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Luís Nassif Os Anos JK

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Os anos JK
Luís Nassif
Assim como a bossa nova, JK, o "presidente bossa nova", não surgiu do nada. Em geral, há uma tendência a considerar ambos os fenômenos como marco zero ou da história da música ou do Brasil.
 JK herdou um conjunto de circunstâncias, de estruturas, de modos de pensar, um clima que começou a ser preparado no pós-guerra. Se se for escarafunchar a história, é possível que a cadeia produtiva que germinou no produto JK comece lá pelos idos de 1937, quando o jovem Nelson Rockfeller saiu em viagem de lua-de-mel pela Ásia e pela Índia e se indignou com a brutalidade do regime colonial britânico. Nelson tomou a América Latina como laboratório para uma nova forma de colonização, em que o papel central fossem o desenvolvimento e a convivência dos valores norte-americanos com os valores nacionais de cada país. Influenciou Roosevelt, depois Eisenhower, colocou dinheiro dos EUA e capital próprio na montagem de uma rede de aliados e de ferramentas de desenvolvimento de novas técnicas agrícolas a um mercado de capitais moderno.
Nesse trabalho, Nelson encantou-se com o dinamismo do jovem governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, com o potencial agrícola e mineral do Estado, escolhendo-o para a implantação da primeira Acar (rede de pesquisas agrícolas) e como destino preferencial para os investimentos americanos.
Na sequência da cadeia produtiva, vêm os trabalhos da Missão Abbink, Plano Salte e Comissão Mista Brasil-EUA. A Comissão Mista foi um exemplo fantástico de objetividade política. O Brasil explorava o receio americano com uma possível Terceira Guerra, a partir do conflito com a Coréia. Foi para a reunião armado de um minucioso diagnóstico sobre as necessidades de investimento em infraestrutura. Não tenho elementos para comprovar, mas possivelmente a influência de Nelson possa ter sido relevante para a enorme prioridade dada a obras em Minas Gerais, nos trabalhos técnicos da Comissão Mista.
JK assumiu a Presidência contando com muitos elementos herdados dos períodos anteriores. Primeiro, o mapeamento das carências na infraestrutura. Depois, a tradição de montagem de projetos, herdada da Comissão Mista, constituída no tempo de Vargas. O Plano de Metas nada mais é do que o Plano Lafer (que serviu de base para os trabalhos da Comissão Mista) colocado de pé pela experiência acumulada por Lucas Lopes no seu período de Comissão Mista e de BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Herdou de Vargas, também, a Petrobras, a Eletrobrás e o BNDES funcionando. E de Lucas Lopes a abertura para o mundo e a consciência da importância do capital estrangeiro associado a nacionais.
JK pegou esse potencial todo e imprimiu um ritmo especial, de tocador de obras. Mesmo os críticos mais duros reconhecem seu pique, sua coragem pessoal, demonstrada na campanha política, o entusiasmo que injetou no país. Tanto que, ainda em pleno governo Jânio Quadros (que fez campanha denunciando a suposta corrupção no governo JK), ele foi aclamado na Catedral da Sé e carregado nos ombros pela multidão até a Associação Comercial.
Mas era dotado de enormes defeitos também. Um deles foi ter inaugurado a irresponsabilidade fiscal no país. Seu círculo próximo de amigos denotava total falta de discernimento, com amplo espaço para o submundo atraído pela construção de Brasília.
Criticava-se muita sua falta de lealdade política e pessoal, patente, aliás, no momento em que rompeu com o FMI – enquanto a multidão saudava por uma porta do Palácio das Laranjeiras, pela outra entrava o banqueiro Walter Moreira Salles, chamado às pressas para apagar o incêndio. Ou na maneira como se desfez de Lucas Lopes, demitindo-o quando enfartado em Caxambu.
A falta de lealdade política era um componente intrínseco de seu estilo, característica, aliás, presente também em Roosevelt e alvo da admiração de Fernando Henrique Cardoso, que considerava a dissimulação qualidade intrínseca da arte de governar. Há que dissimular para conseguir, mais facilmente, atingir os objetivos propostos.
O padrão JK 
Para uma avaliação exemplar do governo Juscelino Kubitschek, antes que ele seja beatificado, e sem pretender que seja demonizado, sugere-se a leitura dos dois depoimentos de Casemiro Ribeiro, ex-Sumoc, dados ao CPDOC da Fundação Getulio Vargas no final dos anos 80.
Casemiro foi um dos primeiros economistas públicos, funcionário de carreira da Sumoc (Superintendência de Moeda e Crédito), responsável por boa parte da construção monetária brasileira, desde a parte monetária do Plano Trienal de Celso Furtado, no governo Jango, até contribuições à Lei de Mercado de Capitais, no governo Castello Branco.
O ponto central de seu depoimento é quando tenta convencer JK a reajustar tarifas, corrigir o câmbio e conter emissões monetárias. "À medida que o senhor permite que a tarifa de avião Rio-São Paulo seja igual à tarifa de ônibus, o número de pessoas que anda de avião ou que manda transportar carga pesada por avião é uma brutalidade. Estamos importando avião e nos endividando." JK alegava que o Brasil precisava de aviões, e ia além: "Você vai aumentar as tarifas, vai aumentar o custo de vida; vai aumentar o transporte de avião, e vai ser uma aberração da gasolina, ih, rapaz, vou ser crucificado!". "O senhor vai pagar o subsídio de onde?", insistiu Casemiro. "O preço, sendo mais baixo, vai ser usado mais do que o necessário, o senhor vai desequilibrar o balanço de pagamentos e vai ter que emitir e fazer uma expansão monetária, elevando o custo de vida."
Então, ele disse essa frase notável de político, conta Casemiro: "Casemiro, você não tem sensibilidade política. (...) Pode ser que, em eu emitindo para cobrir déficit de serviço público, provoque uma emissão monetária e isso seja tão inflacionário ou até mais do que o impacto dos custos. Mas há diferença política enorme. Quando há emissão de papel-moeda para atender às atividades econômicas, todo mundo bate palmas". Casemiro disse: "Mas dinheiro não é capital, não é renda." Ele retrucou: "Mas ninguém sabe disso, ninguém sabe. (...) Outro dia o senador Vivácqua disse: "Falta dinheiro neste país. Vejam o dinheiro per capita nos Estados Unidos e o dinheiro per capita do Brasil". Casemiro insistiu: "A comparação está toda errada".
Juscelino respondeu, encerrando a discussão: "Pode ser que esteja errada, mas só você, o Roberto, o Lucas e mais uma meia dúzia de pessoas sabem. (...) Quando os preços sobem, o pessoal xinga o português da quitanda. (...) Agora, quando é por decreto, como no aumento da gasolina... (xinga o governo) Se eu fizesse no início do governo, eu poria a culpa no governo anterior. O próximo governo vai poder fazer - guardem esses pareceres todos e não joguem fora não, porque eu acho que faz sentido. (...) Essa vocês vão vender ao governo do Jânio. Ele vai se candidatar, vai ganhar e vai aceitar todas essas idéias de vocês. Com aquele tipo carismático, ele vai tocar pau no meu governo mesmo, e vocês vão poder apresentar".
Jânio, de fato, herdou uma economia em frangalhos, apesar dos "50 anos em 5".
Folha de S.Paulo, 08 e 10/01/2006.

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