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Na espera da reforma agrária, a Escola Itinerante Carlos Marighella no Acampamento do MST “Elias Gonçalves de Meura” Vanderlei Amboni (UNESPAR – Campus de Paranavaí) – vamboni@hotmail.com Luiz Bezerra Neto (UFSCar) – lbezerra@ufscar.br 1 Introdução Escrever sobre o tema da tese é entrar no campo da memória e da pesquisa acadêmica. É um retorno virtual ao Acampamento Elias Gonçalves de Meura e à Escola Itinerante Carlos Marighella que existia em Planaltina do Paraná. Esta visita, hoje, só é possível por meio da memória e das imagens do pesquisador, pois o acampamento e a organização da produção da vida material, de forma coletiva, foram destruídos e as terras retomadas pelo velho latifúndio que domina esse imenso Brasil. Mas não é hora de lamúrias, pois as conquistas sociais ocorridas nos nove anos de existência do Acampamento1 o colocaram na história, com sua experiência de organização social e de produção da vida material e cultural2. Experiência que se fundamenta nas necessidades impostas pelo “instinto” de sobrevivência de um grupo social de trabalhadores sem-terra, marginalizados pelo latifúndio, na luta por reforma agrária, atentando contra o “sagrado direito de propriedade” inscrito nas constituições brasileiras por um parlamento burguês. A experiência é o marco presente no Acampamento. Para nós, a experiência não é um conceito vago, ela foi, em “última instância” gerada na “vida material” e foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente o “ser social” determinou a “consciência social” (THOMPSON, 1981, p. 189). Seu significado se expressa no ordenamento e organização social para produzir a vida material alicerçadas na vida espiritual, quer seja expressa no sentimento religioso – por meio das místicas −; quer seja nos valores e na cultura que a identidade MST trouxe ao grupo. Por isso, é significativo a máxima desenvolvida pelo MST nas palavras de ordem Ocupar, Resistir, Produzir. É significativo porque encontrou a síntese da luta pela terra, 1 Utilizo A (maiúsculo) na palavra Acampamento para referir-me ao Acampamento Elias Gonçalves de Meura. 2 Acrescento e conceito de “cultural” por entender que a “produção da vida material” produz também a cultura, que é material, pois reflete o “como” os homens estão inseridos na (re)produção de sua existência. 2 a única maneira de colocar o latifúndio e o próprio Estado em xeque e quebrar o princípio basilar da estrutura fundiária alicerçada na conciliação e conservação. Ou o Estado faz a reforma agrária ou mantém à margem milhões de famílias expulsas da terra, os denominados sem-terra, mantendo o apartheid social que tem raízes históricas no Brasil. Na ocupação do latifúndio, a “potência” se transforma em “ato” na luta por reforma agrária, mas na espera da terra há a produção da vida material, ato primário na vida, pois ele possui necessidades, como ser vivo, de se alimentar e se proteger das intempéries e, para isso, precisa se vestir, construir habitações etc. Mas, como escreveu Marx (1982), o modo como os homens produzem os meios de reprodução da vida material depende, em primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de vida encontrados socialmente e a reproduzir. Na ocupação do latifúndio, o MST produz “os meios de vida”, isto é, conquista a terra momentaneamente para fins da produção da vida material. E isto é muito significativo no acampamento, pois a premissa resistir e produzir se materializa na vida social dos acampados. Não é por acaso que Marx sustenta a tese que os homens, ao produzirem os seus meios de vida, produzem indiretamente a sua própria vida material. Portanto, antes de produzir a vida material, os homens precisam “conquistar” os meios de produção, ato produzido pelo próprio homem na sua hominização, que é materializado pelo trabalho. Na conquista da terra, “ocupar e acampar são as formas encontradas pelos ST para pressionar o governo a resolver o problema agrário, a cada dia mais profundo” (MST, 1998, p.21). Estas premissas estão presentes na vida dos acampados à espera da reforma agrária. Eles ousaram. Teimosamente ousaram ocupar o latifúndio improdutivo denominado de Fazenda Santa Filomena, com 1.889,5 ha de terras. Ousaram mais, ergueram a cidade de lona preta e conquistaram a escola pública estadual na luta pela terra. Esta escola foi denominada de Escola Itinerante Carlos Marighella, com a especificidade de ser uma escola pública no acampamento do MST, mas com orientação pedagógica sustentada nos valores das lutas sociais por reforma agrária, pois é “caracterizada por um fazer pedagógico que prima pela realidade vivenciada pelo educando e envolve a realidade do campo e a luta pela terra, sem perder de vista o conteúdo, o conhecimento universal e a formação humana pretendida” (OLIVEIRA, 2014, p. 64). Eles ousaram! Na madrugada de 31 de julho de 2014, eles ocuparam. Eles ousaram e, sobre uma “chuva de balas”, ocuparam a Fazenda Santa Filomena, um latifúndio improdutivo. Neste trabalho vamos escrever sobre a ousadia da ocupação, da construção do acampamento e da Escola Itinerante que brotou da ocupação e sinaliza a relação do MST com a educação, uma 3 relação que “traz na sua origem a história e a cultura do direito à terra e de como permanecer nela, oportunizando aos educandos construir conhecimentos novos a partir de suas vivencias quotidianas, tornando o acampamento e a escola em espaços educativos” (MST, 2013, p. 72). Nosso objetivo, portanto, é analisar a estruturação da Escola Itinerante Carlos Marighella como resultado da luta por terra, tendo por base metodológica o materialismo dialético. Para esse fim, organizamos o resultado da pesquisa acadêmica em três partes, a saber: Na primeira parte, apresentamos algumas considerações sobre sociedade e conhecimento histórico sobre o real, cujo alicerce traz o trabalho como princípio educativo e as práticas pedagógicas no interior do MST como processo/tentativa de formar o homem novo. Traz, portanto, a singularidade de um projeto educacional, cuja base histórica é a linha pedagógica soviética. Na seção 3, traremos algumas discussões sobre a escola itinerante nos acampamentos do MST, destacando sua origem, normas e funcionalidade como escola pública. Na seção 4, nosso objeto é a ocupação do latifúndio em Planaltina do Paraná pelo MST e a construção do acampamento com base no lema: ocupar, produzir, resistir. Nosso destaque é o acampamento e a produção da vida material na terra ocupada e a organização escolar no acampamento. Por fim, na última seção, nosso objeto direto é a Escola Itinerante Carlos Marighella, com sua estruturação física, pedagógica e a base da gestão na formação de coletivos, auto-organização e participação popular dos acampados na organização escolar. 2. Sociedade, conhecimento e movimentos sociais A educação é apenas o aspecto prático, ativo, da convivência social. Na sociedade todos educam a todos permanentemente. Como o indivíduo não vive isolado, sua educação é contínua. Mais particularmente, considerando-se apenas a transmissão dos conhecimentos compendiados, a educação também é permanente, pois o grupo dominante tem todo interesse em reproduzir-se nas gerações sucessivas, o que faz transmitindo às novas gerações seu estilo de vida, seu saber, seus hábitos, seus valores, etc. Não existe sociedade sem educação, ainda que nas formas primitivas possa faltar a educação formalizada, institucionalizada (que aí é representada pelos ritos sociais). Por conseqüência, nenhum membro da comunidade é absolutamente ignorante, do contrário não poderia viver (VIEIRA PINTO, 1987, p. 24).4 A escola, como todo organismo de reprodução social repõe a cultura humana transformada em cultura escolar. A cultura humana advém do trabalho de adaptação da natureza ao homem, posto que, conforme escreveu Marx, a história é a transformação contínua da natureza humana. Do processo de ideação à materialidade há uma práxis humana na transformação da natureza e, consequentemente, há um processo de conhecimento produzido no ato da práxis produtiva que gera um conhecimento acumulado no devir do homem. Este conhecimento, conforme nos ensina Kosik (1976), o homem o torna compreensível para si, posto que, para conhecer a coisa em si, o homem necessita transformá-lo em coisa para si. O homem, portanto, é sujeito ativo no processo de elaboração do conhecimento, cujo método consiste na apropriação do real pelo pensamento para reproduzi-lo como concreto pensado. Este processo vincula o homem à sua educação, que é histórica, conforme sustenta Vieira Pinto, [...] A educação é histórica não porque se executa no tempo, mas porque é um processo de formação do homem para o novo da cultura, do trabalho, de sua autoconsciência. A educação como acontecimento humano é histórica não somente porque cada homem é educado em um determinado momento do tempo histórico geral - aquele em que lhe cabe viver (historicidade extrínseca) — mas porque o processo de sua educação, compreendido como o desenvolvimento de sua existência, é sua própria história pessoal (historicidade intrínseca) (VIEIRA PINTO, 1987, p. 21). Dessa forma, quando escrevemos sobre cultura humana, ressaltamos seu processo de disseminação por parte do trabalho, posto seu princípio educativo. Na Escola Itinerante, o MST3 propõe uma educação que aproxima o homem do trabalho e valoriza o trabalho como princípio educativo. Como resposta, a escola trabalha com o princípio que alavanca o processo educativo alicerçada nos pilares prática-teoria-prática, o que significa, “aprendemos vendo, vivendo e fazendo” (MST, 1998, p. 24). Ou seja, traz o conhecimento que o sujeito possui (conhecimento empírico), desenvolve os elementos da teoria (ciência) e retorna à prática como conhecimento científico, isto é, um conhecimento agregado valor da ciência também materializada pelo homem no seu vir-a-ser, ou seja, no homem produto do social. Por isso, “a educação é um fenômeno social total”, que “para atendê-la é indispensável empregar a categoria de totalidade” 3 A educação no MST: Princípios filosóficos: 1) educação para a transformação social; 2) educação para o trabalho e a cooperação; 3) educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; 4) educação com/para valores humanistas e socialistas; e 5) educação como um processo permanente de formação/transformação humana. Princípios pedagógicos: 1) relação entre prática e teoria; 2) combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação; 3) a realidade como base da produção do conhecimento; 4) conteúdos formativos socialmente úteis; 5) educação para o trabalho e pelo trabalho; 6) vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos; 7) vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos; 8) vínculo orgânico entre educação e cultura; 9) gestão democrática; 10) auto-organização dos/das educandos; 11) criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores/das educadoras; 12) atitude e habilidades de pesquisa; e 13) combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais (MST, 1997). 5 o que “significa que não se pode interpretá-la (nem planejá-la) se não se tem em vista todo o conjunto de valores reais (sociais) que sobre ela influem e dos efeitos gerais que dela resultam sobre os demais aspectos da realidade social” (VIEIRA PINTO, 1987, p. 34). A sociedade é a formação do trabalho como princípio educativo, pois sua reprodução se fundamenta no como se produz a vida material também produz a vida cultural, cuja essência se desloca do trabalho para expressá-la na representação mental elaborada como cultura material. Este princípio situa o homem como sujeito da educação social, mas esta “educação é em sua essência contraditória, porque, visando a conservar a sociedade que a distribui, é levada a modificá-la e por fim conduz à sua supressão e substituição por outra forma social mais adiantada” (VIEIRA PINTO, 1987, p. 53). A escola itinerante desloca seu eixo educativo para princípios que alicerçam a prática- teoria-prática nas suas atividades educativas. A escola universalista só existe no plano das ideias. Existe como componente ideológico de classe. O que há de universal na escola é o processo de ensinar a ler e a escrever, ou seja, de interpretar os signos criados socialmente para a comunicação entre os homens de uma determinada sociedade. Ler e escrever é universal, mas ainda há um expressivo número de pessoas que não tiveram acesso aos domínios dos signos, isto é, não foram alfabetizadas na linguagem pedagógica, e nem a “ler o mundo” na linguagem política, por isso são postas à margem da sociedade na linguagem econômica. O mundo humano é um vir-a-ser em constante transformação enquanto movimento da práxis. Arroyo corrobora nesta perspectiva quando escreveu que “a produção do saber e da cultura é um momento dessa práxis social, enquanto fazer humano de classes sociais contraditórias.” E afirma que “no permanente movimento social pela construção de uma sociedade alternativa, vão se construindo um conjunto de práticas e de concepções sobre o todo social que questiona e desafia as práticas e concepções hegemônicas” (ARROYO, 1989. p. 79). Este é o caso da escola itinerante no MST. A Escola Itinerante em acampamentos do MST busca, não só universalizar o processo de domínio dos signos estabelecidos pela linguagem escolar, mas também a ler o mundo, compreendê-lo na sua essência, ou seja, ir além da apresentação fenomênica para superar o mundo da pseudoconcreticidade, pois a “escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado” (SAVIANI, 288, p. 2015). O conhecimento escolar, portanto, não é dado pelo espontaneismo, mas sim elaborado socialmente pela sociedade, ou 6 seja, a sociedade educa a si mesma e também ao educador. Eis como Vieira Pinto se questiona: “Se a sociedade é o verdadeiro educador do educador, sua ação se exerce sempre concretamente, isto é, no tempo histórico, no momento pelo qual está passando seu processo de desenvolvimento” Dessa forma, “em cada etapa do desenvolvimento social, o conteúdo e a forma da educação que a sociedade dá a seus membros vão mudando de acordo com os interesses gerais de tal momento” (VIEIRA PINTO, 1987, p. 77). Nesta direção, é uma representação dos valores e da ética da sociedade, sem a qual a vida social soçobra. Não vou falar do trabalho, pois subentende que o trabalho funda a existência do homem e este tem na educação um ato do trabalho. Nesta perspectiva, o MST, na reformulação cultural do homem novo, tem na escola itinerante a chave que possibilita a formação desse sujeito, pois não dissocia da luta pela terra a escola. A escola é a própria bandeira da luta por reforma agrária, pois se faz com a mesma no momento da ocupação. A ocupação se torna conteúdo escolar, juntamente com outras manifestações dos Sem Terra na luta por reforma agrária, pois Somos uma organização de luta e nas nossas fileiras estuda-se para aumentar, para afinar as capacidades de luta de cada um e de toda a organização para compreender melhor quais são as posições do inimigo (de classe) e as nossas, para melhor poder adequar, a partir delas, a nossa ação de cada dia. Estudo e cultura não são, paranós outra coisa senão consciência teórica dos nossos fins imediatos e supremos e do modo como poderemos conseguir traduzi-los na pratica (GRAMSCI, 1978, p. 18). Nas linhas teóricas do MST, o fazer pedagógico é sustentado por ações que integram prática e teoria no processo de ensino e de aprendizagem. Ou seja, a atividade de ensino se vincula ao trabalho, à vida da cultura camponesa como parte e na totalidade. Nesta perspectiva, a escola é o espaço da aprendizagem do conhecimento acumulado pelo homem no seu processo histórico, conhecimento este que foi sistematizado para o processo pedagógico, portanto, conhecimento na dimensão histórica. Mas a escola na dimensão ontológica do homem só pode existir em uma sociedade sem classes. A Escola Itinerante é uma escola que possui uma base social que possibilita a dimensão pedagógica na dimensão ontológica do homem, pois a natureza pedagógica se dá na união do trabalho e ensino, polos da omnilateralidade do homem. Portanto, para o MST, é a escola do futuro na dimensão pedagógica, pois é a escola que integra as bases do trabalho com as bases do processo pedagógico e é complexa e radical na acepção da palavra, cuja centralidade é ‘tornar o trabalho a base integradora do projeto formativo da escola, vinculando os conhecimentos escolares ao mundo do trabalho, da produção, da cultura que o trabalho produz” (MST, 2014, p. 110). 7 Como escola do MST, ela está sujeita às regras do grupo social que as criou. Ela possui internamente regras de funcionamento e de controle social, pois dela não pode prescindir para reprodução de sua identidade cultural e social. Não é uma escola cativa pedagogicamente aos interesses do Estado, mas vive a contradição capital e trabalho. No ideário do MST, a manifestação de Camini e Gehrke sobre a escola itinerante, cabe destaque: Não é a escola do governo, nem por ele dirigida. Conduzida pelo povo organizado, a Escola Itinerante caminha por outros rumos, os rumos da resistência, da rebeldia que ocupam os latifúndios, organizam o povo, fazem a reforma agrária e produzem poesia. Uma escola teimosa, dirigida pela teimosia lucida dos trabalhadores Sem Terra, que exigem que o governo a financie, o que a muitos desagrada (CAMINI; GEHRKE, 2008, p. 72). Por isso, sustenta o MST que a base de conhecimento da matriz formativa deve ser construída de forma coletiva para compor e orientar o projeto político-pedagógico destinados às escolas estruturadas pelo movimento. Dessa forma, a definição da “base de conhecimento que deve ser trabalhada pela educação escolar não devem ser feitas apenas no âmbito de cada escola”, pois o trabalho pedagógico deve “ser objeto de trabalho coletivo de uma rede de escolas e ou de agentes educativos com identificação de projeto, em nosso caso uma rede constituída pela mediação do movimento social” (MST, 2014, p. 108). Como escola pública, ela está sujeita à intervenção estatal e as regras determinadas pelas legislações nas esferas federal e estadual. É uma escola presa a um projeto político-pedagógico sob controle de um regimento escolar subordinados ao Estado. Portanto, sua ação é controlada pelo Estado, que a normatiza administrativa, pedagógica e financeiramente. Isto implica em afirmar que, mesmo distante, há um controle exercido pelo Estado junto às escolas itinerantes, o que não tira as liberdades de organizar a escola dentro dos parâmetros do MST, com a auto- organização dos alunos, a criação de coletivos no espaço escolar e de se fazer também nas marchas, nas ocupações de prédios públicos, nos encontros e congressos etc. 3 A Escola Itinerante nos acampamentos do MST A Escola Itinerante é uma instituição escolar situada no acampamento de famílias Sem Terra, que assume uma postura pedagógica revelada já em seu próprio nome. A peculiaridade desta escola de caminhar junto, acompanhando o movimento territorial do acampamento na luta pela terra, seja nos casos de despejos, nas mobilizações, marchas e ocupações 8 visa assegurar o processo educacional atrelado à formação política para crianças, jovens e adultos que estão acampados na luta pela desapropriação das terras improdutivas (LEITE; ACELINO, 2015, p. 873). Nos territórios do MST há espaços para a produção da vida material e cultural da sociedade acampada. Neste território, a terra se divide em três espaços: terra para o trabalho; terra para o acampamento e terra para a educação. Estes três espaços possuem unidade e são determinantes para que a vida social possa ser integrada, pois une trabalho, moradia e escola na espera da reforma agrária. Na luta por escolas públicas, nasceu a escola itinerante do MST no Estado do Rio Grande do Sul em 1996. O fundamento básico foi a (LDB) Lei nº 5.692/71, de 11 de agosto de 1971, com base no artigo 64, conforme segue: “Os Conselhos de Educação poderão autorizar experiências pedagógicas, com regimes diversos dos prescritos na presente Lei, assegurando a validade dos estudos assim realizados”. Por meio desta lei, o Conselho Estadual de Educação emitiu o Parecer 1.313/96, aprovado em 19 de novembro de 1996, reconhecendo a Escola Itinerante nos acampamentos do MST. O projeto aprovado foi denominado de “experiência pedagógica – Escola Itinerante”. Dessa forma, regulariza-se o processo de escolarização realizado pelos Sem Terrinha nos acampamentos, mas a instabilidade da vida nos acampamentos levou à criação de uma escola-base4, cuja existência estivesse ligado à história do MST. A Escola Itinerante é uma escola que se faz na luta pela terra. Como é uma escola sujeita à intervenção do Estado com ações de reintegração de posse, o que pressupõe o despejo das famílias Sem Terra, a materialidade da escola que itinera só é possível sua legalização a partir de uma estrutura sólida e organizada administrativa, financeira e pedagogicamente por meio da escola-base5, cuja função é “acompanhar e dar suporte legal à vida escolar dos alunos e 4 “A Escola Base foi a alternativa concebida para assegurar e legalizar a Escola Itinerante e de garantir que a vida escolar das crianças, jovens e adolescentes, não se perdesse, por exemplo, em situações de desocupação” (OLIVEIRA, 2014, p. 65). Para organicidade pedagógica e administrativa, a escola-base possui um único Projeto Político-Pedagógico que inclui as escolas Itinerantes. Além das funções pedagógicas, a escola-base tem a função de arquivar a documentação dos alunos (matrículas e transferências); da equipe pedagógica e dos educadores e de administrar a verba destinada às Escolas Itinerantes e ser responsável pela certificação dos educandos. 5 A Escola-base para as escolas itinerantes no Paraná é o Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak, localizado no Assentamento Marcos Freire, em Rio Bonito do Iguaçu. Segundo Oliveira, “Em 2006, o MST sinalizou que outras escolas seriam implementadas nos acampamentos. [...], o Setor de Educação do MST e CEC, após reuniões, entenderam que havia a necessidade de uma outra Escola Base. Assim, em 2007, o Colégio Estadual do Campo Centrão passou a atender a cinco das dez Escolas Itinerantes, existentes no momento, com o objetivo de dividir os trabalhos entre as duas Escolas. Essa alternativa também foi pensada para minimizar os atrasos e 9 professores” (MST, 1998a, p. 42), bem como “responder legalmente pelas Escolas Itinerantes a ela jurisdicionadas na contratação de educadores, na matrícula e transferência dos educandos, no repasse de recursos financeiros, de material didático-pedagógico, no acompanhamento pedagógico, na formação dos educadores” (OLIVEIRA, 2014. p. 65). Como é uma escola da luta, aescola que servirá de base às que itineram também tem que ser uma escola da luta, mas em condições sólidas de existência. O MST e o Estado, na compreensão do fenômeno organizativo, criou a escola-base para dar suporte e legalidade aos atos pedagógicos das escolas itinerantes. Dessa forma, os registros dos profissionais da educação e dos educandos são feitos pela escola-base legalmente reconhecida e funcionamento de acordo com as normas do Estado. Para esse fim, a escola que serve de base às escolas itinerantes é uma escola de assentamento da reforma agrária, cujo princípio é o mesmo, o que as distingue é o meio de sua inserção, seu jeito de se fazer escolar. Nesta perspectiva, Vieira Pinto sustenta que [...] A escola é o meio que o aluno vai viver como aluno. É preciso aí estudar a relação entre os aspectos peculiares desse meio — a escola — com os demais. A escola representa a sociedade do aluno para o educador crítico, para o qual a sociedade representa a escola do educador. Quer dizer, a escola é um ambiente e, ao mesmo tempo, um processo. E como tal precisa ser entendida dinamicamente (VIEIRA PINTO, 1987, p. 15). A conquista da escola itinerante nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina ocorreram em governos do PMDB. No RS, com Antônio Brito (1996), no PR, com Roberto Requião (2003) e, em SC, com Luiz Henrique da Silveira (2004). Na pesquisa, constatamos as diferenças entre si na estruturação e organização escolar. No RS, foi constituída por etapas, correspondendo as cinco primeiras séries do ensino fundamental (1ª a 5ª Séries), com objetivos e conteúdos próprios a cada etapa, tendo seu detalhamento definido ao longo do processo, de acordo com a realidade e segundo os interesses dos educados da escola itinerante, disciplinados pelo Parecer 1313/96, do CEED gaúcho; Em SC, o processo de reconhecimento das Escolas Itinerantes é a das salas multisseriadas para as quatro primeiras séries do ensino fundamental (1ª a 4ª Séries). No Paraná, a forma de organização se deu por ciclos de formação problemas gerados devido às grandes distâncias territoriais entre a Escola Base e as Escolas Itinerantes o que tem complicado, como constatei no período em que atuei na CEC, a realização, por exemplo, do acompanhamento pedagógico e administrativo da direção e equipe pedagógica das Escolas Base. O Colégio Estadual do Campo Centrão permaneceu como Escola Base até 2012, quando todas as nove Escolas Itinerantes, então existentes, foram novamente transferidas para o Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak” (OLIVEIRA, 2014, p. 70). O Colégio Estadual do Campo Centrão localiza-se no Assentamento Chico Mendes, no município de Querência do Norte, no noroeste do Paraná. 10 humana e atende a educação básica (ensino fundamental e médio), a educação de jovens e adultos e o ensino profissionalizante. Na construção da escola itinerante, sustenta Oliveira (2014), que a participação da comunidade na discussão é uma característica marcante nos acampamentos, pois em cada um deles, há uma equipe de educação constituída por pessoas da direção, da coordenação, além de pais, educadores e educandos. Ou seja, ela é [...] fruto de um processo reflexivo desenvolvido ao longo dos quinze anos de Acampamentos de Reforma Agrária onde se reflexionou a necessidade de um fazer pedagógico diferente das práticas tradicionais, incorporando ao processo educativo a realidade vivenciada pelo aluno, os elementos ligados a realidade do meio rural e a própria caminhada desenvolvida na luta pela Terra (WEIDE, 1998, p. 115). No Paraná, a terra para a educação pública no acampamento foi conquistada em 2003, por pressão do MST junto à Coordenação de Educação do Campo, da Secretaria de Estado da Educação. A escola que emerge das lutas sociais por terra também é a Escola Itinerante. A base legal que oficializa a Escola Itinerante é o Parecer emitido pelo Conselho Estadual de Educação do Paraná – CEE nº 1012/2003 e a Resolução da Secretaria de Estado da Educação – SEED, sob nº 614/2004. Posteriormente o CEE volta a se manifestar por meio dos Pareceres nº 117/2010 e nº 743/2010, bem como a SEED, por meio da Resolução nº 3922/2010. No Parecer do CEE-PR, consta a seguinte justificativa: Na ‘Exposição de Motivos’ (fls. 15) informa-se que existem 67 acampamentos com aproximadamente 13 mil famílias e grande contingente de crianças, em sua maioria sem possibilidade de freqüência à escola. As escolas municipais não dispõem de infra- estrutura ou recursos para atender, de forma muitas vezes inopinada, um grande conglomerado populacional. Para garantir a essas crianças o direito à educação, o Governo do Estado propõe a implantação da ‘Escola Itinerante’ nos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) no Paraná (PARANÁ, 2003, p. 01). A escola como direito foi conquistada para e pelo MST em seus acampamentos. Não é uma escola qualquer. É uma escola no acampamento, constituindo-se em uma escola para além das salas de aulas, que se materializa na própria luta por reforma agrária. Nesta mesma linha de pensamento, Engelman sustenta que a Escola Itinerante é “Uma escola que funciona dentro dos acampamentos do MST [...] e caminham junto com os acampados, na luta pela terra, nas mudanças de acampamentos e trágicos despejos”, cuja “organização depende das condições de cada comunidade”, onde “algumas salas são feitas de lona, outras construídas de taquara e algumas de madeira” (ENGELMAN, 2006, p. 28). Portanto, muito mais que a mera presença de uma estrutura física, normalmente, composta por lonas pretas ou amarelas, funciona também em barracões, na antiga estrebaria do latifúndio ocupado, nos desativados silos, em cima do 11 caminhão, à beira da estrada que em nada se compara às grandes estruturas de alvenaria das escolas públicas. Ela é caracterizada por um fazer pedagógico que prima pela realidade vivenciada pelo educando e envolve a realidade do campo e a luta pela terra, sem perder de vista o conteúdo, o conhecimento universal e a formação humana pretendida. 4 Ocupar, Resistir, Produzir: o Acampamento Elias Gonçalves de Meura na produção da vida material e na organização escolar dos acampados [...] O acampamento é a expressão mais visível da exclusão social que o sistema capitalista produziu. Contraditoriamente, a expressão mais forte da organização e da resistência deste povo, que não aceita isso como sendo o fim da história, se junta para lutar pela terra e transformar esse sistema. [...] (MST, 2008, p. 73) O sinal manifesto de um latifúndio ocupado por sem-terra, de qualquer matiz ideológica, é o acampamento de barracos de lona preta. No nosso caso, o acampamento traz as marcas de estruturação e a organização do MST, que é sustentado no ecletismo e nos valores que as pessoas trazem da experiência de vida, com seus sentimentos, obrigações familiares, medos e esperanças para o acampamento. O acampamento é sem dúvida um espaço onde se encontram pessoas em luta pela vida, por terra, por trabalho e moradia. Um lugar que expressa a incapacidade do capital em garantir a vida digna para todos. Por isso, o acampamento é o lugar que expressa a força e a fraqueza do capital. Força, já que mesmo com tantas contradições explosivas, mortes, miséria, desumanização, ele ainda se mantém. E fraqueza, porque na medida em que não garante que muitas mulheres e homens vivam sob sua forma típica, força-os a buscar outras formas de se organizar em sociedade. Acredito que a força e a beleza de um acampamento – dentre suas enormes dificuldades – está em revelar a busca dos Sem Terra por uma nova forma de vida social(MST, 2009, 118- 119). O acampamento passa a ser a materialidade da existência das famílias, pois elas encontram terra para produzir e habitar (mesmo em condições precárias). Uma vez ocupada a terra do latifúndio, produzir se torna um ato imperativo para o movimento, pois a premissa básica da reprodução da vida material se manifesta no cotidiano, e esta se faz com o trabalho. Plantar o alimento do corpo e estabelecer a unidade no acampamento, que se sustenta pela cultura produzida na existência da vida, é um passo importante na luta pela terra. Trazem, portanto, para o cotidiano do acampamento, suas experiências de vida, religião, valores e obrigações familiares. Isto é significativo, 12 [...] Pois as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas com ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou (como supõem alguns praticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas também experimentam sua existência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura (e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral (THOMPSON, 1981, p. 189). Na tradição da luta por reforma agrária, a organização das famílias para conquistá-la é imprescindível e este preparo antecede a ocupação e traz uma simbologia carregada de sentimentos religiosos para criar a emulação que move os trabalhadores a romper a cerca do latifúndio. Nas palavras de Stédile, “a nossa luta é para derrubar três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital” (STÉDILE, 2005, p. 74). Na ocupação, a cerca do latifúndio é rompida quando se quebra o cadeado da porteira ou cortar o arame que o cerca. É só ocupar. Mas porque ocorrem as ocupações do latifúndio? Segundo Weide, “ocupações e Acampamentos de Sem-Terra são atitudes coletivas que têm a intenção de resolver um problema social, fruto da concentração e da falta de uma política agrária que resgate o valor social da terra” (WEIDE, 1998, p. 72). Ou seja, o rompimento da cerca é uma rebeldia social por falta de democratizar o acesso à terra, decorrente das estruturas fundiárias que solidificaram a propriedade da terra no Brasil, que criou um pensamento conservador e hegemônico no país provocado pelo latifúndio. Em Mandel, lemos que Os homens e mulheres fazem sua própria história. Eles não a fazem livres de qualquer limitação material e com uma série ilimitada de possibilidades. Mas eles a fazem, e o processo histórico concreto depende, em primeiro lugar, do resultado de suas lutas (‘fator subjetivo da história’), mesmo se eles são ‘subordinados’ por uma série de fatores históricos e sociais sobre os quais não tem controle direto (‘os fatores objetivos da história’). Mas essa ‘sobredeterminação’ nunca é de tal forma que abre apenas uma única possibilidade histórica (MANDEL, 2001, p. 34). Foi o que eles fizeram na Fazenda Santa Filomena, ocuparam-na. O objeto da ocupação pelo MST, a Fazenda Santa Filomena, com área de 1.889,5 hectares, localizada no município de Planaltina do Paraná, região noroeste do Paraná, teve o laudo emitido pelo INCRA, declarando a área como de interesse social para fins de reforma agrária em 1997, sendo caracterizada como “grande propriedade improdutiva” no ano de 1998. A Fazenda foi ocupada e reocupada em 2001, de forma efêmera, pois o acampamento durou aproximadamente seis meses, sendo os Sem Terra novamente despejados pelas forças militares do Estado. Como quem luta faz a hora, o MST reorganizou as famílias para nova ocupação da Fazenda, que ocorreu na madrugada do dia 31 de julho de 2004, dessa vez com 13 400 famílias com o objetivo de acelerar a reforma agrária. “Entretanto, durante esse ato, funcionários da fazenda portando armas de grosso calibre, passaram a desferir tiros contra as famílias” (FREITAS; KNOPF, 2008b, p. 67). Na reação, “em decorrência dos disparos, sete trabalhadores Sem Terra ficaram gravemente feridos. Entre estes, Elias Gonçalves de Meura, de 20 anos de idade, foi assassinado no local. Fato que em homenagem a este jovem lutador, deu-se ao acampamento o seu nome” (FREITAS; KNOPF, 2008b, p. 67). A violência é a resposta dada pelo latifúndio, o campo continua sendo uma terra dos “sem”: sem-lei, sem- prisão, sem-julgamento, sem-direitos, sem-educação e dos sem-terra. Realizada a ocupação, a cidade de lona preta se ergue rapidamente com a construção dos barracos e a estruturação do acampamento, seguindo as orientações do MST, criaram as instâncias organizativas que são os núcleos de base. Este são formados por 10 famílias, sendo responsáveis pelas tarefas do Acampamento, como: alimentação, saúde, higiene, educação, segurança etc; a coordenação do acampamento; a coordenação política e pedagógica; a direção da brigada; coletivo de educadores etc. Dessa forma, para dar organicidade às ações, “Para cada atividade escolhe-se um membro do núcleo que fica responsável pela representação dos companheiros. Os representantes dos vários núcleos formam as equipes ou os setores que se reúnem regularmente para planejar, por em prática e avaliar a eficácia de seus métodos” (WEIDE, 1998, p. 74). Além disso, há as coordenações, que são formadas por membros dos setores, como educação, produção, saúde, comunicação, frente de trabalho, finanças, segurança etc. Dessa forma, A vida do acampamento é marcada por organização voluntária, por necessidade, por exigência do Movimento, enfim. Envolve a todos de uma forma ou outra, consciente ou não, seja nos núcleos de base do acampamento, nas coordenações, nas equipes de trabalho, nas instâncias, na brigada, nas mobilizações, nas marchas, nas ocupações de prédios públicos e latifúndios improdutivos. [...] (MST, 2008b, p. 74). Organização é o princípio básico para se atingir um determinado objetivo. No caso da ocupação, é a segurança alimentar dos acampados. Nesse sentido, a palavra de ordem dada é resistir e produzir a vida material, pois este ato o homem tem que realizar diuturnamente, não por ter comido da árvore do pecado, mas por se hominizar e humanizar-se no trabalho. A reprodução da vida passa a ser responsabilidade direta do homem, cuja premissa básica é o ato de produzir, isto é, por meio do trabalho transformar a natureza para suprir suas necessidades de comer, beber, vestir-se, se abrigar e se proteger etc. No acampamento estas premissas se manifestam de forma mais evidente e direta, pois seus habitantes vivem uma vida de miséria, 14 marginalização e de negação ao acesso à terra, que é operacionalizada por um apartheid social imposto pela ordem social onde impera o latifúndio e o mandonismo local como regra geral. Não é por acaso que o MST sustenta que O acampamento é, então, um espaço onde a luta de classes, a luta pela sobrevivência, a possibilidade de construir algo novo, está mais forte, mais evidente. É um lugar propício à contestação, à desestruturação daquilo que é arcaico. As relações de poder autoritárias se enfraquecem, favorecendo emergirem relações sob novos parâmetros. [...] (MST, 2009, p. 119). Na corrida pela produção da vida material, a área ocupada se torna produção de alimento nas mãos das famílias Sem Terra, transformando a Fazenda Santa Filomena em terra produtiva, gerando trabalho e renda às famílias acampadas, assegurando dignidade, mesmo que em condições precárias de moradia, cujo teto é, muitas vezes, uma lona preta rasgada pelas intempéries do dia-a-dia. Isto pode ser constatado nos documentos elaborados pela Organização de Direitos Humanos“Terra de Direitos”. Sobre a produtividade da terra ocupada, em estudos realizado por Prioste et alii, em 2012, confirmaram as palavras de ordem do movimento, pois ocupar, resistir, produzir é a síntese da ação do MST na conquista da terra. Eles confirmam o princípio da ocupação como meio de produzir a existência da vida, pois tornam a área do latifúndio improdutiva em terra de trabalho e produção, garantindo às famílias alimento e renda. Este fato é relevante, pois o estudo apresenta uma tabela da produção anual no pré-assentamento Elias Gonçalves de Meura, conforme destaca a Tabela 1. Tabela 1. Produtos e produção no Acampamento Elias Gonçalves de Meura Produto Quantidade Unidade Área Cultivada Mandioca 3.900 Ton/ano 130 ha Feijão 600 Sacas /60kg/ano 30 ha Melancia 40 Ton/ano 20 ha Maracujá 6 ton/ano 0,25 ha Milho 220 Ton/ano 90 ha Vassoura 500 peças/ano 0,3 ha Abóbora 1.000 Kg/ano 3 ha Amendoim 900 Kg/ano 2,5 ha Hortaliças subterrâneas (rabanete, beterraba, cebola, alho) 30.000 Kg/ano 3,2 ha Hortaliças folhosas (rúcula, alface, couve, repolho, couve brócolis, salsa, almeirão) 25.000 Kg/ano 3,2 ha Hortaliças Frutos (quiabo, pepino, chuchu, feijão de vagem) 15.000 Kg/ano 6 ha Frutas (Banana, mamão, abacate) 5.000 Kg/ano 0,3 ha Colorau 250 Kg/ano 0,3 ha Gado Bovino 300 Cabeças 890 ha Galináceo 1.200 cabeças ------ Suínos 300 cabeças ------- Leite 550 L/dia 890 ha Queijo 1.800 K/ano ------ Banha animal 60 K/mês Equinos e demais animais de serviços 80 cabeças Fonte: Prioste et al, 2012, p. 12 15 No relatório da Terra de Direitos, a produção de alimentos na área ocupada é destacada, mas também traz um componente importante socialmente, que é a produção para atender a programas federais, tais como: Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. O relatório destaca a produção de Mandioca, feijão, melancia, frutas e uma variedade de verduras e hortaliças cobrem a terra do antigo latifúndio improdutivo. Apesar de não receber qualquer apoio governamental para a produção, o acampamento hoje fornece alimentos ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por meio da cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária Avante Ltda (Coana), localizada em Querência do Norte/PR. Mais de 30 famílias estão envolvidas na produção ligada à cooperativa, em um total de 120 pessoas do acampamento (TERRA DE DIREITOS, 2012, s/p). Dessa forma, tornar produtivo o latifúndio improdutivo assegurava certo otimismo aos moradores da cidade de lona preta, denominada de Acampamento Elias Gonçalves de Meura. A premissa da produção da vida material pelo trabalho se confirma quando se torna proprietário dos meios de produção. Produzir a vida material não é somente a condição necessária para se fazer história, mas também de fazer parte da vida produtiva da sociedade, de se inserir como sujeito social, pois “Essa produção, além de gerar renda e alimentos para as famílias, contribui para o aquecimento da economia local, assim como para o abastecimento de feiras e mercados da região” (PRIOSTE, ET ALII, 2012, p. 13) Eis como a Terra de Direitos mostra que o acesso à terra é condição vital para a vida humana-social: O acampamento Elias Gonçalves de Meura é exemplo da dificuldade de tornar real a reforma agrária no Brasil, mas também simboliza a resistência e a transformação a partir do acesso à terra. As famílias acampadas hoje têm acesso à moradia, à água e energia elétrica, escola no campo para jovens e adultos, e principalmente acesso à terra, que possibilita renda e alimentação adequada (TERRA DE DIREITOS, 2012, s/p). Enfim, da posse temporária do solo se conquista a condição primária que se materializa na produção da vida. Se conquista o direito à utopia com novas conquistas na ocupação da terra, mesmo em caráter temporário, como a escola pública no acampamento, objeto que veremos a seguir. 4.1 A Escola Itinerante Carlos Marighella no Acampamento Elias Meura [...] a construção da escola no acampamento foi feita de forma coletiva, pela comunidade acampada, com seu jeito e ato prático de projetá-la e de construí-la. Dessa forma, a construção da escola foi assumida pelas 16 instâncias da comunidade acampada, contando com o apoio financeiro dos assentados do Milton Santos. Construída a escola, a preocupação passou a ser seu reconhecimento como escola pública no acampamento, além de ter um nome que resinificasse a luta pela terra, com o nome de um ‘lutador do povo’, conforme simbologia do MST. A escola havia brotada da luta pela terra no acampamento Elias Gonçalves de Meura (AMBONI, 2014, p. 211). No acampamento Elias Meura, a escola itinerante foi conquistada pela comunidade e vem escrevendo sua história de forma coletiva, por meio de assembleias, reuniões de coletivos de educadores e de educandos etc, com projeto político-pedagógico e regimento escolar aprovados pela Secretaria de Estado da Educação, ou seja, a escola está organizada dentro do ordenamento jurídico estabelecido pelo Estado, mas orientados por uma pedagogia do trabalho e por ações pedagógicas do MST. Dessa forma, “o processo de construção da escola, as linhas políticas e pedagógicas, material para construção, educadores/educadoras e a própria característica da escola, foram frutos das discussões” (FREITAS; KNOPF, 2008b, p. 67), que surgiram no interior do acampamento como forma de atender a demanda por escola e garantir no espaço do acampamento a educação escolar, pois no município de Planaltina do Paraná não haviam vagas para as crianças acampadas estudarem. Para enfrentar esta situação. A comunidade decidiu pela construção da escola. Dessa forma, no espaço da educação, a escola foi erguida pela comunidade acampada. Na materialidade da Escola Itinerante Carlos Marighella, enquanto estrutura física, as primeiras salas de aulas foram construídas no segundo mês da ocupação, que ocorreu no dia 31 de julho de 2003. Erguida a escola com lona preta, a partir do próprio trabalho dos acampados, ela passou a atender, desde o início, a comunidade do acampamento e à comunidade do Assentamento Milton Santos, região próxima ao acampamento. A singularidade desta escola foi a construção feita sobre o chão batido, local onde ficavam os animais, isto é, em uma estrabaria. Com as reclamações dos educandos, foram construídas salas de madeira, com as tábuas da casa do fazendeiro, em local próximo ao acampamento. Erguida a Escola pelo MST estava assegurada a formação escolar aos acampados e aos assentados do Assentamento Milton Santos. Mesmo em condições precárias, o acesso à educação, por parte dos Sem Terra, é uma conquista materializada a partir da ocupação da terra com a vida materializada no acampamento, que é organizada de forma coletiva. Mas não é uma escola qualquer, é uma escola pública no acampamento do MST, conquistada na luta pela terra. Eis como Bahniuk e Camini trazem: As escolas itinerantes são escolas públicas que compõem a rede estadual de ensino e são aprovadas pelos Conselhos Estaduais de Educação Por se movimentarem com a 17 luta, têm de estar vinculadas legalmente a uma escola base que é responsável por sua vida funcional: matrícula, certificação, verbas, acompanhamento pedagógico etc. Geralmente, a escola base localiza-se em um assentamento do MST, referenciando-se no projeto educativo do Movimento (BAHNIUK; CAMINI, 2012, p. 332). No acampamento Elias Gonçalves de Meura, a escola itinerante conquistada recebeu o nome de Escola Itinerante Carlos Marighella6, em homenagemao revolucionário e lutador das causas dos trabalhadores. Em 2013, a estrutura física da escola era toda de madeira, com salas de aulas, sala de secretaria, biblioteca, refeitório, sala de cozinha, banheiros, sala de educadores e espaços de recreação física, sociabilidade e interação política dos educandos. Na pesquisa de campo, constatamos a existência de 11 salas com 48m² cada uma, sendo 07 salas para aula, 01 para cozinha, 01 para depósito de alimentos, 01 para secretaria e 01 para biblioteca. Todas as salas possuíam piso de cimento. A escola possuía também um pátio coberto com 204m², sanitário com 04 divisórias e um campo de futebol para prática de educação física. Com esta estrutura escolar, a escola itinerante atendia a educação infantil e o ensino fundamental do 1º ao 5º ano, com professores do próprio MST, contratados por meio do convênio estadual de cooperação técnica e financeiro com a Associação de Cooperação Agrícola e Reforma Agrária do Paraná – ACAP, cuja meta estabelecida pelo Plano de Trabalho é “atender a demanda da educação básica de famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, garantindo o funcionamento da Escola Itinerante”. Para o Ensino Fundamental do 6º ao 9º ano, os educadores são contratados pela SEED, por meio do Processo de Seleção Simplificado - PSS. De acordo com Ghisi, “Além das crianças, adolescentes e jovens que cursam as sérias regulares, a escola também possibilita acesso à educação para jovens e adultos e ajuda a suprir a baixa escolaridade da comunidade” (GHISI, 2012, s/p). Portanto, a estrutura criada para assegurar o funcionamento da escola itinerante na oferta da educação envolve o setor de educação do MST e a SEED. Neste processo, há uma pactuação entre MST e Estado para assegurar o pagamento dos recursos humanos que movem a escola. Em seus estudos, Oliveira enfatiza que Em março de 2004, foi celebrado entre o MST e a SEED um convênio que envolve a Associação de Cooperação Agrícola e Reforma Agrária do Paraná (ACAP), pessoa jurídica de direito. O Convênio é renovado anualmente, após prestação de contas realizada pelo Setor de Educação do MST, mediante apresentação de um relatório à 6 Carlos Marighella (1911-1969): Foi militante político do PCB nos anos de 1950 e tomou parte nas lutas populares em defesa do petróleo e a desnacionalização da economia brasileira. Após o golpe militar de 1964, Marighella foi novamente preso. Em dezembro de 1966 desligou-se do PCB e fundou a ALN – Ação Libertadora Nacional para combater a ditadura no Brasil. Na noite de 4 de novembro de 1969, foi morto a balas por agentes da repressão. 18 SEED, no qual constam informações acerca do número de educadores, coordenadores, matrículas. A partir dele e dos termos aditivos a ele incorporados, tem-se assegurada a remuneração dos educadores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e dos coordenadores pedagógicos das Escolas Itinerantes. Além dos salários, estão previstos o pagamento de encargos sociais, 13º salário, terço constitucional e verbas rescisórias. O recurso é liberado em parcelas mensais (SAPELLI, 2013). (OLIVEIRA, 2014, p. 67). A ACAP, portanto, se torna um instrumento de ação para as práticas pedagógicas, tanto para o processo de ensino, quanto na avaliação do processo por parte dos educadores, quando elaboram o relatório para ser encaminhado à SEED. Dessa forma, o MST da resposta à sociedade sobre os atos da escola pública no acampamento. Assegurado os recursos humanos necessários ao funcionamento das escolas itinerantes, na Escola Itinerante Carlos Marighella, a atividade nuclear da escola é sustentada pela tríade prática-teoria-prática, com um currículo escolar dimensionado à produção da vida material no acampamento, sendo objetivado pela prática pedagógica nas disciplinas que compõem o núcleo central do fazer pedagógico, ou seja, na totalidade do processo escolar, que tem uma base de conhecimento sistematizado pelo homem, incluindo uma base de conhecimento do homem rural. O homem cria o mundo humano a partir do trabalho. Dessa forma, o homem produz a natureza humana sobre a base da natureza biofísica, mas o cria por meio do trabalho (SAVIANI, 2015, p. 287). O trabalho, portanto, é constitutivo na reprodução da natureza humana via sociedade. Este processo tem o trabalho educativo como um “ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2015, 287). Por isso, o MST evidencia que o “trabalho (enquanto atividade humana criadora) é a base da educação e da práxis a perspectiva pretendida”, dessa forma, “nenhuma agência que objetive efetivamente ser educativa pode separar produção da existência de formação, e separar instrução de formação” (MST, 2014, p. 103). No MST, a Escola Itinerante Carlos Marighella expressa essa intencionalidade do ato educativo, pois busca recuperar a humanidade do homem desumanizado pela relação capitalista de produção. Constituído como atitude política do MST, o espaço da ação pedagógica, a Escola Itinerante, enquanto escola, é uma instituição social e histórica, cuja função é socializar o saber acumulado pelo homem no seu devir histórico, conhecimento este, que é produzido socialmente, é sistematizado como saber escolar para o processo de reprodução cultural via processo de ensino e de aprendizagem. Para o MST, o “conhecimento implica em uma organização de informações com um determinado sentido capaz de interferir na compreensão 19 da realidade e na atuação sobre ela. E isso supõe uma capacidade de pensamento específica, e que precisa ser aprendida” (MST, 2014, p. 111). Por isso Saviani (2015, p. 288) nos chama a atenção ao afirmar que “eu disse saber sistematizado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular”. Ou seja, não é um conhecimento qualquer. É um saber científico, que parte da base real para sua transposição didática. Para o processo de ensino em sua dinâmica estrutural, o Setor de Educação do MST vem sistematizando as lutas pela terra e o trabalho na terra em conteúdos formativos e, ao mesmo tempo, de escolarização. Neste caso, incorpora nos conteúdos os interesses sociais e posições políticas do movimento. Dessa forma, a um novo fazer pedagógico sustentado pelos princípios e métodos organizacionais na escola pública no acampamento, mas, como escola, traz os problemas inerentes à instituição escolar de quaisquer natureza. Para o MST, A Escola Itinerante é entendida como um espaço que traz em si a carga histórica da instituição escolar, de seus problemas e potencialidades. Também traz em si o acúmulo do Setor de Educação do MST, compondo sua proposta de escola. A Escola Itinerante, em sua essência, não é diferente da escola de assentamento ou das demais escolas do MST. Seus objetivos e princípios são os mesmos, que todavia, se aplicam de um modo determinado a depender da situação concreta. [...] (MST, 2009, p. 118). Nesta perspectiva, o MST procura imprimir as marcas da lutas sociais no processo de ensino, alicerçadas no trabalho. Na Escola Itinerante Carlos Marighella, o jeito de ensinar e de aprender se dá por meio da realidade em que vivem e das práticas sociais, com o lema “nosso fazer, nosso saber”. Dessa forma “aprendemos o português, a matemática, a história, a geografia, etc... através das questões de nossa luta, de nossa organização, nos desafios de nossos atos, nas negociações, na pesquisa, nas discussões e na troca de experiências” (MST, 1998a, p.30). A Escola Itinerante Carlos Marighella,portanto, é uma escola que provoca mudanças na formação do homem, pois ela incorpora em seu cotidiano as lutas da reforma agrária e o os elementos da pedagogia soviética construída por Moyses Pistrak, Anton Makarenko, Viktor N. Shulgin, Nadeshda Krupskaya etc, sob orientação política de Anatoly Lunarcharski. 4.2. A organização política e pedagógica da Escola Itinerante Carlos Marighella A EI Carlos Marighella possuía a coordenação político pedagógica, composto pelo coordenador da escola e membros da comunidade; 20 coletivo de educadores, espeça que era coordenado pela coordenação pedagógica da escola e coletivo de educandos, que se organizavam acerca de suas demandas específicas, as quais eram apresentadas pelos educadores no coletivo de educadores. Foram poucas às vezes em que exercitamos a participação dos educandos na reunião dos educadores, pois as crianças eram pequenas dos anos iniciais do EF e ainda não havia maior compreensão sobre (CURITIBA, KNOPF, 2014). Ao longo de nossa formação social, o processo de educação das massas foi posto em segundo plano pelas elites do país. Aos pobres, escolas precárias para cumprir com o mínimo necessário de formação escolar para os domínios básicos e necessários ao mercado de trabalho. A escola que emerge com o MST é uma escola também precária, mas traz uma distinção, que é sua forma de ser e sua práxis pedagógica. Como escola do movimento, a Escola Itinerante é uma escola que se permite estruturar-se sob uma concepção de educação que rompe com a hegemonia da escola burguesa ao propor como ação pedagógica os atos organizativos do jeito de fazer escola, estabelecendo a democracia como elemento central no processo. Dessa forma, é uma escola que se compromete com a gestão democrática, com os coletivos (educadores, educandos, país etc) e a auto-organização estudantil, não como experiência, mas como atividade central de organização. Coloca, portanto, a escola em movimento, com práticas formativas reflexivas sobre o movimento do real, articulando sua natureza a tempos escolares distintos para consolidar o processo de escolarização dentro dos ciclos de formação humana. Dessa forma, Mariano e Sapelli destacam que As Escolas Itinerantes do Paraná, desde 2003, foram criadas tendo como referência a proposta educativa e os princípios pedagógicos da educação do MST que são: a relação teoria e prática, educação pelo e para o trabalho, auto-organização dos estudantes, gestão democrática, criação de coletivos pedagógicos. Esses princípios balizaram a escola a se organizar de forma diferente com tempos e espaços educativos, espaços de auto-organização dos estudantes e um vínculo direto com a luta por Reforma Agrária (MARIANO, SAPELLI, 2015, p.1745). Nesta linha de pensamento, Knopf, educador da Escola Itinerante Carlos Marighella, enfatizou que “a organização de uma coordenação compartilhada entre o coletivo de educadores e instâncias organizativas da comunidade, o coletivo de educadores e a auto-organização dos educandos são elementos que propiciam uma gestão democrática nas escolas”, mas reconhece que tem “limites na sua implementação, como a dificuldade em organizar o coletivo infantil para que participe mais efetivamente da vida da escola, são iniciativas importantes que ensaiam outras relações de poder na escola” (CURITIBA, KNOPF, 2014). 21 Como escola do movimento, é uma escola que permite se estruturar-se sob uma concepção pedagógica que rompe com a hegemonia da escola burguesa, que traz a sala de aula como espaço determinante para a prática pedagógica, submetendo os alunos à aprendizagem da obediência e da disciplina, disciplinando o corpo e a mente para o mundo do trabalho no capitalismo. A escola itinerante, portanto, é uma escola que se coloca a contrapelo dessa orientação ideológica, pois ela sai de si mesma quando se movimenta e, no movimentar-se, este movimento se torna prática pedagógica e conteúdo de ensino. Ler o mundo a partir do movimento do real é prática constante no vir-a-ser da escola itinerante, cuja ocupação do espaço escolar vai se fazendo na itinerância da luta por terra, crédito rural, educação etc. Dessa forma, o MST enfatiza que […] Na itinerante não se ensina somente no espaço da sala de aula. Conectada com a vida, ela trata do lixo, da água, da fome no acampamento, verificando seus problemas e soluções. Por isso, a aula pode acontecer à beira do riacho, na roça, na marcha, no pedágio, em seguida a um despejo e na própria sala de aula. E isto tudo sem dispensar sua função de escola, tratando pedagogicamente estas situações, trabalhando as dimensões necessárias para entender o fato em questão. É uma escola que sai, concreta e abstratamente, de seus 'muros' para encontrar-se na realidade, estudá-la e transformá-la (MST, 2010, p. 29). Por isso, a proposta e o princípio educativo na escola itinerante seguem as orientações do MST, que partem da “relação teoria e prática, educação pelo e para o trabalho, auto- organização dos estudantes, gestão democrática, criação de coletivos pedagógicos” e “esses princípios balizaram a escola a se organizar de forma diferente com tempo e espaços educativos, espaços de auto-organização dos estudantes e um vínculo direto com a luta por reforma agrária” (MARIANO; SAPELLI, 2015, p. 1745). Corrobora nesta análise Dal Ri e Vieitez, quando asseveram que A organização e a gestão da escola são elementos fundamentais de qualquer sistema ou unidade de ensino, pois, dependendo de como elas se processam, a vivência na escola pode ser democrática ou não. Para vivenciar a democracia, o MST propõe para as suas escolas a gestão democrática, a auto-organização dos alunos e o coletivismo (DAL RI; VIEITEZ, 2010, p. 61). Nessa linha de raciocínio, podemos entender que a escola da luta por reforma agraria só pode existir tendo o locus educativo na centralidade de seus sujeitos, com domínio sobre a cultura pedagógica e o poder que na escola emerge. Dessa forma, a escola se estrutura sobre os pilares democráticos no entender do MST, cuja existência se faz no processo de intencionalidade de formação de um sujeito com capacidade crítica e consciência organizativa para construir novas relações sociais e de produção. Estudando a educação no MST, Bezerra Neto, enfatiza que, no plano ideal, a escola que o MST apresenta “deve ser o lugar da vivencia 22 e desenvolvimento de novos valores, como o companheirismo, o trabalho coletivo, a disposição de aprender sempre, o saber fazer bem feito, a indignação contra as injustiças, a disciplina, a ternura chegando a uma consciência organizativa” (BEZERRA NETO, 1999, p. 81). Nesta perspectiva, Dal Ri e Vieitez sustentam que “o MST também desenvolve a idéia de gestão democrática”, mas “com uma perspectiva diferente daquela utilizada pelo Estado”. Para eles, o objetivo do MST “vai além da participação, uma vez que sinaliza com a idéia de controle da escola pelas forças populares, ou seja, por professores, funcionários, alunos, pais e comunidade local” (DAL RI; VIEITEZ, 2010, p. 56). Dessa forma, a comunidade deve ocupar a escola para transformá-la por dentro. Em seus documentos, o MST traz a seguinte organização para a Escola Itinerante no Paraná7. Reconhece que a escola “não é um espaço emancipado das relações capitalistas. Conquistada a escola, a luta continua, é permanente, e são diversos os momentos em que nossa escola enfrenta tensões sociais e posiciona-se frente a elas (MST, 2010, p. 31). É uma escola na contradição capital e trabalho. Mas o processo de escolarização se dá por meio dos ciclos de formação humana8, pois o MST considera o processo de aprendizagem e desenvolvimentode forma permanente. Neste caso, assume que “Ciclo é movimento, não nos deixa parados, é processo, é relação, é agrupar e reagrupar-se para aprender e ensinar” (PARANÁ, 2009, p. 34). Por isso, o MST ressalta a importância para a ação pedagógica com um currículo adequado às escolas em seu território, pois o currículo por ciclos “vem para renovar os métodos de organização e de ensino que antes justificava a função social da escola pela intervenção educativa legitimada nos conteúdos hierarquicamente organizados.” Ressaltando que os ciclos exigem dos “educadores um novo olhar sobre o sujeito que aprende e nos desafiam para novas concepções e métodos de avaliação como, por exemplo, a promoção e não o fracasso dos sujeitos” (MST, 2008b, p. 27). Para dar conta das intenções educacionais do MST, o projeto político-pedagógico da escola-base apresenta a organização escolar da Escola Itinerante Carlos Marighella a seguinte forma: 7 A Escola Itinerante do MST apresenta particularidades na sua criação, pois em cada Estado da Federação que a escola foi conquistada os Conselhos Estaduais de Educação disciplinaram um modelo de organização e de oferta que diferem entre si. 8 Os Ciclos de Formação Humana se fundamentam no processo de desenvolvimento humano numa temporalidade: Infância – Pré-adolescência – Adolescência – Juventude – Idade Adulta – Velhice (PARANÁ, 2009, p. 34). 23 Tabela 2. Ciclo de escolaridade na Escola Itinerante Carlos Marighella CICLOS DA VIDA HUMANA CICLO DA FORMAÇÃO HUMANA CICLO DA EDUCAÇÃO BÁSICA IDADE INFÂNCIA I Ciclo da Formação Humana Ciclo único – Educação Infantil 4 anos 5 anos II Ciclo da Formação Humana I Ciclo do Ensino Fundamental 6 anos 7 anos 8 anos Classe Intermediária PRÉ-ADOLESCÊNCIA III Ciclo da Formação Humana II Ciclo do Ensino Fund. 9 anos 10 anos 11 anos Classe Intermediária ADOLESCÊNCIA IV Ciclo da Formação Humana III Ciclo do Ensino Fund. 12 anos 13 anos 14 anos FONTE: PARANÁ (projeto político-pedagógica do CEC. Iraci Salete Strozak, 2009 (adaptado pelo autor). Dessa forma, na Escola Itinerante Carlos Marighella, os ciclos ofertados são infância, pré-adolescência e adolescência, o que corresponde ao ensino fundamental na sua totalidade. Ou seja, há a educação infantil e o ensino fundamental do 1 ao 9 ano, além da educação de jovens e adultos. Neste processo de formação escolar, os ciclos se fundamentam no processo de desenvolvimento humano centrado nas temporalidade do humano, cujo caminho percorrido é natural, passando pela infância, pré-adolescência, adolescência, juventude, idade adulta, velhice. No processo de escolarização, o ciclo incorpora a formação global do sujeito, levando em conta a capacidade de aprendizagem e os ritmos de cada sujeito no processo educativo. Dessa forma, o fazer pedagógico do educador deve buscar e ter como parâmetro três elementos essenciais, o desenvolvimento humano, as caraterísticas pessoais e as vivências socioculturais dos educandos. Por isso, a formação humana por ciclos traz um continuo de aprendizagem, que é mediado pelos educadores do ciclo e por diferentes agrupamentos do espaço escolar, cuja finalidade é a formação do sujeito na perspectiva da emancipação humano-política do ser social na esfera do modo de produção capitalista. Mas isto não ocorre somente no ambiente da sala de aula. Para o MST, outros ambientes de escolarização podem ser criados, pois entende que a sala de aula não pode ser o único existente na escola. Dessa forma, novos ambientes são criados, levando em consideração o tempo escolar. Assim, dar maior dinâmica no processo de ensino, são criados os tempo educativos que buscam na dimensão educacional social seu lugar. Neste sentido, são criados o tempo-aula, tempo-trabalho, tempo-oficina, tempo-lazer, tempo-leitura, tempo-gestão etc. Nas palavras do MST, 24 [...] criamos um jeito de ajudar a desenvolver as diferentes dimensões humanas, que tem sido bastante incorporado nas Escolas Itinerantes. São os tempos educativos como oficina, trabalho, leitura, aula, pesquisa, entre outros. Estes momentos, às vezes, têm outras denominações e nem sempre são os mesmos em cada escola. Cada tempo educativo busca desenvolver diferentes potencialidades e para isso precisam ser organizados de forma coerente com o projeto da escola e com a dimensão sobre a qual pretende atuar (MST, 2009b, 26). Dessa forma, este processo consolida a ação pedagógica como princípio de emancipação política dos Sem Terra. Sua ação é marcado pelos atos no interior da escola, centrada na organização do espaço do acampamento como educador. Neste caso, o acampamento é um grande educador para os Sem Terra, pois “Todas as famílias que compõem um acampamento estão organizadas nos núcleos” cujos espaços elas ocupam e “se reúnem periodicamente e juntas discutem questões do cotidiano do acampamento e da sociedade (local e nacional). É um local de intensa participação e convivência política, no qual o estudo, a formação e a tomada de decisões são privilegiados” (MST, 2010, p. 33). Neste sentido, exercem a democracia como poder popular. Na linha política do MST, a democracia como poder popular é determinante no movimento. Nesta perspectiva, uma caraterística marcante na escola itinerante é sua forma de gestão. Para a elite, que quer uma escola dissociada da vida material, portanto, uma escola que não se vincula ao real, o MST caminha a contrapelo, pois a organização da escola, de relações democráticas, promove uma forma de relacionamento que permita a ela se emancipar e traz uma conotação nova, pois ela experiência outras relações no seu âmbito, quer seja no sentido da administração, quer seja na ação pedagógica. Destaco a expressão de Dal Ri e Vieitez, para quem, “a organização da escola não costuma ser apresentada como um fator pedagógico importante”, pois os sujeitos “escolares normalmente vivenciam essa organização, sem maiores reflexões ou preocupações, considerando-a um meio para a realização dos objetivos pedagógicos propostos”, mas “a organização da escola é um importante elemento pedagógico, é um currículo que, por não fazer parte dos conteúdos programáticos explicitados, encontrasse oculto” (DAL RI; VIEITEZ, 2010, p. 71). Dessa forma, a escola itinerante é um currículo expresso nas suas formas de agir pedagogicamente. Este processo é constatado na materialidade da própria escola, que nasce das lutas por reforma agrária. Eis como o MST se manifesta: As Escolas Itinerantes se materializam, por vezes, em barracos de lona utilizados como salas de aula, mas também se fazem em outros espaços como na beira da estrada, nas marchas, nas ocupações de latifúndios e prédios públicos, e em outros tipos de mobilizações. Enfim, acompanhando o itinerário do acampamento. Estas escolas são 25 escolas públicas da rede estadual de ensino, conquistadas por meio de pressões, mobilizações e financiadas pelo Estado (MST, 2010, p.19). Na materialidade dessa escola, o coletivo se torna permanente como fazer da escola. Ou seja, é próprio da escola itinerante o poder popular no seu interior, pois ela nasce no interior de um movimento que se estrutura hierarquicamente disciplinado por ações democráticas, cujas células constitutivas são os núcleos de base e as brigadas. Do ponto de vista da organização coletiva da escola no MST, Dal Ri e Vieitez afirmam que A direção coletiva de cada processo pedagógico implica a participação efetiva da comunidade na gestão da escola, bem como a relação desta com o conjunto de escolas ligadas ao Movimento e sua subordinaçãocrítica e ativa aos seus princípios (MST, 1996). Segundo o MST (1999: 9), a direção coletiva é uma forma de garantir a participação de todas as pessoas na tomada de decisões, de dividirem-se as tarefas e as funções de acordo com as qualidades e as aptidões pessoais e, também, de superação do paternalismo e do presidencialismo (DAL RI; VIEITEZ, 2010, p. 61). Romper com a lógica da escola guiada por princípios liberais, portanto, é essencial para a emancipação humano-política no capitalismo. Dessa forma, o MST proclama uma escola cuja centralidade seja na gestão democrática, mas o coordenador, de acordo com Celestino (2014) “é o elemento principal para o funcionamento das três gestões9, porém é necessária a divisão das tarefas para organização da escola”. Dessa forma, “As reuniões dos coletivos são espaços para debates dos meios de gestão. Há sempre uma divisão de tarefas, mas sempre de acordo com as discussões do coletivo” (ENTREVISTA, PORECATU, 2014). Como parte do processo, “Nas Escolas Itinerantes já existem algumas equipes de trabalho que são: Rádio, Biblioteca, Horta, Cultura, Lazer, Embelezamento, entre outras. Neste espaço os educandos refletem sobre a funcionalidade de cada equipe e elaboram planos de trabalho e formas de atuação” (MST, 2009b, p. 36). Ou seja, o coordenador pedagógico assume as funções burocráticas que o Estado exige para o funcionamento da escola pública, mas isso não implica na submissão da comunidade escolar aos ditames do coordenador. O que há é uma unidade escolar como um fórum permanente de debates nas suas instancias deliberativas. A democracia é a máxima na organização escolar como um todo, cuja participação é estimulada entre os acampados e assentados. Para esse fim, organiza-se a escola por meio de coletivos, dentre os quais destacamos: 1. Coletivo por sala de educandos, que o MST assim apresenta: Núcleos de Base ou Grupos de Atividades que consistem num coletivo de 5 a 10 educandos, a depender do número em cada turma. Cada núcleo possui um coordenador e coordenadora que assumem essa responsabilidade por determinado período. É 9 Gestão administrativa, pedagógica e financeira. 26 interessante que durante o ano, todos possam assumir essa tarefa em seu grupo, para ir rompendo com práticas autoritárias. Organizam-se para fazer um trabalho escolar em grupo, para discutir as místicas, a estrutura da escola, avaliar os educadores, a participação dos pais e acampados na escola, enfim, tudo que diz respeito à escola e à vida destes educandos. [...] (MST, 2009b, p. 35). 2. Coletivo de educadores, conforme traz o MST: Os educadores se organizam em coletivos pedagógicos, assumindo que sua formação também se realiza neste espaço, ou seja, quem educa precisa se educar continuamente, e faz isso por meio da reflexão sobre a prática, do estudo, do planejamento coletivo das atividades de sua turma, da escola (MST, 2009b, p. 37). 3. Coordenação de educadores, que “é formada pelos coordenadores de cada turma. Essa coordenação se responsabiliza em discutir e encaminhar propostas vindas da organização das turmas, mas que estão voltadas para toda a escola” (MST, 2009b, p. 35). Neste processo, enfatizamos a organização dos coletivos como um processo que permite aos educadores, educandos e comunidade escolar uma maior participação na gestão da escola, tornando-a, verdadeiramente, uma gestão democrática, que expressa na atitude política dos acampados como poder popular. 4 Considerações finais O Paraná é, por excelência, o Estado da Escola Itinerante do MST. A escola itinerante traz em seu bojo a escola da contradição, cujo aspecto central é sua existência em território do MST legalizada pelo Estado. A escola da resistência se fundamenta no direito à educação e se materializa na educação do campo como escola pública que traz em sua gênese a itinerância, pois é uma escola que se movimenta com a comunidade de acordo com as circunstâncias ditadas pela história. História que se faz na contradição social, pois ela é um continuo em movimento no devir do homem, que carrega a experiência das lutas por terra e a faz na itinerância dentro dos princípios e fundamentos do movimento. Carrega, neste caso, a organização centrada nos coletivos, na auto-organização dos estudos, na realização do autosserviço, como processo de articulação do ensino e trabalho, na materialidade da gestão democrática com ampla participação dos acampados, com os tempos educativos e o processo de escolarização que busca a formação do homem omnilateral por meio dos ciclos de formação humana. Mas escola itinerante Carlos Marighella é uma escola na contradição social, apesar de ser um escola pública nos marcos do capitalismo. Sua materialidade se faz na luta pela terra, com ações de reintegração de posse e ocupações, que a história registra e a memória é carregada no fazer a escola. Enfim, é uma escola que se movimenta, não enquanto estrutura físicas, mas 27 nos seu processo pedagógico, cuja ação se desenvolve onde quer que esteja. Portanto, se materializa também como prática pedagógica fora do acampamento. Referências Bibliográficas AMBONI, Vanderlei. A escola no acampamento do MST: institucionalização e gestão estatal da Escola Itinerante Carlos Marighella. Tese de doutorado, São Carlos, SP: Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, 2014. AROYO, Miguel G. O direito do trabalhador à educação. In. Trabalho e conhecimento: dilemas na educação do trabalhador. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989. BANHIUK, Caroline; CAMINI, Isabela. Escola Itinerante. In. Dicionário da Educação do Campo. São Paulo: Expressão Popular, 2012. BEZERRA NETO, Luiz. Sem-Terra aprende e ensina: estudo sobre as práticas educativas do movimento dos trabalhadores rurais. Campinas, SP: Autores Associados, 1999. CAMINI, Isabela; GEHRKE, Marcos. 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