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Nos confis do Direito Norbert Rouland

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-..~.
.. ' .:;:- ..
--1'- -
I
NOS CONFINS
DO DIREITO
Antropologia jurídica da modernidade
NorbertRouland
Trac!ução
MARIA ERlYL"u'ITINADE ALMEIDA PRADO GALV ÃO
. -.' ... -.'
Martins Fontes
São Paulo 2008
32 uo: CONFINS DO DIREITO
o direito possui um longo passado; obedece no presen-
te a tradições culturais diferentes. Em suma, ele tem histórias.
o muro da escrita
Muitas pessoas formulam a equação direito-e civiliza-
, ção e só o associam a certas ocorrências históricas: os direitos
antigos (a Babílônia..a Grécia, sobretudo o direito romano),
o direito ocidental moderno, os direitos hindu e muçulm;'
no, limitando-nos aos principais. Eles têm em comum o re-
curso ao escrito, critério tão claro quanto enganador~-
meiro porque a forma escrita do direito não é em absoluto
o penhor de sua difusão. Pois ainda cumpre saber ler e escre-
ver, o que não era o quinhão da maioria no passado, corno
nos países em desenvolvimento atualmente. 9 direito escri- ,
to apresenta, portanto, cirisco de ser apenas o instrumento
~ próxima do poder, ou que o detém. Na Ida-
de Média, qualificam-se de "cti!:eitoseruditos" o direito ca-
~ o direito romano (este se aplicava "'aindawquera
época): apenas as elites os conheciam. O resto são costumes,
que a monarquia ordena redigir (em 1454) para melhor con-:
trolá-los, quando se firmam com mais força suas ambições
centralizadoras (a França e outras potências européias fize-
ram o mesmo em suas colônias da África negra no inicio do
século XX),Ademais, nem sempre é suficiente ler,para com_ .
' , preender, Atualmente, quem redigiria um contrato, urna de- :
claração fiscal de alguma importância ou se envolveria num
processo sem consultar juristas e auxiliares da justiça? Con-
trariamente ao preconceito difundido, as civilizações do es-
crito não são necessariamente as mais jurídicas. A escrita
~rmite urna memorização superior à ora!jd~ (con~~
atrofie também nossas faculdades: a agenda, acessórioindis-
pensável do homem moderno, é um sinal dessa enfermida-
de). Entretanto, mais numerosos, esses conhecimentos são
também menos acessíveis. Seu domínio exige urna tecnici-
dade crescente: tomam-se cada vez mais do que antes ins-
'._._.~ .1...
.•..
33°DIREITO TEM HISTÓRIAS
munentos de poder. Há que insistir neste pon~o: a escrita nã.o
, ero substituto da fala. Ela instala o discurso na soli-eumm , d
dã dando-lhe uma autonomia, De fato, o texto se sep~ eao, , . - u
to . podemos ver nele-sentidos que este nao qUlS,oseu au r. f .
OSuspeitou' interpretações diferentes podem serteitasmesm "', , "Eal "COIÚOrIneas épocas ou os públicos. Es~nto, o te~o ,;.' ~
tanto no modo corno Q recebe que~ ~ le como na mtençao
de seu autor. Daí'o papel do comentário, da exegese, ~da-
tal em direito ... e a importância do controle operado pe-men , _ , ,
los juristas sobre o direito. (Naturalmente, nao e so no ~s-
crito que podemos encon~ar as característic~s ~a escnta~
também nos discursos orais gr~va~~s.) A .tenden?a dos es
cribas e dos letrados sempre foi, alias, deixar mais comple-
xos os signos que utilizavarn. Daí a difi~da~e para. o resto
, da população de ter acesso ao saber.~nrnerra escnta apa-
receu na Suméria por volta de 3300 a.C. Olpreaso esperar
mms de dOlSrm:r anos (por volta ~a.c.) para que, c.om
o alfabeto fenício e seus 22 signos fonéticos, ocorr~sse a SIm-
plificaçãodecisiva da escrita (mas nos Estados Urudos, a~al-
mente, 25% da população é incapaz de usar textos escntos
para as mais coti;dianas necessidade.s).. _.
Aescrita modifica portanto o direito. ~as ~ao QSD-ª.
Pois mesmo nas civilizações em que nao e desc0.nh:-
cida, largas frações da população, até mesmo a. ~alOna,
continuam a ignorá-Ia, sem por isso vi;er sem o ?lieüo. Em
compensação, está claro que a escrita e um dos srntomas de
'.. 9..ue·uma-sociedadeestá mais complexa. Entend~os com
isso a muftiplicação de suas divis.õe,s,a_acentuaçao da~ .p0-
tencialidades de conflitos, a especialização do poder poIíhC?
A maior parte das cidades e dos impérios conheceu a es:n-
ta, e os que a ignoraram durararn me~~s que, os outro~ (Im-
périos africanos, império inca da Arnenca pre-colomblana~.
No mesmo sentido, notar-se-à que a escrita aparece depois
do início das grandes mutações neolíticas, assentadas num
aumento das capacidades de armazenamen~o das econo-
mias. A acumulação das reservas resultante f~l um~ da~ cau-
SãS principais do crescimento da hierarquizaçao social. E ten-
34 NOS CONFINS DO DIREITO
tador pensar que a escrita é seu prolongamento, na medida
em que também ela permite um armazenamento, mas in-
telectual.
A contrario, existem poucas razões para que nasça a es-
,'crita em sociedades menos divididas, com efetivos mais re-
duzidos, e onde as relações têm um caráter comunitário e
são mais imediatas, como éo caso das sociedades tradicio-
nais, ou daquelas que precederam a transição neolítica. Mas
também as nossas sociedades modernas podem ilustrar esse
, mecanismo: o oral tem tendência a prevalecer sobre o escri-
to nos grupos que obedecem a características vizinhas (asso-
ciações locais, associações profissionais, comunidades in-
terioranas, grupos de jovens etc.). Inversamente, o escrito
prevalece quando crescem as distâncias sociais e/ou geo-
gráficas. O que prova que as culturas antigas ou longínquas
não são necessariamente menos inventivas, menos inteli-
gentes porque não recorrem à escrita. Basta confrontar-se
com os sistemas de parentesco dos aborígenes da Austrália'
para voltar muito depressa à humildade. Entretanto, mais
simplesmente, a escrita tal como a conhecemos (pois exis-
tem preto-escritas em certas sociedades tradicionais) não
Ihes é necessária.
Há pouco tempo, eram qualificadas de "primitivas".
Muitos juristas ainda são reticentes em lhes reconhecer a
existência do direito, de tanto que continuam a estreitar os
~~;~;J,~:~?~~~l
~uco a~ oralidadeLconstruir sisteInãsf:i-'
rjSlli:os tão peúeitos quanto os das civilizações da escrita.
Mas elas não são as únicas a ter praticado a oralidade. Sabe-
mos hoje que as primeiras espécies humanas apareceram há
pelo menos dois milhões de anos; a transição neolítica co-
meça por volta de 9000 a.C: a escrita aparece no quarto rni-
IlêniOantes de nossa era; ~cações locais nascem na Mej~otâmia em cerca de 2500 a.ç~ o primeiro Código é o dHammurabi (1728-1686 a.C). Isso mostra o-peso esmagado~e na aventura humana. Por conseguinte, pode-si
w_____., _
4~~u..,
~
~~~
~0~
35O DIREITO TEM HIST6RIAS
formular a seguinte perpun~a: .se o :xe,u:plo d~s soci.edades
tradicionais mostra que o direito nao e ligadoda es~taít0-
der-se-é afirmar que aSisociedades h~~anas _o eo hco
já o conhe~ian:' e a .re:posta for pos~tlVa,entao saberemos
que a existência do direito ':: ' e COma
d ornem. e or negativa, deveremos reconhecer que se
trata de uma conquista recente. .
Mas diante de nós ergue-se o ,muro da esmta. Sua altu-
e,menor no que conceme às sociedades tradicionais. De-ra , I
certo largas fatias de seu passado nos escaPa:n para sempre,
à rrúngua de arquivos es'critos.Noentanto~ dispomos?e tes-
temunhos de fontes diversas: relatos de Vlagens, esmtos de
missionários e comerciantes, relatórios administrativos, tra-
balhos de etnologistas etc, Mas, para o paleolítico, toda a nos-,
sa reflexão parece encerrada: nem arquivos, nem testemu-
nhas podem ser solicitados. Tentemos/não obstante, alargar
pequ~. '.,
A~m primeiro lu?,ar. Ela to:n~ visível os
únicos documentos que.nos sejam amda acessrveis. Mas tra-
ta-se apenas de vestígios materiais (l:cibitats: ossadas, afres~
cos, sepultur§:re.stos aIiInentares): devemosmterpretar tudo,
enossa inserção em culturasindustriais, os valores delas de-
correntes não constituem certamente os melhores observa-
tórios. Também podemos pensar em comparar o,shomens do '~~,I
paleolítico com os caçad,ores-apanh_a"dor~sd.o seculo XX: afi- , fi
nal.decontas, não se diz quesao , os .úlhrr:tos homens da, hy;< ~'::;"I
idade da pedra"? VereII1os'que.ocarninho está.~alpkadode', .... ~~i.~
~~:,=~:~::st=;ã~~~::~i~~::::i'J,
ela, empenhando-nos, porém, em grudar-n?s ~omaxuno aos _
fragmentos de realidade que chegaram ate nos. J
~.~
"
,i
A aurora do direito
o segundo milênio está terminando e ~s )~stas r:e~
sempre conseguem acordar-se sobre uma definiçao do direi-
~:
~~. ~t~ " ~:!
.~
~~r " ~~
i.~
~.~ '. ';:;:-
0< :~
-, -. \'?
36 NOS CONFINS DO DIREITO 37
~~------------~--------------------~----~=-~------------------------~----------------------- - --
to. Nos redemoinhos de idéias que sua busca suscita', sub-
sistem certos elementos, sem que se faça o acordo sobre eles:
~
re e ráticas de conduta obri atórias, que correspondem
a um sistema cultural e a uma autori a e egIhrná, assegu-
<aro a produção e a reErodução de uma sm;.d"ê. ou d,,--um~
~po soaal e podem ser sanaonados por coerçQ~:;;Qilzersas.
Esses caracteres são por demais gerais para constituir real-
mente uma definição. Por essa razão, pode-se pôr numa
enorme sacola fenômenos que qualificamos sem dificulda-
de de jurídicos porque correspondem à nossa idéia do direi-
to (obrigação de reparar um prejuízo qualquer, pagamento
de urna pensão alimentar, ação de investigação de paterní-
dade), e outros que ele nos parece excluir, enquanto muitas
sociedades os incorporam nele (obrigação de prestar culto
aos ancestrais, de recorrer à vingança sangrenta etc.). Nes-
sas condições, pode-se ser cético a respeito de qualquer des-
crição do despertar do direito na consciência dos homens
que povoaram a imensidade paleolítica. Para dizer a verda-
de, jamais saberemos qual idéia do direito própria da cultu-
ra deles podiam ter, assim como as palavras que usavam
para eventualmente explicitá-lo: nada nos chegou direta-
mente das línguas daquele tempo, Nesse silêncio eterno, so-
mos portanto forçados a formular nossas perguntas em nos-
sa linguagem e segundo nossos próprios conceitos, a projetar
ao longe nossas próprias idéias do direito. Uma coisa, pelo
menos, é certa. º direito Eertenc~ao que os antropólogos
genominam a cultura: o que ofíomem constrófii-pártir do
ãaaõnatural, que lhe é imposto. Assim a espécie humana
é submetida a um modo de reprodução sexuada, com o qual
todas as sociedades tiveram de se virar. Mas as arquiteturas
dos sistemas familiares erguidas sobre esse fundamento são
extremamente diversas. O recurso ao cultural não é próprio
do homem: as sociedades animais, também elas, souberam
1. Para um último balanço, cf. os dois tomos da revista Droits consagra-
dos a esta questão, à qual tentaram responder uns quarenta autores: Définir le
droit, Droits, 10, 1989; 11, 1990.
O DIREITO TEM HISTÓRIAS
inventar regras que não lhes eram dadas e sancioná-Ias. Mas
o homem se distingue para sempre do animal pela amplitu-
de do que constrói.
Essa preeminência da cultura foi facilitada por certos
traços bem conhecidos: posição vertical, utilização da fer-
ramenta, linguagem. Certos animais também as c?uhecem,
mas a genialídade do homem foi desenvolvê-Ias a um pon-
to inigualável.
Deve-se salientar a importância extrema da linguagem
articulada: as séries de sons codificadas que ela emprega
podem transmitir o pensamento a uma velocidade ao menos
'.:.~.[_~.~..'I' dez vezes superior a qualquer outro código de sinais. A ela-
FO boração e o aperfeiçoamento do direito são ligados ao apa-'~l recimento e aumento de complexidade da linguagem: para
'~i criar, observar ou contestar as regras, cumpre poder comu-
.
:.:·i....~I!. nicar a respeito delas e graças a elas. Daí a necessidade de
conseguir determinar quando o homem pôde falar uma~-
-:il guagem do tipo daquela que utilizamos. Desse mom~~to nao
~! data o direito, mas emerge de modo por certo deCISIVOsua
_! importância na regulação social.Para melhor analisá-Io, lem-
\ bremos algumas etapas, . . ,I O primeiro tipo de homem (Homq habzlzs) aparece ha
1 milhões de anos, na Áfuca, de onde é oriunda nossa es-
; pécie. Um milhão de anos mais tarde, o cérebro hur:::ano.
z dobrou, atingindo 1000 em'. Nessa data, ele pape entao da
. .' '. i. África. (talvez .fugindo..da mosca tsé- tsé) para. a Asia, onde se
~ ~1 \-> . \(1.',..;0 . . . . . "," .... ' '.' - . -r " a ão das cone-.......!........extmgue, por nao poder adaptar se.a degrad ç ..
~\, \AI')..... dições climáticas durante as fases interglaciais. Há400 rrul
anos, um no.vo tipo de homem,.chamadosle~rd~rt~
aparece na Africa. a qual ele deixa por sua vez Dinil anos
mais tarde para ir à Europa da era glaciaLSeu cérebro atinge
1800 em' (o nosso é de 1500 em'). sinal de um aumento con-
siderável de seu potencial intelectual, Mas sua laringe se situa
alto demais em sua garganta para que possa falar de modo
muito satisfatório. Sua elocução devia ser lenta, suas frases ru-
dimentares: o órgão não estava à altura do cérebro. Ele tam-
bém desapareceu há 30mil anos, por não poder ter-se adapta - .
..~:
38 NOS CONFINS DO DIREITO
do às moclificaç_õesclimáticas do fim da era glacial que pro-
vocou a rarefaçao da caça. O caráter rudimentar de sua lin-
guagem dece~o foi determinante em sua falta de adaptação:
quando o meio muda, aumenta a necessidade de comunica-
ç~,o.Durante es~e tempo aparecera, 150mil anos antes de
nos, sempre na Africa, o Ramo sapiens sapiens, o homem m:o~
~. Seu cérebro era me;;-or (1500 em') que o ~er-
thal, mas a laringe descer,a ~m sua ?arganta. I-!.á70mil anos,
abandona por sua vez a Africa e vai coexistir durante milha-
res de anos com o homem de 1::!..eanderthal.Mas sobrevive a
ele, pois a relação entre o órgão que produz o pensamento e
o que o expressa tem melhor desempenho nele.
Estima-se, de fato, que há cerca de 100mil anos o Ramo
.~f:lli s~ens tinha os meios de falar Uma linguagem ãrti-
~a de ~~o ~odemo" o que lhe permitiu adaptar-se às rá-
pidas moclificaçoes Climaticas do fim da era glacial, há 12 mil
anos. Decerto recorreu ao que chamamos o direito para in
~s novas regras necessárias à sua vida social e eco-
_nômi~, de um lado, quando deixou a África e, depois, quãn-
do os gelos e a caça recuaram nas terras onde se instalara.
Com o>fi.reitoe.a religião, entramos nos campos em que
parece aumentar ainda mais a diferença com os animais
Digo "parece" pois, salvo nos mitos, reflexos de sua nostal-
gia, o hom:m ~ópode comunicar-se muito imperfeitamente
. co~ ?s arurn31s. NUl\ca saberemos o que eles podem pen-
..$aJ:" elas regras de conduta próprias de suassociedades nem
se a dor qu~ alguns sentem com a mortede seus prÓ;amüs
pode aproXlffiar-se de uma reflexão de natureza metafísica.
C.orr:o risco de ~~~ eng~ar, concluamos, pois, que nem o
~elt~ nem a religião existem entre os animais. Muitos pré-
hIst0r:a.dores concord_am em considerar que a inquietude
metafísica : a formaçao das atitudes religiosas dela resul-
t~te :onshtuem uma etapa essencial noprocesso de homi-
mzaçao: ~ inumação dos mortos em sepulturas (em geral
em poslçao fetal) e o depósito de oferendas ao lado delas
cons~tuem um dos sinais que ates~am essas indagações.
Manifestam-se apenas bem tarde, ha somente 8()ffii.lanos.
O DIREITO TEM HIST6RIAS 39
Não é nada, se situamos a dois milhões de anos as primei-
ras espécies que Rodemos anatamicamente considerar apa-
rentadas ao homem. Contudo, nada impede de imaginar que
o pensamento metafísico nasceu bem antes: pode-se acre-
ditar na sobrevida,ou esperá-Ial11esmo abandonando o cor-.
pC:de um defunto. Em todo caso, quando se inicia a mutação,
neolítica, o homem já é religioso faz muito tempo. (E igual-'
mente artista: as primeiras imagens do corpo, sobretudo se-
xuais e femininas; aparecem há35 mil anos.)
Simples rememoraçâo de dados conhecidos. Mas, da'
ferramenta à metafísica, o direito é o grande esquecido no .
processo de hominização. Ora, também ele parece ter con-
tribuído parao nascimento do homem, talvez até antes da
religião. Os cosmólogos nos dizem que DOSSO universo, ve-
lho de 15 bilhões de anos, tomou-se transparente 300 mil
anos depois de seu começo, com a separação da matéria e
da radiação. Portanto, podem ter esperança de vê-lo em sua
infância. Os observadores das sociedades humanas não têm
essa sorte: o muro da escrita se ergue a somente 5 mil anos
de distância. Mas uma coisa é se ra: de
3000 a.c., comeca para nós a História, a família existe e
suas formas já atingiram um grau de organização e de com-
plexidade que desde então não superaram. Duas novas ca-
tegorias de documentos nos permitem dizê-Ia. De um lado, o
aparecimento de sepulturas coletivas (as mais antigas da- .
tam do quinto milênio antes-de n~ssa era) onde a disposição
dosmortos.e_as.características físicas de suas assadas ates-
tam agrupamentos por família; De outro lado, dados forne-
cidos pela lingüística. A partir de línguas conhecidas, esta
permite reconstituir a língua comum de que podem ser oriun-
das. Ora, o estudo de línguas indo-européias tais como o hi-
tita, o grego e o sânscrito permite supor a existência de uma
língua original, que data do quinto ou do quarto milênio. Os
termos de parentesco que ela utiliza confirmam, precisan-
do-os singularmente, os ensinarnentos das tumbas: graças a
eles, sabemos muito mais sobre a estrutura interna das famí-
lias às quaispertenciam os homens que os empregavam. Ob-
•....••...--
0' 40 NOS CONFINS DO DIREITO
servamos que o sexo masculino é privilegiado em compara-
ção ao feminino: uma mulher dispõe de muitos termos para
designar os membros da família do marido (sogro, sogra, o
que é óbvio, mas também: irmão do marido, irmã do marido,
mulher de um irmão do marido), ao passo que o vocabulário
do homem referente aos parentes de sua mulher" é muito
mais reduzido. Sinal de que a esposa é agregada à família do
marido, e não o inverso. Aliás, quando um homem se casa,
diz-se que" conduz a mulher à casa". Trata-se, pois, provavel-
mente de uma sociedade patriarcal, estruturada em clãs pa-
trilineares, com casamento virilocal. Outros dados termino-
lógicos, mais técnicos, permitem ir ainda mais longe e supor
que os casamentos se efetuavam preferivelmente entre pri-
mos cruzados: um homem esposará prioritariamente a filha
da irmã de seu pai, uma mulher, o filho do irmão de sua mãe.
Estrutura muito complexa, da qual só dou o arcabouço: en-
contramo-Ia em grande número de sociedades tradicionais.
Ora, nem tudo isso é evidente: nada, Dá natureza, se opõe
a que se espose de preferência o primo paralelo (filho do ir-
mão do pai) ao primo cruzado (filho da irmã do pai). Noutras
palavras, embora a família não seja peculiar ao homem (cer-
tos animais vivem em família), foi ele que inventou as re-
lações de parentesco, de essência jurídica. Estas permitem
confirmar a base natural, biológica, da família, ou afastar-
se dela. Pode-se assim quer consagrar um vínculo biológi-
.co (declarando que umacríança é filha de seus genitores), .
.quermstit1iiT:um-\1rlculo.parental entre dois indivíduos que
não possuem nenhum por natureza (em direito francês, uma
filha não pode casar-se com o pai adotivo). A maleabilidade
e a variedade das escolhas permitidas são consideráveis. Es-
ses princípios foram descobertos por certas sociedades para
estruturar os edifícios familiares que escolheram erguer. Aqui
só pude dar um apanhado muito breve deles, mas sua tecni-
cidade é tal que o antropólogo recorre aos modelosmatemá-
ticos e à :informática para descobrir-lhes todos os aspectos.
Isto deixa supor que a formação dessas regras é muito ante-
rior à data em que lhes localizamos a existência: dezenase
o DIREITO TEM HISTÓRIAS 41
talvez centenas de'milhares de anos antes de nós. Muito lon-
ge da transição neolitica. Certamente foram precisos mui-
tos tateamentos, a exploração de muitos impasses antes que
essas fórmulas e a eficácia delas fossem descobertas. Essa
muito lenta e muito precôce organização da família em tor-
no das relações de-parentesco foi o bêrço do direito. Este criou
o homem, e o homem o-criou. Pois,'7:omo essas normas de-
terminam a orientação das alianças matrimoniais, a escolha
dos critérios de filíação e afixação do lugar de residência dos
esposos, são muitas regras que possuem os atributos das
normas jurídicas enunciadas acima. Impondo-se sem neces-
sidade natúral de preferência a outras, elas correspondiam a
valores culturais (por exemplo, preeminência de um sexoso-
bre o outro), visavam çoerência e perpetuação do grupo e de-
certo eram sancionadas por meios que ignoramos.
Eis que chegamos a um primeiro resultado: é ~ale~-
~ue se deve procurar a origem de relações de parentes-
co que constatamos no limiar da História: a :invenção dessas
relações supõe o emprego de raciocínios e de mecanismos
que hoje qyalificainos de jurídicos.
~9~ de uma antiguidade pelo menos igual,
~ pela ~cidade do direito na híatéria
h~a: a invenção da proibição do :incesto, a.regu!'!tiza-
ção da fecundidade, a domesticação do fogo e a divisão se-
~ do trabalho., . -~~
A maioria dos, sistemas jurídicos proíbe as uniões entre
.··parentesconsiderados próximos demaiarnesrnoqúé áde-
finição do grau de-proximidade varie muito. Explica-se co-
mumente isso afirmando que, contrária à natureza, a união
incestuosa aumentaria os riscos de aparecimento de defeitos
genéticos. Muitos antropólogos duvidam dis~o. Apóiam-se
nos argumentOs de Oaude Lévi-Strauss. Se "o horror do:in-
cesto" fosse tão profundamente arraigado na natureza hu-
mana, por que os diferentes direitos tomariam a precaução
de proibi-lo com tanta constância? Observa-se, aliás, que nas
sociedades pouco numerosas (como muitas sociedades tra-
dicionais, QU as dopaleolítico), a proibição das uniões entre ..
( .
I.N/), c.. oJ
42 NOS CONFINS DO DIREITO
parentes próximos só tem efeitos muito limitados sobre a
transmissão das taras genéticas. Numa população de oitenta
pessoas, essa proibição (que visa até os primos de primeiro
grau) só diminui de 10% a 15% o número dos portadores
de caracteres raros. Enfim, nota-se que o recurso à explica-
ção biológica aparece apenas no século XVId.C. ~'o pode
fuTidamentar muito os raciocínios gue conduziraIJl..Ç.spri-
m~s hllmanas aproibir o in.cesto.
~re procurar noutras direções, que não são as
da natureza. A primeira hipótese é de ~dem ~amente so-
cial. Para Oaude Lévi-Strauss, a proibição do incesto é a con-
aíção de toda vida em sociedade. Renuncia-se a esposar os
parentes próximos e aceita-se dá-Ios em casamento a ou-
tros grupos familiares, dos quais se receberão por sua vez côn-
juges. Sem essas trocas, cada grupo viveria fechado em si
mesmo, condenado a mais ou menos longo prazo à implo-
são. Tudo isso nos leva de novo a tempos extremamente
antigos: a arqueologia só nos mostra o homem em socie-
dade, mesmo que essa sociedade se reduza a algumas de-
zenas de indivíduos. A proibição do incesto deve, portanto,
situar-se muito remotamente em nossa história. Talvez até
bem no começo. Pois, sem excluir a explicação de Oaude
Lévi-Strauss, certos autores põem a ênfase em Q.utrosfenô-
menos. Por exemplo, o fato de a mulher humana sei a única
CFe1'5dasas primatas que não tem" cios" e fica'sexualmen-
te atraente de modo quase permanente. Se acrescentarmos
que, na espécie humana, a maturidade tardia das crianças
faz que coexistam indivíduos de geráçõesdíférentés capa:--
zes de relações sexuais, compreenderemos que os antagonis-
. mos nascidos da competição pelas mulheres poderiam ter
conduzido à desagregação das primeiras sociedades humanas
se a regulação nascida da proibição do incesto não tivesse sido
instituída. Graças a ela, havia desde então dois grupos de mu-
lheres: as ~podiam esposar e aquelas a rpl€ se devia re-
n ciar,··or conse te suscetíveis de trocas. Outras necessi-
dades, de ordem demográfica, tomavam aliás in . pensável o
recurso à troca.No seio de um pequeno grupo, as flutuações
aleatórias da divisão dos sexos podem ser muito importantes:
O DIREITO TEM HISTÓRIAS 43
o déficit em homens ou em mulheres pode ficar tal em dado
momento que o grupo, para se reproduzir, só pode recorrer à
poliginia ou àpoliandria; empenhar-se na busc~ do~ cô~jug~s
faltantes mediante rapto noutros grupos ou na institucionali-
zação da troca, a solução mais satisfatória. Quando !9iadota-
da? Trocaram-se primeiro homens ou mulheres? Naoo sabe-
mos. Nosso único ponto de referência se situa há 4 milhões
de anos, quando se separam hominídeos e chimpanzés. A
.. "'!;;. -011 perda do estro pela mulher humana (enquanto a fêmea chirn-
I'~I;' '<;'(t<.,~ panzé está sujeita ao ciclo dos cios) sucede.-lhe n~ momen-
i:c·, . to indeterrninado, mas provavelmente milito antigo.
":.;;;" <'c.• ~ \ Data-se O outro 'índice com mais facilidade: trata-se do
; i,., l,,'''' c2ntrole da f~~didade: Os pré-historiadores situax.nentre
~i . dois e um milhao e meio de anos antes de nossa epoca a'~J! d;:ta em que os horninídeos encontraram os meios. próprios.
:~, de se defender eficazmente dos ataques dos animais. Essas
. ;..J LJ~~' datas correspondem ~o aparecimento dO,Hom~is, pri-
'i~' meira espécie verdadeiramente humana. E um oruvoro, com
.l),,')~ ~-.J11) - 1,40m de altura, cuja bipedia é praticamente a nossa. Suas
~·:1. ferramentas são numerosas e variadas, suas modalidades de....,-v \i1 ).0'- NV ,
;\ ocupação do solo (construção de abrigos, especialização do .
:1 espaço em áreas de retalhamento de árvores, de talhe de pe-
, eIrase de hábitats) constituem os primeiros traços indiscu-.- f
~\'vvl tíveis da consciência: reflexiva, da vida social. Datado de lc6
. : milhões de ano~ ojimrzo erectus, nosso ancestral direto, se-
~.,..J~' ./ gue-o relativamente de perto (aliás, QS diversos gêneros coe-. f:, '..u.<>')
_~~.I1l.ce.lt<:i tempoj.Tendo-se protegido das feras; esses ho-
mens tiveram de enfrentar outras dificuldades, menos brutais
mas também preocupantes: o aumento dos efetivos demográ-
ficos além do nível dos recursos disponíveis, gerado pela vi-
tória sobre os predadores. Cálculos precisos mostram que,
sem medida corretiva, isto seria insuportável. Tomemos uma
população pré-históríca de 35 indivíduos, cuja taxa de natali-
dade fica igual a 3)~% ao ano. Suponhamos que as medi-
das de proteção contra os animais tenham feito a taxa de
mortalidade cair de 3,5% para 3%: daí resulta um crescimen-
. to de 0,5% ao ano. Cinco mil anos mais tarde, os descenden-
tes dos 35 indivíduos atingiriam 1600 bilhões, ou seja, qua-
....... f.-. ..
44 - NOS CONFINS DO DIREITO
trocentas vezes a população atual do planeta ... Inútil preci-
sar que, se a transição neolítica - de qualquer modo muito
tardia - vê engrossar os fluxos demozráficos (sobre o terri-, . o
tono atual da França, a população passa de 100mil indiví-
duos em 4000a.C. para 1 milhão, mil anos mais tarde), os
ritmos observados não têm medida em comum comesses
cálculos. Como a guerra parece ausente no paleolítico, não
se lhe pode atribuir o papel de substituto aos ataques das
feras. Logo, somos levados a supor que foi instituída uma
regulação da fecundidade. Por quais meios? O infanticídío
certamente, mas também outros, mais sutis: atras a-
de do casamento, ta us que mitavam os períodos durante
os quais eram lícitas as relações sexuais. -
, -c:'ufras t~t~s.p0rtas do reino do direito abertas nos pri-
mordias da histona humana. Pouco importa que se escolha
qualificar de usos, costumes ou leis essas diversas práticas. É
o direito, na medida em que essas normas trazem os carac-
teres que lhe atribuímos e já que jamais saberemos como os
homens daquele tempo as conceituavam.
O derradeiro indício capital faz-nos dar um grande sal-
to no tempo: deZ milhões de anos, passamos a 500mil anos
antes de nós, data aproximada do domínio do toga. O ho-
n:em ~e Neanderthal ainda está longe, e so no aurigna-
ciano e que aparecem as primeiras manifestações daquilo
q~e denominamos a arte, levadas ao auge pelos magdale-
manos (foram eles que decoraram as paredes de Lascaux).
Estes sé situarri iruiito perto de nós (entre 15 e 13000 anos
a::tes de nossa época): guasecontemporâneos. A'utiliza-
çao do fogo era para eles uma técnica imemorial. Em seu
tempo, porém, esta produzira ou acelerara mutações so-
ciais e jurídicas de um alcance considerável. Antes de tudo,
a especialização do espaço. Iniciada pelo Hamo habilis, ela
se acentuou: a possibilidade de reproduzir à vontade luz e ca-
lor, a mobilidade daí recorrente implicam uma divisão sem-
pre mais marcada da localização das atividades. Já não se
encontra nas jazidas a mistura Última de resíduos de carniças,
de ferramentas e de arranjos domésticos rudimentares aos
quais estavam acostumados os australopitecos, ou .mesmo
O DIREITO TÉM HIST6RIAS 45
os primeiros Homo erectus. Os locais de corte de árvores, de
retalhamento, de fabricação de ferramentas agora são sepa-
rados do lugar de estar. Não é impossível- nada sabemos
sobre isso - que essa especialização do espaço tenha acom-
panhado a territorialização dos direitos assimiláveis aos que-
chamamos de propriedade ou uso: a multiplicação e a di-
visão da localização' das atividades conduzem fatalmente à
sua regulamentação. Pois elas implicam que certas ativida-
des em certos lugares são lícitas e outras não; podem acos-
tumar com a idéia de que tal grupo mais que outro tem o
direito de utilizar tal espaço.
Mesmo jião sendo a causa primeira disso, a domestica-
ção do fogo também acentuou um mecanismo cujos efeitos
sentimos ainda: a divisão sexual do trabAho. Esta existe em
todas as sociedadesque conhecemos, ainda que as socieda-
des ocidentais modernas a tenham enfraquecido, notada-
mentepor meios jurídicos (os empregos legalmente "reser-
vados" aos homens são pouco numerosos, mesmo que na
prática ocorra diferentemente). Ela encontra provavelmente
sua origem histórica nas modalidades de procura da alimen-
tação. Na espécie humana, as necessidades alimentares dife-
rem conforme o sexo. A mulher se encarrega, de modo mui-
to importante no plano energético, do desenvolvimento do
feto. Deve absorver muitos protídeos e fósforo (ainda mais
porque o fósforo faia elemento indispensável para a triplica-
ção do volume do cérebro no decorrer do processo evolutivo).
Portanto o homem caça pará ela etraz-lhe Carne, bem como
----otutano dos ossos. Este-tem, em compensação.sobretudo ne-
cessidade de gorduras e de hidratos de carbono para a perse-
guição da caça. A mulher lhe proverá procurando tubérculos
ricos de amido, ou cultivando uma horta. Essa combinação
era mais eficaz do que a hipótese em que cada sexo teria pro-
vido às próprias necessidades: é difícil imaginar uma mulher
grávida perseguindo a caça grande em longas marchas.
O aperfeiçoamento da caça (há 200 mil anos, o Homo
erectus pôde vencer auroques e elefantes) deve ter acen-
tuado a divisão do trabalho: atividade perigosa e cada vez
mais técnica, não permitia que a ela fossem levadas crianças
I.,
.\
!
46 NOS CONFINS DO DIREITO
muito pequenas. Estas eram, pois, entregues à guarda da
mãe, também encarregada da manutenção do fogo (a ima-
gem da "mulher do lar" é decerto a representação mais anti-
ga que nos tenha vindo dessas épocas). Essa divisão apro-
fundou-se no decorrer do tempo. Em toda sociedade, e de
.:modo mais especial nas comunidades tradicionais, ela mar-
ca profundamente o conteúdo do direito. Há tarefas masculi-
nas e outras femininas, diversamente situadas na escala dos
valores culturais. Nos sistemas de aliança, são principalmen-
te as mulheres que são trocadas. Ademais, se as sociedades
modernas se caracterizam por uma filiação indiferenciada
(é-se parente, de maneira igual, de seus descendentes e as-
cendentes masculinos e femininos), as sociedades tradicio-
nais e as do.passado são muito mais unilineares (em geral
patrilineares,com menos freqüência matrilineares). Enfim,
.os efeitos dessa divisão estendem-se à propriedade mobi-
.liária. Certos objetos (jóias, enfeites) são mais femininos, ou-
tros (armas de caça), masculinos. (Há pouco tempo ainda, o
automóvel do marido era mais importante e prestigioso que
o da mulher.) .
Todos esses exemplos atestam a complexidade das re-
lações que o homem das origens mantém com a natureza.
A pré-história do direito no-Io mostra, de fato, ora confirman-
do-a, ora se distanciando dela. Mas anuncia-se outra época:
estamos às vésperas das grandes revoluções do neolitico.
Depois desse longo caminho, quea indigência das fon-
tes nosobrigou a.percorrertâodepressa, façamos a conta
de nossos achados'. Em primeiro lugar, os ensinamentos
das sepulturas coletivas e da lingüística: as estruturas com-
plexas que revelam se formaram no paleolítico. A proi~ção
2. Encontraremos um excelente panorama dessas questões em C. Mas-
set, Préhistoire de Ia famille, in: Lafamille, A. Burguíere et alii, orgs., 1,Paris, A.
Colin, 1986, 79-97; e J. Reichholf, L'émergence de /'homme, Paris, Flamrnarion,
1991. Leremos com muito mais prudência, tão grande é a parte da hipótese, J.
Dauvillier, Problêrnes juridiques de l'époque paléolithique, in: Mé/anges H.
Léuy-Brühl, Paris, Sirey, 1959, 351-9.
~'{~'ç~ '><> IA) lf.l~1
I .\.M 'l~ -
O DIREITO TEM HiSTÓRlAS
do incesto e o çontrole da fecundidade: eles advêm entre
um e dois milhqes de anos antes de nós. A domesticaçaó'do
fogo é mais tardia (- 500ÍÍÜlanos), porém muito anterior ao
neolitico.
Há 100 mil: anos, o aparecimento da linguagem arti-
culada de tipo moderno permite à inventividade do homem
aperfeiçoar, de modo decerto decisivo, as inovações jurídi-
cas realizadas anteriormente eproceder a outras descober-
tas nesse campo. Infelizmente quase nada podemos dizer
sobre elas até que seja transposto o muro da escrita. Mas
devemos constatar que, no total, dispomos de um feixe de
dataçõesznuíro altas referente às inovações decisivas na his-
tória da hu.manidade. C?bservemos em seguida que todos A
~
esses indícios atestam nas m as altitudes a existência/\
. daqu o a que chamamos o dir~ito..;.Ovídio estava errado, a
numarudade con;heceu muito cedo o direito e o utilizou para
se perpetuar. Sua existêncianão pode ser provada da mesma
maneira que a das pontas de flecha. Contudo, sua invenção
não deixou de determinar o fato de que, tanto tempo depois,
estejamos aqui para falar dela.
Fica-se ainda mais irritado de não saber mais sobre o
assunto. Já que os arqueólogos nada mais nos podem dizer,
por que não nos dirigir aos etnologistas? Em astronomia,
olhar longe é olhar dentro do passado: as sociedades tradi-
cionais do presente ou do passado recente não serão a luz
que nos vem do paleolítico, e a etnologia não será um rnara- .. : .
. vilhoso telescópio? A idéia é tentadora. Osc~.ç~dcires~apa-
nhadores modernos e os dá pré-históiia'-parecem apresentar
muitos traços em comum: mesmos modos de subsistência,
efetivos demográficos modestos, preeminência da família,
ausência de escrita etc. Os aborígenes da Austrália seriam
em suma mousterianos, os bushmen, aurignacianos e os es-
quimós, magdalenianos: as folhas de arquivos vivos. E é exato
que, tudo considerado, um esquimó do início do século:XX
tem mais pontos em comum comum magdaleniano do que
com um parisiense ou um nova-iorquino de 1991.
Nem toda correlação é proibida. O raciocínio por analo- .
gia pode fundamentar uma intuição ou hipóteses. Vimos que,
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48
NOS CONFINS DO DIRETO
'
com? muitas sociedades tradicionais, o homem pré-rustÓri-~!
co pode c0nh.ecer o cas~referêJ1cia ~i)tre..priiii2s~
:ruzado~. Ma~ r:ao o sabemos. Noutras palavras, não se deve
c0.rl~ndir a hipotese com a prova. A constatação de tal insti-
. tuiça? e~tre caça~ores-apanhadores modernos nãóperrnite,
po~ SI:0,. estende-Ia ~.determinada sociedade pré-históríca
POIShá diferenças capitais', Podemos resumi-Ias facilmente.
. No paleolitico, todas as sociedades humanas são cons-
tituídas de caçadores-ápanhadores. Desde o neolítico até os
no~sos dias, os caçadores-apanhadores avizinham-se das
socIedades de pastores e de agricultores: seu modo de vida
não é o único; mantém-se em contraposição ou colaboração
com outros. Ora, manutenção não significa reprodução idên-
tica durante cerca de dez milênios. Para preservar seu modo
.de vida, os caçadores-apanhadores, no decorrer da história
foram forçados a modificá-Io consoante sua inserção num
~undo. tomado l~gamente agrícola e pastoral e, mais tarde,
industrial e urbanu:ado. Essa manutenção pôde necessitar de
guerras com as so?ed~des viz~as. Ora, se entendemos por
~erra urna o:ganlZaçao coletiva e a utilização de armas mi-
litares, o ergu~en.to de fortificações com o objetivo de ven-
c:r um gmpo ~go ou resistir a ele, esta parece desconhe-
cida ao paleohtico. (Os primeiros indícios certos de conflitos
armados são encontrados na necrópole de Jebel Sahaba no
alto v~: d~ Nilo, que data de 10000 a.C) Portanto, ela deve
te:-e:a~do importann-, transformações das estruturas sociais
..ejurídicas. Com mais freqüência,.teceram~se.relaçõescie:trb~
c~ en~e caçadores~apanhadores e criadores-agricültores. As- -
sim. diferentemente dos homens pré-rustóriQOs, muitos ca-
ça~orés-apanhad?res mo?ernos não têm a indústria da pedra,
p.OISo ferro lhes e fo~e?do por sociedades metalúrgicas vi-
zinhas. Mas os empreshmos não se limitam apenas à tecno-
logía. Em muitos casos, os caçadores-apanhadores entraram
numa forma de dependência econômica de seus vizinhos ,
3. cr J. Testart, Les chasseurs-cueilleurs entre la préhistoire et
I'etnologie, in: Dossiers Histoire et Arché%gie, 115, 1987, 8-17.
,o".
"o._!
q
o DIREITO TEM HISTÓRIAS
;
ja demanda condiciona-lhes a produção. Essa subordina-eu I _
ão tende a ficar cultural: os caçadores-apanhadores adotam
~rogressiv~enti eleme.n~os~~sticos, sist~rr:as de paren-
tesco e classifieaçpes sociais propnas de seus vizinhos. Quan-
do trocas tão intensas ocorrem, a persistência de um,IDodo
de vida baseado ha caça'e na colheita se aparenta não: a uma
perpetuação ~os' :empos-yaleo~ticos, mas à emergê~ci~ de
uma econorma pós-neolítica rrusta, em que gmpos etmcos
diversos exploram de maneira diferente e complementar uma
área territorial ohde coexistem. Essa mistura tecnológica só
pode prolongar;se no camp.o cultural e toma aleatórias ~s
comparaçôes qu~ podemos ficar tentados a fazer com a Pré-
História. Seriam evidentemente menos ilegítimas no caso da
descoberta de caçadores-apanhadores isolados pelas condi-
"ções geográfícãsou por sua recusa do contato. Descobrimos"
ainda uns assim de quando em quando, como foi o caso-dos
" tasadavs, em 1971, um gmpo de cerca de 25 indivíduos que
vivi~ na selva da ilha de Mindanao (Filipinas), em condi-
ções decerto bem próximas às do Homo erectus.
São exceções. Na maioria dos casos, a luz que nos en-
viam do passado os caçadores-apanhadores modernos é
muito enfraquecida pela aculturação por que passaram bem
antes da colonização. A transição neolítica foi para essas so-
ciedades um momento capital. Chegou o tempo de dizer em
que ela afetou tão profundamente as estruturas jurídicas pa-
cientemente elaboradas no de.correr do paleolítico.
49
A dinâmica neolftica
Gordon Childe inventou em 1936 a expressão "Revolu-
ção neolítica". É enganadora. Evoca a idéia de um corte bru-
tal e nos faz pensar numa outra revolução, industrial, que se
efetuou em algumas décadas. A transição neolítica por cer-
to é revolucionária em seus resultados, mas se espraia em
vários milhares de anos, e sua cronologia não é, aliás, a mes-
ma conforme as:áreas consideradas. Dois mil anos depois do

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