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Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 1 APOSTILA 4 Universidade Católica de Petrópolis — UCP Materiais de Construção Mecânica Roger Marques Gomes Engenharia Mecânica e de Produção Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 2 1 Introdução aos Tratamentos Térmicos A história da civilização humana está intrinsecamente ligada à sua capacidade de manipular materiais. Desde a Idade do Bronze e a Idade do Ferro, o homem aprendeu empiricamente que aquecer e resfriar metais poderia alterar drasticamente suas propriedades. Um ferreiro da antiguidade, ao mergulhar uma espada em brasa na água, observava que ela se tornava incrivelmente dura, embora mais frágil. Este ato, envolto em mistério e ritual, foi um dos primeiros tratamentos térmicos da história. Hoje, os tratamentos térmicos evoluíram de uma arte para uma ciência precisa e controlada. Eles representam um conjunto de processos industriais fundamentais que envolvem o aquecimento e o resfriamento controlado de metais e ligas no estado sólido, com o objetivo de alterar suas propriedades físicas e mecânicas. Cerca de 80% de todos os componentes metálicos utilizados na indústria passam por algum tipo de tratamento térmico durante seu ciclo de fabricação. Importância Industrial: Otimização de Propriedades: Permitem que um mesmo material atenda a diferentes requisitos de projeto. Um aço pode ser usinado em um estado macio (recozido) e depois endurecido (temperado) para sua aplicação final. Viabilidade Econômica: Muitas vezes, é mais econômico utilizar um aço de baixo custo e melhorar suas propriedades via tratamento térmico do que utilizar uma liga de alto custo. Aumento da Vida Útil: Tratamentos que aumentam a resistência ao desgaste, à fadiga e à corrosão prolongam significativamente a vida útil de componentes, reduzindo custos de manutenção e substituição. Inovação Tecnológica: O desenvolvimento de novos materiais e tecnologias, como os aços avançados de alta resistência (AHSS) para a indústria automotiva, só é possível graças ao controle preciso das microestruturas através de tratamentos térmicos complexos. Tratamento Térmico é um processo que consiste em uma ou mais operações de aquecimento e resfriamento de um material, em seu estado sólido, realizadas sob condições controladas (temperatura, tempo, velocidade e atmosfera) para conferir-lhe propriedades desejadas. É crucial notar que, na maioria dos tratamentos térmicos, a composição química geral do material não é alterada. A magia reside na manipulação da microestrutura – a forma como os grãos e as fases se arranjam em escala microscópica. Os objetivos primários dos tratamentos térmicos incluem: Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 3 Aumento da Dureza e Resistência Mecânica: (Ex: Têmpera) Aumento da Tenacidade e Ductilidade: (Ex: Revenido, Recozimento) Remoção de Tensões Internas: (Ex: Alívio de Tensões, Recozimento) Melhora da Usinabilidade: (Ex: Recozimento, Normalização) Refino do Tamanho de Grão: (Ex: Normalização) Alteração de Propriedades Magnéticas e Elétricas. É importante distinguir entre tratamentos puramente térmicos e os termoquímicos: Tratamentos Térmicos: Modificam a microestrutura sem alterar a composição química da peça. Ex: Têmpera, Revenido, Recozimento. Tratamentos Termoquímicos: Além do ciclo térmico, alteram a composição química da superfície da peça, geralmente pela adição de elementos como carbono, nitrogênio ou boro. Ex: Cementação, Nitretação. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 4 2 Classificação e Tipos de Materiais Metálicos As ligas metálicas, que são a base da engenharia de materiais, podem ser amplamente classificadas em dois grandes grupos: ferrosas e não-ferrosas. Ligas Ferrosas: São aquelas em que o ferro (Fe) é o principal constituinte. Incluem os aços e os ferros fundidos. Devido à sua abundância, baixo custo e vasta gama de propriedades mecânicas, as ligas ferrosas são os materiais metálicos mais importantes e amplamente utilizados na engenharia. Ligas Não-Ferrosas: Incluem todas as outras ligas metálicas, como as de alumínio, cobre, titânio, níquel, magnésio, etc. São geralmente utilizadas em aplicações que exigem propriedades específicas que as ligas ferrosas não podem oferecer, como baixa densidade (alumínio, titânio), alta condutividade elétrica (cobre) ou alta resistência à corrosão (níquel). Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 5 Os aços são ligas de ferro-carbono que podem conter outros elementos de liga e que possuem um teor de carbono geralmente inferior a 2,11% em peso. A versatilidade dos aços reside na sua capacidade de ter suas propriedades drasticamente alteradas por tratamentos térmicos. Os aços podem ser classificados de várias maneiras, mas as mais comuns são baseadas na composição química e na aplicação. Baseado na Composição Química: Aços Carbono: Contêm apenas carbono como principal elemento de liga. São subdivididos em: Baixo Carbono (12%). Aços para Molas: Alta resistência e limite de elasticidade. Os ferros fundidos são ligas de ferro-carbono com teor de carbono superior a 2,11%. A alta concentração de carbono faz com que, durante a solidificação, o carbono se precipite na forma de grafita ou cementita (Fe₃C), conferindo propriedades muito distintas das dos aços. Ferro Fundido Cinzento: A grafita se apresenta em veios. Possui excelente capacidade de amortecimento de vibrações e boa usinabilidade, mas é frágil à tração. Usado em blocos de motor, bases de máquinas. Ferro Fundido Nodular (ou Dúctil): A grafita tem formato esferoidal (nódulos), o que confere maior ductilidade e tenacidade. Propriedades se aproximam das dos aços. Usado em virabrequins, componentes de suspensão. Ferro Fundido Branco: O carbono está na forma de cementita, tornando-o extremamente duro e frágil. Usado em aplicações de alta resistência à abrasão, como moinhos de bolas. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 7 Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 8 3 Fundamentos dos Tratamentos Térmicos Para entender os tratamentos térmicos, é essencial revisitar dois conceitos fundamentais: termodinâmica e cinética. Termodinâmica: Nos diz o que pode acontecer. Os diagramas de fase (como o Fe-C) são mapas termodinâmicos que mostram as fases estáveis em condições de equilíbrio (resfriamento infinitamente lento). Eles nos dizem, por exemplo, que um aço eutetóide (0,77% C) a 700°C será composto de ferrita e cementita. Cinética: Nos diz com que velocidade acontece. Os tratamentos térmicos operam fora do equilíbrio. Ao resfriar um aço rapidamente, não damos tempo para que as transformaçõese 950°C, ambas por 1 hora a) Explique as diferenças microestruturais esperadas entre os dois tratamentos. b) Como essas diferenças afetarão as propriedades mecânicas após têmpera e revenido? EXERCÍCIO 3 Uma peça cilíndrica de aço AISI 4340 (Ø 50mm) deve ser temperada. Estão disponíveis três meios de resfriamento: água, óleo e ar. a) Ordene os meios de resfriamento do mais severo ao mais suave, justificando. b) Para cada meio, preveja a microestrutura resultante no centro da peça. EXERCÍCIO 4 Um aço temperado apresenta dureza de 62 HRC. Após revenido a 400°C por 2 horas, a dureza cai para 45 HRC. Se o objetivo é obter 52 HRC, determine: a) A temperatura de revenido necessária, mantendo o tempo de 2 horas. b) Explique o mecanismo metalúrgico responsável pela queda de dureza no revenido. EXERCÍCIO 5 Compare austêmpera e martêmpera em termos de: a) Trajetórias nos diagramas TTT (descreva os caminhos) Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 41 b) Microestruturas resultantes e principais vantagens de cada processo. EXERCÍCIO 6 Uma engrenagem de aço AISI 8620 será submetida à cementação gasosa a 920°C por 8 horas. a) Calcule a profundidade aproximada da camada cementada usando a equação: x = k√t, onde k = 0,15 mm/h^0,5 para esta temperatura b) Descreva o perfil de dureza esperado da superfície ao núcleo após têmpera e revenido. EXERCÍCIO 7 Um eixo de aço AISI 4140 temperado e revenido fraturou prematuramente em serviço. A análise metalográfica revelou martensita não revenida em algumas regiões. a) Identifique a provável causa da falha. b) Proponha medidas corretivas para evitar a recorrência do problema. EXERCÍCIO 8 Duas amostras de aço AISI 1040 foram submetidas a diferentes tratamentos após conformação a quente: - Amostra A: Normalização (aquecimento a 870°C, resfriamento ao ar) - Amostra B: Recozimento pleno (aquecimento a 870°C, resfriamento lento no forno) a) Compare as microestruturas esperadas. b) Qual amostra apresentará melhor usinabilidade? Justifique. EXERCÍCIO 9 Uma empresa deseja implementar têmpera por indução em eixos de aço AISI 1045 (Ø 40mm) para endurecer apenas a superfície (camada de 3-5mm). a) Explique o princípio físico da têmpera por indução. b) Liste três vantagens deste processo sobre a têmpera convencional em forno. EXERCÍCIO 10 Um aço liga AISI 4340 foi temperado e revenido a 500°C por 2 horas, apresentando baixa tenacidade ao impacto apesar da dureza adequada (35 HRC). a) Identifique o fenômeno responsável pela baixa tenacidade. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 42 b) Proponha uma solução para o problema mantendo a dureza desejada. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 43 14 Bibliografia/Referências CALLISTER, William D., Jr.; RETHWISCH, David G. Ciência e Engenharia de Materiais: Uma Introdução. 10ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2020. GROOVER, Mikell P. Introdução aos processos de fabricação. Rio de Janeiro: LTC, 2014de fase previstas pela termodinâmica ocorram. A cinética, estudada através dos diagramas TTT (Tempo-TemperaturaTransformação) e CCT (Resfriamento Contínuo), descreve quais fases (perlita, bainita, martensita) se formarão em função da velocidade de resfriamento. O sucesso de um tratamento térmico depende do controle preciso de vários fatores: Composição Química do Aço: É o fator mais importante. O teor de carbono determina a dureza máxima que pode ser alcançada. Os elementos de liga influenciam a temperabilidade (a capacidade de endurecer em profundidade) e as temperaturas de transformação. Temperatura de Austenitização: Deve ser alta o suficiente para dissolver os carbonetos e formar uma austenita homogênea, mas não tão alta a ponto de causar crescimento excessivo do grão. Tempo de Permanência: O material deve ser mantido na temperatura de austenitização por tempo suficiente para que a transformação seja completa em toda a sua seção. Velocidade de Resfriamento: Determina a microestrutura final. Velocidades altas favorecem a formação de martensita; velocidades médias, bainita; e velocidades lentas, perlita. Meio de Resfriamento: A severidade do meio (água, óleo, ar) controla a velocidade de resfriamento. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 9 Os tratamentos térmicos são realizados em fornos industriais projetados para atingir altas temperaturas com grande uniformidade. A atmosfera dentro do forno também é crucial: Atmosferas Oxidantes (Ar): Podem causar oxidação (carepa) e descarbonetação (perda de carbono da superfície), o que é prejudicial para a peça. São usadas em tratamentos menos críticos. Atmosferas Protetoras ou Neutras: Usam gases como nitrogênio, argônio ou misturas endotérmicas para evitar reações com a superfície do aço. Essenciais para tratamentos de alta qualidade. Atmosferas Ativas (Carburantes ou Nitretantes): Usadas em tratamentos termoquímicos para adicionar elementos à superfície da peça. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 10 4 Austenitização: A Preparação Para a Transformação A austenitização é a primeira e talvez a mais crítica etapa da maioria dos tratamentos térmicos de endurecimento. Consiste em aquecer o aço a uma temperatura dentro do campo austenítico e mantê-lo lá por tempo suficiente para obter uma estrutura de austenita (γ) homogênea. Se a austenitização for mal executada, nenhum tratamento subsequente poderá corrigir os defeitos introduzidos. A temperatura correta de austenitização depende do teor de carbono do aço: Aços Hipoeutetóides ( 0,77% C): Aquece-se a cerca de 30-50°C acima da linha A₁. Neste caso, não se busca dissolver toda a cementita, mas sim obter uma estrutura de austenita com carbonetos de cementita não dissolvidos, que ajudarão na resistência ao desgaste. O tempo na temperatura de austenitização deve ser suficiente para dissolver os carbonetos e homogeneizar a austenita. Um tempo muito curto resulta em uma estrutura heterogênea; um tempo muito longo pode causar o crescimento excessivo dos grãos de austenita. Grãos grosseiros são prejudiciais, pois podem levar à fragilidade e maior distorção durante a têmpera. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 11 5 Têmpera: A Busca pela Dureza Máxima A têmpera é, sem dúvida, o tratamento térmico mais icônico e transformador da metalurgia. Seu objetivo primário é alcançar a máxima dureza que uma determinada liga de aço pode oferecer. Este feito é realizado através de um resfriamento controlado, porém extremamente rápido, a partir da temperatura de austenitização. Este processo força a austenita (γ), uma fase estável em alta temperatura, a se transformar não em produtos de equilíbrio como a perlita, mas em uma microestrutura única, altamente tensionada e metaestável chamada martensita. Diferentemente das transformações perlítica e bainítica, que são governadas pela difusão de átomos de carbono, a transformação martensítica é classificada como adifusional ou por cisalhamento. Isso significa que ela ocorre de forma quase instantânea (à velocidade do som no material) e não envolve o movimento de átomos de carbono a longas distâncias. Em vez disso, a rede cristalina da austenita, que possui uma estrutura cúbica de face centrada (CFC), sofre uma mudança estrutural cooperativa e abrupta. Grupos de átomos se deslocam de forma coordenada, cisalhando a estrutura para uma nova configuração: tetragonal de corpo centrado (TCC). Neste processo violento, os átomos de carbono, que estavam confortavelmente alojados nos interstícios maiores da estrutura CFC da austenita, não têm tempo para escapar. Eles ficam "presos" em solução sólida, forçados a ocupar os interstícios menores e assimétricos da nova estrutura TCC. Esta presença forçada do carbono distorce severamente a rede cristalina, criando um campo de tensões internas de altíssima magnitude. É essa distorção que atua como uma barreira quase intransponível ao movimento de discordâncias, o que, por sua vez, confere à martensita sua característica dureza e resistência extremas, mas também sua inerente fragilidade. A dureza da martensita é quase exclusivamente uma função do teor de carbono do aço. Esta é uma das relações mais fundamentais na ciência dos materiais. Quanto mais carbono estiver aprisionado na estrutura, maior será a distorção da rede TCC e, consequentemente, maior será a dureza e a resistência ao escoamento. A Figura 20.2 do Groover ilustra esta relação de forma inequívoca e quantitativa. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 12 Analisando o gráfico, podemos extrair conclusões cruciais: - A curva superior mostra que a dureza da martensita (medida em Rockwell C, HRC) aumenta drasticamente com o teor de carbono, partindo de cerca de 35 HRC para um aço com 0,1% C e atingindo um platô em torno de 65-67 HRC para aços com teor de carbono acima de 0,6%. Este platô indica que, a partir deste ponto, a dureza máxima foi atingida e adicionar mais carbono não resultará em um aumento significativo da dureza da martensita. - A curva inferior, em contraste, mostra a dureza da perlita (obtida por recozimento, um processo de equilíbrio). A dureza da perlita também aumenta com o carbono, mas de forma muito mais branda e atingindo valores significativamente menores. Um aço com 0,8% C, por exemplo, terá cerca de 65 HRC na forma de martensita, mas apenas cerca de 25 HRC na forma de perlita. - Este gráfico, portanto, não apenas demonstra a importância do carbono, mas também justifica a existência do próprio tratamento de têmpera: é o único processo capaz de destravar o potencial máximo de dureza de um aço. Se a dureza máxima depende do carbono, a temperabilidade é um conceito diferente e igualmente vital. Ela descreve a facilidade com que a martensita pode ser formada em profundidade em uma peça. Um aço de alta temperabilidade pode ser transformado em martensita através de toda a sua seção transversal, mesmo em peças de grande espessura e com taxas de resfriamento mais lentas. Em contraste, um aço de baixa temperabilidade só formará martensita em uma fina camada superficial, mesmo com resfriamento muito rápido, enquanto seu núcleo se transformará em perlita ou bainita. A temperabilidade não é governada pelo carbono, mas sim pelos elementos de liga (como cromo, molibdênio, níquel, manganês). Estes elementos, quando em solução sólida na austenita, "atrasam" as transformações difusionais (perlítica e bainítica). Em termos de um diagrama TTT, eles deslocam as curvas de início de transformação (o "nariz" da curva) para a Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 13 direita, para tempos mais longos. Isso cria uma"janela de tempo" maior para que a peça, durante o resfriamento, possa passar pela região do nariz sem iniciar a transformação em perlita, permitindo que atinja a temperatura de início da martensita (Ms) e se transforme completamente em martensita. O método padrão universal para medir e comparar a temperabilidade dos aços é o Ensaio Jominy de Têmpera Final (End-Quench Test), cujo aparato e resultado típico são ilustrados na Figura 20.4 do Groover. O procedimento do ensaio é o seguinte: 1. Um corpo de prova cilíndrico padronizado (geralmente 25,4 mm de diâmetro e 102 mm de comprimento) é aquecido até sua temperatura de austenitização. 2. Ele é rapidamente transferido para um dispositivo onde um jato de água a uma temperatura e vazão controladas atinge apenas a sua face inferior. 3. O resfriamento ocorre de forma contínua ao longo do comprimento da barra. A extremidade atingida pela água resfria-se quase instantaneamente, enquanto as regiões mais distantes resfriam-se mais lentamente, por condução de calor ao longo da barra e convecção com o ar. 4. Após o resfriamento, duas pequenas superfícies planas são usinadas em lados opostos ao longo do comprimento da barra. 5. A dureza Rockwell C é medida em intervalos padronizados a partir da extremidade temperada. O resultado é uma curva de temperabilidade (ou curva Jominy), que plota a dureza em função da distância da extremidade temperada. Aços de alta temperabilidade apresentarão uma curva que decai lentamente, mantendo uma dureza elevada por uma distância maior. Aços de baixa temperabilidade terão uma queda abrupta na dureza logo após a extremidade temperada. Estas curvas são como uma "impressão digital" da temperabilidade de um aço e são amplamente utilizadas em especificações de materiais para garantir que um lote de aço responderá adequadamente ao tratamento térmico pretendido. A escolha do meio de resfriamento (quenchante) é uma decisão crítica que busca um equilíbrio delicado. O meio deve ser severo o suficiente para extrair calor a uma velocidade superior à Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 14 velocidade crítica de resfriamento do aço (a velocidade mínima para evitar a formação de perlita), mas não tão severo a ponto de causar trincas ou distorções inaceitáveis devido à geração de tensões residuais. A severidade dos meios de resfriamento mais comuns, em ordem decrescente, é: 1. Salmoura (água com sal): Altíssima taxa de resfriamento. Usada para aços carbono de baixa temperabilidade e geometrias simples. 2. Água: Alta taxa de resfriamento, mas com um estágio de vapor instável que pode causar resfriamento não uniforme. 3. Óleo: Taxa de resfriamento mais branda e controlada. É o meio mais comum para aços-liga, pois minimiza significativamente o risco de distorção e trincas. 4. Sais Fundidos: Usados em tratamentos isotérmicos (austêmpera, martêmpera) para um controle preciso da temperatura. 5. Ar: Resfriamento muito lento, usado apenas para aços de altíssima temperabilidade (conhecidos como aços "temperáveis ao ar"), como muitos aços para ferramentas. As tensões residuais são uma consequência inevitável da têmpera e surgem de duas fontes principais: - Tensões Térmicas: A superfície da peça resfria-se e se contrai mais rapidamente que o núcleo. Isso gera tensões de tração na superfície e compressão no núcleo. - Tensões de Transformação: À medida que a peça se resfria, a superfície atinge a temperatura Ms e se transforma em martensita antes do núcleo. Como a martensita é menos densa (tem um volume maior) que a austenita, sua formação causa uma expansão. Esta expansão superficial, enquanto o núcleo ainda é austenítico e está se contraindo, gera tensões de compressão na superfície e de tração no núcleo. O estado final de tensões é a soma complexa desses dois efeitos. Geralmente, em peças de aço carbono temperadas, o efeito da transformação prevalece, resultando em um perfil desejável de tensões residuais de compressão na superfície (que aumentam a resistência à fadiga) e tração no núcleo. No entanto, se essas tensões forem excessivas, elas podem exceder a resistência do material e causar distorção (empenamento) ou, no pior caso, o aparecimento de trincas de têmpera. O controle do meio de resfriamento e o projeto da peça são fundamentais para mitigar esses riscos. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 15 6 Revenido: Ajuste Fino das Propriedades Como estabelecido no capítulo anterior, a têmpera é um processo notavelmente eficaz para alcançar a dureza máxima em um aço, transformando a austenita em martensita. No entanto, essa dureza extrema vem acompanhada de uma consequência indesejável e perigosa: a extrema fragilidade. Uma peça de aço na condição "como temperada" é mecanicamente instável, repleta de tensões internas e possui uma tenacidade tão baixa que pode fraturar catastroficamente sob o menor impacto ou choque, de forma similar a um pedaço de vidro. Para a vasta maioria das aplicações de engenharia, onde se exige uma combinação de alta resistência e a capacidade de absorver energia (tenacidade), a martensita pura é inadequada. É neste ponto que o revenido se torna um tratamento térmico subsequente, não apenas recomendado, mas obrigatório. O revenido é um processo de reaquecimento controlado da peça temperada a uma temperatura abaixo da zona crítica (A₁), seguido por um período de manutenção e, por fim, resfriamento. O objetivo fundamental é aumentar a tenacidade e a ductilidade da estrutura martensítica, ao mesmo tempo em que se alivia as tensões internas geradas durante a têmpera. Este ganho em tenacidade é invariavelmente acompanhado por uma perda controlada e previsível de dureza e resistência mecânica. O resultado deste ajuste fino é uma microestrutura chamada martensita revenida, que, para muitas aplicações, representa o equilíbrio ótimo de propriedades mecânicas que um aço pode oferecer A Figura 20.3 do Groover apresenta de forma esquemática o ciclo térmico completo e típico para um tratamento de têmpera e revenido, que constitui a espinha dorsal do endurecimento de aços. O processo pode ser dissecado em três etapas fundamentais e sequenciais: 1. Austenitização: A peça é aquecida a uma temperatura adequada (acima de A₃ para aços hipoeutetóides ou acima de A₁ para hipereutetóides) e mantida por tempo suficiente para que sua estrutura se transforme completamente em austenita homogênea. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 16 2. Têmpera: Imediatamente após a austenitização, a peça é resfriada rapidamente em um meio apropriado (água, óleo, ar) a uma velocidade superior à sua velocidade crítica de resfriamento. O objetivo é suprimir a formação de perlita e bainita, forçando a transformação da austenita em martensita. 3. Revenido: A peça, agora na condição temperada (dura e frágil), é reaquecida a uma temperatura precisamente controlada, abaixo da temperatura eutetóide (A₁). Ela é mantida nesta temperatura por um período de tempo específico (geralmente de 1 a 2 horas) para permitir que as transformações metalúrgicas ocorram, e então é resfriada, geralmente ao ar. Este ciclo é a base para a fabricação de inúmeros componentes mecânicos, desde simples parafusos de alta resistência até complexas engrenagens de transmissão e matrizes de forjamento. O "segredo" do revenido reside na energia térmica (calor) fornecida à estrutura instável da martensita. Esta energia permite que os átomos de carbono, que estavam supersaturados e presos na rede tetragonal, comecem a se difundir localmente. Este movimento atômico desencadeia uma sequência complexa e bem documentada de transformações microestruturais que, em conjunto, aliviam a distorção da rede e aumentam drasticamente a tenacidade. Estas transformações são geralmente divididas em quatro estágios, que podem se sobrepor dependendo datemperatura e do tempo: Estágio 1 (Aproximadamente 100-250°C): A mobilidade recém-adquirida dos átomos de carbono permite que eles comecem a sair da solução sólida da martensita. Eles se agrupam e formam precipitados extremamente finos de um carboneto de transição, conhecido como carboneto épsilon (ε), que possui uma estrutura hexagonal compacta. A saída do carbono da rede da martensita reduz sua tetragonalidade, aliviando uma parte significativa das tensões internas. A dureza pode até aumentar ligeiramente em alguns aços neste estágio devido à fina precipitação. Estágio 2 (Aproximadamente 200-300°C): Se a têmpera não foi perfeita, uma pequena fração de austenita pode não ter se transformado em martensita, ficando retida na microestrutura. Esta austenita retida é instável e, nesta faixa de temperatura, ela se decompõe, geralmente formando uma microestrutura fina de bainita. Estágio 3 (Aproximadamente 250-400°C): Com mais energia térmica, os carbonetos de transição (ε) se dissolvem e são substituídos por partículas mais estáveis e distintas de cementita (Fe₃C). A morfologia da cementita ainda é muito fina neste estágio. A dureza começa a diminuir de forma mais notável, enquanto a tenacidade aumenta consideravelmente. Estágio 4 (Acima de 400°C): Este é o estágio de amaciamento (softening). As partículas de cementita começam a crescer em tamanho (um processo chamado coalescência ou Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 17 amadurecimento de Ostwald) e a assumir uma forma esferoidal para minimizar a energia de superfície. A matriz de ferrita, livre da distorção tetragonal, se recupera (eliminação de discordâncias) e, em temperaturas mais altas (acima de 600°C), pode até recristalizar, formando novos grãos livres de tensões. O resultado final é uma microestrutura composta por uma matriz de ferrita macia e dúctil, reforçada por uma dispersão de partículas de cementita esferoidizadas. Quanto maior a temperatura e o tempo de revenido, maiores e mais espaçadas serão as partículas de cementita, resultando em menor dureza e maior tenacidade. A temperatura de revenido é o parâmetro de controle mais crítico para determinar as propriedades finais da peça. A relação é inversamente proporcional: quanto maior a temperatura de revenido, menor a dureza e a resistência, e maior a tenacidade e a ductilidade. Esta relação permite ao engenheiro "sintonizar" as propriedades do aço para uma aplicação específica, conforme a tabela abaixo: Apesar dos benefícios, o processo de revenido possui "armadilhas" que devem ser conhecidas e evitadas. Certos aços-liga, quando revenidos em faixas de temperatura específicas, podem sofrer uma perda inesperada e perigosa de tenacidade (medida, por exemplo, pela energia de impacto em um ensaio Charpy). Este fenômeno é conhecido como fragilidade do revenido. Existem dois tipos principais: 1. Fragilidade Irreversível do Revenido (ou Fragilidade de 300°C): Ocorre quando o aço é revenido na faixa de aproximadamente 250°C a 400°C. Acredita-se que seja causada pela precipitação de finos filmes de cementita nos contornos de grão da martensita, criando um caminho fácil para a propagação de trincas. 2. Fragilidade Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 18 Reversível do Revenido: Ocorre em uma faixa de temperatura mais alta (tipicamente 375- 575°C) ou durante o resfriamento lento através desta faixa após um revenido a temperaturas mais elevadas. Este fenômeno é causado pela segregação de elementos de impureza (como fósforo (P), estanho (Sn), antimônio (Sb) e arsênio (As)) para os contornos de grão da austenita original. Esta segregação enfraquece a coesão entre os grãos. A adição de molibdênio (Mo) ao aço é conhecida por mitigar este efeito. Devido a esses fenômenos, os engenheiros devem consultar manuais e especificações para evitar operar dentro dessas faixas de temperatura críticas para aços suscetíveis, garantindo assim a confiabilidade e a segurança do componente em serviço. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 19 7 Recozimento e Normalização Enquanto a têmpera e o revenido são processos focados em maximizar a dureza e a resistência, há uma vasta gama de situações na engenharia onde o oposto é desejado. Processos de fabricação como usinagem, conformação a frio (estampagem, trefilação) e soldagem exigem que o material esteja em sua condição mais macia, dúctil e livre de tensões possível. Além disso, processos de fabricação brutos como fundição e forjamento podem gerar microestruturas grosseiras, heterogêneas e com altas tensões internas, que precisam ser refinadas e homogeneizadas antes do uso ou de tratamentos térmicos subsequentes. É para atender a essas necessidades que existem os tratamentos de recozimento e normalização. Ambos envolvem o aquecimento do aço até o campo austenítico, seguido por um resfriamento controlado. No entanto, a sutil, porém crítica, diferença na velocidade de resfriamento entre os dois processos resulta em microestruturas e propriedades mecânicas distintas, tornando-os adequados para objetivos diferentes. O termo "recozimento" abrange uma família de tratamentos térmicos cujo objetivo principal é levar o aço a uma condição de máximo amaciamento, máxima ductilidade e mínimas tensões internas, aproximando-o de seu estado de equilíbrio termodinâmico. O processo mais comum é o recozimento pleno (full annealing). Ciclo Térmico do Recozimento Pleno: 1. Aquecimento: O aço é aquecido lentamente até uma temperatura adequada no campo austenítico. Para aços hipoeutetóides, aquece-se a cerca de 30-50°C acima da linha A₃ para garantir a austenitização completa. Para aços hipereutetóides, aquece-se a cerca de 30-50°C acima da linha A₁, para austenitizar a matriz perlítica sem dissolver completamente a cementita já existente. 2. Manutenção: A peça é mantida na temperatura de austenitização por tempo suficiente para garantir a completa homogeneização da estrutura em toda a sua seção. 3. Resfriamento: Esta é a etapa definidora do processo. A peça é resfriada muito lentamente, geralmente desligando-se o forno e permitindo que a peça resfrie junto com ele ao longo de várias horas. Esta taxa de resfriamento extremamente baixa permite que as transformações de fase ocorram em condições muito próximas às de equilíbrio, conforme previsto pelo diagrama de fases Ferro-Carbono. O resfriamento lento permite que a transformação da austenita ocorra em temperaturas elevadas, onde a difusão atômica é alta. Isso resulta na formação de perlita grosseira. A perlita grosseira consiste em lamelas espessas e bem espaçadas de ferrita (macia e dúctil) e cementita (dura e frágil). Devido ao grande espaçamento lamelar, a matriz de ferrita é a fase contínua e dominante, conferindo ao material as seguintes propriedades: - Baixa Dureza e Resistência Mecânica: É a condição mais macia que se pode obter para um determinado aço. - Máxima Ductilidade e Tenacidade: A capacidade de deformação plástica é maximizada. - Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 20 Excelente Usinabilidade: A baixa dureza facilita o corte e a formação de cavacos, reduzindo o desgaste da ferramenta de usinagem. - Ausência de Tensões Residuais: O resfriamento lento e uniforme elimina as tensões internas geradas em processos de fabricação anteriores. Outros Tipos de Recozimento: - Recozimento para Alívio de Tensões: Realizado a temperaturas mais baixas (abaixo de A₁), não visa alterar a microestrutura, mas apenas aliviar as tensões geradas por soldagem, usinagem pesada ou conformação a frio. - Recozimento para Esferoidização: Aplicado a aços de alto carbono, envolve um longo tempo de manutenção a uma temperatura logo abaixo de A₁. O objetivo é transformar as lamelas de cementita da perlita em pequenas partículas esferoidais dispersasem uma matriz de ferrita. Esta é a condição de máxima maciez e é essencial para a conformação a frio de aços de alto carbono A normalização é frequentemente confundida com o recozimento, mas seus objetivos e resultados são diferentes. Enquanto o recozimento busca a maciez máxima, a normalização visa refinar a microestrutura, homogeneizar a composição e melhorar a tenacidade, produzindo um aço com propriedades mecânicas mais uniformes e previsíveis Ciclo Térmico da Normalização: 1. Aquecimento: O aço é aquecido a uma temperatura no campo austenítico, similar ou ligeiramente superior à do recozimento (sempre acima de A₃ para todos os aços, para garantir a dissolução completa de qualquer microestrutura anterior). 2. Manutenção: Manutenção para garantir a austenitização completa. 3. Resfriamento: Esta é a diferença fundamental. A peça é removida do forno e resfriada ao ar calmo. Este resfriamento é significativamente mais rápido que o resfriamento dentro do forno do recozimento, mas muito mais lento que uma têmpera em óleo ou água. O resfriamento ao ar força a transformação da austenita a ocorrer em temperaturas mais baixas do que no recozimento. A menor taxa de difusão resulta na formação de perlita fina. A perlita fina consiste em lamelas de ferrita e cementita muito mais finas e mais próximas umas das outras. Além disso, a taxa de nucleação de novas colônias de perlita é maior, resultando em um tamanho de grão final menor e mais refinado. Esta microestrutura confere ao material um conjunto de propriedades superior em muitos aspectos ao do recozido: - Dureza e Resistência Ligeiramente Superiores: A perlita fina é mais dura e resistente que a perlita grosseira devido ao maior número de interfaces ferrita-cementita que dificultam o movimento de discordâncias. - Excelente Tenacidade: O refino de grão é um dos mecanismos mais eficazes para aumentar a tenacidade de um aço. - Homogeneidade Microestrutural: A normalização elimina a segregação e as estruturas grosseiras de fundição ou forjamento, criando uma microestrutura uniforme em toda a peça. Isso é crucial para garantir uma resposta consistente em tratamentos térmicos subsequentes, como a têmpera. A escolha entre recozimento e normalização depende do objetivo final. A tabela abaixo resume as principais diferenças: Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 21 Em resumo, se o objetivo é simplesmente amaciar o aço ao máximo para facilitar uma operação de fabricação, o recozimento é a escolha. Se o objetivo é criar uma peça com boa tenacidade e uma microestrutura refinada e uniforme como condição final ou como preparação para um endurecimento posterior, a normalização é o tratamento mais adequado e economicamente vantajoso. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 22 8 Tratamentos Isotérmicos Os tratamentos de têmpera e revenido convencional, embora amplamente eficazes, possuem uma desvantagem intrínseca: a formação da martensita ocorre de forma brusca e em uma ampla faixa de temperaturas durante o resfriamento contínuo. Isso gera gradientes térmicos e de transformação significativos entre a superfície e o núcleo da peça, resultando em altas tensões residuais que podem levar a distorções, empenamentos ou até mesmo trincas, especialmente em peças de geometria complexa ou de seções variáveis. Para superar essas limitações, foram desenvolvidos os tratamentos térmicos isotérmicos. A palavra-chave aqui é "isotérmico", que significa "à mesma temperatura". Nestes processos, o resfriamento a partir da austenitização é interrompido em uma temperatura específica e mantido constante por um período de tempo controlado, permitindo que as transformações de fase ocorram de maneira mais uniforme e menos violenta. Os dois principais tratamentos isotérmicos são a austêmpera e a martêmpera. Ambos os processos utilizam um banho de sal fundido ou óleo quente como meio de resfriamento intermediário, pois esses meios permitem uma extração de calor rápida o suficiente para evitar a formação de perlita (passar pelo "nariz" da curva TTT), mas também conseguem manter uma temperatura constante e uniforme com alta precisão. Austêmpera: Obtendo Bainita de Alta Tenacidade A austêmpera é um tratamento isotérmico cujo objetivo é produzir uma microestrutura totalmente bainítica. A bainita, como visto na apostila anterior, é uma microestrutura não lamelar de ferrita e cementita que possui uma combinação única de alta resistência, boa ductilidade e, principalmente, excelente tenacidade e resistência à fadiga, muitas vezes superior à da martensita revenida de mesma dureza. Ciclo Térmico da Austêmpera: 1. Austenitização: A peça é aquecida e mantida na temperatura de austenitização, da mesma forma que nos outros tratamentos. 2. Resfriamento Rápido (Têmpera Interrompida): A peça é rapidamente transferida para um banho de sal fundido mantido a uma temperatura constante, localizada acima da temperatura de início da martensita (Ms), na região de formação da bainita no diagrama TTT (tipicamente entre 260°C e 400°C). 3. Manutenção Isotérmica: A peça é mantida nesta temperatura por tempo suficiente para que a transformação da austenita em bainita se complete. O tempo necessário é determinado pela curva de fim de transformação no diagrama TTT. 4. Resfriamento Final: Após a transformação completa, a peça é resfriada ao ar até a temperatura ambiente. Microestrutura e Propriedades Resultantes: - A microestrutura final é 100% bainítica (geralmente bainita inferior, que é mais tenaz). - Alta Tenacidade e Resistência ao Impacto: Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 23 Como a transformação ocorre de forma mais lenta e em uma temperatura mais alta que a martensítica, as tensões geradas são muito menores. - Mínima Distorção e Risco de Trincas: A transformação ocorre de maneira uniforme em toda a peça, que está a uma temperatura constante, eliminando os gradientes térmicos e de transformação. - Boa Ductilidade e Resistência à Fadiga: A morfologia da bainita (agulhas de ferrita com finos carbonetos) é excelente para resistir à propagação de trincas. - Processo Único: A austêmpera substitui tanto a têmpera quanto o revenido em uma única operação, podendo ser mais econômica em alguns casos. Limitações e Aplicações: A principal limitação da austêmpera é que ela só é aplicável a peças de seção relativamente fina e a aços com temperabilidade adequada, que permitam passar pelo nariz da curva TTT sem formar perlita. É amplamente utilizada na fabricação de componentes que exigem alta tenacidade e resistência à fadiga, como: - Molas e grampos de fixação. - Componentes de transmissão automotiva. - Peças de arados e equipamentos agrícolas. - Ferros fundidos nodulares, que respondem excepcionalmente bem à austêmpera, gerando o material conhecido como ADI (Austempered Ductile Iron), que compete com aços forjados em muitas aplicações. Martêmpera: Têmpera com Alívio de Tensões A martêmpera, também conhecida como "marquenching", não deve ser confundida com a austêmpera. O objetivo da martêmpera não é evitar a formação de martensita, mas sim formar martensita de maneira mais suave e controlada, minimizando as tensões residuais e a distorção. O produto final é martensita, que, assim como na têmpera convencional, precisa ser revenida posteriormente. Ciclo Térmico da Martêmpera: 1. Austenitização: Etapa idêntica à dos outros tratamentos. 2. Resfriamento Rápido (Têmpera Interrompida): A peça é resfriada rapidamente em um banho de sal ou óleo quente a uma temperatura ligeiramente acima da temperatura de início da martensita (Ms). 3. Equalização Isotérmica: A peça é mantida nesta temperatura apenas por tempo suficiente para que a temperatura se equalize entre a superfície e o núcleo. Este tempo deve ser curto o suficiente para não iniciar a transformação bainítica. 4. Resfriamentoao Ar: A peça é removida do banho e resfriada lentamente ao ar. Durante este resfriamento, a transformação da austenita em martensita ocorre de forma lenta e uniforme em toda a seção da peça, pois não há um gradiente térmico significativo. 5. Revenido: A peça, agora com uma estrutura de martensita de baixa tensão, é revenida da maneira convencional para ajustar a dureza e aumentar a tenacidade. Vantagens e Propriedades: - Minimização Drástica da Distorção e Empenamento: Esta é a principal vantagem da martêmpera. Como a transformação martensítica (que envolve expansão de volume) ocorre de forma quase simultânea na superfície e no núcleo, as tensões Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 24 de transformação são drasticamente reduzidas. - Redução do Risco de Trincas de Têmpera: A ausência de gradientes térmicos severos durante a transformação minimiza o risco de falha. - Propriedades Finais Similares à Têmpera e Revenido: Após o revenido, as propriedades mecânicas são muito semelhantes às obtidas por um processo convencional, mas com a vantagem de uma peça dimensionalmente mais estável e precisa. Aplicações: A martêmpera é ideal para peças que exigem alta dureza e precisão dimensional, onde a distorção da têmpera convencional seria inaceitável. Exemplos incluem: - Engrenagens de alta precisão. - Matrizes e moldes com geometrias complexas. - Rolamentos de grande porte. - Componentes de sistemas de injeção de combustível. Em suma, a escolha entre austêmpera e martêmpera depende das propriedades finais desejadas. Se o objetivo é a máxima tenacidade e resistência à fadiga em uma única operação, a austêmpera é a escolha. Se o objetivo é a máxima dureza com a máxima precisão dimensional, a martêmpera seguida de revenido é o caminho a seguir Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 25 9 Tratamentos Termoquimicos Até agora, os tratamentos discutidos alteravam a microestrutura do aço sem modificar sua composição química geral. No entanto, existe uma classe de tratamentos extremamente importante que combina um ciclo térmico com a alteração deliberada da composição química da superfície da peça. Estes são os tratamentos termoquímicos. O objetivo fundamental é criar um componente com um perfil de propriedades dual: uma superfície (ou casca) extremamente dura e resistente ao desgaste, e um núcleo macio e tenaz. Esta combinação é ideal para inúmeras aplicações de engenharia, como engrenagens, eixos e rolamentos, que precisam resistir ao atrito e à fadiga na superfície, enquanto o núcleo precisa absorver cargas de impacto e choque. O processo baseia-se na difusão de elementos intersticiais (pequenos átomos que se encaixam nos espaços da rede cristalina do ferro), como o carbono (C) e o nitrogênio (N), da atmosfera do forno para a superfície do aço. Para que a difusão ocorra em uma velocidade razoável, o processo deve ser realizado a temperaturas elevadas. A profundidade da camada modificada é controlada pelo tempo e pela temperatura do tratamento. Cementação: Enriquecendo a Superfície com Carbono A cementação é o tratamento termoquímico mais antigo e amplamente utilizado. O processo consiste em aquecer um aço de baixo carbono (tipicamente 0,10% a 0,25% C) a uma temperatura elevada no campo austenítico (geralmente 900-950°C) em uma atmosfera rica em carbono. O carbono da atmosfera se difunde para a superfície do aço, aumentando o teor de carbono superficial para a faixa de 0,8% a 1,0%. Após o período de cementação, a peça possui um gradiente de composição: uma superfície de alto carbono e um núcleo que permanece com o baixo teor de carbono original. A peça é então temperada. A superfície de alto carbono, com alta temperabilidade, transforma-se em martensita de alta dureza (~62 HRC). O núcleo de baixo carbono, com baixa temperabilidade, não endurece significativamente, resultando em uma microestrutura macia e tenaz (geralmente ferrita e perlita). O processo é sempre seguido por um revenido de baixa temperatura (~150-200°C) para aliviar as tensões da têmpera. Existem três métodos principais para fornecer o carbono: - Cementação Sólida (em Caixa): Método mais antigo. A peça é embalada em uma caixa de aço com um composto rico em carbono (carvão vegetal ativado com um catalisador como o carbonato de bário) e aquecida. É um processo lento e de difícil controle, usado hoje apenas para peças únicas ou pequenos lotes. - Cementação Líquida: A peça é imersa em um banho de sal fundido (cianetos) a alta temperatura. É mais rápido que a cementação sólida, mas o uso de cianetos, que são Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 26 altamente tóxicos, representa um risco ambiental e de segurança significativo. - Cementação Gasosa: É o método mais moderno, preciso e amplamente utilizado na indústria. A peça é aquecida em um forno com uma atmosfera controlada, composta por um gás transportador (geralmente gás endotérmico) enriquecido com um gás rico em carbono, como o gás natural (metano, CH₄) ou propano. O controle preciso da composição da atmosfera permite um controle exato do potencial de carbono e da profundidade da camada cementada. É ideal para produção em massa e automação. Nitretação: Dureza Extrema com Baixa Distorção A nitretação é um tratamento termoquímico que introduz nitrogênio na superfície do aço. Diferentemente da cementação, a nitretação é realizada a temperaturas muito mais baixas (tipicamente 500-570°C), abaixo da zona crítica do aço. Nesta temperatura, o aço permanece no estado ferrítico. O nitrogênio se difunde na superfície e reage com elementos de liga presentes no aço que têm alta afinidade pelo nitrogênio, como o alumínio (Al), cromo (Cr), molibdênio (Mo) e vanádio (V). Esta reação forma uma dispersão extremamente fina e coerente de nitretos metálicos. Estes nitretos são incrivelmente duros e estáveis, e distorcem a rede da ferrita, criando um campo de tensões que impede o movimento de discordâncias. Como o processo ocorre a baixa temperatura e não envolve uma transformação de fase como a têmpera, a distorção e o empenamento da peça são mínimos. Isso é uma vantagem gigantesca, pois permite que as peças sejam acabadas em suas dimensões finais antes da nitretação, eliminando a necessidade de operações de retífica caras após o tratamento. Principais Vantagens da Nitretação: - Altíssima Dureza Superficial: A dureza da camada nitretada pode exceder 1000 HV (equivalente a mais de 70 HRC), sendo superior à da cementação. - Excelente Resistência ao Desgaste e à Abrasão. - Boa Resistência à Fadiga: O processo induz altas tensões residuais de compressão na superfície. - Estabilidade Térmica: A dureza é mantida em temperaturas de serviço mais elevadas do que em peças cementadas, pois os nitretos são muito estáveis. - Mínima Distorção: Como mencionado, esta é a sua principal vantagem competitiva. Métodos de Nitretação: - Nitretação a Gás: O método tradicional, usando amônia (NH₃) como fonte de nitrogênio. - Nitretação em Banho de Sal (Líquida): Usa sais de cianeto e cianato. O processo é mais rápido, mas com os mesmos riscos ambientais da cementação líquida. - Nitretação a Plasma (ou Iônica): O método mais moderno. A peça é colocada em uma câmara de vácuo e uma diferença de potencial elétrico é aplicada, criando um plasma de nitrogênio. Os íons de nitrogênio são acelerados e bombardeiam a superfície da peça, difundindo-se para Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 27 dentro. Oferece o melhor controle sobre a estrutura da camada e é mais limpo ambientalmente Carbonitretação e Nitrocarbonetação Ferrítica Existem também processos híbridos que introduzem tanto carbono quanto nitrogênio na superfície do aço, buscando combinar as vantagens de ambos os processos. Carbonitretação: É essencialmente uma cementação gasosa onde uma pequena quantidade deamônia é adicionada à atmosfera. O processo é realizado a temperaturas mais baixas que a cementação (tipicamente 800-870°C). A adição de nitrogênio aumenta a temperabilidade da camada superficial, permitindo o uso de óleos de têmpera menos severos (reduzindo a distorção) ou até mesmo o tratamento de aços carbono simples. É um processo muito comum para endurecer peças pequenas de baixo custo em grande volume. Nitrocarbonetação Ferrítica (FNC): Este é um processo mais próximo da nitretação. É realizado a uma temperatura similar (570-580°C), onde o aço está na fase ferrítica. Uma atmosfera contendo tanto fontes de nitrogênio (amônia) quanto de carbono (gases como CO₂ ou gás endotérmico) é utilizada. O objetivo é criar uma fina camada superficial composta (a "camada branca"), rica em carbonitretos épsilon, sobre uma zona de difusão rica em nitrogênio. A FNC oferece excelente resistência ao desgaste, ao engripamento e à corrosão, com mínima distorção. É amplamente utilizada em componentes como virabrequins, eixos de comando de válvulas e hastes de amortecedores. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 28 Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 29 10 Tratamentos Superficiais e Endurecimento por Precipitação Os tratamentos termoquímicos, como a cementação e a nitretação, são extremamente eficazes, mas envolvem a complexidade e o tempo associados à difusão de elementos na superfície do aço. Existe uma outra classe de tratamentos de endurecimento superficial que alcança um resultado similar – uma superfície dura e um núcleo tenaz – mas sem alterar a composição química do material. Estes processos utilizam um aquecimento extremamente rápido e localizado, seguido por uma têmpera imediata. A chave é aquecer apenas a camada superficial do aço até a temperatura de austenitização, enquanto o núcleo permanece frio. A têmpera subsequente transforma apenas a camada superficial austenitizada em martensita, deixando o núcleo inalterado. Estes métodos são aplicáveis apenas a aços com teor de carbono suficiente para formar martensita (tipicamente aços de médio a alto carbono, > 0,35% C). Os dois processos mais comuns nesta categoria são a têmpera por indução e a têmpera por chama. Têmpera por Indução: Aquecimento Eletromagnético Preciso A têmpera por indução é um processo altamente sofisticado e controlável que utiliza os princípios do eletromagnetismo para gerar calor diretamente na superfície da peça. Princípios Físicos: 1. Uma bobina de cobre, chamada de indutor, é posicionada próxima à superfície da peça a ser tratada, mas sem contato físico. 2. Uma corrente alternada de alta frequência (de kHz a MHz) é passada através da bobina indutora. 3. Esta corrente gera um campo magnético que varia rapidamente no tempo. 4. De acordo com a Lei de Faraday da Indução, o campo magnético variável induz correntes parasitas (ou correntes de Foucault) na superfície condutora da peça de aço. 5. Devido à resistência elétrica do aço, a passagem dessas correntes parasitas gera um aquecimento intenso e localizado por efeito Joule. Além disso, em materiais ferromagnéticos, as perdas por histerese magnética também contribuem para o aquecimento. Um fenômeno crucial neste processo é o efeito pelicular (skin effect), que faz com que as correntes induzidas se concentrem em uma fina camada na superfície do material. A profundidade desta camada é inversamente proporcional à frequência da corrente: altas frequências resultam em um aquecimento muito superficial, enquanto frequências mais baixas permitem um aquecimento mais profundo. Isso permite um controle preciso da profundidade da camada a ser endurecida. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 30 Processo e Equipamentos: O processo é extremamente rápido. A superfície da peça pode ser aquecida até a temperatura de austenitização em questão de segundos. Imediatamente após o aquecimento, a peça é resfriada por um spray de água ou outro meio de têmpera, muitas vezes integrado ao próprio dispositivo da bobina. O resultado é uma camada superficial de martensita dura, enquanto o núcleo, que nunca foi aquecido, mantém sua microestrutura e propriedades originais (geralmente uma estrutura normalizada ou beneficiada). Vantagens: - Velocidade e Eficiência: O aquecimento é extremamente rápido e energeticamente eficiente, pois o calor é gerado diretamente na peça. - Controle e Repetibilidade: O processo é facilmente automatizado, oferecendo um controle preciso sobre a profundidade da camada, a temperatura e o resultado final, com alta repetibilidade. - Mínima Oxidação e Distorção: O aquecimento rápido e localizado minimiza a oxidação e a distorção da peça como um todo. - Flexibilidade: Pode ser aplicado a geometrias complexas, endurecendo seletivamente apenas as áreas que necessitam de alta dureza (como os flancos dos dentes de uma engrenagem). Aplicações: É amplamente utilizado na indústria automotiva para endurecer eixos, virabrequins, comandos de válvulas e dentes de engrenagens. Têmpera por Chama: Um Método Versátil A têmpera por chama é um processo mais antigo e menos automatizado, mas ainda muito útil e versátil, especialmente para peças grandes ou para produções de baixo volume onde o custo de um indutor específico não se justifica. Processo: O processo envolve o uso de uma tocha de alta temperatura, alimentada por uma mistura de gás combustível (como acetileno, propano ou gás natural) e oxigênio, para aquecer rapidamente a superfície da peça. A chama é direcionada para a área a ser endurecida. Um operador experiente controla a distância, a velocidade de deslocamento da tocha e a intensidade da chama para atingir a temperatura de austenitização correta na superfície. Imediatamente após o aquecimento, a área é resfriada por um jato de água ou outro meio de têmpera. Vantagens e Desvantagens: - Versatilidade e Baixo Custo de Equipamento: Pode ser aplicado a peças de praticamente qualquer tamanho e formato. O equipamento básico (tochas e cilindros de gás) é relativamente barato. - Dependência da Habilidade do Operador: O controle do processo é menos preciso e depende muito da habilidade e experiência do operador para obter resultados consistentes. - Menor Eficiência Energética: Grande parte do calor da chama é perdida para o ambiente. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 31 Aplicações: É comumente usada para endurecer superfícies de peças grandes, como guias de barramento de máquinas-ferramenta, grandes engrenagens, anéis de rolamento de grande diâmetro e trilhos. Endurecimento por Precipitação (Envelhecimento) Até agora, focamos no endurecimento de aços através da transformação martensítica. No entanto, muitas ligas não-ferrosas, como as de alumínio, níquel, magnésio e titânio, não sofrem este tipo de transformação. Para estas ligas, o principal mecanismo de endurecimento é o endurecimento por precipitação, também conhecido como envelhecimento. O princípio fundamental é criar uma fina e densa dispersão de partículas de uma segunda fase (os precipitados) dentro da matriz da liga. Estas partículas atuam como obstáculos extremamente eficazes ao movimento de discordâncias, aumentando drasticamente a resistência e a dureza do material. O processo, ilustrado esquematicamente na Figura 20.5 do Groover, ocorre em três etapas: 1. Solubilização (Solution Treatment): A liga é aquecida a uma temperatura elevada, dentro do campo de fase única (α), e mantida por tempo suficiente para dissolver todos os elementos de liga e formar uma solução sólida homogênea. 2. Têmpera (Quenching): A liga é resfriada rapidamente (geralmente em água) até a temperatura ambiente. Este resfriamento rápido "congela" os átomos dos elementos de liga em uma solução sólida supersaturada, não dando tempo para que eles se precipitem. 3. Envelhecimento(Aging): A liga, agora na condição supersaturada e relativamente macia, é reaquecida a uma temperatura intermediária e mantida por um longo período. Nesta Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 32 temperatura, os átomos dos elementos de liga ganham mobilidade suficiente para se difundirem e formarem uma dispersão extremamente fina de precipitados. O efeito do tempo e da temperatura de envelhecimento na dureza é crucial, como mostrado na Figura 20.6 do Groover. Inicialmente, a dureza aumenta à medida que os precipitados se formam e crescem até um tamanho ótimo para impedir o movimento de discordâncias (pico de envelhecimento). Se o envelhecimento continuar por muito tempo ou em uma temperatura muito alta, os precipitados começam a coalescer e a crescer demais (um processo chamado superenvelhecimento), tornando-se menos eficazes como obstáculos e fazendo com que a dureza da liga diminua. Aplicações: Este é o principal mecanismo de endurecimento para as ligas de alumínio de alta resistência usadas na indústria aeroespacial (como as séries 2xxx, 6xxx e 7xxx), bem como para muitas superligas à base de níquel usadas em componentes de turbinas a gás. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 33 11 Aplicações Industriais e Seleção de Tratamentos A seleção do tratamento térmico adequado é uma das decisões mais críticas no ciclo de vida de um componente mecânico. Não se trata de uma escolha arbitrária, mas de um processo lógico que começa com a análise dos requisitos de serviço da peça e termina com a especificação de um ciclo térmico preciso para obter a microestrutura que entregará as propriedades desejadas. O engenheiro de materiais atua como um tradutor, convertendo as necessidades do projeto (ex: "precisa resistir a 500.000 ciclos de fadiga sob uma carga de X MPa") em uma linguagem metalúrgica (ex: "precisamos de uma camada superficial de 1 mm com dureza de 60 HRC e tensões residuais de compressão de -400 MPa, sobre um núcleo com tenacidade de 80 J no ensaio Charpy"). Os fatores a serem considerados na seleção incluem: - Propriedades Mecânicas Requeridas: Dureza, resistência à tração, tenacidade, resistência à fadiga, resistência ao desgaste. - Material da Peça: A composição química do aço determina quais tratamentos são possíveis e qual será a resposta do material. - Geometria e Tamanho da Peça: Peças de seção espessa exigem aços de alta temperabilidade. Geometrias complexas são mais suscetíveis à distorção e trincas, favorecendo tratamentos mais suaves como a martêmpera ou a nitretação. - Condições de Serviço: Temperatura de operação, ambiente corrosivo, tipo de carregamento (estático, dinâmico, impacto). - Custo e Volume de Produção: Processos como a cementação gasosa e a têmpera por indução são ideais para alta produção, enquanto a têmpera por chama ou o recozimento em caixa podem ser mais viáveis para peças únicas ou pequenos lotes. Estudo de Caso 1: Engrenagem de Transmissão Automotiva Componente: Engrenagem helicoidal da caixa de câmbio de um automóvel. Requisitos de Projeto: Superfície: Altíssima dureza para resistir ao desgaste por contato de rolamento e deslizamento nos flancos dos dentes. Altíssima resistência à fadiga de contato para evitar a formação de pitting (micro-lascamento). Núcleo: Altíssima tenacidade para suportar as cargas de impacto que ocorrem durante as trocas de marcha e variações de torque. Análise e Seleção do Processo: 1. Material: A escolha recai sobre um aço de baixo carbono ligado, como o SAE 8620 (contendo Ni, Cr, Mo). O baixo carbono (0,20% C) garante um núcleo extremamente tenaz e Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 34 dúctil. Os elementos de liga conferem a temperabilidade necessária para endurecer o dente da engrenagem. 2. Tratamento: O perfil de propriedades (superfície dura, núcleo tenaz) aponta diretamente para um processo de endurecimento superficial. A cementação gasosa é o processo ideal para esta aplicação de altíssimo volume de produção. 3. Ciclo de Tratamento Detalhado: As engrenagens, já usinadas em sua forma final, são carregadas em um forno contínuo com atmosfera controlada. Cementação: São aquecidas a ~925°C em uma atmosfera rica em carbono. O tempo de permanência é calculado para atingir uma profundidade de camada eficaz de ~0,8 a 1,2 mm, com um teor de carbono superficial de ~0,8-0,9%. Têmpera Direta: Ao saírem da zona de cementação, as engrenagens são diretamente temperadas em óleo quente (~60-80°C). A superfície de alto carbono se transforma em martensita de alta dureza (~62 HRC). O núcleo de baixo carbono, devido à sua baixa temperabilidade, transforma-se em uma mistura de ferrita, bainita e martensita de baixo carbono, resultando em uma estrutura de baixa dureza e alta tenacidade. Revenido de Baixa Temperatura: As engrenagens são revenidas a ~150-180°C. Este revenido serve para aliviar as tensões de têmpera e aumentar ligeiramente a tenacidade da camada cementada, com uma pequena perda de dureza (para ~58-60 HRC). Resultado Final: Uma engrenagem com uma casca dura e resistente ao desgaste e um núcleo capaz de absorver as cargas de choque, garantindo uma longa vida útil e operação silenciosa. Estudo de Caso 2: Virabrequim de Motor a Diesel de Alta Performance Componente: Virabrequim, responsável por converter o movimento linear dos pistões em movimento rotacional. Requisitos de Projeto: Corpo Principal: Altíssima resistência à fadiga por flexão e torção, pois está sujeito a bilhões de ciclos de carga durante sua vida. Superfícies dos Moentes e Munhões (áreas de contato com as bielas e mancais): Altíssima resistência ao desgaste e ao engripamento. Precisão Dimensional: A distorção durante o tratamento térmico deve ser mínima para manter as tolerâncias apertadas. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 35 Análise e Seleção do Processo: 1. Material: Um aço de médio carbono ligado, como o SAE 4340 (Ni-Cr-Mo), é frequentemente escolhido. Este material é forjado na forma aproximada do virabrequim e depois usinado. 2. Tratamento do Núcleo: Inicialmente, o virabrequim usinado passa por um tratamento de beneficiamento (têmpera e revenido) completo. Ele é temperado e revenido a uma alta temperatura (~550-650°C) para obter uma microestrutura de martensita revenida de alta tenacidade em toda a sua seção, garantindo a resistência à fadiga necessária para o corpo da peça. 3. Tratamento Superficial: Após o beneficiamento e a usinagem final, as superfícies dos moentes e munhões precisam ser endurecidas. A nitretação a plasma é o processo ideal aqui. 4. Ciclo de Tratamento Detalhado: O virabrequim beneficiado e acabado é colocado em uma câmara de vácuo. Nitretação a Plasma: Uma atmosfera de nitrogênio e hidrogênio é introduzida e um plasma é gerado. O processo ocorre a baixa temperatura (~520°C). Os íons de nitrogênio bombardeiam as superfícies dos moentes, difundindo-se e formando uma camada de nitretos extremamente dura (~65-70 HRC) e com altas tensões de compressão Resultado Final: Um virabrequim com um núcleo extremamente tenaz e resistente à fadiga (graças ao beneficiamento) e superfícies de contato com dureza e resistência ao desgaste superiores (graças à nitretação). A baixa temperatura do processo de nitretação garante que a precisão dimensional da peça seja mantida, eliminando a necessidade de retífica final e preservando as propriedades do núcleo Estudo de Caso 3: Mola Helicoidal de Suspensão Componente: Mola de suspensão de um veículo. Requisitos de Projeto: Altíssimo limite de escoamento e de elasticidade, para que possa se deformar elasticamente sob carga e retornar à sua forma original sem deformação permanente. Altíssima resistência à fadiga, para suportar milhões de ciclos de compressão e descompressão. Boa tenacidadepara não fraturar sob cargas de impacto (passar em um buraco) Análise e Seleção do Processo: Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 36 1. Material: Um aço de alto carbono ligado com silício, como o SAE 9260. O alto carbono fornece a resistência, e o silício aumenta o limite de escoamento. 2. Tratamento: A combinação de alta resistência e alta tenacidade aponta para um tratamento que produza uma microestrutura refinada e livre de tensões excessivas. A austêmpera é uma excelente candidata, mas um ciclo de têmpera e revenido bem controlado também é amplamente utilizado e será nosso foco aqui. 3. Ciclo de Tratamento Detalhado: O fio de aço é enrolado na forma da mola. Austenitização: A mola é aquecida a ~850°C. Têmpera: É temperada em óleo para obter uma estrutura totalmente martensítica. Revenido de Média Temperatura: A mola é revenida em uma faixa de ~400-500°C. Este revenido é o passo crucial. Ele reduz a dureza da martensita para um nível que maximiza a tenacidade e o limite de escoamento (tipicamente ~45-50 HRC). Shot Peening (Jateamento com Granalha): Após o tratamento térmico, a superfície da mola é bombardeada com pequenas esferas de aço em alta velocidade. Este processo mecânico a frio induz uma camada de altas tensões residuais de compressão na superfície, o que é extremamente eficaz para aumentar a resistência à fadiga, pois dificulta a iniciação de trincas superficiais. Resultado Final: Uma mola com a combinação ideal de elasticidade, tenacidade e resistência à fadiga para garantir a segurança e o conforto do veículo. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 37 12 Controle de Qualidade e Ensaios em Tratamentos Térmicos Um tratamento térmico é um processo de precisão que transforma as propriedades de um material em nível microscópico. No entanto, sem métodos de verificação e controle de qualidade, o processo é cego. É impossível saber se o tratamento foi bemsucedido apenas olhando para a peça. O controle de qualidade em tratamentos térmicos não é apenas uma etapa final, mas um sistema integrado que garante que os parâmetros do processo foram corretos e que as propriedades desejadas foram alcançicas. Ele protege contra falhas catastróficas em serviço, garante a consistência da produção e fornece a documentação necessária para a rastreabilidade e certificação de componentes críticos. Os ensaios de controle de qualidade podem ser divididos em duas categorias: destrutivos e não-destrutivos. Ensaio de Dureza: A Primeira Linha de Defesa O ensaio de dureza é, de longe, o método de controle de qualidade mais comum, rápido e econômico em tratamentos térmicos. A dureza é uma propriedade mecânica que está diretamente correlacionada com a microestrutura e a resistência à tração do aço. Uma medição de dureza que está dentro da faixa especificada é uma forte indicação de que o tratamento térmico foi realizado corretamente. Métodos Comuns: - Rockwell (HRC, HRB): É o método mais utilizado na indústria devido à sua rapidez e simplicidade. A escala Rockwell C (HRC) é usada para aços duros (temperados), enquanto a escala Rockwell B (HRB) é usada para materiais mais macios (recozidos). - Brinell (HB): Usa um indentador de esfera de grande diâmetro e uma carga elevada. É ideal para materiais com microestruturas grosseiras ou heterogêneas, como ferros fundidos, pois a grande impressão mede uma média das propriedades da superfície. Não é adequado para peças finas ou muito duras. - Vickers (HV) e Knoop (HK): São conhecidos como ensaios de microdureza. Utilizam um indentador de diamante e cargas muito leves. São usados para medir a dureza de fases individuais em uma microestrutura (ex: medir a dureza de uma partícula de cementita), para determinar o perfil de dureza em camadas finas (como em tratamentos termoquímicos) ou para testar materiais muito frágeis. Aplicação no Controle de Qualidade: - Verificação Pós-Têmpera: Medir a dureza de uma peça após a têmpera para garantir que a dureza máxima foi atingida. - Controle Pós-Revenido: Verificar se a dureza está dentro da faixa especificada após o revenido. - Perfil de Dureza: Em peças cementadas ou nitretadas, a microdureza é usada para traçar um perfil da dureza em Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 38 função da profundidade a partir da superfície, garantindo que a profundidade de camada eficaz (ECD - Effective Case Depth) foi alcançada. Análise Metalográfica: Olhando Dentro do Material Enquanto a dureza nos dá um número, a análise metalográfica nos dá a imagem. É um ensaio destrutivo que revela a microestrutura real do material, permitindo uma avaliação muito mais profunda da qualidade do tratamento térmico. O processo envolve: 1. Corte: Uma seção representativa da peça é cuidadosamente cortada. 2. Embutimento: A amostra é embutida em uma resina polimérica para facilitar o manuseio. 3. Lixamento e Polimento: A superfície da amostra é lixada com uma série de lixas de granulometria progressivamente mais fina e, em seguida, polida com pastas de diamante até atingir um acabamento espelhado e livre de riscos. 4. Ataque Químico: A superfície polida é exposta a um reagente químico suave (como o Nital, uma solução de ácido nítrico em álcool). O ataque corrói seletivamente as diferentes fases e os contornos de grão em taxas diferentes. 5. Observação em Microscópio: A amostra é observada em um microscópio óptico ou eletrônico. As diferentes fases (ferrita, perlita, bainita, martensita) e características (tamanho de grão, inclusões) agora são visíveis. O que a Metalografia Pode Revelar: - Microestrutura Obtida: Confirma se a estrutura esperada (ex: martensita revenida, bainita) foi realmente formada. - Tamanho de Grão: Permite medir o tamanho de grão austenítico, um indicador crucial da temperatura de austenitização. Grãos grosseiros podem indicar superaquecimento. - Profundidade de Camada: Em tratamentos superficiais, permite medir visualmente a profundidade da camada endurecida. - Defeitos: Pode revelar defeitos como descarbonetação, oxidação interna, trincas de têmpera, austenita retida em excesso, etc. Outros Ensaios e Métodos de Controle Ensaio de Tração: Ensaio destrutivo que mede o limite de escoamento, o limite de resistência à tração e a ductilidade (alongamento e estricção). Fornece as propriedades mecânicas mais diretas para o projeto, mas é caro e demorado, sendo geralmente usado para qualificação de processos, não para controle de rotina. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 39 Ensaio de Impacto (Charpy): Ensaio destrutivo que mede a tenacidade do material, ou seja, sua capacidade de absorver energia de impacto. É crucial para qualificar materiais para aplicações que envolvem cargas de choque. Ensaios Não-Destrutivos (END): Ultrassom: Pode ser usado para detectar trincas internas. Partículas Magnéticas e Líquidos Penetrantes: Usados para detectar trincas superficiais. Medição de Tensões Residuais por Difração de Raios-X: Técnica avançada para quantificar o estado de tensões na superfície da peça, crucial para avaliar a resistência à fadiga. Apostila 4 — [Materiais de Construção Mecânica] — UCP 40 13 Exercícios EXERCÍCIO 1 Um engenheiro precisa especificar o tratamento térmico para um eixo de transmissão automotivo fabricado em aço AISI 4140. O componente deve apresentar alta dureza superficial (58-62 HRC) para resistir ao desgaste, mas manter tenacidade no núcleo para suportar cargas de impacto a) Explique por que um tratamento térmico simples (apenas têmpera) não seria adequado para esta aplicação. b) Proponha uma sequência de tratamentos térmicos adequada, justificando cada etapa. EXERCÍCIO 2 Durante a austenitização de um aço AISI 1045, foram testadas duas temperaturas: 780°C