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Texto 04- O povo cobtra a vacina - hist

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O povo contra a vacina
Costumes populares resistiram à vacinação contra a febre amarela e levaram a uma
onda de destruições na maior revolta urbana no Rio de Janeiro do começo do século XX.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Com 800 mil habitantes, o Rio de Janeiro de 1904 era uma cidade perigosa. Espreitando a
vida dos cariocas estava todo tipo de doenças bem como autoridades capazes de promover,
sem qualquer cerimônia, uma invasão de privacidade. Tuberculose, febre amarela, peste
bubônica, varíola, malária, tifo, cólera e outras enfermidades contagiosas vitimavam a
população e assustavam os estrangeiros. A capital da jovem República era uma vergonha
para a nação. Desmentindo o apelido de “Soneca”, o presidente Rodrigues Alves decidiu
agir rápido. Iria acabar com esse vexame e ao mesmo tempo embelezar a cidade nos seus
quatro anos de governo (1902-1906). Para essa dupla tarefa, convocou respectivamente o
sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) e o engenheiro Pereira Passos (1836-1913). Com suas
políticas de saneamento, Oswaldo Cruz mexeu com a vida de todo mundo, sobretudo dos
pobres.
Em junho de 1904, o governo propôs uma lei que tornou obrigatória a vacinação,
motivando petições contrárias assinadas por cerca de 15 mil pessoas. Esta lei foi aprovada
em 31 de outubro. No dia 9 de novembro, Oswaldo Cruz propôs uma drástica
regulamentação, exigindo comprovantes de vacinação para matrículas em escolas,
empregos, viagens, hospedagens e casamento. Estava até previsto o pagamento de multas
para quem resistisse. A proposta vazou para a imprensa e, indignado, o povo do Rio disse
“não” na maior revolta urbana já vista na capital.
O motim começou no Largo de São Francisco, em torno da estátua de José Bonifácio.
Estudantes protestavam contra a vacina, quando um delegado de polícia prendeu um deles,
levando-o para a Praça Tiradentes, onde ficava a Secretaria de Justiça. Houve confrontos
entre os manifestantes e a cavalaria. Foi então que se ouviram os primeiros gritos de “Morra
a polícia!”, “Abaixo a vacina!”. Isso, já no dia 10, uma quinta-feira, quando a
regulamentação de Oswaldo Cruz nem sequer havia sido aprovada. No dia 11, repetiram-se
os protestos. No dia 12, segundo o Correio da Manhã, quatro mil pessoas “de todas as classes
sociais” concentraram-se no Centro das Classes Operárias, na rua do Espírito Santo – atual
rua Pedro I –, próximo à Praça Tiradentes, para fundar uma Liga Contra a Vacina
Obrigatória. Depois, a multidão seguiu rumo ao Palácio do Catete, já fortemente guardado,
trocando tiros com a polícia no caminho. O Exército entrou em prontidão.
No dia 13, um domingo, a revolta se generalizou. A Praça Tiradentes virou campo de
batalha. Partindo de lá, a luta se estendeu por toda a região entre o Largo de São Francisco e
a Praça da República. Ouviam-se descargas de revólver e carabina, bondes começaram a
ser queimados, barricadas foram erguidas na avenida Passos. Na rua de São Jorge, as
prostitutas aderiram à luta. A população assaltou delegacias, quartéis, casas de armas. A
essa altura, o conflito atingia a região portuária da Saúde e da Gamboa, seguindo para
Laranjeiras e Botafogo, hoje Zona Sul do Rio de Janeiro, e também para a Tijuca, Rio
Comprido e Engenho Novo, na Zona Norte. Na rua Larga de São Joaquim, atual avenida
Marechal Floriano, as colunas dos lampiões de gás foram quebradas e enormes chamas
lambiam os ares.
Ao amanhecer, a paisagem era de devastação, e foi assim descrita pelo Jornal do
Commercio, na edição do dia 15: “(...) paralelepípedos revolvidos, que serviam de projéteis
para essas depredações, coalhavam a via pública; em todos os pontos destroços de bondes
quebrados e incendiados, portas arrancadas, colchões, latas, montes de pedras, mostravam
os vestígios das barricadas feitas pela multidão agitada.” A revolta se concentrara em dois
redutos, o do distrito do Sacramento, entre o Largo de São Francisco e a Praça da República,
e o da Saúde, na zona portuária localizada entre a Praça da Harmonia e o Morro da
Gamboa. Nos dois pontos, a luta continuou durante todo o dia 14, havendo incidentes até na
longínqua Copacabana.
No Sacramento, combatia-se na rua a revólver e a porrete, enquanto dos sobrados os
moradores jogavam latas, garrafas, pedaços de madeira e o que mais estivesse à mão. Na
Saúde, os revoltosos assumiram o controle da delegacia de polícia e, segundo cálculos do
Jornal do Commercio, duas mil pessoas construíram barricadas na Praça da Harmonia e ao
longo da rua de mesmo nome. O clima era de tensão. O governo dividiu, então, o controle
da cidade entre polícia, Exército e Marinha. As autoridades estavam tão inseguras que
convocaram tropas do Exército de Niterói, Lorena (São Paulo) e São João del Rei (Minas
Gerais).
Na esteira da rebelião popular contra a invasão de privacidade e a obrigatoriedade da
vacina, surgiram outras reivindicações de grupos sociais distintos. Declarações do presidente
do Centro das Classes Operárias e líder da revolta, Vicente de Souza, atestam isso. Ele dizia
que o levante contra a vacinação fora uma reação popular, que elementos belicosos da
“classe temerosa” souberam aproveitar.
Na Escola Preparatória e de Tática do Realengo, comandada pelo general Hermes da
Fonseca, futuro presidente da República, houve uma tentativa de levante. Um dos revoltosos
entrou na escola gritando: “Prende o general! Mata o general!” O golpe falhou, mas o clima
de sublevação se instalou na Escola Militar da Praia Vermelha. Cerca de trezentos cadetes,
sob o comando do general Silvestre Travassos, se puseram em marcha para o Palácio do
Catete. Eram 10 horas da noite e Botafogo estava às escuras, porque os lampiões tinham sido
destruídos. O governo fortificou o palácio e mandou tropa para enfrentar os cadetes. Os dois
grupos se enfrentaram na rua da Passagem e trocaram tiros no escuro. O general Travassos
caiu ferido. Sem saber o que acontecia do outro lado, as duas tropas debandaram. Ao Catete
chegou, de início, a notícia de que os soldados do governo tinham fugido. Houve pânico e
sugeriu-se a Rodrigues Alves que se refugiasse num navio de guerra para de lá organizar a
resistência. O presidente recusou o conselho e logo veio o alívio com a informação da
debandada também dos cadetes.
Em vez de festa cívica, o dia 15, aniversário da República, foi de revolta popular. No alto
do Morro da Mortona, na Saúde, foi hasteada uma bandeira vermelha. Um novo foco de
rebelião surgiu no Jardim Botânico, onde seiscentos operários das fábricas de tecido
Corcovado e Carioca e da fábrica de meias São Carlos atacaram a delegacia de polícia.
Chegaram nesse dia as tropas de Minas e de São Paulo; no dia seguinte, o presidente
Rodrigues Alves decretou estado de sítio. O reduto rebelde erguido em barricadas na Saúde
era o que mais preocupava as autoridades. No final da rua da Harmonia ergueu-se a
principal delas.
Um repórter do Jornal do Commercio assim descreveu a situação no local: “aquela
multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de
garruchas e navalha à mostra outros.” No comando dos rebeldes estavam os valentões
Manduca Pivete e Prata Preta, o terror da polícia. Ao ser preso, Prata Preta matou um
soldado do Exército e feriu dois policiais. Estava armado com dois revólveres, uma faca e
uma navalha. O reduto da Harmonia foi atacado por terra e mar, desmobilizando os
revoltosos, que não deram combate e simplesmente desapareceram. Ou, pelo menos,
tentaram.
Assim que os manifestantes se dispersaram, a polícia iniciou a varredura das áreas
atingidas pela revolta, prendendo quem lhe parecesse suspeito. A caçada se prolongou pelos
dias seguintes. Seu ato final foi uma batida no Morro da Favela, no dia 23. O nome fora dado
por soldados retornados da Guerra de Canudos e depois acabou se generalizando, sendo
atribuído a todas as comunidades pobres dos morros do Rio. Os moradores do Morro da
Favela haviam fugido. Mas a essa altura já havia na Ilha das Cobras mais de setecentos
presos, chegandoa 945 no final das operações de busca dos supostos culpados. Nas ruas, o
saldo de vítimas era desolador: trinta mortos, 110 feridos e 461 deportados para o Acre sem
qualquer processo.
A classificação dos revoltosos variava. Para a oposição, cuja principal voz era o Correio
da Manhã, o povo – estudantes, operários, comerciantes e militares – é que tinha se
rebelado. Para os jornais que apoiavam o presidente, como O Paiz, para o chefe de polícia,
Cardoso de Castro, e para o governo, a revolta tinha sido obra de desordeiros, arruaceiros,
desocupados. Castro se referiu ao “rebotalho”, às “fezes sociais”. A elite intelectual
concordava. O poeta Olavo Bilac atribuía os acontecimentos à “matula desenfreada”, à
“turba-multa irresponsável de analfabetos”.
Na raiz dos distúrbios estava um problema sanitário sério. Oswaldo Cruz escolheu três
doenças como foco de sua empreitada: a febre amarela, a peste bubônica e a varíola.
Combater o mosquito transmissor da febre era fundamental para conter o avanço da
doença. Brigadas de mata-mosquitos saíam pela cidade invadindo residências, cortiços,
casas de cômodos. Limpavam, desinfetavam, exigiam reformas e interditavam esses
ambientes, removendo os doentes de seus lares. Só no segundo semestre de 1904, foram 110
mil visitas. Quanto à peste bubônica, o controle da epidemia exigia o extermínio dos ratos e
das pulgas. O governo, acreditando poder assim tornar mais eficaz o trabalho, decidiu
comprar ratos. Não demorou para que o carioca começasse a criá-los para faturar uns
trocados. Um ou outro chegou mesmo a importar o roedor de Niterói para vendê-lo no Rio.
No Carnaval de 1904, a população cantava a própria desgraça. Caiu na folia dançando a
polca – ritmo originário da antiga Tchecoslováquia – “Rato-rato”, da dupla Casemiro Rocha
e Claudino Costa.
Mais de um século depois da Revolta da Vacina, quais conclusões podem ser tiradas
daqueles dias turbulentos de novembro de 1904? Uma coisa é certa: houve várias revoltas
dentro da revolta. Uma delas foi, sem dúvida, a dos militares. Outra, a dos operários do
Centro das Classes Operárias e das fábricas do Jardim Botânico. E ainda uma terceira, a do
“povão” do Sacramento e da Saúde, reunindo capoeiras, prostitutas da rua de São Jorge,
portuários e gente com passagens pelas delegacias de polícia.
A mobilização começou no Centro das Classes Operárias, dirigido pelo socialista Vicente
de Souza – hoje, nome de uma rua em Botafogo. Há informação sobre a ocupação de
10.199 dos 14.812 signatários das petições contra a vacinação obrigatória. Verifica-se que 78
eram militares; os outros, isto é, quase a totalidade, eram operários. A análise dos
documentos e jornais de época revela a presença desproporcional desse grupo entre as
vítimas. Do total de feridos, ele representa 71%. E do total de mortos, 86%. Esses números
ganham proporções ainda mais relevantes se levarmos em conta que os operários
representavam apenas 20% da população carioca. É por isso que, para entender os motivos
da Revolta da Vacina de 1904, temos de voltar os olhos para os trabalhadores.
Naquele momento, outros grupos se aproveitaram da revolta dos pobres. Os militares e
políticos da oposição queriam derrubar o governo, queriam acabar com o que chamavam
de “república prostituída dos fazendeiros” e restaurar a pureza que viam em Floriano
Peixoto e Benjamin Constant. Para o “povão” do Sacramento e da Saúde, talvez a
intervenção sanitária de Oswaldo Cruz não fosse exatamente o principal motivo das
manifestações. É possível que tenha aproveitado a revolta para bater em seu tradicional
inimigo, a polícia. Mas e os operários e os que poderíamos chamar de pobres honestos, por
que se rebelaram?
Não foi por motivos econômicos. Haviam passado os anos duros do governo de Campos
Sales (1898-1902) e a economia voltara a crescer e a gerar empregos. Teria sido por causa
dos deslocamentos de pessoas causados pelas obras na cidade? Não parece. Quase não se
fez referência à reforma nos discursos, nos jornais operários, nas manifestações de rua. Os
executores dessa mudança radical, Pereira Passos e Paulo de Frontin, escaparam da ira
popular. Mais ainda, os dois principais redutos da revolta, Sacramento e Saúde, foram pouco
afetados pelas obras. Tampouco cresceu sua população em virtude da expulsão dos
moradores das centenas de casas derrubadas para a construção da avenida Central, hoje Rio
Branco, e da avenida Passos.
Resta indagar se os motivos da revolta foram, no final das contas, as campanhas de
combate às epidemias e à vacinação obrigatória. Todas as evidências indicam que sim. Para
mencionar uma só, Oswaldo Cruz foi massacrado, acusado – pela sociedade de alto a baixo
– de despótico e arbitrário, quando não de irresponsável. Políticos, Rui Barbosa entre eles,
qualificavam as medidas adotadas de violação dos direitos civis e da Constituição.
Para entender por que a intervenção sanitária revoltou a todos, é preciso ter em mente os
valores e os costumes do início do século XX. O líder dos operários, o socialista Vicente de
Souza, argumentava que era uma ofensa à honra do chefe de família ter seu lar, em sua
ausência, invadido por um desconhecido. E, muito pior, saber que diante dele sua mulher e
filhas seriam obrigadas a desvendar seus corpos. Em que consistiria tal desvendamento?
A vacinação era feita no braço, nos postos médicos ou em casa, com o auxílio de uma
lanceta, instrumento cirúrgico de dois gumes. O deputado oposicionista Barbosa Lima
admitiu a possibilidade de aplicação na coxa. Nos comícios, oradores inflamados
deslocaram o local para as virilhas. O escritor José Vieira nos conta, no romance O bota-
abaixo, que, no Largo de São Francisco, eles radicalizaram, dizendo que “cafajestes de
esmeralda” (referiam-se à pedra que representava a profissão de médico) invadiriam as
lares para “inocular o veneno sacrílego nas nádegas das esposas e das filhas”. O impacto de
tais argumentos foi devastador. A vacinação e a revacinação se reduziram de 23 mil em
julho para pouco mais de mil em outubro. Na Saúde, só 14 pessoas se vacinaram em
outubro e apenas 18 tomaram a segunda dose.
A Revolta da Vacina se distinguiu de protestos anteriores por sua amplitude e intensidade.
O que lhe deu esta característica foi a força da justificação moral. Houve um trágico
desencontro de boas intenções, as de Oswaldo Cruz e as da população.
Mas em nenhum momento podemos acusar o povo de falta de clareza sobre o que
acontecia à sua volta. Embora não se interessasse por política, embora não votasse, ele tinha
razão clara dos limites da ação do Estado. Seu lar e sua honra não eram negociáveis. A
revolta deixou entre os participantes um forte sentimento de autoestima, indispensável para
formar um cidadão. Um repórter de A Tribuna ouviu de um negro acapoeirado frases que
atestam esse sentimento. Chamando sintomaticamente o jornalista de cidadão, o negro
afirmou que a sublevação se fizera para “não andarem dizendo que o povo é carneiro”. O
importante – acrescentou – era “mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do
povo”.

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