esteroidais Inibem a enzima ciclo-oxigenase (COX), responsável pela produção de prostaglandinas inflamatórias Canais iônicos Anestésicos locais Bloqueiam canais de sódio nos nervos nociceptivos e, assim, impedem a condução do estímulo doloroso para o sistema nervoso central Proteínas transportadoras Glicosídeos cardíacos Inibem a ATPase de sódio/potássio no músculo cardíaco, o que aumenta a força de contração dos cardiomiócitos Receptores farmacológicos Glicocorticoides Agonista dos receptores de glicocorticoides (GR), importantes na modulação do metabolismo, da inflamação e da imunidade adaptativa A partir de agora, vamos entender melhor como os fármacos interagem com seus principais alvos: as enzimas, os canais iônicos, as proteínas transportadoras e os receptores farmacológicos. 2.1 Alvos moleculares da ação de fármacos: enzimas, canais iônicos e proteínas transportadoras 2.1.1 Enzimas Enzimas são macromoléculas proteicas responsáveis por catalisar reações químicas que, na sua ausência, normalmente não aconteceriam. As enzimas, portanto, atuam como agentes catalisadores das reações bioquímicas que ocorrem nos meios intra e extracelular. 53 FARMACOLOGIA Observação Catalisador é a substância que aumenta a velocidade de uma reação química sem ser consumido durante o processo. As enzimas diminuem a energia de ativação necessária para que uma reação química aconteça, o que resulta no aumento da velocidade da reação e possibilita a formação de produtos que participam do metabolismo das células. Nas reações enzimáticas, a(s) molécula(s) de substrato se liga(m) ao sítio catalítico da enzima, dando origem a uma ou mais moléculas de produto. Nesse processo,outras substâncias também podem se ligar ao sítio catalítico ou ainda em outros sítios (sítios alostéricos) da enzima e, assim, induzir ou inibir a atividade dela. Essas substâncias são denominadas, respectivamente, indutores e inibidores enzimáticos. Alguns fármacos são substratos de enzimas específicas e, ao serem administrados ao paciente, resultam no aumento da formação de um produto enzimático com propriedades terapêuticas. Destes, serão estudados na disciplina de farmacologia aplicada à biomedicina: • Levodopa: é convertida em dopamina pela ação da enzima dopa descarboxilase. É utilizada no tratamento da doença de Parkinson, que está relacionada à diminuição dos níveis de dopamina no sistema nervoso central. • Dopamina: substrato da enzima dopamina beta-hidroxilase, que a converte em norepinefrina. É utilizada para aumentar o tônus simpático sobre o sistema cardiovascular. • Metildopa: após duas etapas enzimáticas, resulta em metilnorepinefrina, um falso neurotransmissor que diminui o tônus do sistema nervoso simpático e, assim, diminui a pressão arterial. É utilizada no tratamento da hipertensão em gestantes. Outros fármacos atuam sobre enzimas específicas, inibindo-as. São exemplos de fármacos inibidores enzimáticos: • Anticolinesterásicos: inibem a enzima acetilcolinesterase, responsável pela hidrólise do neurotransmissor acetilcolina. Como resultado, a acetilcolina permanece por mais tempo na fenda sináptica, o que resulta em aumento do tônus parassimpático. • Carbidopa: inibe a enzima dopa-descarboxilase periférica. É administrada com a levodopa, para que sua conversão a dopamina fique restrita ao sistema nervoso central. • Inibidores da MAO: inibem a enzima monoamina oxidase (MAO), responsável pela hidrólise das monoaminas (dopamina, norepinefrina e serotonina). Assim, o tempo de ação desses neurotransmissores na fenda sináptica é aumentado, estratégia útil no tratamento da depressão. 54 Unidade I • Inibidores da ECA: inibem a enzima conversora de angiotensina II (ECA). Com a diminuição da produção de angiotensina II, potente vasoconstritor, ocorre diminuição da pressão arterial. • Anti-inflamatórios não esteroidais: são os medicamentos mais utilizados no mundo, e apresentam atividade analgésica, antitérmica e anti-inflamatória. Inibem a enzima ciclo-oxigenase (COX), cuja atividade é essencial para a formação de prostaglandinas inflamatórias. Ao inibir a produção dessas prostaglandinas, os sinais cardinais da inflamação são abolidos. • Vigabatrina: inibe a enzima GABA-transaminase, responsável pela degradação do neurotransmissor ácido gama-aminobutírico (GABA). Como consequência, ocorre aumento do tempo de ação desse neurotransmissor no sistema nervoso central, o que é útil no tratamento da epilepsia. Um esquema ilustrativo de inibição enzimática pode ser observado a seguir (veja a figura): Substrato A) Reação enzimática normal B) Inibição Substrato Ligação do substrato à enzima Ligação do inibidor à enzima Formação de produtos Inibição da formação de produtos Enzima Enzima Sítio ativo Sítio ativo Figura 13 – Representação esquemática de uma reação enzimática (A) e da inibição competitiva dela, pela ligação do inibidor ao sítio ativo da enzima (B) Adaptada de: https://bit.ly/3x3sqwT. Acesso em: 7 jun. 2021. Saiba mais Os mecanismos de ação dos inibidores enzimáticos são abordados na página 144 da obra a seguir: BROWN, T. A. Bioquímica. Rio de janeiro: Guanabara Koogan, 2018. 55 FARMACOLOGIA 2.1.2 Canais iônicos Canais iônicos são proteínas que atravessam a membrana plasmática, formando um poro aquoso que é permeável a determinados íons. Participam, assim, do equilíbrio iônico entre os meios intra e extracelular, e ajudam a estabelecer a diferença de potencial elétrico entre esses dois meios. Diversos fármacos atuam bloqueando a passagem de íons através desses canais. São classificados, portanto, como bloqueadores de canais iônicos. Os principais são: • Anestésicos locais: bloqueiam os canais de sódio presentes nos nervos nociceptivos, o que impede o influxo de sódio e, portanto, a deflagração de potenciais de ação relacionados ao estímulo doloroso. Curiosamente, esses fármacos, quando administrados por via intravenosa, apresentam propriedade antiarrítmica, pois também são capazes de bloquear os canais de sódio presentes nas células de condução do potencial de ação cardíaco. • Bloqueadores dos canais de potássio: são antiarrítmicos que bloqueiam os canais de potássio das células de condução cardíaca e, assim, impedem o efluxo de potássio relacionado à repolarização dos cardiomiócitos. • Bloqueadores dos canais de cálcio: popularmente conhecidos como “antagonistas” do cálcio, bloqueiam o seu influxo e, assim, apresentam atividade antiarrítmica e anti-hipertensiva. 2.1.3 Proteínas transportadoras Proteínas transportadoras também atravessam a membrana plasmática e são responsáveis pela transferência de íons e de outras moléculas do meio intra para o extracelular, ou vice-versa. A transferência é realizada a favor do gradiente de concentração (transporte passivo) ou contra ele (transporte ativo, dependente de ATP). Serão estudados no decorrer da disciplina: • Glicosídeos cardíacos: inibem a Na+/K+ ATPase presente nos cardiomiócitos, o que aumenta a força de contração cardíaca. • Inibidores da bomba de prótons (omeprazol e fármacos relacionados): inibem a H+/K+ ATPase nas células parietais do estômago, o que diminui a concentração de ácido clorídrico no suco gástrico. • Diuréticos de alça: inibem o cotransportador de Na+/K+/2Cl- nas células da alça de Henle do néfron, o que promove aumento pronunciado da diurese. • Diuréticos tiazídicos: inibem o cotransportador de Na+/Cl- nas células do túbulo contorcido distal do néfron, o que promove aumento discreto da diurese. • Antidepressivos tricíclicos: inibem a proteína que promove a recaptação das monoaminas da fenda sináptica para o interior do neurônio. Com isso, o tempo de ação desses neurotransmissores no sistema nervoso central aumenta. 56 Unidade I • Fluoxetina e fármacos relacionados: inibem seletivamente a proteína que promove a recaptação de serotonina. Usado no tratamento da depressão e dos transtornos da ansiedade. • Tiagabina: anticonvulsivante que inibe a proteína que promove a recaptação de GABA da fenda sináptica para o interior do neurônio. 2.2 Alvos moleculares da ação de fármacos: receptores Os receptores farmacológicos, ou simplesmente receptores, são de especial interesse no estudo da farmacologia, uma vez que constituem o alvo de grande parte dos fármacos disponíveis na atualidade. Por esse motivo, vamos estudá-los em maiores detalhes. Os receptores são macromoléculas proteicas, localizadas na membrana plasmática, no citoplasma ou no núcleo das células, que apresentam algumas particularidades em relação aos demais alvos moleculares estudados até o momento: ao serem ativados por um neurotransmissor, por um hormônio ou mesmo por um fármaco, os receptores iniciam uma cascata de eventos bioquímicos que resultam na resposta desejada. Assim, podemos dizer que os receptores intermedeiam a ação dos fármacos, mas não são suficientes para que essa ação se manifeste, pois ela depende dos mecanismos moleculares subjacentes. Os receptores são, portanto, as moléculas que medeiam as ações dos neurotransmissores, dos hormônios e de outras moléculas. Essas moléculas, produzidas pelo próprio organismo, são denominadas ligantes endógenos. Elas são capazes de ativar seus receptores e, assim, iniciar a cascata de eventos que culmina na resposta final. De maneira simplificada, podemos dizer que os fármacos atuam sobre os receptores de duas maneiras distintas: ativando-os ou impedindo sua ativação. Os primeiros são chamados de agonistas e os segundos, de antagonistas. Os ligantes endógenos, uma vez que ativam os receptores, podem ser classificados como agonistas. Em relação aos fármacos exógenos,eles podem ser agonistas ou antagonistas do receptor, de acordo com a resposta final observada. Na verdade, os conceitos de agonista e antagonista são mais complexos e serão trabalhados em maior profundidade adiante, no tópico Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco-receptor, porém as definições apresentadas até agora já permitem fazer a seguinte generalização: na maioria das vezes, utiliza-se um agonista quando se pretende aumentar/reforçar a resposta fisiológica mediada por determinado receptor; por outro lado, utiliza-se um antagonista quando se pretende que tal resposta seja diminuída/atenuada. Um exemplo é o adrenoceptor alfa-1, o receptor que responde aos estímulos do sistema nervoso simpático sobre os vasos: a resposta mediada por ele é a vasoconstrição e, portanto, em casos de hipotensão, pode-se administrar um agonista para que ocorra constrição nos vasos e a pressão seja aumentada; por outro lado, em casos de hipertensão, tal vasoconstrição é evitada pelo uso de um antagonista. 57 FARMACOLOGIA As etapas envolvidas na resposta mediada por receptores são as seguintes: • Ligação do fármaco ao receptor: assim como para os demais alvos moleculares estudados até o momento, a ligação do fármaco ao sítio de ligação do receptor obedece ao esquema de chave-fechadura, ou seja, fármaco e sítio de ligação apresentam estruturas complementares. • Ativação do receptor: é consequência da alteração conformacional do receptor promovida pela ligação do fármaco. A ativação do receptor é responsável por desencadear a ativação das vias de transdução de sinal que culminam com a alteração na fisiologia celular. • Ativação de vias de transdução de sinal: após a ativação do receptor, uma cascata de eventos é iniciada, e resultará na resposta final. Essa etapa varia significativamente quando comparamos as diferentes classes de receptores. Nos casos em que a via de transdução de sinal envolve a ativação de outras moléculas, presentes no interior da célula, elas recebem a designação “segundos mensageiros”. As etapas da ativação dos receptores farmacológicos estão resumidas na figura a seguir: Agonista Receptor Transdução de sinal Alteração conformacional (ativação) Resposta Figura 14 – Etapas envolvidas nas respostas mediadas pelos receptores farmacológicos Adaptada de: https://bit.ly/3w4hvTD. Acesso em: 7 jun. 2021. Existem quatro classes de receptores, cada uma com características particulares: (1) os acoplados ao canal iônico, ou ionotrópicos; (2) os que apresentam função enzimática; (3) os acoplados à proteína G, ou metabotrópicos; e (4) os intracelulares. 2.2.1 Receptores ionotrópicos Os receptores ionotrópicos são canais iônicos operados por ligantes e que, portanto, atravessam a membrana plasmática. Nesses receptores, a abertura do poro iônico ocorre como consequência da ligação do agonista ao sítio de ligação, localizado na porção extracelular de uma ou mais subunidades que constituem o receptor. Portanto esses receptores diferem dos canais iônicos propriamente ditos, nos quais a abertura do poro iônico depende de outros fatores relacionados ao microambiente celular (geralmente, o potencial de membrana). 58 Unidade I Uma das principais características da resposta mediada pelos receptores ionotrópicos é a velocidade com que se estabelece a resposta final, cerca de milissegundos. Isso ocorre porque, no caso desses receptores, não ocorre ativação de segundos mensageiros após a ativação do receptor: a abertura do poro iônico, com a consequente passagem dos íons por ele, já é suficiente para se alcançar a resposta final. Quando a abertura do poro iônico permite a entrada de íons positivos na célula (por exemplo, os íons sódio), o resultado é a despolarização (excitação) dela; quando ocorre a entrada de íons negativos, por outro lado, o resultado é a hiperpolarização (inibição celular). Dois exemplos dos fenômenos citados são a ativação dos receptores nicotínicos e dos receptores gabaérgicos GABAA. Os receptores nicotínicos são receptores ionotrópicos presentes na junção neuromuscular, no gânglio autonômico e no sistema nervoso central. Esses receptores são constituídos de cinco subunidades proteicas que atravessam a membrana plasmática das células. Independentemente da localização, os receptores nicotínicos são ativados pelo neurotransmissor acetilcolina (que é, portanto, o ligante endógeno). Como consequência, ocorre abertura do poro iônico, permeável a íons sódio (principalmente) e cálcio (veja a figura a seguir). Ach Extracelular Intracelular Na+ Na+ Ach Figura 15 – Representação esquemática do receptor nicotínico, exemplo de receptor ionotrópico. As subunidades do receptor estão indicadas, assim como os sítios de ligação à acetilcolina (ACh) Fonte: Katzung (2004, p. 31). Na junção neuromuscular, a consequência da ativação do receptor nicotínico é a despolarização da célula muscular esquelética e a consequente contração dela. Por outro lado, a ligação de um antagonista ao receptor, como o pancurônio, desencadeia o bloqueio neuromuscular. Os receptores GABAA também são receptores ionotrópicos, constituídos por cinco subunidades transmembranares, amplamente distribuídos nos neurônios do sistema nervoso central. O ligante endógeno desses receptores é o neurotransmissor ácido gama aminobutírico (GABA), que, ao se ligar ao receptor, promove a abertura de canais de cloreto, o que hiperpolariza o neurônio (diminui sua excitabilidade). 59 FARMACOLOGIA Os benzodiazepínicos e os barbitúricos são fármacos que potencializam a ação do GABA. Eles são usados em condições do sistema nervoso central nas quais o rebaixamento da atividade é uma estratégia terapêutica interessante, por exemplo, na ansiedade e na epilepsia. 2.2.2 Receptores enzimáticos Os receptores enzimáticos são polipeptídeos que atravessam uma vez a membrana plasmática. São constituídos de um domínio extracelular, no qual se localiza o sítio de ligação, e de um domínio intracelular com função de tirosina quinase – ou, em alguns casos, de serina quinase ou guanilil ciclase. Os receptores do fator de crescimento epidérmico (EGF, epidermal growth factor) e de insulina são exemplos de receptores com função enzimática. A sinalização mediada pelos receptores com função enzimática, em especial aqueles com função de tirosina quinase, envolve a dimerização de dois domínios receptores e a autofosforilação dos resíduos de tirosina presentes na sua porção intracelular (um domínio fosforila os resíduos de tirosina do outro, e vice-versa). A seguir, ocorre a fosforilação de uma série de outras proteínas intracelulares (segundos mensageiros), o que permite que um único receptor module uma série de processos bioquímicos diferentes, que incluem a modulação do ciclo celular e da transcrição gênica. Alguns exemplos de processos bioquímicos ativados são a via da ERK (extracelular regulated kinases), a via da PI-3 (phosphatidil inositol 3) quinase, entre outras (veja a figura a seguir). Proliferação Inibição da apoptose Angiogênese Migração, adesão e invasão Fosforilações Transcrição gênica Cilco celular EGF, TGF-alfa etc. Figura 16 – Representação esquemática do receptor de EGF (EGFR), exemplo de receptor com função enzimática. As principais vias de transdução de sinal ativadas (mTOR, STAT e ERK) estão indicadas Adaptada de: https://bit.ly/3v2ydRU. Acesso em: 7 jun. 2021. 60 Unidade I 2.2.3 Receptores acoplados à proteína G Os receptores acoplados à proteína G, ou receptores metabotrópicos, são macromoléculas proteicas que apresentam 7 domínios transmembranares, isto é, atravessam sete vezes a membrana plasmática, dando origem a três alças extracelulares e três alças intracelulares. O domínio amino-terminal encontra-se na porção extracelular e o carboxi-terminal na região intracelular (veja a figura a seguir). Extracelular GPCR Intracelular Região carboxi-terminal Região amino-terminal Figura 17 – Estrutura dos receptores acopladosà proteína G (GPCR). A região amino-terminal extracelular, os sete domínios transmembranares, as três alças extracelulares e as três alças e a região carboxi-terminal intracelular estão representadas Adaptada de: https://bit.ly/3w1MtMe. Acesso em: 7 jun. 2021. Cada uma das regiões dos receptores acoplados à proteína G apresenta uma função: o domínio amino-terminal extracelular e/ou as três alças extracelulares estão relacionadas com a ligação ao agonista, as três alças intracelulares são as regiões de ligação à proteína G e a região carboxi-terminal constitui um domínio regulatório. A proteína G é uma proteína ligadora de guanina constituída de três subunidades: alfa, beta e gama. No estado de repouso (enquanto o receptor encontra-se no estado inativo), as três subunidades permanecem unidas, e a subunidade alfa encontra-se ligada a uma molécula de GDP (guanina difosfato), de baixo valor energético. A partir do momento em que o receptor é ativado pela ligação do agonista, ocorre o desligamento da molécula de GDP da subunidade alfa, a ligação de uma molécula de GTP (guanina trifosfato), de alto teor energético a ela, e a dissociação das subunidades alfa e beta-gama. A partir desse momento, a proteína G encontra-se ativada e é capaz de ativar outras moléculas no interior da célula, iniciando cascatas de eventos bioquímicos que culminarão na resposta final (veja a figura a seguir). 61 FARMACOLOGIA Receptor Proteína G Proteína efetora Agonista GDP GTP Figura 18 – Representação esquemática da ativação das proteínas G. Como consequência da ativação do receptor pelo agonista, ocorre a liberação do GDP da proteína G e a ligação do GTP a ela. A proteína G ligada ao GTP é capaz de interagir com uma série de moléculas efetoras, ativando-as. O término da resposta ocorre a partir da desfosforilação do GTP, que perde um fosfato inorgânico (Pi), transformando-se em GDP Fonte: Lüllmann e Jürgen (2000, p. 67). Existem diferentes subtipos de proteínas G, e cada uma delas é capaz de ativar uma via de sinalização intracelular diferente. Assim, os segundos mensageiros ativados dependem do subtipo de proteína G acoplada ao receptor. Os principais subtipos de proteína G que serão estudados no decorrer da disciplina são: Gs (estimulatória), Gi (inibitória) e Gq. • A proteína Gs, quando ativada, ativa a enzima adenilil ciclase, ancorada à face interna da membrana plasmática. A adenilil ciclase converte as moléculas de ATP presentes dentro da célula em AMPc (monofosfato cíclico de adenosina), um importante segundo mensageiro capaz de ativar uma série de enzimas, como a proteína quinase A (PKA, protein kinase A). A PKA, por sua vez, fosforila outras enzimas e proteínas intracelulares, levando à ativação/inativação delas e à consequente geração da resposta final. • A proteína Gi, quando ativada, inativa a enzima adenilil ciclase. Como consequência, caem os níveis intracelulares de AMPc e diminuem as fosforilações dependentes da PKA. É por esse motivo que essa proteína G é denominada inibitória. • A proteína Gq, quando ativada, ativa a enzima fosfolipase C, também ancorada à face interna da membrana plasmática. Essa enzima converte fosfolípides de membrana em diacilglicerol (DAG) e inositol trifosfato (IP3). O DAG ativa a proteína quinase C (PKC, protein kinase C), que é sensível aos íons cálcio e a fosfolipídeos e é responsável por fosforilar proteínas específicas. O IP3 se liga a seus receptores no retículo sarcoplasmático, o que desencadeia a liberação de 62 Unidade I íons cálcio e, consequentemente, aumento de seus níveis intracelulares. Essa classe de proteína G está relacionada, entre outras ações, à contração da musculatura lisa de vários tecidos. No citoplasma das células, os íons cálcio, cujos níveis intracelulares podem estar aumentados em decorrência da ativação dos receptores acoplados à Gq e à Gs, podem se ligar a uma proteína denominada calmodulina. Essa proteína possui quatro sítios distintos para ligação de cálcio; quando três ou quatro desses sítios estão ocupados pelo íon, ocorre alteração conformacional da estrutura molecular da calmodulina, o que desencadeia múltiplos efeitos no interior da célula, como a ativação da enzima miosina quinase, que atua diretamente sobre a miosina do músculo liso e desencadeia a sua contração. A figura a seguir ilustra as vias de sinalização intracelular envolvidos na ativação de cada um dos subtipos de receptores acoplados à proteína G: AMPc Proteína quinase A Fosforilações Glicogenólise Lipólise Ativação de canais de cálcio etc. Contração do músculo liso Secreção glandular etc. Fosforilações Ativação IP3 Ca2+ GqGi DAG ATP GS Fo sf ol ip as e C Ad el in il ci cl as e Pr ot eí na q ui na se C Figura 19 – Resumo das vias de sinalização intracelular relacionadas à ativação das proteínas Gs, Gi e Gq Fonte: Lüllmann e Jürgen (2000, p. 67). 63 FARMACOLOGIA Saiba mais Leia mais sobre proteínas G em: MOURA, P. R.; VIDAL, F. A. P. Transdução de sinais: uma revisão sobre proteínas G. Scientia Medica, v. 21, n. 1, p. 31-36, 2011. O quadro a seguir indica os principais receptores acoplados à proteína G, que são alvos de fármacos de importância terapêutica e experimental. Na maioria dos casos, estão disponíveis agonistas e antagonistas para cada um desses receptores, o que permite modular significativamente a fisiologia celular. Lembrete A ligação de um agonista ao receptor resulta na sua ativação. Por outro lado, a ligação de um antagonista impede a ativação do receptor. Quadro 3 – Principais receptores acoplados à proteína G Receptor Classificação Importância terapêutica Adrenoceptores alfa e beta Alfa-1: acoplado à Gq Alfa-2: acoplado à Gi Beta-1, 2 e 3: acoplados à Gs Agonistas e antagonistas dos receptores adrenérgicos são capazes de modular a atividade do sistema nervoso simpático e apresentam diversos usos terapêuticos Receptores muscarínicos M1, M3 e M5: acoplados à Gq M2 e M4: acoplados à Gi Agonistas e antagonistas dos receptores muscarínicos são capazes de modular a atividade do sistema nervoso parassimpático e apresentam diversos usos terapêuticos Receptores AT1 de angiotensina II Acoplados à proteína Gq Antagonistas desse receptor impedem sua ativação pela angiotensina II, o que resulta em diminuição da pressão arterial Receptores opioides Acoplados à proteína Gi Agonistas que ativam os receptores opioides apresentam efeito analgésico, pois potencializam a via inibitória da dor Receptores D2 de dopamina Acoplados à proteína Gi Antagonistas desses receptores são utilizados no tratamento da esquizofrenia 2.2.4 Receptores intracelulares Os receptores intracelulares antigamente eram chamados de receptores nucleares, uma vez que o resultado final de sua ativação envolve a regulação da expressão dos genes, que se encontram no núcleo da célula. Isso resulta em alterações do tipo e da quantidade de proteínas produzidas pelas células. 64 Unidade I A superfamília dos receptores intracelulares inclui duas subclasses. Os receptores de hormônios esteroidais encontram-se predominantemente no citoplasma da célula quando estão inativos. Os demais receptores intracelulares – que respondem aos hormônios tireoidianos, à vitamina D, à vitamina A (ácido retinoico) etc. – encontram-se no núcleo da célula, em ambas as formas inativa e ativa. Receptores de hormônios esteroidais Quando inativos, os receptores dos hormônios esteroidais encontram-se no citoplasma, ancoradas ao citoesqueleto celular. Nesse estado, os receptores estão associados a proteínas de choque térmico (HSP, heat shock proteins). Os principais hormônios esteroidais são a testosterona, os estrógenos, a progesterona, o cortisol e a aldosterona. A molécula precursora desses hormônios é o colesterol e, por esse motivo, eles atravessam facilmente a membrana plasmática em direção ao meio intracelular. Uma vez dentro da célula, se ligam aos respectivos receptores,o que desencadeia a ativação deles e o desligamento das HSP. Na ausência da ligação com as HSP, o complexo ligante-receptor ativado migra para o núcleo e interage com regiões promotoras de genes específicos, ativando ou reprimindo a expressão gênica, a depender do gene. Em outras palavras, a ativação dos receptores intracelulares leva ao aumento da expressão de alguns genes e à diminuição da expressão de outros (veja a figura a seguir). Citoplasma Receptor DNA mRNA Transcrição Tradução Núcleo ProteínaHormônio esteroidal Figura 20 – Representação esquemática da via de transdução de sinal ativada pelos receptores de hormônios esteroidais Fonte: Lüllmann e Jürgen (2000, p. 65). A transcrição do DNA é a formação de uma fita de RNA complementar à sequência do gene-alvo. Esse RNA é processado e dá origem ao RNA mensageiro (RNAm), que sai do núcleo e é lido pelos ribossomos, que produzem a proteína correspondente. Portanto, em última instância, ocorre o aumento dos níveis de algumas proteínas e a diminuição de outras, o que resulta na mudança da fisiologia da célula. 65 FARMACOLOGIA Observação A puberdade é marcada por uma série de alterações no organismo, como a maturação da genitália externa, o início da espermatogênese no sexo masculino e da ovulação no sexo feminino, o crescimento dos pelos corporais, o aumento de oleosidade da pele etc. Essas alterações são causadas pelo aumento da secreção dos hormônios sexuais masculinos e femininos que, como acabamos de ver, ativa receptores intracelulares nas células-alvo e mudam a expressão gênica nessas células, alterando suas funções. Todos os hormônios esteroidais produzem seus efeitos após um período que varia de 30 minutos a várias horas. Esse é o tempo requerido para que haja síntese de novas proteínas. Isso significa que os hormônios não são capazes de alterar um estado patológico logo após sua administração (por exemplo, os corticoides não irão aliviar os sintomas da asma brônquica alguns minutos após a administração). Por outro lado, os efeitos desses agentes podem persistir por horas ou dias após a administração do agonista, pois as enzimas e demais proteínas produzidas pelo estímulo do receptor ativado podem permanecer na célula por um tempo prolongado. No decorrer da disciplina, vamos estudar o efeito da ativação dos receptores de glicocorticoides (GR t glucocorticoid receptor, cujo ligante endógeno é o cortisol) pelos anti-inflamatórios esteroidais, também conhecidos como corticoides. Dependendo da dose de corticoide utilizada, altera-se a expressão genes responsáveis pela inflamação ou pela imunidade adaptativa, o que possibilita o uso desses fármacos como anti-inflamatórios e como imunossupressores. A espironolactona, um antagonista dos receptores de mineralocorticoides (MR), cujo ligante endógeno é a aldosterona, e seu uso no tratamento da hipertensão e de outras condições renais também serão abordados. Os derivados estrogênicos, progestagênicos e androgênicos, com atividade agonista ou antagonista dos receptores de andrógeno (AR, cujo ligante endógeno é a testosterona), de estrógeno (ER) e de progesterona (PR), são utilizados na contracepção, no tratamento de condições catabólicas e no tratamento do câncer de mama e de outras afecções endócrinas. Outros receptores intracelulares A segunda subclasse de receptores intracelulares é representada pelos receptores dos hormônios tireoideanos (TRs), do ácido retinoico (RAR), da vitamina D (VDR) e dos fatores ativadores dos peroxissomos (PPAR). Esses receptores, quando inativos, estão localizados predominantemente no núcleo, difusos no nucleoplasma ou ligados em sequências específicas do DNA (sequências de repetições diretas). Os hormônios tireoidianos T3 e T4 são os ligantes endógenos do TR. Na ausência do ligante, esses receptores encontram-se dimerizados com os receptores do retinoide X (RXR) e ligados ao DNA e a proteínas que reprimem a transcrição gênica (proteínas correpressoras). A ligação do T3 e do T4 a esses 66 Unidade I receptores provoca o desligamento dos correpressores e a subsequente ligação a proteínas coativadoras, que se ligam à RNA polimerase e promovem a transcrição (formação do RNA mensageiro) dos genes-alvo, conforme mostra a figura a seguir: Poro nuclear Poro nuclearNúcleo Citoplasma T3, T4 HRE HREgene-alvo gene-alvo Proteína Modificação da atividade celular Correpressor CorrepressorCoativador RNA polimerase RNA polimerase Coativador RNAm Figura 21 – Mecanismo de ação do receptor de hormônios tireoidianos (TR) Adaptada de: https://bit.ly/3zk7PXk. Acesso em: 7 jun. 2021. Vários receptores órfãos pertencem à classe dos receptores intracelulares. Um exemplo são os receptores ativados por proliferador de peroxissoma (PPAR), que estão envolvidos na regulação da diferenciação celular, no desenvolvimento, no metabolismo (carboidratos, lipídios, proteínas) e na carcinogênese de organismos superiores. Lembrete Receptores órfãos são aqueles cujos ligantes endógenos ainda não foram caracterizados. 2.2.5 Regulação da atividade dos receptores As principais características da resposta mediada por receptores, tanto do ponto de vista fisiológico quanto do ponto de vista terapêutico, são apresentadas a seguir: • Especificidade da resposta: a interação entre os agonistas/antagonistas e o receptor obedece ao esquema de chave-fechadura, ou seja, de complementariedade química. Trata-se, portanto, de uma interação específica. Quanto mais seletiva for a ligação entre o fármaco e o receptor, 67 FARMACOLOGIA menor a ocorrência de seus efeitos adversos relacionados à interação com outros sítios de ligação inespecíficos. Existem fármacos pouco seletivos, que atuam sobre mais de um receptor diferente e, portanto, apresentam respostas sistêmicas mais disseminadas do que aqueles que apresentam maior especificidade. • Amplificação do sinal: a especificidade da ligação entre o agonista e o receptor, aliada à presença de segundos mensageiros, garante que a resposta fisiológica seja observada mesmo na presença de pequenas concentrações de agonista. Isso porque os segundos mensageiros atuam como amplificadores de sinal: cada receptor é capaz de ativar vários conjuntos de segundos mensageiros, o que aumenta significativamente a intensidade da resposta gerada. • Capacidade de se obter respostas específicas de acordo com o tipo celular estudado: a resposta final resultante da ativação de um receptor varia conforme o tipo celular analisado, pois depende do repertório de substratos proteicos disponíveis para a ação dos segundos mensageiros. Um exemplo são os adrenoceptores beta-1 e beta-2, que respondem aos estímulos da epinefrina (adrenalina): mesmo que ambos sejam acoplados à proteína Gs – que, quando ativada, culmina no aumento de níveis intracelulares de AMPc –, a ativação de beta-1 no coração leva à contração do músculo cardíaco, enquanto a ativação de beta-2 nos pulmões leva ao relaxamento do músculo liso. Portanto podemos concluir que, nos cardiomiócitos, as moléculas-alvo do AMPc são diferentes das observadas nas células musculares lisas do pulmão, o que resulta respostas finais diferentes. É também importante que a resposta celular resultante da ativação dos receptores não seja exacerbada, isto é, que a ativação dos receptores ocorra somente pelo tempo necessário para que seja mantida a homeostase. Com o tempo, os níveis plasmáticos das moléculas efetoras – por exemplo, o AMPc resultante da ativação de receptores acoplados à proteína G, ou ainda o sódio que adentra a célula após ativação de um receptor ionotrópico – tendem a diminuir, mesmo quando o agonista continua a ser administrado. Geralmente, a dessensibilização é reversível, e a resposta passa a ser observada novamente após alguns minutos após a resposta inicial. Os mecanismos de dessensibilização foram bem estudados nos receptores acoplados à proteína G e envolvem os seguintes mecanismos: • Fosforilação do receptor,principalmente em sua região carboxi-terminal intracelular, o que pode alterar a estrutura terciária do receptor e dificultar o acoplamento dele à proteína G, ou ainda direcionar o receptor para o compartimento intracelular, onde permanecerá inacessível ao agonista. • Internalização do receptor por endocitose. Nesse mecanismo, os receptores ligam-se a moléculas denominadas arrestinas e, logo após, forma-se uma rede de clatrina que envolve o receptor e o internaliza em uma vesícula endocitótica. O receptor, então, poderá ser reciclado para a membrana plasmática ou ainda direcionado para a proteólise nos lisossomos. 68 Unidade I 2.3 Farmacologia experimental: estudos da interação fármaco-receptor Até meados do século XX, não existiam ferramentas experimentais que permitissem a observação da resposta mediada pelos receptores em nível molecular. O estudo da interação entre os fármacos e os receptores só podia ser realizado a partir da verificação dos efeitos finais, macroscópicos, observados nos tecidos após a administração da substância. Nesse contexto, a contração muscular mostrou-se um excelente instrumento para mensurar os efeitos dos fármacos, uma vez que (1) a contração dessas células pode ser facilmente observada a olho nu e (2) a contração muscular lisa é uma resposta mediada por uma série de sinais fisiológicos diferentes, o que implica na expressão de diversas classes de receptores na superfície de suas células, maximizando o número de fármacos e de receptores que podem ter sua atividade avaliada. No modelo experimental da contração da musculatura lisa, o estudo da interação entre agonistas e receptores farmacológicos pode ser realizado a partir da construção de curvas concentração-efeito, também conhecidas como curvas concentração-resposta. Para a obtenção dessas curvas, um órgão isolado, retirado de um animal de experimentação (por exemplo, um fragmento de arteríola ou um fragmento de ducto deferente de ratos), é mergulhado em um líquido nutritivo devidamente oxigenado e então posicionado em um fisiógrafo, aparelho capaz de quantificar a força e a frequência de contração da musculatura lisa do órgão. O órgão é então submetido a concentrações crescentes do agonista, que, ao se ligar a seus receptores, desencadeará a contração do tecido (veja a figura a seguir). Registrador Aorta Câmara Alavanca de ampliação Líquido nutritivo Figura 22 – Fisiógrafo Ao relacionarmos as concentrações do agonista com a magnitude das contrações musculares correspondentes, obtemos uma curva hiperbólica, denominada curva concentração-resposta. Na prática, 69 FARMACOLOGIA é mais comum grafar a resposta em função do logaritmo da concentração do agonista, obtendo-se uma curva sigmoidal denominada curva log concentração-resposta, mostrada na figura a seguir: 13 0% 11,5% 23% 50% 100% Re sp os ta Agonista parcial -log[Agonista, mol/L] Agonista total 10 712 9 611 8 5 Figura 23 – Curva log concentração-resposta de agonista total e agonista parcial Da análise do gráfico, concluímos que a contração da musculatura lisa depende da concentração do fármaco adicionado ao meio nutritivo, ou seja, quanto maior a quantidade de fármaco adicionada, maior a magnitude da contração. A partir de determinada concentração de agonista, é visualizado um platô (plataforma) na curva, decorrente do fato de a resposta máxima da musculatura ao fármaco ter sido alcançada. A partir desse momento, não será mais observado aumento na contração muscular em resposta à incubação com o fármaco, e podemos dizer que a eficácia máxima do fármaco foi alcançada. Se essa eficácia máxima coincidir com a resposta tecidual máxima (no caso, a contração máxima da musculatura lisa), estamos diante de um agonista total. Se a eficácia máxima do fármaco for menor do que a resposta tecidual máxima, temos um agonista parcial. A eficácia, portanto, é o parâmetro que avalia a magnitude da resposta tecidual desencadeada após a incubação com o agonista, ou, em outras palavras, trata-se da habilidade relativa de um complexo fármaco-receptor de produzir uma resposta máxima funcional. Esse parâmetro é representado pelo Emax, que é o valor máximo de resposta alcançado pelo tecido, ou seja, é o valor, no eixo y, que corresponde ao platô. Eficácia igual a 100%, ou 1, indica que o agonista é capaz de desencadear a resposta máxima (agonista total); enquanto eficácia menor do que 100%, mas maior do que 0, indica que o agonista somente é capaz de desencadear uma resposta submáxima, mesmo com o aumento crescente das concentrações do agonista. Na figura anterior, temos que a eficácia do agonista total é 100% (como observado em todos os agonistas totais), enquanto a eficácia do agonista parcial é de 23%. Além da eficácia, a análise do gráfico concentração-resposta permite a avaliação de outro parâmetro muito importante, tanto do ponto de vista experimental quanto do ponto de vista terapêutico: a potência, que está relacionada com a concentração do fármaco necessária para se obter 50% da resposta final desencadeada pelo agonista. 70 Unidade I Para se avaliar a potência de um fármaco, devemos, no gráfico, achar o ponto de intersecção dos eixos x e y à curva, levando-se em conta, no eixo y, o ponto que representa a metade da resposta total do tecido ao fármaco. O valor correspondente no eixo x é a concentração do fármaco que foi necessária para se obter tal resposta, e corresponde a sua potência. O valor que expressa a potência do fármaco é o EC50 ou CE50 (concentração efetiva 50), que significa “a concentração necessária para que seja observada 50% da resposta a determinado agonista”. Na figura anterior, o EC50 dos fármacos é igual a 10-9 mol/L: a concentração necessária para se obter 50% da resposta máxima do agonista total e 50% da resposta máxima do agonista parcial (11,5%, que correspondem à metade de 23%) são iguais a 10-9 mol/L. Não esqueça que o eixo x, das concentrações, é fornecido no formato do valor negativo do logaritmo da concentração e, portanto, “9” corresponde a 10-9. As curvas concentração-resposta também podem ser utilizadas para se avaliar a ação de antagonistas sobre a contração da musculatura lisa. Os antagonistas são fármacos capazes de se ligar ao receptor, porém incapazes de desencadear uma resposta celular, e podem ser classificados em competitivos e não competitivos. Os antagonistas competitivos são assim denominados porque efetivamente competem com o agonista pelo mesmo sítio de ligação ao receptor, sendo, portanto, capazes de bloquear a ligação do agonista ao receptor. Essa ligação é reversível: aumentando-se a concentração do agonista, este é capaz de deslocar (retirar) o antagonista do sítio de ligação e desencadear uma resposta. Os antagonistas não competitivos, como o próprio nome já presume, não competem com o agonista pelo sítio de ligação ao receptor. Em vez disso, ligam-se a um sítio diferente daquele envolvido com a ligação ao agonista ou interagem com a via de transdução de sinal desencadeada após a ativação do receptor. Nesse caso, o efeito máximo do agonista é diminuído. Uma vez que os antagonistas em si não são capazes de desencadear uma resposta celular, seu estudo, a partir da elaboração de curvas concentração-efeito, exige o seguinte método: • o antagonista é pré-incubado no órgão isolado em fisiógrafo; • após cerca de 30 minutos, é realizada a incubação com concentrações crescentes de um agonista que atua sobre o mesmo sistema receptor; • é feito o registro da resposta celular (contração) obtida com o agonista na presença de antagonista; • a curva obtida é comparada com aquela obtida na ausência de antagonista. 71 FARMACOLOGIA A análise das curvas obtidas visa à observação da alteração que o antagonista é capaz de causar na curva concentração-resposta, conforme descrito a seguir: • Diminuição da resposta máxima do órgão ao agonista, após pré-incubação com antagonista não competitivo. O antagonista não competitivo nãointerfere na ligação do agonista ao receptor, mas sim em outras etapas da transdução de sinal. Assim, observa-se principalmente a diminuição da resposta máxima (veja a figura a seguir, nas curvas vermelha e amarela). Em outras palavras, dizemos que, na presença de um antagonista não competitivo, a eficácia do agonista é diminuída. • Deslocamento da curva para a direita obtida após pré-incubação do órgão com antagonista competitivo. Por interagir com o sítio de ligação do agonista ao receptor, o antagonista competitivo é capaz de deslocar a curva concentração-resposta para a direita. É necessário aumento na concentração do agonista para deslocar o antagonista do sítio de ligação, “desbloqueando” o receptor. A resposta celular, portanto, é observada somente na presença de maiores concentrações do agonista, mantendo-se a resposta máxima do órgão (veja a figura a seguir, nas curvas vermelha e magenta). Em outras palavras, dizemos que, na presença de um antagonista competitivo, a eficácia do agonista é mantida, porém a potência desse agonista diminui (o EC50, portanto, aumenta). 50% 100% Re sp os ta -log[Agonista, mol/L] EC50 do agonista na ausência de antagonista e na presença de antagonista não competitivo EC50 do agonista na presença de antagonista não competitivo Agonista na presença de antagonista competitivo Agonista na presença de antagonista não competitivo Somente agonista Figura 24 – Curva log concentração-resposta demonstrando antagonismo não competitivo (A) e antagonismo competitivo (B) Fonte: Clark et al. (2013, p. 34). O estudo das curvas concentração-resposta é realizado até hoje, devido a sua versatilidade, e é o experimento de escolha quando se deseja classificar um agonista em total ou parcial ou um antagonista em competitivo ou não competitivo. Mais recentemente, foi caracterizada uma classe de fármacos capaz de se ligar aos receptores constitutivamente ativados (receptores que se encontram no estado ativado na ausência de um ligante). Ao se ligar a esses receptores, essa classe de fármacos é capaz de induzir a sua inativação, ou seja, é capaz de levá-los para a conformação inativa. Esses fármacos são denominados agonistas inversos, ou seja, “agentes capazes de se ligar ao mesmo receptor que um agonista, mas induzindo uma resposta farmacológica oposta”. 72 Unidade I É importante diferenciar os agonistas inversos dos antagonistas: os antagonistas impedem a ativação de um receptor que se encontra no estado inativo, enquanto os agonistas inversos são capazes de inativar os receptores que se encontram constitutivamente ativados. Em outras palavras, o agonista inverso é capaz de diminuir a atividade basal dos tecidos, que acontece na ausência de ligantes. Portanto, enquanto os antagonistas apresentam eficácia (Emax) igual a zero, os agonistas inversos apresentam Emax menor do que zero (veja a figura a seguir). 9 -50% -25% Agonista inverso -log[Agonista, mol/L] Re sp os ta Agonista parcial Aumento da atividade basal do órgão Diminuição da atividade basal do órgão Agonista total 0% 25% 75% 50% 100% 78 6 5 Figura 25 – Comparação entre as respostas induzidas por um agonista total, um agonista parcial e um agonista inverso Adaptada de: https://bit.ly/3pyiY2j. Acesso em: 8 jun. 2021. As curvas concentração-resposta não são a melhor escolha para se estudar os agonistas inversos, afinal, não é possível distinguir se a resposta observada no fisiógrafo é decorrente da ativação de um receptor inativo ou se é decorrente da inativação de um receptor constitutivamente ativado. Por esse motivo, são usados experimentos que visam à avaliação dos segundos mensageiros formados após a ligação do agonista inverso com o receptor: caso a concentração dos segundos mensageiros seja alterada de maneira oposta à observada na vigência de um agonista total ou parcial, esse agonista é classificado como agonista inverso. Além das curvas concentração-resposta e da avaliação dos níveis de segundos mensageiros intracelulares, outros experimentos podem ser utilizados para caracterizar um fármaco. Um desses experimentos são os ensaios de ligação, ou binding, que se referem à incubação de uma preparação de membrana com um antagonista marcado radioativamente, seguido da adição de doses crescentes do agonista frio (não marcado). Caso o antagonismo seja do tipo competitivo, a adição do agonista frio (não marcado) irá deslocar o antagonista do seu sítio de ligação, diminuindo assim a intensidade da radiação associada à membrana plasmática de maneira dependente da dose de agonista adicionado. 73 FARMACOLOGIA Você sabe como os receptores são descobertos e caracterizados? Novos receptores são potenciais alvos de fármacos e, portanto, é importante que o profissional biomédico conheça como eles são descobertos, já que pode participar ativamente dessa busca. A caracterização de novos receptores geralmente começa pelo estudo das relações entre a estrutura e função de um grupo de fármacos e uma resposta facilmente mensurável. Nesse primeiro momento, são realizados ensaios de contração realizados em fisiógrafos, ensaios de ligação com fármacos radioativos e até mesmo ensaios computacionais. Esses ensaios permitem conhecer em detalhes o tipo de resposta mediada pelo sistema receptor que se deseja caracterizar. Em seguida, é feita a purificação bioquímica do receptor. Nessa etapa, o receptor é isolado da célula que o expressa. Nesse processo, são utilizadas técnicas de cromatografia e de western blotting, por exemplo. A análise do receptor purificado permite a identificação de suas subunidades, de seu tamanho e, algumas vezes, de como o receptor funciona (por exemplo, se ocorre autofosforilação após a ligação do agonista, ou se uma proteína G é ativada). Isso permite determinar o mecanismo de ação do receptor. Avaliações adicionais da estrutura e da função do receptor são possíveis graças à clonagem de seu gene e à subsequente análise de sua sequência de DNA. A partir dessa análise, é possível identificar regiões homólogas a outros receptores, o que auxilia na determinação do ligante endógeno e na compreensão do papel desse receptor na manutenção da homeostase. A partir desse ponto, é possível avaliar a viabilidade desse receptor enquanto alvo terapêutico. Mesmo após todas essas análises, alguns receptores permanecem sem ter seu ligante endógeno caracterizado. A avaliação do papel desses receptores na manutenção da fisiologia é prejudicada, uma vez que se desconhece qual o estímulo interno capaz de promover sua ativação. Receptores cujos ligantes endógenos não são conhecidos são denominados receptores órfãos. A sua identificação é de grande interesse, pois pode elucidar novas vias de sinalização intracelular e potenciais alvos terapêuticos. Fonte: Rivera e Gilman (2012, p. 3). 74 Unidade I Resumo A farmacologia é a ciência que estuda a interação dos fármacos com seus alvos moleculares. Trata-se de um ramo do conhecimento que permite a melhor compreensão dos fenômenos fisiológicos e da terapêutica medicamentosa. A partir do estudo da ação das substâncias no organismo, é possível explorar não só alternativas terapêuticas, mas também aspectos da fisiologia que são elucidados através do estudo da interação de diferentes substâncias com os sistemas orgânicos. Por isso, a farmacologia integra o conhecimento de diferentes áreas (como a bioquímica, a fisiologia e a patologia) e abordagens diversas a respeito dos fármacos. Por fármaco entende-se a molécula que, a partir da interação com alvos moleculares específicos, altera a fisiologia da célula. Os fármacos podem ser utilizados para fins terapêuticos e, nesse caso, são denominados medicamentos. O estudo do percurso do fármaco pelo organismo, desde a administração até a eliminação, é denominado farmacocinética e envolve as etapas de absorção, distribuição, biotransformação e excreção. A ação do fármaco sobre seus alvos moleculares específicos,por outro lado, é estudada pela farmacodinâmica. 75 FARMACOLOGIA Exercícios Questão 1. Os princípios ativos presentes nas formulações cosméticas de uso tópico podem atuar na pele a partir de três diferentes mecanismos, denominados adsorção, penetração e permeação. Um quarto mecanismo, denominado absorção sistêmica, não é observado em resposta à administração da grande maioria dos cosméticos, embora seja via comum para uma série de medicamentos. Com relação ao mecanismo de absorção sistêmica, assinale a alternativa correta. A) A absorção ocorre quando o princípio ativo permanece na superfície da pele, sem atravessar as diferentes camadas que a compõem. B) Quanto mais hidrossolúvel for o princípio ativo, maior será a sua taxa de absorção. C) A absorção sistêmica ocorre quando há passagem do princípio ativo do local de administração para a circulação sanguínea. Como os cosméticos, via de regra, apresentam ação local, sua absorção sistêmica não é desejável. D) A absorção sistêmica ocorre somente quando os medicamentos são administrados diretamente na pele. E) As moléculas dos princípios ativos que compõem os cosméticos são muito maiores do que as moléculas que compõem os medicamentos e, por isso, elas não são absorvidas. Resposta correta: alternativa C. Análise das alternativas A) Alternativa incorreta. Justificativa: a interação do princípio ativo com componentes da superfície da pele é denominada adsorção, e não absorção. B) Alternativa incorreta. Justificativa: a absorção sistêmica, que é a passagem do princípio ativo para a circulação sanguínea, é maior para moléculas lipossolúveis, pois elas atravessam a membrana plasmática das células que compõem os tecidos, em direção aos capilares, com mais facilidade. C) Alternativa correta. Justificativa: se o princípio ativo é absorvido, ele acaba sendo distribuído por todo o organismo. Esse fenômeno não é vantajoso quando se deseja que a ação da substância ocorra localmente, como é o caso dos cosméticos. 76 Unidade I D) Alternativa incorreta. Justificativa: o fenômeno de absorção sistêmica pode ser observado a partir da administração do princípio ativo por diferentes vias (oral, intramuscular, subcutânea, dérmica etc.). A exceção é a via intravenosa pois, nela, o princípio ativo é administrado diretamente na circulação sistêmica – assim, ultrapassa-se a absorção. E) Alternativa incorreta. Justificativa: a absorção não tem relação apenas com o tamanho da molécula do princípio ativo, mas também com sua lipossolubilidade, com o pH do meio e com os veículos ou excipientes utilizados na formulação, entre outros fatores. Além disso, não podemos afirmar que as moléculas presentes nos cosméticos são maiores do que as presentes nos medicamentos, ou vice-versa. Questão 2. Os termos potência e eficácia são usados para expressar importantes aspectos da ação de fármacos. Entretanto, não só o público geral, mas também alguns profissionais da área da saúde, os usam de maneira equivocada. Suponhamos que você atenda a uma cliente que deseja realizar uma massagem relaxante, pois apresenta importante quadro álgico. Ela relata que o médico recomendou a massagem, visto que a dor crônica vem causando ansiedade e tensão muscular e que não diminui mesmo com o uso de analgésicos muito potentes, ou seja, indicados para o tratamento da dor forte. Com base no exposto e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas. I – A cliente deveria ter usado o termo “eficazes” em vez do termo “potentes”, pois potência refere-se unicamente à dose de fármaco necessária para se obter o efeito terapêutico desejado, e não à magnitude do efeito. II – Nem sempre o fármaco mais potente é o mais eficaz para tratar determinada doença. III – Quanto maior a potência de um fármaco, maior a dose necessária para atingir o objetivo terapêutico desejado. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) I e II, apenas. C) II, apenas. D) II e III, apenas. E) I e III, apenas. Resposta correta: alternativa B. 77 FARMACOLOGIA Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: na farmacologia, quanto maior o efeito obtido com o uso de um fármaco, maior sua eficácia. Por exemplo, a dipirona é mais eficaz do que o paracetamol; a codeína é mais eficaz do que a dipirona; a morfina é mais eficaz do que a codeína etc. Por outro lado, quanto menor a dose necessária para se obter o efeito terapêutico desejado, maior a potência. Por exemplo, a dose de fentanila necessária para se obter analgesia é menor do que a dose de morfina, pois a fentanila é mais potente do que a morfina. Portanto, a cliente quis dizer que está usando analgésicos com alta eficácia, mas que não são suficientes para tratar o quadro de dor. II – Afirmativa correta. Justificativa: um fármaco pode ser muito eficaz, mas somente em doses altas (pouco potente), ou ser muito potente, mas apresentar pouco efeito (ser pouco eficaz). Da mesma maneira, há fármacos com alta potência e alta eficácia e com baixa potência e baixa eficácia. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: quanto maior a potência de um fármaco, menor a dose necessária para se atingir o objetivo terapêutico, e não o contrário.