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1 TEORIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO, Conceito de título de crédito no Código Civil. Atributos e características dos títulos de crédito. 1. Títulos de crédito Nos séculos XV e XVI, época das grandes navegações mercantilistas, o dinheiro, espécie, era escasso e concentrado nas mãos de poucos. Por isso, a necessidade de se facilitar a circulação de riqueza, de forma célere e segura, se fez sentir de forma muito forte. A segurança, de fato, foi também um dos principais fatores para o implemento dos títulos de crédito. Isto porque as grandes navegações eram acometidas por diversos riscos, e o transporte de dinheiro, especialmente ouro, não era recomendável. Mais valia transportar algo que representasse o ouro do que ele em si. Assim surgiu a letra de câmbio, pois era uma ordem de pagamento emitida contra um banco sediado no local de destino da embarcação, cujo capitão portaria apenas o título, para receber o valor ali representado, e não o ouro em si. O título de crédito nada mais é do que um documento que representa um crédito, como o próprio termo indica. Crédito, etimologicamente, vem do latim creditum, que significa confiança. Do ponto de vista econômico, crédito é a troca de um bem presente por um bem futuro. Juridicamente, crédito é o direito que alguém possui de cobrar algo de outrem. Existem três elementos para definir um crédito. O primeiro, subjetivo, é a confiança: não se entrega um crédito a alguém se não há fidúcia em que haja a paga. A confiança é baseada, por vezes, em instrumentos de garantia, que amparam a fidúcia, sendo estes institutos muito mais atinentes ao direito civil do que ao cambiário. Os dois outros elementos do crédito são objetivos, e estes sim mais relevantes ao direito cambial. O segundo elemento é o prazo: para ser crédito é preciso que seja concedido prazo àquela pessoa em quem se acredita, a fim de que possa o crédito ser satisfeito futuramente. Este é um motivo pelo qual o cheque é tido por título de crédito impróprio, eis que é uma ordem de pagamento a vista. O último elemento definidor do crédito é a fungibilidade: o bem futuro, representado no crédito, é fungível, ou seja, ao haver um crédito, este é disponível ao seu detentor, que poderá adimpli-lo com outro bem diferente – o dinheiro é a mais clara demonstração da fungibilidade do crédito. Não se trata, o devedor, de um depositário do bem. É por isso que o título de crédito que represente um bem infungível, como o conhecimento de depósito ou o conhecimento de transporte, é também tido por título impróprio. Há uma discussão sobre qual o momento de surgimento da obrigação cambial. A primeira corrente, adepta da teoria da emissão, defende que a obrigação cambial surge quando é lançada na carta, no título de crédito, e esta é transferida voluntariamente. Já a segunda corrente, calcada na teoria da criação, entende que a obrigação cambial surge, plenamente, quando é lançada na cártula, no título de crédito, e não só quando há a transferência deste. Segundo esta teoria da criação, o crédito lançado na cártula é pleno desde então, dispensada a transferência voluntária. Esta é a corrente adotada no Brasil, como se pode depreender do artigo 909 do CC, porque o portador de um título endossado tem executoriedade contra o emitente ou endossante, mesmo que o título tenha vindo a seu poder por via involuntária – um cheque ao portador, ou endossado em branco, que tenha sido perdido, por exemplo “Art. 910. O endosso deve ser lançado pelo endossante no verso ou anverso do próprio título. 2 § 1o Pode o endossante designar o endossatário, e para validade do endosso, dado no verso do título, é suficiente a simples assinatura do endossante. § 2o A transferência por endosso completa-se com a tradição do título. § 3o Considera-se não escrito o endosso cancelado, total ou parcialmente.” Se a transferência voluntária fosse exigida, o título de crédito perderia sentido, pois todos que se envolvessem na cadeia de transferência, da circularidade do título, teriam que ser perscrutados em suas intenções na transmissão do crédito, o que não se coaduna com a lógica da celeridade pretendida do instituto. Os entraves à circulação do título de crédito não se coadunam com seus propósitos. 1.1. Atributos essenciais Cesare Vivante traçou, de forma sucinta, a mais precisa definição de título de crédito: é o documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido. O artigo 887 do CC adotou esta definição: “Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.” Cartularidade, autonomia e literalidade, os três atributos1 essenciais dos títulos de crédito, estão ali bem representados. Estes requisitos essenciais, ordinários, não podem ser prescindidos, sob pena de se desconfigurar o documento como título de crédito. A cartularidade, como diz o artigo supra, é necessária, imprescindível ao exercício do direito cambial. Sem cártula não há direito cambial. Isto porque toda obrigação cambial é quesível, ou seja, o credor busca sua satisfação junto ao devedor, o que exige que haja a apresentação da cártula para que o devedor possa saber quem é seu credor, dada a possibilidade de circulação do crédito. É pela cartularidade, por exemplo, que não se pode promover uma execução com a cópia autenticada de um título de crédito, de início, pois se assim fosse possível o original poderia continuar circulando, concomitantemente à execução de sua cópia2. A literalidade significa que os títulos de crédito se enunciam por escrito, e somente aquilo que esteja expresso na cártula deve ser levado em consideração. Informações que não estejam ali lançadas, mesmo que apostas em outro documento pelos sujeitos cambiais (figuras intervenientes), não produzem efeitos cambiais. Repare que a cártula que for vinculada a um outro documento preencherá este requisito da literalidade: se um contrato aponta determinado título de crédito, mencionando detalhes que permitam entender que aquele exato título está atrelado ao contrato, este será considerado uma extensão da cártula, e por isso serão exigíveis seus termos como se houvessem sido escritos na própria cártula. A autonomia, por sua vez, é atributo que tem duas facetas, dois subprincípios, por assim dizer: a inoponibilidade de exceções e a independência das obrigações cambiais. A natureza jurídica das obrigações cambiais (das obrigações, e não dos títulos em si) é relevante, aqui, especialmente para o entendimento da inoponibilidade de exceções. Vejamos. 1 O termo “atributo” não é unânime, tanto que grande parte da doutrina os nomeia ora de princípios, ora de requisitos, ou ainda de características. 2 A praxe, porém, permite que seja requerido ao juízo que, por medida de segurança, após ajuizamento da execução, os originais sejam substituídos por cópia, e seja desentranhado e acautelado o título de crédito no próprio juízo, em cofre do tribunal, ou posto em depósito com alguém eleito para tanto. 3 Há três teorias sobre a natureza jurídica das obrigações cambiais. A primeira defende que seja ato unilateral de vontade: a obrigação cambial surge de uma promessa unilateral, frente à qual não podem ser levantadas exceções de qualquer espécie, pelo promitente. Esta teoria é problemática, pois situações muito injustas seriam criadas: por exemplo, quando um título de crédito viesse a ser representante de obrigação surgida de um contrato não cumprido pelo portador, perante o emitente. Se a exceção do contratonão cumprido não puder ser levantada pelo emitente contra o portador, como diz esta teoria, o sistema seria deveras injusto. A segunda teoria é a contratualista, segundo a qual todo ato cambial deriva de um contrato, sendo dele acessório, e por isso todas as exceções derivadas do pacto podem ser opostas quando do cumprimento da obrigação cambial. Seguindo-se esta teoria, há um atravancamento excessivo da circulação dos títulos de crédito, porque toda relação que fundeou a sua emissão deve ser observada, vez que as exceções dali provenientes poderão ser opostas. Como exemplo, se o portador de um título o leva à faturização, a empresa de factoring poderá vir a ser alvejada pela exceção de contrato não cumprido que o emitente tenha contra o beneficiário original do título. A terceira teoria, de Cesare Vivante, diz que entre as partes contratantes, de fato, o ato cambial é um acessório da relação contratual, sendo oponíveis as exceções dali decorrentes, mas entre terceiros de boa-fé, é uma declaração unilateral de vontade. Esta é a teoria dúplice, que acabou por ser a adotada no sistema brasileiro. De acordo com esta teoria, apenas três modalidades de defesa podem ser opostas na cobrança de um direito cambial: a falta de requisitos formais do título; a falta de condições da ação cambiária, como o protesto tempestivo; e as exceções pessoais existentes entre o credor e o devedor que estão em disputa, ou mesmo de terceiros, desde que sejam exceções inequivocamente de conhecimento do credor – pois então são terceiros que não estão de boa-fé. Quanto à independência das obrigações cambiárias, segundo sub-atributo da autonomia, este significa que o acessório, em direito cambial, não segue a sorte do principal, ou seja, ao contrário das relações civis, não vige o princípio da gravitação jurídica. Destarte, cada lançamento de assinatura em um título de crédito faz surgir uma obrigação cambial autônoma, independente em relação às demais que ali constem. Por isso, por exemplo, se uma emissão é nula – como uma nota promissória emitida por um incapaz –, mas um aval lançado no mesmo título não o é, o avalista permanece obrigado, mesmo que o emitente não tenha mais qualquer obrigação. O objetivo desta qualidade da autonomia é o incremento da segurança das relações cambiárias, facilitando a circulação do crédito, que é o escopo maior dos títulos de crédito. A autonomia está prevista no artigo 17 da Lei Uniforme de Genebra, doravante LUG, Decreto 57.663/66, e no CC, no já mencionado artigo 887 e, mais especificamente, no artigo 916. Veja: “Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacado ou com os portadores anteriores, ao menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.” “Art. 916. As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.” 4 1.2. Atributos extraordinários Estes atributos não estão presentes em todos os títulos de crédito, mas apenas em determinadas modalidades. Dois são eles: a abstração e a independência. O título é abstrato quando a sua emissão não está vinculada por lei a nenhuma espécie de negócio jurídico, ou seja, qualquer relação pode ensejar a emissão deste título. O antônimo da abstração é a causalidade: o título é causal quando a sua emissão estiver vinculada a um negócio jurídico específico, ou seja, não pode haver livre emissão do título. Como exemplo, a duplicata: este título só pode ser emitido para retratar compra e venda de mercadoria ou prestação de serviço. O conhecimento de transporte é outro exemplo, que só pode ser emitido quando há um contrato de transporte que o fundamente. O título causal não deixa de ser autônomo, pois poderá circular, mesmo tendo sido surgido de uma relação específica: esta relação não o acompanhará em sua circulação. Por exemplo, uma duplicata “fria”, sem negócio que a subsidie, ainda poderá ser cobrada pelo terceiro, portador de boa-fé, pois é um título de crédito autônomo, mesmo causal. Somente a lei pode tornar o título causal. A vinculação de um título que é legalmente abstrato a um determinado negócio jurídico é possível, mas não altera a natureza abstrata do título. A independência do título de crédito, por seu turno, significa que a sua cártula é suficiente para permitir o exercício dos direitos cambiais nela contidos, sendo desnecessária a apresentação de qualquer outro documento. O título de crédito é dependente, contrário senso, quando a cártula não é bastante, ou seja, é preciso a exibição de outro documento. Exemplo de título de crédito dependente é uma duplicata não aceita: esta só poderá ser cobrada do sacado se se comprovar a contratação que a deu causa, ou seja, se se apresentar a fatura. A duplicata aceita, por sua vez, é independente, bastando a exibição da cártula para exigibilidade. Nem todo título abstrato é independente, e, vice-versa, nem todo título causal é dependente. A duplicata aceita, como visto, é independente, e é um título causal. 1.3. Características dos títulos de crédito A primeira característica é o formalismo, ou rigor cambiário. Para que haja segurança na relação cambiária, é necessário que o título preencha alguns requisitos formais. A letra de câmbio, por exemplo, deve conter a expressão “letra de câmbio” escrita na língua do país em que for exigida, dentre outros requisitos. Se não forem preenchidos determinados requisitos formais, o documento deixa de ser considerado um título de crédito. Veja que este formalismo, em última análise, vem para permitir justamente o informalismo do direito cambiário, sem nenhuma contradição: quando se incrementa a formalidade do título, se permite que sejam postos à circulação com mais facilidade, porque há maior segurança nas relações. Por isso, o formalismo titular favorece o informalismo e a celeridade das relações cambiárias. Os títulos de crédito representam obrigação cambial de natureza quesível, ou seja, compete ao credor, portador do título, buscar o cumprimento da obrigação cambial junto ao devedor. É esta natureza quesível que justifica a necessidade de se protestar o título quando se for buscar seu pagamento junto aos coobrigados: os garantidores do pagamento pontual do título só serão cobrados se o obrigado principal não pagar pontualmente o título, e para a comprovação deste requisito – o não pagamento pontual – é que se presta 5 o protesto. Somente com esta prova, pode o credor dirigir-se ao devedor, coobrigado, e dele exigir o pagamento, não tendo havido mora do credor em cobrar do devedor original. O título tem caráter pro solvendo, em regra. Por isso, o surgimento da obrigação cambial não gera novação da obrigação extracambial que lhe deu causa. Assim, continua a subsistir tanto a obrigação extracambial quanto a cambial. De outro lado, diz-se que o título é emitido em caráter pro soluto quando há expressa previsão neste sentido inscrita na cártula ou no contrato a que estiver vinculado o título, e esta emissão provoca a extinção da obrigação extracambial. Na emissão pro solvendo, mesmo subsistindo ambas as obrigações, quitada uma, está quitada a outra. 1.4. Natureza jurídica dos títulos de crédito Para a seara processual civil, o título de crédito é um título executivo extrajudicial. Para o direito civil, se trata de um bem móvel corpóreo. Para o direito empresarial, é um ato de empresa, por força de lei, havendo uma só exceção, previstano artigo 10 do Decreto-Lei 167/67: “Art 10. A cédula de crédito rural é título civil, líquido e certo, exigível pela soma dêla constante ou do endôsso, além dos juros, da comissão de fiscalização, se houver, e demais despesas que o credor fizer para segurança, regularidade e realização de seu direito creditório. § 1º Se o emitente houver deixado de levantar qualquer parcela do crédito deferido ou tiver feito pagamentos parciais, o credor descenta-los-á da soma declarada na cédula, tornando-se exigível apenas o saldo. § 2º Não constando do endôsso o valor pelo qual se transfere a cédula, prevalecerá o da soma declarada no título acrescido dos acessórios, na forma deste artigo, deduzido o valor das quitações parciais passadas no próprio título.” Assim, a cédula de crédito rural é um título civil, e não um ato de empresa. TÍTULOS DE CRÉDITO. Classificação. Letra de Câmbio. Legislação. Convenção de Genebra. Decreto nº 2.044/1908. Código Civil. Reservas à Lei Uniforme. Notas de Aula3 1. Fontes normativas referentes aos títulos de crédito A LUG, Decreto 57.663/76, é o paradigma maior para o estudo dos títulos de crédito, havendo que se buscar substância também em outros diplomas, como a Lei 7.357/85, que trata dos cheques, ou a Lei 5.474/68, que trata das duplicatas, entre outros. Além da LUG, há que se atentar também com especial zelo para o Decreto 2.044/1908. O Código Civil também regulou a matéria cambial, e é ponto fundamental saber qual é a extensão e aplicabilidade das previsões do codex civilista. Analisando, inicialmente, a LUG, o primeiro aspecto a ser considerado é estrutural. A LUG é composta por três partes: o preâmbulo, o Anexo I e o Anexo II. O preâmbulo, que é elaborado particularmente por cada país subscritor da LUG, servindo para adaptá-la às particularidades de cada ordenamento jurídico. A principal, senão única, função do preâmbulo da LUG no Brasil, é a indicação das reservas adotadas no Anexo II. O Anexo I é o próprio corpo da LUG, que no Brasil consiste em setenta e oito artigos. Esta é a parte essencialmente uniforme, com poucas variações. No Anexo I, há 6 normas essenciais, inafastáveis, e não-essenciais, que podem ser mitigadas de acordo com o Anexo II, que é a parte referente às reservas. O Anexo II, então, é a parte final da LUG, em que se encontram as previsões excepcionais, direcionadas à mitigação de partes não-essenciais do Anexo I. As normas do Anexo II que possibilitam o afastamento de normas não-essenciais do Anexo I são chamadas reservas. No Brasil, foram adotadas treze das vinte e três possíveis reservas, as constantes dos artigos 2, 3, 5, 6, 7, 9, 10, 13, 15, 16, 17, 19, e 20, sendo inaplicáveis os demais (esta informação é descrita no preâmbulo). As reservas servem para autorizar o legislador a mitigar normas do corpo da LUG, Anexo I. Antes da LUG, havia apenas um diploma que versava sobre títulos de crédito: o citado Decreto 2.044//1908. Este não restou revogado, pois há aplicabilidade subsidiária à LUG, acerca de omissões ou de reservas feitas nesse diploma primário (exclusivamente quanto a letras de câmbio e notas promissórias). Dois aspectos essenciais relativos às reservas precisam ser destacados. Primeiro é o protesto: a LUG, no artigo 44, 3, do Anexo I, estabelece que o protesto deve ser feito em dois dias desde a data da apresentação para aceite ou vencimento para pagamento, mas como o Brasil aderiu a reserva que se apresenta no artigo 9º, do Anexo II, que diz exatamente que se derroga a alínea 3 do artigo 44 do Anexo I, fazendo com que o protesto seja tempestivo apenas quando feito no dia útil subseqüente ao vencimento, e não nos dois dias seguintes. Segundo aspecto altamente relevante diz respeito à apresentação para pagamento: na LUG, é prevista a apresentação nos dois dias subseqüentes ao vencimento, mas a adoção da reserva do artigo 5º do Anexo II, que mitiga o artigo 38 do Anexo I da LUG, observar-se-á a regra do artigo 20 do Decreto 2.044/1908, que determina que seja apresentado no dia do vencimento, sob pena de responder, o credor, por perdas e danos decorrentes de sua mora. Veja: “Art. 20. A letra deve ser apresentada ao sacado ou ao aceitante para o pagamento, no lugar designado e no dia do vencimento ou, sendo este dia feriado por lei, no primeiro dia útil imediato, sob pena de perder o portador o direito de regresso contra o sacador, endossadores e avalistas. (...)” Mas o principal problema, quanto às fontes normativas dos títulos de crédito, é relativo à aplicação do Código Civil. O CC não deu tratamento a nenhum título de crédito em especial, limitando-se a traçar normas de abrangência geral. Duas são as razões de o CC tratar de títulos de crédito, ante a já extensa normatização preexistente a sua promulgação: o estabelecimento de normas gerais, e a possibilidade de criação, com base legal, de títulos de crédito atípicos, inominados, pois basta o preenchimento dos requisitos mínimos apontados no artigo 889 do CC para que qualquer título tenha validade. Veja: “Art. 889. Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente. § 1º É à vista o título de crédito que não contenha indicação de vencimento. § 2º Considera-se lugar de emissão e de pagamento, quando não indicado no título, o domicílio do emitente. § 3º O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.” 7 Dito isto, é claro que a regra hermenêutica da especialidade tem aplicação: lei especial derroga lei geral, ainda que esta última seja mais nova. O CC, atento a esta regra, trouxe a seguinte previsão no seu artigo 903: “Art. 903. Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código.” O CJF, na sua Primeira Jornada de Direito Civil, contudo, aprovou o seguinte enunciado, de número 52: “Enunciado 52, CJF: Art. 903: por força da regra do art. 903 do Código Civil, as disposições relativas aos títulos de crédito não se aplicam aos já existentes.” O que o CJF quis dizer, neste enunciado, é que os títulos de crédito que já eram tratados em leis anteriores ao CC não sofrerão a aplicação das normas do CC, sequer subsidiariamente, traçando uma aparente divisão temporal na aplicação do princípio da especialidade. A doutrina, de modo geral, entende que a aplicação das normas do CC aos títulos de crédito versados em normas especiais seria não só uma afronta ao princípio da especialidade, mas também a subversão da própria autonomia do direito empresarial como um todo, em relação ao direito civil. Isto porque a estrutura da lei especial – qualquer dos diplomas da matéria – é significantemente diferente da estrutura do CC. Exemplo crasso desta diferença é o tratamento do aval: o avalista casado em comunhão parcial precisa de outorga conjugal, segundo o CC, na forma do seu artigo 1.647, III: “Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III - prestar fiança ou aval; IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada.”A LUG, ou qualquer outra lei especial de títulos de crédito, como a lei checária, nada dizem acerca da necessidade de outorga uxória, e se a lei não impõe o requisito, este não é exigível. Pelo principio da especialidade, então, não seria exigível outorga conjugal para o aval, porque as leis aplicáveis não o exigem. E esta é a interpretação doutrinária mais coerente, na exegese do artigo 903 do CC, especialmente na análise de títulos tratados em leis especiais anteriores ao CC – negam a necessidade de outorga uxória para a dação de aval pelo cônjuge casado em comunhão parcial de bens. Partindo-se da premissa que o direito empresarial é autônomo em relação ao direito civil, em uma interpretação sistemática, sequer se permitiria a aplicação subsidiária do CC quando as normas especiais se demonstrassem omissas. Se esta aplicação subsidiária for possível, o artigo 1.647, III, do CC, teria aplicação a todos os títulos de crédito, vez que as leis especiais são omissas ao não tratar do aval dado por pessoa casada. Como a aplicação subsidiária não é possível, vez que estes dois ramos do direito não se tangenciam – a teor da interpretação do artigo 903 pelo CJF, no enunciado transcrito –, não se impõe a outorga conjugal aos avais concedidos por pessoa casada. Conclui-se com a seguinte máxima: o CC não tem absolutamente nenhuma aplicabilidade a títulos de crédito já versados em leis especiais, especialmente as anteriores a sua promulgação. Esta matéria, porém, não é pacífica. 8 Outro exemplo desta inaplicabilidade absoluta do CC é a exceção à cartularidade trazida no artigo 889, § 3º, acima transcrito – os títulos virtuais. O STJ já se manifestou pontualmente sobre a questão, reputando inadmissível a duplicata virtual, o que parece expor adesão à inaplicabilidade do CC a títulos regidos por leis especiais, como o é a duplicata. Se na lei especial da duplicata a cártula não é excepcionada, o CC não poderá excepcionar (valendo mencionar que Fábio Ulhoa e Luis Emigdyo são favoráveis à duplicata virtual). Os títulos posteriores ao CC de 2002, como a cédula de crédito bancário, criada e regida na Lei 10.931/04, seriam submetidos ao CC? Por exemplo, quanto ao aval, o artigo 44 desta lei dispõe que: “Art. 44. Aplica-se às Cédulas de Crédito Bancário, no que não contrariar o disposto nesta Lei, a legislação cambial, dispensado o protesto para garantir o direito de cobrança contra endossantes, seus avalistas e terceiros garantidores.” Assim, as regras cambiárias aplicáveis a este título são aquelas insculpidas no CC, porque a lei, posterior, levou este diploma civil em conta? Ou são aplicáveis apenas as leis especiais cambiais, lendo-se aqui primordialmente a LUG? Se se entender que o CC foi apontado pelo dispositivo acima, pode-se concluir que acerca do aval, pelo menos, é inadmissível a modalidade parcial para este título em especial. Contudo, a interpretação que tem prevalecido é a de que o dispositivo acima apontou para a LUG, ao falar em legislação cambiária, o que torna possível, afinal, o aval parcial neste título em questão. O legislador, sempre que falar em “legislação cambial”, estará falando nas normas especiais de títulos de crédito. 2. Títulos de crédito próprios e impróprios Uma das principais classificações divide os títulos de crédito em próprios e impróprios. Os títulos de crédito são compostos por elementos altamente relevantes, mas que mesmo quando não estão presentes não desnaturam o título: ainda são títulos de crédito, mas são impróprios. Aqueles que preencham todas as qualidades imanentes a um título de crédito, são títulos próprios. O primeiro destes elementos, que é imanente aos títulos mas que pode ser elidido sem desnaturar o título de crédito, é o prazo para pagamento: a regra é que o título de crédito conta com prazo para pagamento diferido, mas há títulos que têm pagamento imediato, invertendo-se esta regra. Como exemplo, o cheque, que é ordem de pagamento à vista: é um título de crédito impróprio, eis que carente de um dos elementos essenciais, o pagamento diferido. Outro elemento essencial dos títulos de crédito é o saque autônomo: a obrigação cambial, em razão da autonomia, surge sem vinculo qualquer a outra obrigação de qualquer natureza. Contudo, há títulos que só podem ser emitidos em razão de uma relação jurídica qualquer alheia à cambiária: são os títulos causais. Esta causalidade, que retira destes títulos o elemento essencial da abstração, faz com que o título seja considerado impróprio. Assim é, por exemplo, a duplicata. Os títulos de crédito impróprios são também chamados de cártulas cambiariformes, porque são títulos que se apresentam como cambiais mais pela forma emprestada pela lei do que pela própria essência, ante a carência de elementos naturais dos títulos de créditos. Como os títulos impróprios são regidos por leis especiais, não se sujeitam a tudo a que estão sujeitos os títulos próprios. Por exemplo, a vedação ao aval parcial, do artigo 9 897 do CC, por isso, não se aplica a estes títulos (mas também não se aplica aos títulos próprios, diga-se): “Art. 897. O pagamento de título de crédito, que contenha obrigação de pagar soma determinada, pode ser garantido por aval. Parágrafo único. É vedado o aval parcial.” 3. Letra de câmbio Eis o conceito e a natureza jurídica da letra de câmbio: é o documento cambial necessário ao exercício de um direito decorrente de uma ordem de pagamento a vista ou a prazo. A LUG, no artigo 1º, caput e item 2, diz que: “Art. 1º. A letra contém: (...) 2. O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada; (...)” O termo “mandato” indica que é uma ordem, e não uma promessa, e ao dizer que é “pura e simples”, indica que a letra de câmbio não pode ser condicional. A estrutura da letra de câmbio envolve sempre três personagens: o sacador, o tomador e o sacado. Vale apresentar um esquema gráfico, prévio ao estudo da dinâmica deste título: O sacador é a pessoa que emite o título, que o cria, que o produz. O tomador, literalmente, toma o título para si, passando a ser credor da obrigação cambial. O sacado é aquele apontado pelo sacador, e é quem pagará pelo título, se aceitar este encargo. Não há, a princípio, nenhuma relação entre tomador e sacado, porque este último só aceita a ordem de pagamento em razão de alguma relação externa que tenha com o sacador, por óbvio. A relação que existe, na cártula, até que o sacado aceite o encargo, é apenas entre sacador e tomador. A relação entre sacador e sacado é alheia à cambial. Destarte, o ato cambiário em que o sacado, por sua vontade, aceita a obrigação cambiária que lhe é apontada, é denominado aceite. Desde quando há o aceite, o sacado passa a ser devedor direto da letra de câmbio. O sacador é devedor indireto, desde quando emite a letra até o fim da obrigação cambial. Uma conclusão pontual se faz ver: na letra de câmbio, antes de haver o aceite, não existe devedor direto. A negativa do aceite não transforma o sacador em devedor direto, mas apenas torna exigível deste a obrigação cambial (após o protesto). Letra de câmbio Sacador Emissão Tomador Sacado A ceite P ag am en to 10 LETRA DE CÂMBIO. Conceito. Natureza jurídica. Requisitos essenciais. Partes. Modalidades de vencimento e pagamento. 1. Letra de câmbio O artigo 1º da LUG traz os requisitos da letra de câmbio, sendo alguns essenciais e outros não. Veja: “Art. 1º. A letra contém: 1. A palavra “letra” inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregadapara a redação desse título; 2. O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada; 3. O nome daquele que deve pagar (sacado); 4. A época do pagamento; 5. A indicação o lugar em que se deve efetuar o pagamento; 6. O nome de pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga; 7. A indicação da data em que, e do lugar onde a letra é passada; 8. A assinatura de quem passa a letra (sacador).” A designação da palavra “letra” é indispensável. Sem este termo, não se forma o título. E esta palavra deve ser contextualizada, não devendo ser apenas um termo lançado na cártula como título, por exemplo. O modelo usual redige da seguinte forma: “pague por esta letra a quantia de tanto.” Aqui já se percebe como preencher o segundo requisito, também essencial: a ordem para pagamento da quantia. Esta ordem deve ser simples e incondicional, como dito. Qualquer condição aposta será considerada como não escrita. A identificação do sacado, quem recebe a ordem para pagar ao beneficiário, é também essencial, imprescindível, por óbvio. Ele será chamando de devedor apenas quando emitir o aceite da letra. O nome do tomador deve constar da cártula, necessariamente. Isto faz com que este título, a sua origem, seja obrigatoriamente nominativo, indicativo do beneficiário inicial, o que não veda a sua circulação por endosso ou cessão posteriores. A data da emissão é também essencial, pois é dali que se colherá o dies a quo dos prazos, como os prazos de apresentação e prescrição. Último requisito, também essencial, é a assinatura do sacador, que é a pessoa que cria o título, e é devedor indireto, garante da obrigação cambiária, até seu termo final. Os itens 4, 5, e parte do 7, do artigo supra, apresentam requisitos que não são necessários, sendo chamados por isso de requisitos secundários. O que assim faz entender é a redação do artigo 2º da LUG: “Art. 2º. O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzirá efeito como letra, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes: 1. A letra em que se não indique a época do pagamento entende-se pagável à vista. 2. Na falta de indicação especial, o lugar designado ao lado do nome do sacado considera-se como sendo o lugar do pagamento, e, ao mesmo tempo, o lugar do domicílio do sacado. 3. A letra sem indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado, ao lado do nome do sacador.” A época do vencimento, se omitida na lei, fará que o título seja vencido a vista. O local de pagamento, quando não indicado, faz a letra pagável no endereço lançado como domicílio do sacado, informação implícita no endereço ali mencionado, 11 mesmo que não seja expressa a natureza de domicílio – basta que haja o endereço escrito. Esta informação é de alta importância, pois é ela, inclusive, que determina a competência para a discussão de questões cambiárias, o que é uma regra geral do direito cambiário: a discussão judicial é no lugar de pagamento. O item 7 do artigo 1º da LUG apresenta dois requisitos: a data da emissão da letra, que, como visto, é requisito primário, e o lugar da emissão, que é requisito secundário, vez que presumido do lugar apontado ao lado do nome do sacador. A letra de câmbio pode ser emitida de forma incompleta, quer carente de requisitos primários, quer e requisitos secundários. Assim o é porque o beneficiário, tomador, que estiver de boa-fé, poderá preencher as informações faltantes, antes de exigir o título. Não poderá ser exigida sem os elementos essenciais, mas poderá ser emitida assim, pela possibilidade de preenchimento pelo tomador de boa-fé. Todos os elementos da cártula podem ser emitidos em branco, permitindo o preenchimento posterior pelo tomador de boa-fé, inclusive o valor. Veja a súmula 387 do STF, que não faz diferença entre requisitos primários ou secundários: “Súmula 387, STF: A cambial emitida ou aceita com omissões, ou em branco, pode ser completada pelo credor de boa-fé, antes da cobrança ou do protesto.” A LUG, no seu artigo 10, permitiria o mesmo raciocínio, lendo-se este dispositivo a contrário senso: “Art. 10. Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância destes acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.” O que este artigo 10 da LUG diz é que o tomador que porta o título em branco a ele passado pelo sacador, ao preencher os termos omissos, se subverte o acordo ensejador do título, sofrerá a oposição das exceções que o sacador tiver contra si, portanto. Se, porém, endossa este título a um terceiro que desconhece a ignomínia, este terceiro, de boa-fé, não sofrerá as oposições decorrentes da má-fé do tomador endossante. Este artigo, porém, foi objeto de reserva no Brasil, na forma do artigo 3º do Anexo II da LUG: “Art. 3º. Qualquer das Altas Partes contratantes reserva-se a faculdade de não inserir o artigo 10 da Lei Uniforme na sua Lei Nacional.” Sendo assim, aplicam-se os artigos 3º e 4º do Decreto 2.044/1908, que trata do tema reservado: “Art. 3º Esses requisitos são considerados lançados ao tempo da emissão da letra. A prova em contrário será admitida no caso de má-fé do portador.” “Art. 4º Presume-se mandato ao portador para inserir a data e o lugar do saque, na letra que não os contiver.” Veja que este artigo 4º diz, tecnicamente, que o preenchimento dos elementos é feito juridicamente pelo sacador, mas pelas mãos do tomador, por meio de mandato presumido. O artigo 891 do CC repete esta idéia, e mesmo que não seja aplicável, pois a norma especial prevalece, é referência instrutiva: 12 “Art. 891. O título de crédito, incompleto ao tempo da emissão, deve ser preenchido de conformidade com os ajustes realizados. Parágrafo único. O descumprimento dos ajustes previstos neste artigo pelos que deles participaram, não constitui motivo de oposição ao terceiro portador, salvo se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.” 1.1. Modalidades de saque e vencimento A letra à vista é aquela que dispensa aceite, porque quando é levada à vista do sacado é considerada vencida, concomitantemente. O aceite faz com que o sacado se torne devedor direto, e se obrigue ao pagamento na data do vencimento; como nesta modalidade o vencimento é imediato, a exibição do título para aceite já é exibição para pagamento, e a discordância do sacado já se configura recusa ao próprio pagamento. não há o ato de aceite: há diretamente o ato de pagamento. Esta apresentação para o sacado deve ser feita em até um ano desde a emissão da letra. A letra pode ser vencida em dia certo: consigna-se, no título, a data de vencimento, data para pagamento. Neste caso, a letra pode ser apresentada para aceite até o seu vencimento. A letra também pode ser emitida com vencimento a certo termo de data: contando-se de dia futuro combinado, iniciar-se-á prazo determinado para vencimento. Por exemplo, “vence-se em um mês depois do dia tal”. Os efeitos deste vencimento são os mesmos de uma letra vencível em dia certo, sendo possível a apresentação para aceitre também até o vencimento. Por fim, a letra pode ser emitida com vencimento a certo termo de vista: o dies a quo do prazo de vencimento estipulado será determinado pela apresentação da letra para aceite, e esta apresentação deve seguir a regra geral, de máximo de um ano. Na letra à vista, pode-se estipular que haja prazo para apresentação. Quando apresentada para aceite, será vencidade imediato, mas a apresentação deve ser feita em prazo estabelecido para tanto, pelo sacador. Assemelha-se, portanto, ao famigerado cheque pós-datado. O prazo de um ano para apresentação da letra de câmbio pode ser encurtado ou majorado, diga-se, por expressa menção no título. A conseqüência da perda do prazo de exibição é a perda da executoriedade do título contra os coobrigados e respectivos avalistas. 1.2. Figuras da letra de câmbio Como sabido, há três figuras neste título: o sacador, que emite a letra; o tomador, beneficiário do pagamento; e o sacado, que é quem pagará o título se exarar o aceite. A LUG permite que se confundam, estas figuras, na mesma pessoa: pode o sacador ser ao mesmo tempo tomador e sacado. As três figuras podem se concentrar em uma só pessoa, ou duas figuras em uma só, em qualquer combinação. Esta situação não faz com que deixem de existir as três figuras, mas apenas as confunde em uma só pessoa. Bom exemplo em que isto acontece, análogo, é o cheque administrativo: ali se confundem as figuras do sacador e do sacado, pois é o banco que emite e paga o cheque. Diversos podem ser os motivos desta dinâmica, desta peculiar confusão de figuras. Uma delas é a simples necessidade de que um título seja gerado, para fins mercantis de garantia: o sacador, sacado e tomador cria este título para obter, com o endosso, um 13 empréstimo bancário4. Fato é que sempre existirão as três figuras jurídicas, mesmo em se operando a confusão. 1.3. Requisitos da letra de câmbio É necessário indicar o nome do título, como dito, sendo requisito óbvio. Também é preciso que haja o nome sacado, pois, na falta, não valerá como letra. Deve-se também indicar época do pagamento, mas na falta, esta será considerada à vista. Também é preciso indicar o local de pagamento, o que, na falta, será no domicílio do sacado. Se não houver endereço do sacado, porém, o título não produzirá efeitos. Deve-se indicar o beneficiário, vez que na emissão a letra não poderá ser ao portador. Quanto à data e local de emissão, não existindo data, o título não valerá; não existindo local, deverá ser considerado o do local do domicílio do sacador; se não existir domicílio, o STF admite que seja indicado pelo portador. A assinatura do sacador, é claro, é um requisito essencial. O analfabeto pode se obrigar, desde que representado por procurador com mandato instituído por instrumento público; se ele souber desenhar seu nome, prevalecerá a teoria da aparência, e ele será responsável, mesmo se não for representado. Há que se assegurar a relação cambiária, neste sentido, como defende Wille Duarte da Costa, mas Luis Emygdio entende que não é possível esta assunção direta de obrigação pelo analfabeto, pois mesmo que saiba desenhar seu nome, ainda não poderá ler o que consta do título. Pessoa que não pode assinar por defeito físico também pode se obrigar, desde que o faça por procuração por instrumento público e com poderes especiais. A pessoa que não quer assinar, ou que está ausente, pode fazê-lo por instrumento meramente particular, com poderes especiais. Vale lembrar que, sempre que alguém assinar por outrem, mas não se comprovar a especificidade do mandato, a letra será considerada assinada pelo próprio suposto mandatário, ou seja, ele se obrigou em nome próprio. SAQUE. Obrigação do sacador. Aceite. Lançamento. Responsabilidade do aceitante. Modalidades. Aceite parcial. Aceite modificativo. Cláusula não aceitável. Lugar de apresentação. 1. Saque Tecnicamente, o saque só existe em letras de câmbio e duplicatas. O termo saque só pode ser empregado, com precisão, nestes títulos, nos demais sendo mais correto o termo emissão. A natureza jurídica do saque é de declaração unilateral de vontade cambiária, realizada, por óbvio, pelo sacador, ao produzir o título. Não existe letra de câmbio sem que haja o saque. É uma declaração unilateral de vontade originária e necessária, pois é o saque que cria a letra (enquanto o endosso e o aval são declarações unilaterais de vontade sucessivas e não necessárias, vez que o título existe e se aperfeiçoa sem estas declarações). Quanto ao momento exato em que se dá a vinculação do sacador a uma obrigação cambiária, ou seja, o momento em que surge a obrigação cambiária propriamente dita, existem duas teorias. A primeira, teoria da emissão, entende que não basta a simples criação do título para ser gerada a responsabilidade do criador. O vínculo apenas se 4 Hoje, a cédula de crédito bancário torna desnecessária esta dinâmica, porque se presta a garantir a operação financeira de empréstimo bancário. Este título será mais bem abordado adiante. 14 estabelece com a saída voluntária do título das mãos do subscritor. Em outras palavras, o subscritor não se obrigará caso o título saia de suas mãos de forma involuntária caso em que o título não valerá sequer se o portador for terceiro de boa-fé. A segunda tese, teoria da criação, entende que a mera criação do título já faz surgir a obrigação cambiária, não sendo necessária sua tradição voluntária para tanto, como exige a teoria da emissão. Formalizado o título, este passa a ter um valor próprio e torna-se fonte de um direito de crédito que é atribuído a um futuro detentor, ou seja, o subscritor do título fica obrigado, mesmo nos casos de roubo ou perda. Esta é a teoria adotada no Brasil. É muito lógica, a adoção desta teoria, porque é a que melhor implementa todos os elementos do título, sobremaneira a autonomia, a segurança das relações cambiais derivada da proteção à aparência jurídica. Mesmo por isso, Wille Duarte da Costa defende que não há possibilidade de opor defesa em face do portador de boa-fé, ainda que o título tenha saído das mãos do subscritor de forma involuntária. Deve-se garantir a aparência jurídica. O sacador é devedor indireto da letra de câmbio. Ele cria a ordem de pagamento contra o sacado, que será o futuro devedor direto do título. Assim, o sacador faz promessa indireta de pagamento; portanto, deve ser realizado o protesto do título para que seja possível cobrá-lo deste promitente indireto (protesto que será dispensado apenas se o sacador inserir cláusula que o dispense). A situação de devedor indireto da letra traz para o sacador a qualificação de garantidor do pagamento. E ressalte-se que o sacador não pode se exonerar da responsabilidade do pagamento, ao contrário do que ocorre com os endossantes, que podem se exonerar na forma do artigo 15 da LUG: “Art. 15. O endossante, salvo cláusula em contrário, é garante tanto da aceitação como do pagamento da letra. o endossante pode proibir um novo endosso, e, neste caso, não garante o pagamento às pessoas a uem a letra for posteriormente endossada.” A relação jurídica extracambiária que deu azo à ordem de pagamento, ou seja, o motivo pelo qual o sacado se coloca nesta posição de sujeição a uma ordem do sacador, é irrelevante para a obrigação cambiária. Não se perscruta qual seja o negócio jurídico pretérito que ensejou a ordem do sacador ao sacado. O beneficiário do título, tomador da nota, precisa saber se a ordem será acatada, porém. Para tanto, dirige-se ao sacado e apresenta a nota, para que este declare se aceita ou não a obrigação cambiária a si ordenada. Este é o aceite: é a declaração do sacado que o faz tornar-se devedor cambiário. Enquanto o sacado for mero sacado, não é devedor cambiário; aceitando a ordem, passa a ser aceitante, e com isso devedor direto da letra de câmbio. Pelo ensejo, é preciso deixar claro o que seja, e quem seja, devedor direto, devedor indireto,devedor principal e devedor de regresso. Vejamos um esquema gráfico de cada situação, com ou sem aceite, da letra de câmbio: 15 Nos títulos de crédito, vigora a regra da solidariedade cambiária, que é diferente da solidariedade civil comum: todos os devedores de um título de crédito podem ser acionados pela integralidade, e a ação regressiva que porventura surja é também pela integralidade, e não apenas pelas cotas-parte de cada um dos solidários, como no direito civil ocorre. Para que o devedor indireto seja exigido, porém, é preciso que haja a prova de que o título foi apresentado para aceite ou pagamento pelo devedor direto, infrutíferos, pois do contrário ainda há que ser cobrado este devedor direto, mesmo que haja a solidariedade. Isto porque a promessa de pagamento que o devedor indireto faz, como garante, é indireta, ou seja, só se lhe permite a cobrança em não sendo adimplido o título pelo devedor direto. E a prova de que a satisfação da obrigação cambiária foi buscada junto ao devedor direto é feita pelo protesto. Note-se, então, que o protesto pode servir para provar, ao devedor indireto, que o credor cambiário buscou tanto obter o aceite pelo sacado, no que foi frustrado, quanto serve para provar que o credor buscou o próprio pagamento junto ao que seria devedor direto, apontado como sacado e ainda sacado porque não aceitou, ou já aceitante. Por isso, há protesto por falta de aceite e protesto por falta de pagamento. O protesto deverá ser realizado no primeiro dia útil seguinte ao vencimento do título, na forma do artigo 28 do Decreto 2.044/1908: “Art. 28. A letra que houver de ser protestada por falta de aceite ou de pagamento deve ser entregue ao oficial competente, no primeiro dia útil que se seguir ao da recusa do aceite ou ao do vencimento, e o respectivo protesto, tirado dentro de três dias úteis. Parágrafo único. O protesto deve ser tirado do lugar indicado na letra para o aceite ou para o pagamento. Sacada ou aceita a letra para ser paga em outro domicílio que não o do sacado, naquele domicílio deve ser tirado o protesto.” É claro que para a cobrança do devedor direto não se exige protesto, pois se este serve como prova formal de que quem seria imputado pelo pagamento não arcou com este, permitindo assim que o devedor indireto seja acionado, se a cobrança cambial é feita do próprio devedor direto, não há que se lhe provar nada: é ele mesmo quem está na mira primária da exigibilidade do título. Letra de câmbio sem aceite Sacador (DI e DP) Saque Tomador Sacado A p resen tação p ara aceite Letra de câmbio com aceite Sacador (DI e DR) Saqu e Tomador Aceitante (DD e DP) P ag am en to Pagamento A p resen tação p ara aceite DI: Devedor indireto DI: Devedor indireto DD: Devedor direto DP: Devedor principal DR: Devedor de regresso 16 Devedor principal é aquele que, uma vez cobrado, tem ação regressiva para cobrar de outro coobrigado o valor integral que de si foi exigido. Se não há direito a regredir contra ninguém, estamos diante de um devedor principal. Simples assim. Na letra de câmbio sem aceite, como se viu nos esquemas, assim se classificam os devedores: o sacado não é devedor cambiário, de qualquer espécie, eis que o aceite é-lhe uma faculdade. Não importa, ao direito cambiário, se o sacado deveria ou não ter aceitado: isto é um problema que pertine à esfera extracambial, questão cível a ser solucionada entre sacador e sacado. O tomador de letra de câmbio que foi apresentada ao sacado, e em que houve recusa do aceite, deve protestar este título por falta de aceite, de forma a comprovar que buscou o aceite em tempo hábil, para poder cobrar do sacador, devedor indireto. Cobrado o título do sacador, ele não terá regresso cambiário contra o sacado (podendo, como dito, ter ação civil conta este, mas calcada na relação extracambial, o que não importa ao direito cambiário). Veja que na letra de câmbio sem aceite simplesmente não existe devedor direto, porque só há relação cambiária entre devedor indireto e tomador. Não havendo o aceite, o tomador não precisa respeitar o vencimento da letra para exigir o seu pagamento: a recusa do aceite induz ao vencimento antecipado do título. Exarado o aceite, pelo sacado, este passa a ser chamado aceitante, tornando-se devedor direito cambiário. Havendo aceite, haverá possibilidade de cobrança do título pelo tomador, cobrando-o na data do vencimento deste devedor direto, aceitante. Se o aceitante, vencido o título, negar-se a pagar a letra, mesmo a tendo aceitado antes, deverá o tomador efetuar o protesto por falta de pagamento, novamente com o intuito de poder cobrar o título do sacador, que é devedor indireto, demandando a prova da busca infrutífera do pagamento junto ao devedor direto. É claro que, pago o título pelo sacador, ele terá direito de regresso cambial contra o aceitante inadimplente, porque este é o devedor direto e principal. Quando o beneficiário, tomador, perder o prazo para protesto, qualquer que seja o tipo, não terá mais ação executória, cambiária, em face do devedor indireto, sacador. Todavia, ainda terá ação cambiária em face do aceitante, pois o protesto não é preciso contra este, vez que se trata de devedor direto. Se não houve aceite, a falta do protesto simplesmente impede a ação cambiária, porque não há ação contra sacado não aceitante, e não há o preenchimento do requisito fundamental para que o sacador seja exigido, o protesto (salvo se há a cláusula sem protesto, em que o sacador dispensa o protesto para a execução contra si). Na nota promissória, a lógica é bem mais simplória. Por isso, tracemos desde já a situação em que há endossos do título, a fim de adiantar o conhecimento do tema: Nota promissória Emitente (DD e DP) Emissã o DI: Devedor indireto DD: Devedor direto DP: Devedor principal DR: Devedor de regresso Beneficiário (DI e DR) Endoss o Beneficiário (DI e DR) E n d o sso Endoss o Beneficiário final (portador do título) Beneficiário (DI e DR) 17 Na nota promissória, não há o aceite, porque só existem duas figuras, na relação básica, o promitente, devedor, e o promissário, beneficiário. Assim, o credor apresenta o título já para pagamento, ao emitente, que é o devedor direto. É claro que se o emitente fizer o pagamento do título, não tem regresso contra ninguém – é portanto devedor principal. Os endossantes são coobrigados, devedores indiretos do título, e se exigidos no pagamento, terão ação regressiva contra os coobrigados anteriores. Suponha-se, porém, que haja avalistas nesta relação. A regra é que o avalista assume a mesma posição do avalizado, ou seja, se seu avalizado é devedor indireto e de regresso, assim também o é o avalista. Contudo, se o avalista tem por avalizado o emitente da nota, há uma pequena alteração: ele é também devedor direto, como o seu avalizado, mas não é devedor principal, porque tem regresso contra este próprio avalizado. No exemplo do gráfico, se o beneficiário final quiser, poderá cobrar de qualquer um da cadeia de endosso, mediante protesto (pois são todos devedores indiretos). Se, porém, perder o prazo de protesto, só poderá cobrar do devedor direto, que é o emitente da nota (e seu eventual avalista). Como são solidários, pode acionar a todos em conjunto (mediante protesto). A ação de regresso,de quem tiver tal direito, é igualmente cambiária, instruída com o mesmo título que de si foi cobrado (com a certidão do título, em verdade, eis eu a cártula está juntada na execução original). 2. Aceite Assim como o endosso, o aval, e o próprio o saque, o aceite é uma declaração unilateral de vontade, pela qual uma pessoa aceita uma obrigação cambiária, comprometendo-se a pagar determinada quantia. O sacado, até exarar seu aceite, não tem qualquer obrigação cambial. Simplesmente não existe na letra de câmbio. Havendo recusa do aceite, o sacado continua ausente da relação cambiária. A principal conseqüência do aceite recusado5 recai sobre o sacador: ocorrerá o vencimento antecipado da obrigação cambiária. O aceite, então, é o reconhecimento da obrigação contida no título: é o respeito, o acato, pelo sacado, à ordem de pagamento emitida pelo sacador. Recusado o aceite, o título passa a ser exigível de imediato pelo tomador, contra o sacador, emitente do título. Deve haver o protesto da letra, provada a recusa, e execução do título, desde logo, contra o sacador. O aceite parcial é possível, e se for feito, cinge-se a obrigação cambiária em duas partes: a parte aceita permite a cobrança do sacado, aceitante, quando do vencimento; e a parte não aceita, recusada, terá seu vencimento antecipado, permitindo a execução imediata do sacador, mediante o necessário protesto por falta de aceite, apenas daquela 5 Em que pese haver quem entenda que são sinônimos, há quem diferencie a falta da recusa ao aceite: se o aceite buscado pelo tomador simplesmente não foi realizado, por algum motivo diverso da expressa recusa (não se encontra o sacado, ou este já faleceu, por exemplo), há falta de aceite; se o sacado expressamente se recusa a aceitar a ordem, é recusa do aceite. A diferença é bastante relevante, vez que somente a recusa do aceite implica em vencimento antecipado do título, o que não ocorrerá se não se diferenciar recusa de falta: ambas as situações, sendo entendidas como recusa, implicam em vencimento antecipado do título. 18 parte. O aceite parcial acarreta o vencimento antecipado somente da parte que foi objeto de recusa. O aceite qualificado, ou modificativo, que é aquele que altera elementos da ordem, é considerado aceite recusado. Exemplo de aceite qualificado é o que é exarado com a alteração de vencimento da letra pelo sacado, por exemplo. Se o tomador aquiescer na alteração, porém, o aceite passa a ser pleno, simples, sem recusa. Há ainda o aceite por intervenção: este ocorrerá quando uma terceira pessoa se disponha a aceitar uma obrigação cambiária no lugar do sacado. Um terceiro qualquer, por qualquer motivo, emite o aceite da ordem, se obrigando na letra. Ressalte-se que se no momento da criação do título não for autorizada a intervenção de terceiro, o aceite por intervenção dependerá do consentimento do beneficiário. Se este tomador não anuir no aceite feito pelo terceiro, considera-se sem aceite aquela letra, com todas as conseqüências da falta do aceite (leia-se vencimento antecipado, protesto por falta de aceite e execução imediata do sacador). Se a intervenção foi previamente permitida, o tomador não pode a ela se opor. A intervenção do terceiro, aceitando em nome próprio a letra, tornando-se devedor direto, pode ser calcada em uma inumerável conta de motivos, que não pertinem ao meio cambiário. Qualquer que seja o motivo – relação familiar, crédito civil externo à relação cambiária, pura liberalidade –, não altera a dinâmica cambial, que é autônoma. 2.1. Cláusula proibitiva de aceite A apresentação para aceite, como já se pôde ver, não precisa ser feita somente no vencimento da cártula. Pode ser feita antes, a fim de verificar desde logo se o sacado se tornará aceitante ou não, demonstrando se o protesto será necessário. O sacador, quando emite a letra, presume que esta será aceita, mas sabe que se não for, ele será o devedor acionado, eis que é devedor indireto na ordem, garantidor do pagamento. E como a falta de aceite causa vencimento antecipado da obrigação, o sacador pode ser pego de surpresa com a exigibilidade do título protestado por falta de aceite. A fim de se precaver desta situação, em que terá de si cobrado valor antecipadamente do que planejava, pode o sacador inserir a cláusula proibitiva de aceite, com vistas a impedir que o título seja apresentado para aceite previamente ao vencimento. Neste caso, deverá o beneficiário apresentar o título somente no momento do seu vencimento, e concomitantemente para aceite e para pagamento. Se for apresentada, neste dia do vencimento, e não for paga (e aceita, por óbvio), somente então o sacador será exigível, não se surpreendendo este devedor indireto com o vencimento antecipado. Esta cláusula não poderá ser inserida naquelas letras de câmbio que possuam vencimento a certo termo de vista, pois jamais ocorreria o seu vencimento: se o vencimento é determinado pela apresentação e aceite, a proibição desta apresentação impediria que ocorresse o inicio do prazo para vencimento. Se o portador de letra com cláusula proibitiva de aceite apresenta o título em momento anterior ao vencimento, e o sacado recusa o aceite, não poderá o tomador exigir o título: não há antecipação do vencimento. Aguardado o prazo para vencimento, quando vencido, o tomador apresenta novamente o título, e se o sacado não se dispuser a pagá- lo, título poderá ser protestado por falta de pagamento (e não de aceite), a fim de que o devedor indireto, o sacador, seja executável pela letra. Havendo cláusula proibitiva de aceite, se o tomador a desrespeita, mas o sacado aceita, não há qualquer problema: aguardar-se-á o vencimento, quando então o título será cobrado do aceitante, ou, se recusado o pagamento por este, protestar-se-á por falta de pagamento e executar-se-á o sacador. 19 Pode haver também a estipulação de data para aceite, pelo sacador: se ele pode proibir o aceite – o “mais” –, nada impede que possa obstaculizar temporalmente a apresentação, marcando data futura para que esta seja possível – o “menos”. Apenas ficará proibido o aceite até a data estabelecida, podendo haver apresentação dali em diante – o sacador fica protegido de vencimento antecipado até aquela data, pelo menos. ENDOSSO. Conceito. Natureza jurídica. Modalidades de endosso. Endosso em branco e preto. Diferenças entre endosso e cessão de crédito. Endosso parcial. Endosso condicionado. 1. Endosso O endosso é uma declaração unilateral de vontade que objetiva realizar a transferência de uma obrigação cambiária. A palavra endosso, etimologicamente, vem de uma agregação das palavras “em dorso”, indicando que esta declaração deve ser aposta no verso do título. O endosso não é suficiente à transmissão do crédito: é necessário o ato físico da tradição da cártula para que se complete a transferência da obrigação cambiária. O endosso é instituto típico da seara cambiária, exclusivo dos títulos de crédito. Sua formalidade exige que seja feito na própria cártula, em apreço ao princípio da literalidade (ao contrário da cessão, que pode ser feita por documento separado). A folha de alongamento, que é aderida ao título, não mitiga esta regra, pois que é considerada parte da própria cártula. A cessão de crédito, do título de crédito, é possível, e quando houver cláusula “não à ordem”, é de fato a única forma pela qual aquele título poderá circular, dali em diante. Veja o artigo 11 da LUG: “Art. 11. Toda a letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via do endosso.Quando o sacador tiver inserido na letra as palavras “não à ordem”, ou uma expressão equivalente, a letra só é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos. O endosso pode ser feito mesmo a favor do sacado, aceitando ou não, do sacador, ou de qualquer outro coobrigado. Estas pessoas podem endossar novamente a letra.” A cláusula “não à ordem” implica em que o devedor será sempre o que a inseriu, porque qualquer movimentação, dali em diante, é mera cessão de crédito. O endosso pode ser tardio, ou póstumo: este se trata do endosso feito após o protesto, ou após o prazo do protesto. Este endosso, igualmente, terá efeito de mera cessão de crédito. A cessão de crédito, apesar de ter por escopo a mesma transferência da obrigação cambiária, a mesma circulação do título, não se confunde com o endosso. Seus efeitos são bem distintos. Para traçar este cenário, nada melhor do que traçar um quadro comparativo entre estas formas de transmissão do crédito. Vejamos o esquema gráfico: 20 Endosso Cessão de crédito Natureza jurídica de declaração unilateral de vontade Natureza jurídica de contrato Não pode ser parcial, na forma do artigo 912, parágrafo único, do CC, e artigo 12, 2, da LUG Pode ser parcial Sempre incondicional Pode ser condicional O endossatário recebe direito novo e autônomo O cessionário recebe direto derivado Salvo cláusula em contrário, o endossante responde pela existência e solvência do crédito, ao contrário do artigo 914 do CC Salvo cláusula em contrário, o cedente somente responde pela existência do título Instituto exclusivo de títulos de crédito Instituto utilizável em qualquer negócio jurídico Só pode ser lançado no próprio título Pode ser efetuada em documento apartado Algumas considerações pontuais são necessárias. Vejamos. 1.1. Endosso parcial O endosso parcial é impossível, mas há uma discussão sobre a causa de sua vedação, se se trata de nulidade ou ineficácia. Há duas correntes. A primeira corrente argumenta que, em razão da cartularidade, só há direito cambiário para aquele que apresenta o documento representativo, a cártula, pelo que somente com a entrega do título inteiro é exigível a obrigação cambial, pelo portador – o que inviabilizaria a feitura de um endosso parcial, que demanda a entrega física da cártula ao endossatário. Havendo entrega de cártula com menção de partição no endosso, ou seja, havendo entrega do título com a menção de que o endosso é de apenas parte do crédito, esta menção ao fracionamento do endosso se considera não escrita, ou seja, é nula. Assim dizem o CC e a LUG, mas a nulidade do endosso parcial causa um problema: as relações dali decorrentes não seriam mais justificadas, ou seja, tudo que for posteriormente praticado será igualmente nulo, causando estranheza e confusão na cadeia cambial. Por isso, a segunda corrente, de Wille Duarte da Costa, por seu turno, diz que o endosso parcial é ineficaz, e não nulo. Apenas se entende que a menção ao fracionamento do endosso é não escrita, mas não se nulifica a declaração de vontade, o que faz com que o endosso praticado seja tido por integral, justificando as relações subseqüentes em eventual cadeia cambial. Veja o artigo 12 da LUG, e 912 do CC: “Art. 12. O endosso deve ser puro e simples. Qualquer condição a que ele seja condicionado considera-se como não escrita. O endosso parcial é nulo. O endosso ao portador vale como endosso em branco.” “Art. 912. Considera-se não escrita no endosso qualquer condição a que o subordine o endossante. Parágrafo único. É nulo o endosso parcial.” A corrente pela nulidade do endosso parcial é majoritária, e conta com amparo legal. Contudo, não explica o destino dado aos endossos supervenientes àquele que foi 21 nulificado, que são mantidos, sem maiores explanações, na cadeia cambiária subseqüente – enquanto deveriam ser igualmente nulificados, mesmo sendo integrais, por conta daquele primeiro que foi tornado nulo6. Deste artigo 12 da LUG se colhe também a incondicionalidade do endosso, próximo aspecto a ser abordado. 1.2. Incondicionalidade do endosso Não se permite condicionar o endosso a qualquer evento futuro e incerto. Havendo o endosso, este se aperfeiçoa de plano, não podendo ser sujeito a qualquer condição. A aposição de condição ao endosso não o nulifica, mas é considerada não escrita, o que permite a plena exigibilidade do título pelo endossatário. 1.3. Efeito purificador do endosso O endosso purifica o título. Esta é a máxima que explica a entrega de direito novo e autônomo ao endossatário, ou seja, todas as cargas referente à relação entre o emitente do título e o endossante não são trazidas, junto com o título, ao endossatário: fenecem com o endosso. Imagine-se, por exemplo, que um endosso seja efetuado por quem não tenha capacidade para tanto. Posteriormente, o endossatário daquele endosso nulo endossa, ele próprio, o título a um terceiro. Este seu endosso é válido, e não poderá, este terceiro, agora portador, ser prejudicado pelo vício original, porque o endosso a si feito purificou o título. A cessão de crédito não tem este efeito purificador. Com a mera recepção do título, sem endosso, o vício que contamina o título na origem é carregado junto com o crédito, não sendo purificado, se fazendo oponível ao cessionário. 1.4. Responsabilidade do endossante A LUG determina, no artigo 15, que o endossante responde pela existência e solvência do crédito, ou seja, é responsabilidade solidária pro solvendo. Veja: “Art. 15. O endossante, salvo cláusula em contrário, é garante tanto da aceitação como do pagamento da letra. o endossante pode proibir um novo endosso, e, neste caso, não garante o pagamento às pessoas a uem a letra for posteriormente endossada.” O CC, no artigo 914, diz o contrário: a responsabilidade do endossante, ali, é meramente pro soluto, tal como o é na cessão de crédito, em regra, prevista no artigo 296 do CC. Veja: “Art. 914. Ressalvada cláusula expressa em contrário, constante do endosso, não responde o endossante pelo cumprimento da prestação constante do título. § 1º Assumindo responsabilidade pelo pagamento, o endossante se torna devedor solidário. § 2º Pagando o título, tem o endossante ação de regresso contra os coobrigados anteriores.” 6 De fato, as movimentações do título, posteriores ao endosso parcial que foi nulificado, deveriam ser tidas por meras cessões do título, se estes endossos também fossem nulificados: não havendo endosso válido, a transferência do título só se justificaria por meio de cessão. 22 “Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.” Como se sabe, entretanto, este artigo 914 do CC não deve ser observado, eis que há a norma especial que deve ser aplicada. Aqui há que ser feito um parêntese, em relação à cessão de crédito: o artigo 1.005 do CC deve ser observado, porque se a cessão de crédito for feita para integralizar capital social, a regra pro soluto se inverte, e a cessão é considerada pro solvendo. Veja: “Art. 1.005. O sócio que, a título de quota social, transmitir domínio, posse ou uso, responde pela evicção; e pela solvência do devedor, aquele que transferir crédito.” 1.5. Endosso em branco e em preto Endosso em branco é aquele em que não se identifica a figura do endossatário. É representado por uma simples assinatura noverso do título. O endosso em preto, por sua vez, indica quem é o endossatário, e somente ele terá legitimidade para exigir o crédito, ou endossar novamente o título. 1.6. Pluralidade de endossos Não há limite ao número de endossos que podem ser feitos em um mesmo título. Nem mesmo limitação física existe, eis que pode ser acoplada ao título uma folha de alongamento, como dito, que se torna parte da cártula, a fim de comportar mais escritos que forem necessários. O cheque, por sua vez, apresenta uma questão. O cheque admite endosso, em branco ou em preto, mas apenas uma vez. Esta limitação serve para prevenir a excessiva circulação não tributada do cheque (CPMF). Vale lembrar que se o endosso for em branco, ainda caberá a circulação por cessão, de forma indefinida. Hoje, porém, com a revogação do CPMF, surgiu a questão: revogou-se esta proibição de pluralidade de endossos, eis que não há mais qualquer interesse em se forçar o depósito do cheque? Há duas correntes: a primeira entende que esta vedação não se sustenta, eis que perdeu qualquer sentido; a segunda corrente, porém, entende que apenas o imposto foi revogado, não se tocando a norma proibitiva do endosso, que permaneceria vigente, portanto. 1.7. Endosso próprio e impróprio Segundo esta classificação, é próprio o endosso que transfere, efetivamente, a obrigação cambiária, fazendo o endossatário o titular do direito. O endosso será impróprio, outrossim, quando não representar a transferência do crédito contido no título, mas apenas a posse do título, para fins diversos da transmissão do crédito. Pelo endosso impróprio, o endossatário não se torna proprietário do crédito: se torna portador do título para alguma finalidade. Há apenas das formas de endosso impróprio, na nossa sistemática: o endosso-caução e o endosso-mandato. Endosso-mandato é aquele que só entrega a posse do título ao endossatário- mandatário, para que este possa cobrar o título em nome do endossante. O endossatário- mandatário não é titular do direito, é mero procurador do endossante-mandante para a cobrança do crédito por este titularizado. 23 O endosso-caução, por sua vez, se faz com o escopo de transformar o título em uma garantia, fazendo-o vincular-se ao adimplemento de uma obrigação externa à cambial, como garantia. É, por isso, chamado também de endosso-penhor. Em síntese: o endosso-mandato consiste na transferência dos poderes de cobrança do crédito, ou seja, o endossatário transforma-se em procurador do tomador original, apenas possuindo o título para efetuar sua cobrança em nome do endossante, que ainda é o titular do crédito. O endosso-caução, também chamado endosso pignoratício, serve para transferir o título de crédito como instrumento de garantia real da obrigação, ou seja, o título é dado em penhor a um credor do endossante, como forma de garantia desta segunda obrigação, na qual o endossante, tomador do título, é devedor. O endosso-caução é o simples penhor do título, como se o fosse de um bem corpóreo qualquer. Ambos os endossos impróprios serão mais bem abordados em tópico específico. 1.8. Cláusula sem garantia e cláusula proibitiva de novo endosso O artigo 15 da LUG, já transcrito, permite que o endossante insira no título, ao fazer o endosso, a chamada cláusula sem garantia. Esta cláusula se presta a afastar a responsabilidade do endossante, que não poderá ser demandado pelo pagamento do título endossado. O endossante, simplesmente, deixa de ser devedor do título, passando de responsável pro solvendo a pro soluto (porque, por óbvio, não pode se eximir da responsabilidade pela existência do crédito, do título). A cláusula proibitiva de novo endosso, por seu turno, opera efeitos diferentes: o endossante que apõe esta cláusula não se exonera da responsabilidade pelo pagamento do título perante o seu endossatário direto, mas se exonera de responsabilidade perante futuros endossatários. Veja: o endossante que proíbe novo endosso não obsta que novos endossos sejam efetuados, pelo seu endossatário ou por subseqüentes portadores do título; a aposição desta cláusula apenas diz que o endossante não se responsabiliza pelo pagamento perante ninguém mais, senão seu endossatário direto. 1.9. Cláusula sem protesto Pode a necessidade de protesto ser dispensada pelo devedor indireto. Se o devedor que dispensa o protesto for o emitente do título, o sacador, ele estará dispensando o protesto daquele título para sempre, ou seja, se houver seqüência de endossos, nenhuma figura da cadeia poderá exigir protesto prévio a sua execução. Ao contrário, se quem insere a cláusula de dispensa de protesto for um dos coobrigados subseqüentes, um dos endossantes, por exemplo, esta dispensa só pertine a ele mesmo: os demais coobrigados, devedores indiretos, só poderão ser executados se houver protesto pelo credor. É claro que o devedor direto sempre poderá ser executado sem protesto, eis que a função basilar do protesto é certificar ao devedor indireto de sua responsabilidade – o que não faz sentido junto ao devedor direto. O avalista de um devedor indireto que inseriu cláusula sem protesto não dispensou o protesto, ele próprio. Por isso, a execução do avalista deve ser precedida de protesto. A dispensa do protesto só tem efeito perante quem a efetiva (salvo se quem a efetiva foi o emitente, sacador, como dito, pois então se estende a toda a cadeia). Veja o artigo 46 da LUG: “Art. 46. O sacador, o endossante ou um avalista pode, pela cláusula “sem despesas”, “sem protesto”, ou outra cláusula equivalente, dispensar o portador e 24 fazer o protesto por falta de aceite ou falta de pagamento, para poder exercer seus direitos de ação. Esta cláusula não dispensa o portador da apresentação da letra dentro do prazo prescrito, nem tampouco dos avisos a dar. A prova da inobservância do prazo incumbe àquele que dela se prevaleça contra o portador. Se a cláusula foi escrita pelo sacador produz os seus efeitos em relação a todos os signatários da letra; se for inserida por um endossante ou por avalista, só produz efeito em relação a este endossante ou avalista. Se, apesar da cláusula escrita pelo sacador, o portador faz o protesto, as respectivas despesas serão por conta dele. Quando a cláusula emanar de um endossante ou de um avalista, as despesas de protesto, se for feito, podem ser cobradas de todos os signatários da letra.” ENDOSSO. Endosso próprio e impróprio: endosso-mandato e endosso-caução. Endosso póstumo. Cancelamento do endosso. 1. Endosso O endosso é o meio pelo qual se coloca o título de crédito com cláusula à ordem em circulação. Esta declaração unilateral de vontade se materializa pela assinatura do endossante no verso do título. O endosso pode ser em branco ou em preto, como se sabe. Hoje, por força do artigo 19 da Lei 8.088/90, o nome do beneficiário é um requisito essencial em todos os títulos de crédito, à exceção do cheque inferior a cem reais. Sendo assim, o endosso em branco, hoje, só é assim no nascedouro, porque para que seja exigido o título, o beneficiário deverá fazer constar ali seu nome – convertendo-se em preto, ao final. “Art. 19 - Todos os títulos, valores mobiliários e cambiais serão emitidos sempre sob a forma nominativa, sendo transmissíveis somente por endosso em preto. § 1º - Revestir-se-ão de forma nominativa os títulos, valores mobiliários e cambiais em circulação antes da vigência desta Lei, quando, por qualquer motivo, reemitidos, repactuados, desdobrados ou agrupados. § 2º - A emissão em desobediência à forma nominativa prevista neste artigo torna
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