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Andrea Silveira Wontanara: estamos juntos? 1a Edição São Paulo 2014 O trabalho “Wontanara: estamos juntos?” de Andrea Silveira está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Brasil. Baseado no trabalho disponível em: http://www.wontanara.com.br. Capa e projeto gráfiCo Wedologos fotografias Fabio Biolchini Letícia Passowski Lysanne Lafetière Andrea Silveira Juliane Raoul Jessica de Menezes freepik.com revisão Guilherme Valle Luciene Xavier de Siqueira Oficina de Literatura Cairo Trindade tradução para o franCês Maria Luisa Dominici Cunha Alexis Gourdol editoração eletrôniCa Wedologos endereço para Contato www.wontanara.com.br andreasilveira@wontanara.com.br prefácio ...........................................................................................................10 antes mesmo de começar ..................................................................14 1. Quando eu crescer... ................................................................................17 2. encontrando minha vocação ..............................................................21 3. o salto quântico .........................................................................................25 4. We plan as we go ......................................................................................29 5. o mundo em guerra e a proposta de salvá-lo ........................33 6. sonhos que se realizam .........................................................................37 7. meu sobrenome? metamorfose! .......................................................41 8. Pequeno país, grandes desafios ........................................................45 9. Desembarcando no campo .................................................................50 10. Bem-vindos a Conakry ........................................................................56 11. o tabu do HIV/aIDs na Guiné .......................................................61 12. Wontanara ..................................................................................................66 13. Desafios e oportunidades ..................................................................70 14. Humanitarismo ou dominação maquiada? ............................76 15. uma babel sem fronteiras .................................................................81 SUMÁRIO SUMÁRIO 16. Lá se foram quatro meses .................................................................86 17. enquanto isso, a vida acontece lá fora ......................................90 18. nem tudo é resistência ........................................................................94 19. um jardim para a esperança ..........................................................98 20. a cor da África ......................................................................................104 21. a peculiaridade do marché madina .........................................108 22. mulheres, mães e as amazonas da Guiné ...........................112 23. tambores mágicos ...............................................................................119 24. De volta ao dilema da cultura .......................................................123 25. a pedra no lago ....................................................................................128 26. sobre morrer, já que a morte não existe ................................133 27. Reclusão compulsória ........................................................................138 28. Quase a quarta esposa, eu?! .......................................................142 29. Ils sont où les noirs? ...........................................................................147 30. Paralisada pelo paradoxo ...............................................................151 31. Finalizando, à sombra do idealismo ........................................156 agradecimentos ........................................................................................160 Wontanara: estamos juntos? 7 Wontanara: estamos juntos? 8 Aos meus queridos amigos da Guiné, tambores que continuam tocando meu coração. Wontanara: estamos juntos? 9 C’est une vérité évidente que personne ne viendra développer notre cher pays à notre place. Il faut compter sur chaque guinéen avant d’appeler les pays voisins, la communauté internationale avec sa cohorte d’organisation et d’ONG. Jeune de Guinée, si ce n’est pas nous, alors ce qui? Si ce n’est pas maintenant, alors ce quand? 1 Ibrahim Sowh (um dos tambores que tocam a Guiné) 1. É uma verdade evidente que ninguém virá desenvolver nosso querido país em nosso lugar. Devemos contar com cada guineense antes de chamar os países vizinhos e a comunidade internacional com sua corte de organizações e ONGs. Jovens da Guiné, se não formos nós, então será quem? Se não for agora, então será quando? Wontanara: estamos juntos? 10 Wontanara - estamos juntos? É o relato de uma vivência, é perspectiva, é comprometimento! É uma viagem pela África, uma crítica social e ao mesmo tempo uma proposta de ação, de amor ao próximo, unindo emoção e razão, vivência e conhecimento técnico. Este livro é um olhar para além do acadêmico, uma visão Humanista e Espiritualista da nossa corresponsabilidade na construção de um mundo mais justo, de uma vida mais digna para todos. Antes de prosseguir, quero expressar a minha gratidão pelo convite, num primeiro momento, para revisar este manuscrito, não em seus aspectos teóricos ou linguísticos, mas naquilo com que eu podia colaborar: oferecer o feedback de um leitor que, apesar de nunca ter ido à África, comunga muitas ideias com a autora, minha amiga Andrea Silveira. Depois, num segundo momento, pelo convite para escrever o prefácio, o que muito me honrou, pois sei de seu afeto por esta obra. De maneira imprevista e por mim não esperada, num reencontro com a autora, depois de quase um ano de sumiço do Brasil e após a sua aventura pela África, ela me deu a oportunidade de contribuir, com o meu olhar, para o registro da sua experiência em um projeto social naquele continente. Processo marcado também pelo seu desejo de sintetizar o momento de Vida, a história pessoal e a trajetória profissional, numa espécie de balanço sobre um trecho da sua caminhada – que, desde já, desejo que seja longa, pelo muito que ela tem a contribuir. Wontanara – estamos juntos? Sim! Talvez eu seja a primeira feliz “vítima” dessa obra. Na realidade ninguém é vítima; todos nós, de alguma forma, somos os artífices de nossa vida, através das nossas escolhas! E espero que você, leitor, ao final se sinta também uma feliz vítima do encontro com este livro e possa responder SIM à pergunta inicial do seu título. Certamente, este livro, que antevejo como um projeto, terá desdobramentos, pois possui um potencial para auxiliar a quem deseja participar de projetos sociais de uma maneira consequente! Sem dúvida, PrEFÁCIo Wontanara: estamos juntos? 11 irá emocionar as almas sensíveis, já que foi construído com muito carinho. Fruto de um momento especial na vida de sua autora, dos seus sonhos, ideais, encontros, desencontros, realizações e fracassos, o que só o enriquece. É um livro com alma! Sua obra é fruto de uma sólida formação acadêmica, de um rígido senso crítico e ético, de uma visão humanista e busca espiritual. Pelo menos é assim que vejo a autora, desde quando os nossos caminhos se cruzaram, intercalados de momentos distantes e outros mais próximos. A emoção e a sensibilidade que relato no meu envolvimento com este seu projeto estão presentes ao longo de todo o livro, que fala de um certo modus operandis da autora e da sua proposta de ação social, baseada em afeto,na valorização do outro, no estímulo aos potenciais de cada pessoa, no engajamento pela construção de um mundo melhor para todos. Neste início de século XXI a Humanidade e o planeta Terra se encontram em um momento crítico e de perigo. Aquele momento onde é real e muito próxima a possibilidade de autodestruição da Humanidade. Momento em que os valores dominantes se esgotam em si mesmo. Ponto onde o outrora remédio, vira veneno! Só a mudança de paradigma e a adoção verdadeira de novos valores poderão proporcionar uma saída! É real a possibilidade de destruição, mas o otimismo presente na visão Humanista aponta para a esperança e fé no potencial humano. O livro “Wontanara” toca nestas questões, ao relatar a experiência de uma psicóloga social num ponto da África, na Guiné, através do trabalho humanitário de uma ONG internacional. A autora faz uma ponte entre culturas, comunidades e pessoas, como ela gosta de dizer: “construir pontes entre o abandono e o aconchego, entre o injusto e a igualdade de direitos, entre a miséria e a possibilidade de realizar sonhos”. Ponte entre culturas e visões de mundo é bem mais difícil do que construir uma ponte física entre dois pontos fixos e distantes, desafio para os engenheiros. Ponte entre as diversidades culturais, entre as diferenças sociais, econômicas ou educacionais, e entre as comunidades ou as pessoas que compõem a grande família Humana, é um desafio bem maior! Pois exige sensibilidade, escuta, empatia, compaixão, tolerância comprometimento, solidariedade. Não se tem fórmulas ou cálculo preciso na sua construção, muitas vezes precisa mais do que suor: demanda lágrimas, afeto, sorriso, gentileza, alegria. Wontanara: estamos juntos? 12 Fiquei feliz que a autora, após conseguir transformar em um belo texto a rica experiência vivida, elaborou, em paralelo, o Caderno Técnico, propondo caminhos para uma ação social, a partir de sua visão de “intervenção” social, coerente com princípios éticos, com uma visão humanista, espiritualista e critica. Aos que se interessarem para além das crônicas e quiserem estar juntos em algum projeto de ação social, os dois livros são plenamente complementares: emoção e razão, ciência e espiritualidade, crítica e engajamento, noite e dia, sol e lua. Com os dois juntos a vivência não fica sem fundamentação e referências técnicas. O teórico não fica frio e vazio, ganha emoção, espiritualidade e valores. Convido o leitor para saborear os capítulos deste livro e acompanhar, passo a passo, a história que levou a autora à África: suas expectativas, descobertas, frustrações e questionamentos. Mas, fiquem atentos às frases especiais e de efeito, ao longo do relato! Há muito material para reflexão nos momentos poéticos e belos, como um por de sol, e em outros, com críticas de tirar o fôlego, como um soco na boca do estômago dado por um pugilista profissional. Pelo menos, foi como eu senti! Diferentes leitores poderão experimentar diferentes emoções e chegar a outras conclusões. Eu sei que a mim emocionou! Me fez refletir! E sei que todos os que fazem parte da mesma tribo, a dos que anseiam por um mundo melhor e mais humano, irão se encantar. WONTANARA!! Guilherme Azevedo do Valle Brasil, Curitiba, fevereiro de 2014. Wontanara: estamos juntos? 13 Wontanara: estamos juntos? 14 Wontanara2 é uma expressão africana que significa “estamos juntos”. Termo soussou, uma das etnias na Guiné3 , amplamente utilizado pelas demais descendências do país. Palavra simples, carregando um universo de possibilidades para as relações fraternas entre povos de um mesmo país e diferentes continentes. É difícil pronunciar essa palavra sem que o som não tenha como origem um lugar especial: o fundo do coração. Ela sai da nossa boca, explodindo dentro dos ouvidos do mundo, como fogos de artifício feitos de alegria e amor. “Estamos juntos” quer dizer “navegar no mesmo barco e coordenar os remos, de mãos dadas”. Implica nos reconhecermos em idêntico nível e posição, em sintonia e pé de igualdade. Mais do que isso, Wontanara expressa o desejo genuíno de dois serem um só, buscando o elo comum. Traduz o testemunho partilhado e a cumplicidade no processo de ser e fazer. Revela o acolhimento da diversidade de todas as etnias, todos os credos. É a unidade incorruptível. 2. A pronúncia correta da palavra é: uontanará 3. A Guiné é também conhecida como Guiné-Conakry, para diferenciá-la da Guiné Bissau. antEs mEsmo dE Começar Wontanara: estamos juntos? 15 Assim, ao tentar descrever minha experiência na África, em apenas algumas páginas, não poderia encontrar palavra melhor para contemplar, com tanta qualidade e emoção, o que foi o meu cotidiano. Durante onze meses, não existiu dificuldade ou contratempo capaz de despertar em mim qualquer arrependimento por estar ali. Mesmo com todas as ressalvas e críticas sobre a intervenção institucional e as adversidades impostas pela realidade física do lugar, me sentia remando com os guineenses. Esta é uma história de amor, não apenas pela equipe maravilhosa com quem convivi. Amor que nasceu há muito tempo, sem eu perceber, e foi cultivado, por uma parte de mim, desde então. Me dei conta de que ele pulsava quando eu já estava instalada em Conakry, durante um seminário organizado com grupos de diferentes associações de apoio às pessoas vivendo com o HIV/AIDS. Após me apresentar, alguns deles perguntaram por que eu havia escolhido a África e, imediatamente, respondi: “Por amor. Um amor que me conquistou aos dez anos de idade!” Ao voltar para o Brasil, vários amigos sugeriram que eu escrevesse sobre minha vivência. Inicialmente relutei. Havia divergido do modelo de intervenção da ONG em que trabalhei, tinha passado por situações delicadas no campo e não queria tornar públicos determinados “absurdos”. Somente depois de muito conversar e refletir sobre o assunto, entendi que não haveria mal algum em compartilhar minha jornada na Guiné. Afinal, todas as vivências são permeadas de desafios e oportunidades. De coisas que inicialmente nos fazem mal, mas que depois, com o tempo, se tornam lições importantes para o nosso caminho. O que experimentei foi de uma riqueza ímpar e eu tive muito mais insights sobre a vida do que decepções. As ressalvas se referiam apenas a dois aspectos: a metodologia de intervenção e algumas contradições no campo da ética. Mas isso tem a ver com a minha forma de conceber o mundo e nossas ações sobre ele. Muitos voluntários viveram e continuam enfrentando as mesmas contingências que eu e reagiram e reagem de outras formas. Wontanara: estamos juntos? 16 Portanto, as páginas que se seguem refletem um estado de alma (da minha!) muito mais do que uma verdade absoluta. Uma perspectiva (a minha!), muito mais que uma razão. Houve momentos de magia (de todas as cores!) e outros de puro descontentamento (organizacional). Alguns momentos de clareza e outros em que a realidade ficava turva demais para encontrar a porta de saída. Mas, em todos eles, eu não estava sozinha. Minha crença espiritual me permitia reconhecer uma força sagrada acompanhando meus passos e estimulando o encontro com outras almas. Eu percebia as energias se convergindo, o que me possibilitou superar os desencantos e viver um grande amor pela África. Verdadeiras alianças, que me fizeram persistir no ideal humanitário. Alguns podem tecer críticas, afirmando que estou supervalorizando uma experiência na Guiné, como se ela fosse representativa de um continente com muitos países. Seria um argumento legítimo, não fosse a intensidade do meu sentimento. Identifico-me não apenas com os soussous, malinkés, poulars, forestiers. Trata-se de um tipo de amor sem bandeiras. Só tenho a agradecer por tudo e a todos. E esclarecer que estas linhas,mesmo que deixem escapar certo tom de contestação, representam minha maneira de honrar este coração africano. Wontanara: estamos juntos? 17 Capítulo 1 Wontanara: estamos juntos? 18 Caminhava rua abaixo, em direção ao centro da cidade. Sem compromisso, sem destino certo. O plano era passar aleatoriamente pelas lojas para encontrar o que eu precisava. Mas nem lembro me exatamente o que era. Nessa altura do campeonato, isto não tem a menor relevância, pois esse dia mudaria a direção da minha vida, muitos anos mais tarde. “No meio do caminho tinha uma pedra. / Tinha uma pedra no meio do caminho”. Uma pedra social. Do tipo que a sociedade tem costume de esconder ou ignorar. Mas o que fazia uma pedra no caminho do centro da cidade? Alguns quarteirões antes de chegar no calçadão do comércio, passei em frente a uma casa e minha atenção foi capturada imediatamente. Havia uma espécie de orfanato instalado ali e várias crianças corriam pelo alpendre. Até aquele momento, não fazia ideia de que as crianças “podiam” ser abandonadas de verdade. Já tinha ouvido falar de instituições como aquela, mas nunca havia colocado meus olhos sobre uma. Igual a todas as crianças de classe média, numa cidade do Quando Eu CresCer . . . 1 Wontanara: estamos juntos? 19 interior, minha infância aconteceu na rua. Não porque meus pais me abandonaram ou fossem negligentes. A rua era o lugar onde a vida desabrochava, longe do controle dos adultos. O contato com a realidade social era mediado pelas brincadeiras. Eu sabia da pobreza, da violência, da problemática social, do caos que poderia ser um lar desequilibrado. Isso fazia parte do meu contexto e relações de vizinhança. Era tudo “normal”. Simplesmente eu não tinha um olhar crítico para esses fenômenos. Por isto, como dizia Drummond, “Nunca me esquecerei desse acontecimento, / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra.” Mas eu era uma criança saudável e minhas retinas estavam, no máximo, condicionadas a ver o mundo colorido. Pelo menos, até eu tropeçar naquela pedra. Devia estar beirando os dez anos de idade. Entrei no orfanato como voluntária e ali resolvi: quando eu crescer, quero construir pontes entre o abandono e o aconchego, entre o injusto e a igualdade de direitos, entre a miséria e a possibilidade de realizar sonhos. No meio do caminho, meus olhos se abriram diante do mundo e aprendi que a vida era muito mais complexa do que jogar taco na rua e mais desafiadora do que brincar de esconde-esconde. Embora eu já ensaiasse os primeiros confrontos com a realidade, por meio das minhas redações da escola, foi ali que o meu senso de humanismo adolesceu. Os anos se passaram e aquela experiência social com as crianças do orfanato ocupou um lugar na minha memória remota. Por razões que ainda desconheço, minha vida de voluntária durou pouco. Tudo o que consigo recuperar desse arquivo é a imagem daquela casa azul e o registro das crianças em meio a uma gestão institucional questionável. Nos anos seguintes, minha vida foi tomada pelas tradicionais questões de uma adolescência rebelde e nunca mais voltei a enxergar a realidade com as mesmas lentes ingênuas. A revolta se instalou no cotidiano, mas a preocupação maior era me adaptar ao meio ao invés de contestá-lo. Embora, dizem, meu poder de argumentação fosse aguçado, era mais Wontanara: estamos juntos? 20 fácil agir por conta própria do que lutar para ter razão. Naquela época, eu já deduzia: ser feliz e ter razão são, frequentemente, incompatíveis. Olhando para aquele período, acho que o mais engraçado foi me deparar com o desejo de ser freira. Claro, minha motivação não era legítima e recebi orientações para canalizar meu potencial de solidariedade de outras formas. Foi quando a juventude chegou e debutou, intensamente, no curso de comunicação social. De repente percebi as janelas se abrindo no horizonte e a infinidade de coisas que precisariam mudar para que a nossa sociedade fosse, de fato, um espelho da centelha divina que existe dentro de nós. A transformação tinha que começar dentro de mim. Por sorte, ou por destino, as contingências da vida se tornaram, gradativamente, grandes lições de amor e desamor. Elas retiraram, pouco a pouco, o véu de proteção que cobria meu ideal de sociedade. Ainda assim, eu passava a maior parte do tempo trabalhando no projeto de ser uma pessoa melhor e sobrava pouca energia para investir no projeto de salvar o mundo das injustiças humanas. Eu continuava procurando uma vocação para quando crescesse. Wontanara: estamos juntos? 21 Capítulo 2 Wontanara: estamos juntos? 22 Com o meu histórico de vida, eu poderia ter sido a própria contradição ambulante. Andar descalça na praça, com o cabelo trançado, vestindo roupa de algodão cru e as orelhas enfeitadas com falsas penas de aves; colocar no pé um salto número dez, combinando com a bolsa e o jeans de marca, da última coleção para ir ao clube social. Desde a primeira vez que subi as escadas daquela casa azul para brincar com os “órfãos” até reconhecer a minha vocação, oscilei exageradamente pelos prováveis extremos. Sem nenhum arrependimento! Eu seria injusta se dissesse “pouco importa tudo o que eu fiz, afinal acabei me encontrando”, pois foi justamente esta ondulação existencial que me trouxe até aqui. A experimentação de todas as possibilidades permitiu o amadurecimento da minha vocação e também a lapidação de quem sou. Cada história vivida, todas as tentativas, erros e acertos. Detalhes pequenos, na ocasião, tornaram-se referência decisiva para as minhas escolhas, anos mais tarde. Eu me lembro da regra defendida pelos meus pais para nos ajudar a colocar ordem no devaneio: “Nunca abandone as coisas pela metade. Defina sua meta e trabalhe por ela do EnContrando mInha voCação 2 Wontanara: estamos juntos? 23 começo ao fim!” Éramos incentivados a buscar a estabilidade como forma de manter o juízo e a normalidade. Mas eu queria e fazia qualquer outra coisa, exceto isto. Afinal, me encontrava em plena juventude, no desabrochar da identidade social. Queria arriscar e me tornei uma espécie de ovelha desgarrada. Analisando minha trajetória, tenho uma coleção invejável de coisas deixadas para trás. Contradizendo o estabelecido, comecei e parei, sem concluir, diferentes atividades, cursos de música e esportes. Alimentava um enorme interesse pelo mundo e explorava suas fronteiras. Inclusive a primeira faculdade, de comunicação social, eu interrompi pela metade. Minha curiosidade era um dom precioso e, forjando exceções à regra, fui acreditando na intuição de que o cosmo tinha muito mais a oferecer. Era uma cidadã do mundo e isto constituiu um princípio fundamental: minha nacionalidade humana. A abundância de experiências foi responsável por construir uma base sólida de valores pessoais e ajudou a esclarecer que a minha vocação, de fato, era ser engenheira: construir pontes para ligar a teoria à prática e unir caminhos; edificar portas de entrada para soluções factíveis de enfrentamento dos problemas; abrir janelas para expandir o potencial humano. Isto demandaria postura inovadora; flexibilidade para acolher o novo e me desapegar de paradigmas; determinação para transformar a realidade. Foi assim que, em “idade mais avançada”, resolvi ser psicóloga e voltei para a Universidade. Porém, com o conhecimento já adquirido quando morei na França, não poderia escolher ser psicóloga e ponto. Observando vários trabalhos da psiquiatria cultural, realizados por alguns franceses, eu estava decidida a enriquecer a minha prática. Queria agregar a perspectiva de que somos seres conectados por uma força de atração muito além das tramas psíquicas. Porisso, tinha que acrescentar um qualitativo no meu papel: psicóloga social foi a alternativa que mais me aproximou daquela casa azul. Wontanara: estamos juntos? 24 E toda vez que penso sobre como a minha vocação de engenheira ressignificou o meu trabalho como psicóloga, fico agradecida profundamente por ter quebrado a regra e assumido o compromisso com a mudança, com o “des- envolvimento” da minha alma humana. Nem imaginava, quando subi as escadas daquele orfanato, a repercussão que ele teria na construção do meu Ser. No campo profissional, depois de ter me formado, dei início a vários projetos, mas raros foram aqueles que eu mesma concluí. Não por falta de instrumentos ou de conhecimento. Apenas porque fazia parte da caminhada. Eu era somente coadjuvante do processo. Acabei me especializando em construir pontes e em ajudar a travessia entre as margens. O resto, cada um fazia por si mesmo. Minha vocação se definiu assim: simplesmente criar ferramentas e condições para que as pessoas assumam o leme e posicionem as velas de maneira favorável ao sopro do universo sagrado. Wontanara: estamos juntos? 25 Capítulo 3 Wontanara: estamos juntos? 26 Dizem que tatuamos nossos ideais na alma, mas que o cotidiano se encarrega de esconder as pistas que nos levam a reencontrá-los. Assim, passamos uma vida inteira a percorrer atalhos na busca da realização pessoal. Estrada afora, vamos espalhando as migalhas de pão e marcando o caminho de volta. Contudo, depois de vagar em círculos, constatamos que alguns episódios apenas nos distanciam do ponto de partida: a morada interior. Aprendemos que é desnecessário ir tão longe para chegar tão perto. Nem precisamos de tanto tempo. Às vezes, um único raio de luz é capaz de nos fazer enxergar nosso caminho. Os contornos da estrada se tornam perceptíveis quando recebemos uma sacudida da vida. Daquelas que nos fazem perder o prumo, num primeiro instante, e em seguida recuperar a lucidez cósmica. Momentos mágicos que nos reconectam com a realidade da alma. É quando, enfim, conseguimos colocar nossa vocação a serviço da profissão para a qual nos preparamos e integramos tudo isto com o compromisso da transformação. O resultado o salto QuÂntICo3 Wontanara: estamos juntos? 27 é incontestável: engajamentotal! No meu caso, o turning point 4 veio mascarado de perda. Foi preciso experimentar, de fato, minha capacidade de amor incondicional para recolocar o trem no trilho. Sempre achei a maternidade uma forma de desenvolvermos este potencial dentro de nós. Porém, acabamos transferindo nossas expectativas para os filhos, o que nos impede de amar sem barganha. Já acompanhar alguém no seu leito de morte é, invariavelmente, um teste para a solidariedade e incondicionalidade do amor. Amálgama necessária no caminho. Ao exercitar a doação daquilo que tinha de melhor em mim, “des-cobri” o que tinha de melhor em mim e pude enxergar o quanto queria me entregar por completo à minha vocação. Ainda encontro alguns resquícios de dúvida sobre o que faria se não tivesse passado por um luto. Porém, cada vez com menos frequência, questiono as estratégias do plano espiritual para me impulsionar até o começo do resto da minha vida. Aquele foi o raio de luz necessário na configuração do agoraqui. Estar nesta situação, repassando minhas memórias e emoções, compilando os registros de uma vida inteira, representa a “cereja em cima do bolo”. Não tenho certeza do que vem pela frente. Abandonei essa preocupação no auge da minha equação africana. Aprendi a lidar mais com as possibilidades e a evitar expectativas. Hoje, quando defendem a evolução da vida íntima em saltos quânticos, entendo bem o que isto significa. Compreendo por que muitas pessoas levam anos a fio para mudar de estágio, enquanto outras nem realizam mutações profundas. A tarefa é complexa, pois nossa existência transcende o tempo e o espaço. Semelhante àquelas tatuagens que gravamos na alma do infinito. É preciso morrer, a cada dia, para nascer na eternidade. Encontrar um ponto de equilíbrio que viabilize a coexistência de todas as nossas descobertas e consiga harmonizar os ideais 4. Momento em que ocorre uma mudança de paradigma significativa, impulsionando novos movimentos e configurações na vida, conforme explica Fritjof Capra. Wontanara: estamos juntos? 28 e os dados de realidade com atos transformadores é o grande desafio de quem deu o salto e está prestes a aterrissar em um novo ciclo de vida. Após despertar para o universo, foi fundamental juntar as peças do quebra-cabeça e processar a noção do todo nas suas várias partes. Ao fazer isso, constatei que a minha vida de “engenheira-psicóloga-social” carecia de rumos concretos e que, por fim, eu deveria me desapegar da rotina para ousar novos atalhos. Naquele ano, a vida virou do avesso e eu comecei a entender minha vocação. Finalmente, estava pronta para abandonar o porto seguro e colocar meu barquinho em alto-mar! Wontanara: estamos juntos? 29 Capítulo 4 Wontanara: estamos juntos? 30 Planejamos conforme o andar da carruagem ou, como ensinava Paulo Freire, educador brasileiro, o “caminho se faz caminhando”. Se pudéssemos integrar esta máxima em nossa prática, evitaríamos uma série de atropelos. Mas ainda que eu tivesse dado o salto quântico transformador, demorei alguns anos para incorporar este registro. Depois do ano da reviravolta, fiz um retiro espiritual e um curso de introdução ao Budismo Tibetano na Índia e, na sequência, mergulhei no pragmatismo científico com o doutorado nos Estados Unidos. Esses dois eventos aceleraram meu movimento de sair da zona de conforto. O primeiro, porque reafirmou minha base de valores e consolidou a crença de que era crucial trazer para o campo profissional a vivência espiritual. O segundo, porque reforçou a necessidade de buscar outras estratégias de intervenção profissional que honrassem minha visão de homem e de mundo. Voltei para o Brasil entusiasmada para sair do Brasil! Tinha clareza de que o meu lugar era não ter um lugar comum. Considerando as novas perspectivas de trabalho comunitário, WE PLAN AS WE GO4 Wontanara: estamos juntos? 31 estabeleci o prazo de cinco anos para redirecionar meu caminho. Comecei a pesquisar várias instituições, a analisar diferentes possibilidades, e revigorei esse processo, me envolvendo com alguns projetos interessantes no cenário nacional. Minha experiência anterior com comunidades em situação de vulnerabilidade, o senso de organização e gestão de recursos e a capacidade tecnometodológica se tornaram cúmplices da minha vocação. Pela primeira vez, eu estava arquitetando um trabalho de corpo, alma e conhecimento. E sabia: em cinco anos me mudaria para sempre da minha casa e trabalharia como “engenheira”, num mundo sem fronteiras. Mas planejamento não é uma camisa-de-força. Os cinco anos viraram três. E antes de abrir meu plano de voo para revisar a rota, o destino tomou as rédeas da carruagem em suas mãos, mudando discretamente seu curso. Desfiz o meu lar e tomei outros rumos, mesmo achando que estava me distanciando do plano original. Mais uma lição e oportunidade de resignação com a proposta do universo. Sinal de que podemos planejar nossas ações para asseguramos alguns procedimentos. Porém, no final do dia, o resultado será, impreterivelmente, derivado dos pequenos passos e decisões que tomamos enquanto caminhávamos. Foi então que decidi: daquele momento em diante, viveria a vida num tabuleiro de xadrez. Guardaria no pano de fundo a noção do todo e a função de cada peça. No mais, só escolheria o próximo passo quando a vida já tivesse feito sua jogada. E, com isto instituído, me aquietei. Até o dia em que recebi um artigo sobre otrabalho de outra psicóloga numa ONG humanitária, de atuação no âmbito internacional. Nem me lembro qual era o projeto em questão, mas me recordo perfeitamente do sentimento avassalador me provocando: “Está na tua hora. Vai lá. Faz a inscrição e deixa acontecer!”. Reuni meus documentos, revisei o currículo, escrevi a carta de motivação, preenchi todos os formulários solicitados e Wontanara: estamos juntos? 32 me propus realmente a desligar a cabeça desse fato. Aquela tradicional versão do efeito dominó é a melhor imagem para ilustrar o que aconteceu comigo depois que eu cliquei “enviar”. Aliás, abrindo um parênteses, o encadeamento de eventos é uma constante na vida de todos nós, e não especialmente na minha. Assim como outras pessoas, eu também passei a prestar mais atenção no cotidiano e a perceber melhor o fluxo, quando inaugurei a minha “jornada do herói”. Não há nada de extraordinário nisso quando, humildemente, aceitamos o comum: o ordinário do ser, o natural e espontâneo da vida, a comunhão cósmica. As coisas fluem naturalmente, quando nos permitimos a entrega com o coração. Duas semanas mais tarde, recebi o e-mail da ONG me convidando para participar do processo seletivo no Rio de Janeiro. Acontece que eu já estava até com a passagem comprada para visitar uma amiga carioca, exatamente no período em questão. Coincidência ou sincronicidade? Wontanara: estamos juntos? 33 Capítulo 5 Wontanara: estamos juntos? 34 Somávamos apenas três participantes no encontro que eu acreditava ser uma dinâmica de seleção. Ao contrário do tradicional modelo utilizado pelos recrutadores, não havia concorrentes entre si. Cada profissional representava uma área: médica, paramédica (meu caso) e não-médica. Apresentações feitas, falamos sobre nossas intenções e passamos a nos concentrar, essencialmente, sobre as muitas informações a respeito da instituição e do seu trabalho. Uma explanação bem aprofundada. Recebemos muito mais do que fornecemos. Se aquela reunião era para nos conhecerem melhor e analisar nosso potencial de colaborarmos com a Organização, então alguma coisa não estava muito clara. Mas, enfim, eles tinham nossos formulários em mãos, e talvez aquilo fosse suficiente. Na medida em que a Organização era promovida, uma espécie de encantamento foi tomando conta de mim. Realmente, é muito animador você pensar que tem uma “liga de super- heróis” em vigília, pronta para combater o mal e salvar o mundo de si mesmo. Principalmente quando você já sabe que o mundo Em GuErra e a proposta de salvá-lo5 Wontanara: estamos juntos? 35 o mundo lá fora está em guerra e a miséria vem aniquilando populações inteiras. O discurso do “estamos fazendo alguma coisa” pode ser bastante convincente. E, na prática, se analisarmos os números, os resultados contabilizam a ajuda: com um real por dia, no final do mês, você consegue atender cem pessoas com água potável ou tratar uma criança desnutrida. Pode não ser um valor significativo, mas o mundo precisa deles, desde sempre. E para sempre, muito provavelmente. Participar de ações que podem fazer a diferença para milhares de pessoas é dignificante. A mínima possibilidade de contribuir para um bem maior já é, por si só, uma variável motivadora. Quem se inscreve num trabalho dessa natureza tem uma postura de solidariedade como base. Ninguém entra num projeto de salvar o mundo, pensando em ganhar dinheiro, status ou poder. Certo? Errado! Pesquisas já demonstraram que as pessoas se dedicam a trabalhos solidários por razões diversas. Não necessariamente elas têm um projeto de sociedade justa e igualitária. É uma ilusão acreditar que todos os praticantes do voluntariado comungam da mesma Ética e têm a mesma perspectiva de ação. Se eu pensava que a realidade seria diferente, por ser uma ONG internacional conhecida e sólida, fui logo mudando de ideia quando entrei na sala do recrutamento. A primeira pessoa que encontrei foi uma das participantes que chegou mais cedo. Procurando ser cordial com ela, tomei a iniciativa da conversa. Mas senti uma indiferença vindo do lado de lá, e pensei: “Nossa! Que destoante com este contexto!” Imediatamente me corrigi, autopoliciando meus estereótipos. Porém, ao longo da apresentação sobre a instituição, essa pessoa fez colocações tão bizarras que provocaram uma desconfiança maior ainda: “Ah! Deve ser uma atriz contratada para o role play, tentando desestabilizar nossas crenças humanitárias. É parte do processo de seleção.” Wontanara: estamos juntos? 36 Claro, eu estava enganada! Tratava-se de uma candidata ao trabalho humanitário. Quando saí do escritório, me sentia feliz pela chance de ter participado daquele encontro e conhecido melhor a Organização, mas cheia de dúvidas a respeito da minha escolha. Repetia para mim mesma: “Se eles contratarem alguém com o perfil daquela pessoa, vai ser difícil acreditar na seriedade da ONG!”. Devemos ser críticos sobre o propósito do voluntariado, mas é necessário aplicar a mesma lógica para analisarmos como as organizações sociais e humanitárias desempenham seu papel e suas funções. Em geral, somos seduzidos pelo próprio imaginário e passamos a acreditar que a resposta para a fome e flagelos das guerras está nessas doações e projetos. Isso representa um grande perigo. É fundamental usarmos um crivo menos ingênuo ao olharmos para essas instituições. Muitas delas operam como fachada para diferentes interesses minoritários. São as ONGs que “pelo menos, estão fazendo alguma coisa”. Numa outra categoria, encontram-se aquelas que, efetivamente, estão interessadas no bem comum e atuam com Ética, no sentido mais amplo do termo. Como preconiza o ditado popular: “É preciso comer um saco de sal juntos para realmente conhecermos nosso parceiro”. Enfim, só enxergamos a realidade institucional quando nos tornamos parte dos bastidores. Assim como nos deparamos com uma variedade de voluntários, também podemos encontrar todo tipo de instituição no terceiro setor. Acredito que tudo depende dos valores fundamentais da organização e da pessoa em questão. É perfeitamente compreensível que um voluntário selecionado se mostre inadequado para executar a tarefa, ao longo do tempo. E o inverso também é verdadeiro. Uma coisa é o que vemos ou queremos ver na propaganda, outra é o que descobrimos na realidade do trabalho de campo. Às vezes, o voluntário corresponde ao perfil desejado, mas o projeto foge dos seus parâmetros éticos. Wontanara: estamos juntos? 37 Capítulo 6 Wontanara: estamos juntos? 38 Alguns dias depois do encontro na sede da Organização, recebi um telefonema informando que eu havia sido selecionada e passaria para o banco de profissionais reservas. Isto significava que, tão logo eles tivessem necessidade de um profissional com o meu perfil, eu seria convidada para a missão. Num cadastro composto por centenas de pessoas de diferentes nacionalidades e perfis correlatos, isso poderia levar alguns meses. Não me importei com esta perspectiva. Sempre repetia, para mim mesma, que não importava o que fosse acontecer. Alguma coisa aconteceria, como sempre acontece, do jeito que deve acontecer. Enquanto esperava, comecei a ter aulas particulares para desenferrujar o francês. Achava que poderia ser enviada para um país de língua francesa. Recebi materiais adicionais sobre o trabalho da e na ONG e me dediquei a estudá-los com bastante atenção. Comecei a providenciar os documentos complementares solicitados e preparei uma espécie de arquivo impresso para enviar ao Escritório. sonhos QuE sE realiZam6 Wontanara: estamos juntos? 39 Havia passado um mês, aproximadamente, e eu estava com outra viagem agendada para o Rio. Assim, resolvi fazer contato com os responsáveis dorecrutamento, para combinar a entrega da pasta pessoalmente, numa segunda-feira. Cheguei à cidade no final da semana e, domingo à noite, tive um sonho: eu entrava no escritório da Organização, sendo recebida por um dos responsáveis, que me dizia: “Muito bem, temos uma surpresa para você. Encontramos uma missão que precisa de profissional com o seu perfil. Mas é num país da África, e você precisa partir dia 15 de novembro!”. Acordei com o coração batendo mais forte do que os tambores de Angola! O sonho parecia extremamente real, daqueles em que você sente até o cheiro das coisas. Os detalhes da sala eram vivos demais. Entretanto, como psicóloga, eu não podia ignorar as reminiscências do dia anterior. Afinal, eu estava no Rio, com a minha pastinha de documentos na mala e a entrega agendada. Esperava ser chamada. Era natural que meu sonho expressasse o desejo de partir em missão. Quanto à sala, eu já havia estado ali antes e guardava as informações na minha memória. Sobre o país, quando fiz minha inscrição no processo seletivo, registrei como preferência projetos na África, Oriente Médio, Ásia e América Latina. Exatamente nesta ordem de interesse. Por isto, um país da África não era nenhuma surpresa, já que o inconsciente é porta-voz de nossos anseios mais íntimos. Levei pouco tempo para recuperar o fôlego e colocar os pés no chão. Precisei pular da cama rapidamente para atender o telefone. Do outro lado da linha, uma das pessoas da ONG perguntava se eu já havia chegado no Rio e quando passaria por lá, pois precisavam conversar comigo. Meu corpo arrepiou todo e corri para o Escritório, a quatro estações de metrô. Mas àquela altura, já sabia o que estava para acontecer. Era só uma questão de chegar lá. Entrando na sala, dessa vez foi minha alma que arrepiou. Tudo parecia exatamente do jeito que sonhei, inclusive os Wontanara: estamos juntos? 40 móveis. Na época do recrutamento, a disposição era outra, o que tornava meu sonho ainda mais significativo. Emocionada com minhas constatações, recebi a notícia de que havia um projeto disponível para o meu perfil. O país de destino era de língua francesa, ficava na África ocidental e, se eu aceitasse o trabalho, teria que partir no início de novembro. Se eu aceitei? Sequer cogitei recusar. Estava pronta para partir. Tudo aquilo fazia sentido na minha história e representava apenas mais uma peça do dominó se movendo. Eu só precisava me entregar, no fluxo dos acontecimentos. E foi o que eu fiz. Em menos de um mês, solucionei todas as minhas pendências e ainda fui para Machu Picchu, com meu filho. Uma dessas viagens eternizadas na memória da alma, pela qualidade do afeto e do reencontro com o sagrado. Três dias caminhando na trilha dos Incas foi a medida certa, antes de partir para a África. Mas isto é uma outra história. Wontanara: estamos juntos? 41 Capítulo 7 Wontanara: estamos juntos? 42 Estava prestes a fazer uma mudança importante, de país e de trabalho. Morar nove meses em Conakry, na República da Guiné, e trabalhar numa ONG que eu desconhecia. Os amigos que acompanham meus passos sabem: mudança é palavra-chave, minha força motriz. Em constante movimento, tenho experimentado a vida nas suas diferentes perspectivas e aproveitado as oportunidades para alargar meus horizontes. Nem sempre consigo mudar, dentro e fora de mim, o que penso ser necessário. Mas pelo menos me lanço na roda do mundo e procuro girar com a energia transformadora. Mudança, com o objetivo de aprimorar aquilo que somos, é sempre muito saudável. Levanta nosso astral, sacode a poeira e nos faz enxergar melhor a nós mesmos e ao mundo onde vivemos. Mudança, quando aproveitada na sua essência, nos tira da zona de conforto e impulsiona a novos aprendizados. Mudança é experimentar a si mesmo e o fluxo da vida em si mesmo. Às vezes, provocada por fatores externos; outras, por motivações internas; e, em algumas situações, pela combinação destas variáveis. Difícil definir o meu caso. mEu soBrEnomE? metamorfose7 Wontanara: estamos juntos? 43 Quando contava para as pessoas sobre as coisas que ainda estava para viver, algumas me diziam: “Espero que você encontre aquilo que busca”. Outras se solidarizavam: “Tomara que você se encontre” ou “que você se realize”, ou mesmo “que você encontre a felicidade que procura”. Embora eu entendesse o sentido positivo que as pessoas atribuíam às suas falas e percebesse a torcida delas pelo “sucesso” das minhas empreitadas, me inquietava com o eco que essas colocações provocavam dentro de mim. Ficava me perguntando: “Seria possível uma pessoa ainda transitar neste planeta sem estar buscando alguma coisa? O que o fato de já me sentir realizada com a vida faz de mim: uma pessoa que não sabe reconhecer seus vazios e se coloca na busca permanente do Todo ou uma pessoa em paz com os vazios que a definem e que se coloca à disposição do Todo?” Lembro-me de um período de noites escuras e provações, numa época em que eu estava sempre correndo atrás da felicidade, mas não a encontrava. Fazia muitas coisas, e nada. Experimentava várias coisas, e nada. Atribuía a responsabilidade pela minha realização e felicidade a tudo e a todos que estavam ao meu redor e, óbvio, nada. A felicidade nunca estava presente e sempre parecia algo a ser alcançado num futuro qualquer. Custou muito (em vários sentidos!) para que eu, finalmente, entendesse o significado de Felicidade. E quando compreendi realmente o seu lugar, passei a Ser Feliz, permanentemente. Sem dúvida, fico triste com os antagonismos e desequilíbrios que permeiam nossas sociedades. As adversidades da vida me mobilizam profundamente. Mas me sinto feliz mesmo assim. Seria a felicidade plena, ou qualquer outra plenitude, apenas uma ilusão? Ou simplesmente podemos defini-la como “o estado da alma que encontrou, dentro de si, o amor incondicional e tenta romper com as fronteiras geofísicas da sua condição material”? Entendo que nenhuma doença, nenhum problema material ou dificuldade profissional, nenhum desentendimento pessoal ou desencontro afetivo, podem tirar de alguém a condição de Ser Feliz. Chamo isto de “felicidade sem fronteiras”. E Wontanara: estamos juntos? 44 minha alma é Feliz! Por esta razão, meus movimentos significam para mim muito mais do que a busca da felicidade. Reconheço-os como “sonhos que transcendem a esfera do ideal, para se concretizarem na realidade da minha alma”. Do racional abstrato para o palpável, com os braços do coração. E, assim, me deixo abraçar por essas oportunidades, como uma filha que recebe do Sagrado um presente de proporções eternas. Entrego todo o meu Ser à certeza da ressonância espiritual que essas experiências implicam. Acolho a metamorfose e agradeço. Deixo crescer dentro de mim um sentimento forte de responsabilidade por Ser Feliz e de compartilhar isso ao meu redor, onde quer que eu esteja. E agradeço mais uma vez. Permito que meu pensamento seja inspirado pelo conhecimento e vivência de outras pessoas, tomando para mim suas lições de humildade e determinação. E agradeço eternamente. Coloco-me a serviço do que se direciona a mim, confiando e reconhecendo sua sincronia com o Universo. E então concluo: não há busca; apenas, realização! Havia chegado a hora. Para aqueles que compartilhavam o mesmo caminho ou os seus atalhos, cabia registrar o meu carinho e apenas solicitar para me manterem em seus radares. Em breve eu partiria, mas manteria suas lembranças como uma luz acesa dentro do meu coração, finalmente africano! Wontanara: estamos juntos? 45 Capítulo 8 Wontanara: estamos juntos? 46 A República da Guiné, quando comparada ao continente africano, permanece quase despercebida. Embora não seja muito pequena, é necessária uma boaescala para notarmos mais facilmente sua localização no mapa. O país faz fronteira com a Guiné Bissau, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa, o Senegal e Mali, além do Oceano Atlântico. Seu território é configurado em quatro regiões: Alta Guiné, Guiné Média, Guiné Marítima ou Baixa Guiné e Guiné Florestal. Do ponto de vista administrativo, essas regiões subdividem- se em oito, nas quais constam 33 prefeituras, 38 comunidades urbanas, mais de 300 subprefeituras e comunidades rurais. Mesmo depois de viver onze meses na Guiné, não consegui compreender exatamente como é segmentada sua política. Só consigo resumir dizendo que o país tem um governo federativo, com presidente e primeiro ministro, mas ainda não se estabilizou; já foi palco de golpe militar e conflitos étnicos importantes; a marcha rumo à democracia ainda é lenta; a eleição presidencial deveria ter ocorrido no ano em que cheguei (2011), mas limitou-se à promessa dos governantes. PEQuEno País GrandEs desafios 8 Wontanara: estamos juntos? 47 No total, são aproximadamente dez milhões de habitantes dos quais, dois milhões se concentram na capital, Conakry. Existe mais de trinta dialetos em todo o país, predominando quatro etnias: soussou, poular, malinké e forestier. A língua oficial, entretanto, é o francês, em função da sua colonização pela França. Praticamente 95% dos guineenses são muçulmanos e 5% professam outras religiões, em especial o catolicismo e a religião evangélica. O clima tropical faz a temperatura permanecer quase sempre elevada (a média varia entre 29°C e 35°C), com muita umidade. Os meses de novembro a maio são os mais quentes. No período de junho a outubro chove bastante, e o calor ameniza um pouco. A falta de estrutura das vias públicas e as condições precárias de saneamento básico ajudam a piorar o cenário, na época das chuvas, contribuindo para aumentar as inundações constantes e provocar surtos de doenças, principalmente o cólera. A Guiné é rica em ferro, diamante, ouro, bauxita e urânio. Entretanto, a taxa de desemprego é alta. O mercado informal, porém, tenta equilibrar o orçamento doméstico, permitindo a sobrevivência das famílias. O comércio ambulante é especialmente difundido na capital, que concentra um dos maiores mercados na região da África ocidental. Por onde se passa, encontramos pessoas (principalmente mulheres) com suas bacias e/ou cestos sobre a cabeça, vendendo comida e produtos industrializados. Culturalmente a diversidade é grande, pois em cada região são adotados costumes particulares em relação a modo de se vestir, gastronomia, música, artesanato, entre outros hábitos sociais. Por outro lado, a taxa de analfabetismo é enorme: apenas 30% dos adultos sabem ler e escrever. O IDH da Guiné é um dos piores do ranking e mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza. É uma nação jovem (42% da população tem menos de 15 anos), com baixa expectativa de vida (54 anos). Imaginem, eu estava com quarenta e sete anos quando cheguei na Guiné, ou seja, muito perto da idade de ser considerada uma “sobrevivente anciã”. Wontanara: estamos juntos? 48 Wontanara: estamos juntos? 49 Em média, são registrados cinco filhos por família. O status social da mulher permanece no limbo. Há uma feminilização da pobreza e do HIV/AIDS. Neste último caso, a prevalência não é oficialmente expressiva (1,5% no país, 2,1% na capital) e ainda não existe um programa nacional inteiramente gratuito para a população. A dupla estigmatização/discriminação resiste como forte inimiga dos guineenses infectados pelo vírus e alguns costumes agravam ainda mais sua propagação: cerca de 96% das mulheres são excisadas5 ; o regime da poligamia, permitido entre os muçulmanos, favorece a contaminação (lembrando que, na Guiné, o homem pode se casar com até 4 mulheres). Embora as adversidades sejam rotineiramente significativas, há uma aura de alegria no cotidiano guineense: o colorido das roupas, os panos que enfeitam as cabeças das mulheres, o sorriso sempre estampado no rosto, a movimentação nas ruas, a comilança desde as primeiras horas do dia. Para além da visível pobreza e precariedade de recursos materiais, encontramos a gentileza natural no aperto de mão, que é, impreterivelmente, acompanhado pelo nosso primeiro nome. Neste mundo, aparência e essência brigam entre si nas diferentes horas do dia, mas, no cômputo geral, é o encantamento pela alma humana que prevalece. 5. Excisão feminina significa cortar e costurar, total ou parcialmente, os genitais da mulher. Também conhecida como “mutilação genital feminina”. Wontanara: estamos juntos? 50 Capítulo 9 Wontanara: estamos juntos? 51 “Base para 106... Base para 106!” “Copiado 106.” “Estamos saindo do aeroporto, em direção ao escritório central. Motorista e Andrea estão no carro. Câmbio!” “Okay 106, bem entendido, Câmbio.” E assim partimos, o motorista e eu (agora com uma nova identidade: expatriada6), numa daquelas camionetes brancas grandonas, inaugurando a temporada de eventos atípicos, para mim. Independente da distância ou finalidade, a conduta para todos os deslocamentos feitos com o veículo da Organização era essa: você chama a Base pelo rádio, informa o número do veículo, de onde sai, para onde vai e o nome dos passageiros. Mas se você mudar o destino ou fizer alguma parada, durante o percurso, também precisa comunicar o operador do rádio. No aeroporto a espera para passar pela imigração havia sido diferente e longa. Entre tantas filas, acabei ficando por último dEsEmBarCando no Campo9 6. Termo utilizado para se referir aos estrangeiros trabalhando num país diferente de sua origem. Wontanara: estamos juntos? 52 (que novidade!), o que me deu a chance de observar toda a movimentação. Um vai-e-vem de pessoas acompanhadas por policiais (aliás, de quem pareciam muito amigas), furando a fila para se registrar no guichê dos agentes federais. Fiquei com a impressão de que havia algum favoritismo no procedimento, mas permaneci tranquila e calorenta. Após ver várias pessoas sendo maltratadas só porque haviam ultrapassado a linha vermelha traçada no chão, com a palavra “stop”, concluí que era mais prudente aceitar a lentidão do processo. Depois veio o “desembaraço” da bagagem, me lembrando de alguns aeroportos do Brasil, antigamente. Eles também tinham fiscais que conferiam seu ticket de bagagem e só então entregavam seus pertences. Como disse o funcionário do aeroporto, “assim é mais seguro e ninguém troca ou rouba sua mala”. Mas tanta precaução favorecia outro propósito, direcionado firmemente ao nosso bolso: “Pas de cadeau, madame?” 7 Pronto, também começava a “temporada da barganha”! Recordo de quando fui ao Egito e tudo funcionava dessa forma. Em Angola, o padrão era o mesmo. Mais recentemente, no Peru, a experiência se repetiu. A barganha é quase como um ato obrigatório. Faz parte do código cultural global e é praticada por todo mundo, nos diversos lugares e situações. Portanto, espera-se que você também adote esse comportamento. Ou seja, não existe compra sem uma negociação acirrada. Quando se trata de pedir propina, é bom você entrar no jogo do “Ahn? Não entendi!”, caso contrário sempre vai desembolsar um bom dinheiro para “presentear” todo mundo. No caso das compras, sou a favor de não pechinchar. Mas aprendi a ficar esperta e somar os valores rapidamente, para diminuir o risco de pagar mais do que o devido. Voltando ao itinerário inicial, depois de alguns minutos de congestionamento e buzina ecoando intensamente, chegamos à sede da ONG, ao lado do alojamento onde eu permaneceria pelo resto do período. Mochila para lá e para cá, fui instalada e voltei ao escritório. Por coincidência, a coordenadora do projeto encerrava suamissão e havia uma festa de despedida. 7. Expressão francesa que significa “sem presentinho, senhora?” Wontanara: estamos juntos? 53 Quase todos os expatriados e o staff nacional estavam presentes, o que foi ótimo para conhecê-los. Senti-me um pouco perdida com tantas apresentações, mas foi divertida a interação. Até dancei em ritmo africano! No dia seguinte, e até mesmo nas semanas seguintes, fui incapaz de repetir o nome daquelas pessoas. Realmente eram muitas, a música estava alta e os nomes guineenses são bem diferentes dos brasileiros. É horrível quando você reencontra a pessoa e não lembra se já haviam sido apresentados, muito menos qual o nome dela. Mas o fato é que os cidadãos guineenses são muito parecidos entre si. Tirando as mulheres, que dá para distinguir bem por causa das roupas (maravilhosas, diga-se de passagem!), os homens têm uma feição muito similar. Primeira dificuldade a ser superada no decorrer dos nove meses de missão. Algumas poucas horas depois de chegar à festa, o cansaço me convidou para bater em retirada. Voltei ao alojamento e, surpresa... não tinha mais água. Já prevendo essa possibilidade, havia tomado um “último-belo-banho” em Bruxelas, onde fiquei por alguns dias lidando com questões administrativas na sede da ONG. Então, nada que um punhado de lenço umedecido não desse conta de disfarçar. Tomar banho de gato é uma lição aprendida nas minhas expedições para a Amazônia. Essa não era a minha primeira vez. Como dizia uma amiga apaixonada pelos seus felinos, “os gatos são bem limpinhos e higiênicos”. Voilà! O alojamento era bem agradável, com estreita vista para o mar. Um prédio de estilo árabe e pé direito alto, causando a sensação de ser amplo. Tinha três andares: um apartamento em cada piso, destinado a três expatriados cada um, já que contava com três quartos individuais. Os apartamentos eram equipados com cozinha, copa, sala de estar e varanda. Parte do mobiliário era fornecido pelo proprietário e a outra parte ficava a cargo da ONG. Wontanara: estamos juntos? 54 Wontanara: estamos juntos? 55 Durante a semana, o almoço era preparado por uma cozinheira contratada pelo projeto e servido, no refeitório do nosso escritório, para todos os funcionários que cotizavam os custos. Cabia aos expatriados providenciarem o café da manhã, jantar e refeições do final de semana, se organizando individualmente ou em parceria com os demais colegas do alojamento. Como aterrissei em solo guineense no começo da noite de uma sexta-feira, só comecei a me inteirar do trabalho na manhã da segunda. Fui logo aprendendo que no final de semana a maioria dos expatriados aproveitava para descansar. Ritmo que não consegui respeitar. Mas, ainda assim, eu me obrigava a fazer algumas brechas refrescantes na piscina para aplacar o calor. Para resumir as impressões gerais do primeiro contato: Viva! Estava tudo certo! Finalmente em solo africano! As pessoas eram realmente simpáticas e, surpreendentemente, a estrutura da ONG era excelente! Conakry mais se assemelhava a um canteiro de obras: “ótimo, o país está em expansão!”, deduzi. O trânsito caótico e com pouca sinalização (eles se entendiam com os gestos e, principalmente, as buzinas) fazia a agitação de São Paulo parecer uma brincadeira de criança. O calor era intenso (“mas, ufa... tem ar-condicionado no quarto, no escritório”, conclui esperançosa), com bastante umidade. Como em toda cidade de praia, gotejávamos! Wontanara: estamos juntos? 56 Capítulo 10 Wontanara: estamos juntos? 57 África de muitos países, com um sincretismo cultural extraordinário, apesar da grande disputa de governos. Sem sombra de dúvidas, uma descrição rica sobre este continente pode ser encontrada no livro “Candongueiro – Viver e viajar pela África”, escrito pelo jornalista João Fellet. Ele viveu algum tempo em Angola e durante cinco meses percorreu pouco mais de dez mil quilômetros, visitando um total de quase quarenta cidades, em diferentes países da África. Recomendo! Seus relatos são ricos em detalhes e retratam muitas situações similares àquelas que eu pude observar na Guiné. Em Conakry também a vida parecia acontecer, sobretudo, no espaço coletivo. Tudo se passa nas calçadas, em frente às casas. As pessoas cozinham e se agrupam na rua para comer e conversar, festejam casamentos e batizados, tomam banho de bacia, lavam a roupa, vendem coisas, cortam cabelo e amarram suas tranças... na rua! Muitas, inclusive, fazem suas necessidades fisiológicas em via pública. BEm-vIndos a Conakry10 Wontanara: estamos juntos? 58 Enquanto o lixo se acumula em determinados terrenos, os vários campos de futebol (de chão batido) estão quase sempre bem limpos e ocupados pelos jogadores. Para os guineenses, Brasil é sinônimo de Ronaldinho, Kaká, Roberto Carlos e, como não podia faltar, “Ronaldô”. Muitos, inclusive, ficaram tristes quando eu informei que o Fenômeno havia deixado o futebol, naquele ano. Os mais antigos ainda evocavam o nome do Pelé e faziam questão de registrar sua admiração pelo rei. Na primeira semana de trabalho, fiz uma visita aos cinco Centros de Saúde com os quais trabalhávamos no projeto e tive a oportunidade de passar por diferentes bairros. Quer dizer, na prática, sua estrutura é similar: as casas são mais ou menos padronizadas e as ruas, na sua maioria, sem asfalto. Durante o percurso, muitas feiras, muitas mulheres e crianças de colo. Nessas feiras abertas, podíamos encontrar de tudo. Desde alimentos até roupas e outros produtos industrializados, de uso pessoal e doméstico. As mulheres, na sua maioria, com os panos coloridos na cabeça. Dependendo do bairro, víamos mais ou menos muçulmanas de véu ou de burca. As crianças, invariavelmente nas costas das mães, sempre dormindo tranquilas, como se o mundo não existisse para além daquele corpo. Repetidamente, meus olhos eram capturados por imagens de crianças pequenas que carregavam, nas suas Wontanara: estamos juntos? 59 costas, um outro bebê (provavelmente irmão ou irmã). Era fascinante! No trânsito, muitas curiosidades. Às vezes, eles param o carro em fila tripla e ninguém mais passa na rua. Dá-lhe buzinar! Não existe ônibus municipal. O transporte coletivo é feito pelas Mabaras, como chamam as vans de lotação. Um dia vi uma delas cheia de crianças uniformizadas. Eram quase cinquenta! Nem consegui contar quantas cabecinhas avistava, tamanha aglomeração. O mesmo se repete para o transporte de carga. Os táxis, que em geral são veículos velhos, circulam com os porta-malas tão lotados, que nem podem fechar a tampa. Os pneus ficam arriados com o sobrepeso. Por mais surreal que possa parecer, vi um deles transportando um boi inteiro, amarrado pelas patas e com a cabeça ligeiramente tombada. Imagino que o boi estivesse morto. Pobre coitado. Tomara mesmo que tenha sido um boi morto! Os primeiros quinze dias voaram. O trabalho fluía tão tranquilamente quanto a interação com o staff nacional e expatriados. As dificuldades iniciais com a língua e o impacto do calor logo cederam espaço para contemplar a convivência com os guineenses. Na maior parte dos dias, eu custava a pegar no sono, porque o coração não parava de pular de alegria e de sorrir me dizendo: “Obrigado por essa oportunidade!” Wontanara: estamos juntos? 60 Wontanara: estamos juntos? 61 Capítulo 11 Wontanara: estamos juntos? 62 No dia primeiro de dezembro daquele ano realizamos um grande evento de sensibilização em favor da luta contra a estigmatização e a discriminação de pessoas vivendo com HIV/AIDS. Promovemos várias palestras ao longo do mês, visitando escolas, abrigos de jovens e centros de saúde. A mensagem, além de combater o preconceito, alertava sobre os riscos de contaminação e estimulavao diagnóstico precoce entre mulheres grávidas. o taBu do hiv/aids na GuIné 11 Wontanara: estamos juntos? 63 A população tende a ignorar os cuidados básicos de proteção e a observância do tratamento quando descobrem sua soropositividade. As razões para isto compõem uma rede complexa de fatores culturais, sociais, políticos e econômicos. O país não conta com uma política de saúde efetiva no caso HIV/AIDS, embora exista um plano nacional elaborado de forma abrangente e competente. Na prática, as pessoas infectadas pelo vírus devem pagar pelo tratamento, o que representa uma fortuna. Todo serviço de saúde é pago. Existem centros de saúde privados, confessionais (de organizações e/ou fundações da sociedade civil) e estatais, mas mesmo nesses últimos a assistência é cobrada, pois cada centro deve se autofinanciar por meio dos serviços prestados. Ou seja, não existe um plano social subsidiado. Independente da gratuidade oficialmente declarada, a disponibilização dos medicamentos não é assegurada: falta importação e distribuição equânime. Do ponto de vista sociocultural, a coisa se complica ainda mais. Semelhante ao efeito dominó, uma variável puxa outra e juntas formam uma bola de neve capaz de propagar o vírus e comprometer a adesão ao tratamento. Muito resumidamente (e correndo o risco de não estar percebendo corretamente o cenário), ali uma pessoa diagnosticada HIV+ tem grandes dificuldades para anunciar sua condição, inclusive entre familiares. Motivos... variados! Ponto comum: a discriminação, a reclusão, o medo. Quando a família é muçulmana, isso pode significar a completa exclusão da mulher. Ela é pressionada até o ponto de perder o direito sobre os filhos. Já o homem, ele teme o conflito entre suas diferentes esposas. Nos dois casos, não há sexo seguro, o que leva à contaminação de vários adultos do mesmo grupo. Sem contar as crianças geradas no anonimato da soropositividade. Porém, o problema de esconder a condição de HIV+ não existe apenas entre os muçulmanos. O mesmo se passa com famílias de outras religiões e, no geral, há muitos (muitos!) casos de abandono, divórcio, rejeição e suicídio. Wontanara: estamos juntos? 64 Ao esconder sua soropositividade, a pessoa vive um pesadelo ainda maior (o peso do diagnóstico e a reclusão social) e também tem mais dificuldade para seguir corretamente seu tratamento. Seja por conta do dinheiro necessário para comprar a medicação ou porque precisa justificar o fato de tomar remédio, aos familiares e amigos da sua convivência. Mesmo no caso do nosso projeto, em que tudo era gratuito (diagnóstico, consultas médicas, acompanhamento psicossocial, exames, medicação e internação sempre que necessário), a adesão ao tratamento representava um dos pontos mais sensíveis. Frequentemente, as pessoas relatavam que preferem esconder a medicação para tomá-la longe dos olhos dos outros. Levem em conta que a vida por lá é muito coletiva e compreenderão, de relance, o quanto isso complica a manutenção dos horários e a frequência com que ingerem corretamente os comprimidos. Resultado: o tratamento não funciona como esperado, inclusive podendo elevar a carga viral no organismo. O problema se estende também para o nível clínico. É comum o fato de pessoas soropositivas não assumirem isso frente ao cônjuge também soropositivo e manterem relações sexuais sem proteção. Resultado: reinfecção, mutação do vírus, aumento da resistência em relação ao medicamento anteriormente utilizado. A dificuldade do sexo protegido tem sua raiz na falta de informação sobre como utilizar o preservativo (seja masculino ou feminino), na escassez do produto de qualidade e, sobretudo, em mitos e verdades associados ao uso da camisinha: diminui a sensação e o prazer; se usar é porque está traindo o cônjuge. Para o africano adiciona-se, ainda, uma dose de machismo, pois isso é encarado como uma afronta para a sua virilidade. Mesmo algumas africanas sentem sua honra questionada: “Quem você pensa que eu sou? Não sou como essas por aí!”. Resultado: HIV 10 X 0 Proteção. Eram muitas as histórias e as justificativas. Todas denunciavam o descaso, o descuido, a desvalorização da vida e das relações humanas. E não podemos pensar que isto ocorre somente entre as pessoas soropositivas. Estamos todos implicados Wontanara: estamos juntos? 65 nessa teia. Como eu nunca havia trabalhado diretamente com pessoas que lidam com o HIV no seu dia a dia, não saberia dizer, mesmo hoje, como as coisas acontecem em outros países. Porém, imagino que tudo isto não seja uma prerrogativa da Guiné. Reforçando o coro, o maior problema não é o vírus em si. Ele pode ser controlado e representa apenas a ponta do iceberg! Wontanara: estamos juntos? 66 Capítulo 12 Wontanara: estamos juntos? 67 Assim comecei minha primeira reunião com o staff psicossocial do projeto, provocando um burburinho entre os presentes. No início da temporada encontrava dificuldade para discernir quando eles falavam em francês ou no dialeto local, pois misturavam as línguas numa mesma frase. Naquele dia, a equipe também reagiu como se não entendesse muito bem que eu tentava falar no dialeto soussou. Quando compreenderam aqueles sons, mesmo carregados de um sotaque desconhecido, todos demonstraram entusiasmo. Foi muito divertido. Desejava agradecê-los por estarem todos ali, acolhendo mais um expatriado chamado a colaborar com o projeto. Queria sinalizar meu esforço para apreender sua realidade e compartilhar minha intenção de abrir nossos horizontes para o trabalho da equipe. A mensagem deveria sublinhar também minha posição de aprendiz. WONTANARA 12 Ikhéna Wonouwali Wotobarafa MBaraGnakhalin Wontanara Bom dia Agradeço a presença de vocês Estou feliz por estar aqui Estamos juntos Wontanara: estamos juntos? 68 Em meio à emoção de começar o trabalho, após quase vinte dias de passassion8 , mal podia acreditar que estava ali, naquela sala de reuniões, misturando soussou com francês para falar de temas tão familiares dentro da minha experiência profissional. As perspectivas se mostravam realmente positivas e estimulantes. Minha equipe era composta por quinze guineenses, sendo dois assistentes sociais; uma enfermeira responsável pela testagem de novos casos; cinco pacientes cuja função era sensibilizar outros pacientes e a comunidade, através do testemunho; seis conselheiros, a maioria com formação em sociologia; e um assistente de coordenação. Formavam um grupo forte, dinâmico, interessado e motivado. Muitos deles já participavam do projeto algum tempo e conheciam bem as necessidades dos pacientes. Quando cheguei, as atividades ainda eram desenvolvidas isoladamente. Faltava interação com os outros componentes do projeto (enfermeiros, médicos, parteiras) e a dimensão interdisciplinar do trabalho ainda carecia de reforço. A descentralização dos serviços oferecidos no Centro Comunitário de Saúde para as unidades de saúde, em diferentes bairros, começava a exigir mais atenção. Havia muito trabalho pela frente. Depois de ir e vir em todos os serviços e trocar ideias com os demais profissionais do projeto, também apresentei duas propostas para o período da minha missão. A primeira, nacionalizar a minha função, significava fazer um coaching com o meu assistente. Devidamente preparado, ele poderia assumir a gestão do nosso departamento, dispensando a contratação de outro expatriado para o cargo. Tratava-se de um sociólogo guineense supercompetente e sensível. Uma daquelas almas íntegras que Deus coloca no mundo para fazer diferença ao seu redor. A segunda, organizar o departamento psicossocial de forma integrada e articulada com os demais setores, representava um desafio maior. Havia pouco compromisso dos parceirose a política local na área de saúde dificultava bastante. Por outro lado, o potencial da equipe psicossocial ajudaria a superar as barreiras externas. 8. Expressão usada no projeto para definir o período de repasse de informações e orientações entre o expatriado em fim de missão e o recém- chegado. Wontanara: estamos juntos? 69 Para quem conhece um pouco o meu jeito de trabalhar, facilmente imagina como eu me sentia em casa. Esse projeto era a minha cara. Wontanara! Assim eu me reconhecia por lá: junto com o grupo, compartilhando o ideal do trabalho, em solo africano. Eu fazia parte daquele mundo. Durante todo o período da minha missão, consegui realizar várias coisas com a equipe. Entre reuniões de trabalho e encontros sociais, fomos encurtando a distância e nos tornando mais íntimos. Com cada um, sem exceção, tive encontros fraternos. Não tenho nenhuma dúvida sobre a benção que eles representam na minha trajetória. A tendência de aconchegar as pessoas com alguma palavra de conforto, sem perder a oportunidade para tocar seu coração e motivá-las para a vida, logo me rendeu fama. Em pouco tempo, ganhei o apelido de mamie9 entre os membros da minha equipe. Este jeito carinhoso foi rapidamente adotado pelos colaboradores guineenses dos outros departamentos e, sem que eu percebesse, até alguns expatriados passaram a utilizá-lo. Sentia um respeito profundo pelo staff nacional e sabia que a recíproca era verdadeira. Estabelecemos um laço de amizade que permanece forte até o momento. Eles fizeram uma enorme diferença em meu ser e, quanto mais eu entendia a preciosidade daquelas pessoas, mais eu me sentia honrada por aquela oportunidade. 9. Expressão francesa que significa “vovozinha”. Wontanara: estamos juntos? 70 Capítulo 13 Wontanara: estamos juntos? 71 Quando fui para a Guiné, a ONG executava dois projetos no país, ambos voltados para pessoas vivendo com HIV/ AIDS. Um deles era desenvolvido numa cidade do interior e o outro, do qual eu fazia parte, acontecia na capital. A sede da coordenação geral também ficava em Conakry, onde se concentravam as atividades administrativas e estratégicas de âmbito nacional. Nosso projeto tinha sede e equipe de coordenação próprias. Cada departamento contava com um escritório e compartilhávamos a sala de reuniões, utilizada ainda como refeitório, já que almoçávamos nela todos os dias. Nossas atividades de campo aconteciam no Centro Médico Comunitário e em cinco unidades de saúde. Fazíamos deslocamentos todos os dias para trabalhar nesses locais. O Centro Médico equivale a um hospital de pequeno porte e oferece os seguintes serviços: pronto socorro, hospitalização, centro cirúrgico para intervenções menos complexas, maternidade, pediatria, nutrição, vacinação, ambulatório de tuberculose (CAT), ambulatório de HIV/AIDS (CTA), dEsaFIos E oportunidades13 Wontanara: estamos juntos? 72 laboratório de análises, farmácia e centro de testagem voluntária (CDV). Estrutura similar a uma combinação dos postos de saúde com os centros especializados e os ambulatórios médicos dos hospitais gerais. As unidades de saúde seguem mais ou menos esse padrão, exceto pelo centro cirúrgico, o laboratório de análises e o CAT. Por estarem localizadas no interior dos bairros, parecem com as unidades de saúde brasileiras. Por outro lado, a maternidade é uma realidade à parte. Funciona da mesma forma em todas as estruturas, seja de grande, médio ou pequeno porte. Raramente fazem cesariana. Os partos são auxiliados por parteiras e os obstetras atuam somente em casos de complicação. Nas unidades de saúde, quando necessária a intervenção cirúrgica, a mulher é imediatamente transferida para um centro médico maior. Se o parto é normal, a mãe e a criança recebem alta no mesmo dia, dependendo da hora em que ocorre. Fiquei impressionada com a movimentação da maternidade nos serviços de saúde. Só perdia mesmo para a quantidade de atendimentos da ala pediátrica, esta sim, surreal. No projeto da ONG, desenvolvíamos atividades com as parteiras responsáveis pelo acompanhamento das gestantes. O teste para identificar a sorologia não fazia parte do protocolo de pré-natal e, por razões culturais e políticas, um número muito reduzido de grávidas se dispunham a fazê-lo. Nosso trabalho, então, consistia em estimular a realização do teste e, em caso de HIV positivo, as mulheres eram encaminhadas para consulta médica especializada, visando ao tratamento medicamentoso e psicossocial necessário. Quando ela entrava em trabalho de parto, aplicavam-se os cuidados diferenciados e a criança ingressava no programa de monitoramento, até o diagnóstico conclusivo da sua sorologia. Para todos os pacientes (mulheres grávidas, demais adultos, jovens e crianças), o protocolo incluía diferentes atividades psicossociais, mas nem todas estavam devidamente implantadas nos serviços de saúde parceiros. Essa era uma das metas da minha missão. Wontanara: estamos juntos? 73 No momento em que assumi, apenas o Centro Médico Comunitário contava com o pacote completo e as atividades se concentravam no CAT e no CTA. No primeiro ambulatório, fazíamos uma sensibilização10 na sala de espera, incentivando os pacientes com tuberculose a procurarem o CDV. Da mesma forma, se o resultado fosse positivo, a enfermeira da equipe encaminhava a pessoa para o CTA. E era nesse ambulatório que passávamos a maior parte do tempo. Ali realizávamos as consultas médicas, os atendimentos psicossociais e, numa sala anexa, as reuniões de grupo terapêutico. Já nas unidades de saúde dos bairros, dispúnhamos de consultórios pequenos, o que restringia um pouco nossa ação. Na época, realizávamos somente as sessões individuais de aconselhamento e as palestras em sala de espera, mas caminhávamos firmes no propósito de ampliar o espaço com as atividades grupais. Basicamente o departamento psicossocial se responsabilizava pelas seguintes tarefas: realização do pré-teste, teste do HIV (em parceria com a enfermagem) e pós-teste; sessões de aconselhamento para início do tratamento com os antirretrovirais; sessões de aconselhamento para reforçar a adesão ao tratamento; sessões de escuta-ativa; grupos de educação terapêutica com crianças, jovens e adultos; sensibilização na sala de espera; assistência social (benefícios e acompanhamento hospitalar). No Centro Médico Comunitário contávamos com um grupo especialmente formado para essas práticas, mas nas unidades de saúde ainda precisávamos desenvolver mais as habilidades das equipes locais. Todas as atividades eram realizadas por “Mediadores” com formação escolar bastante limitada. Alguns deles já trabalhavam na unidade e foram designados para o atendimento psicossocial. Em outros casos, membros de alguma associação de pessoas vivendo com HIV/AIDS passaram a colaborar com o projeto, desempenhando esse papel. As condições de trabalho em cada serviço variavam pouco. Mesmo sendo instituição de saúde, em geral, os serviços 10. Conversa/palestra curta sobre determinado assunto, com o objetivo de informar e/ou despertar a reflexão dos participantes. Wontanara: estamos juntos? 74 parceiros não dispunham da estrutura sanitária adequada. Faltava água e higiene básica. Nosso staff responsável pelo controle de infecção ficava em estado de polvorosa, pois realizavam inúmeras formações com os higienistas e, ainda assim, não conseguiam obter o resultado pretendido. Várias unidades de saúde sem eletricidade e sem esgoto adequado, tornavam um pouco mais complicado o processo de melhoria do atendimento. A presença do comércio ambulante de comida na frente dos estabelecimentos e/ou dentro do pátio aumentava, significativamente, a sujeira. Ao longo do dia, o lixo se acumulava, pois as
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