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wontanara - Andrea Silveira

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Andrea Silveira
Wontanara:
estamos juntos?
1a Edição
São Paulo
2014
O trabalho “Wontanara: estamos juntos?” de Andrea Silveira está licenciado com uma 
Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Brasil.
Baseado no trabalho disponível em: http://www.wontanara.com.br.
Capa e projeto gráfiCo
Wedologos
fotografias
Fabio Biolchini
Letícia Passowski
Lysanne Lafetière
Andrea Silveira 
Juliane Raoul 
Jessica de Menezes
freepik.com
revisão
Guilherme Valle 
Luciene Xavier de Siqueira 
Oficina de Literatura Cairo Trindade
tradução para o franCês
Maria Luisa Dominici Cunha 
Alexis Gourdol
editoração eletrôniCa
Wedologos
endereço para Contato
www.wontanara.com.br
andreasilveira@wontanara.com.br
prefácio ...........................................................................................................10
antes mesmo de começar ..................................................................14
1. Quando eu crescer... ................................................................................17 
2. encontrando minha vocação ..............................................................21
3. o salto quântico .........................................................................................25
4. We plan as we go ......................................................................................29
5. o mundo em guerra e a proposta de salvá-lo ........................33
6. sonhos que se realizam .........................................................................37
7. meu sobrenome? metamorfose! .......................................................41
8. Pequeno país, grandes desafios ........................................................45
9. Desembarcando no campo .................................................................50
10. Bem-vindos a Conakry ........................................................................56
11. o tabu do HIV/aIDs na Guiné .......................................................61
12. Wontanara ..................................................................................................66
13. Desafios e oportunidades ..................................................................70
14. Humanitarismo ou dominação maquiada? ............................76
15. uma babel sem fronteiras .................................................................81
SUMÁRIO
SUMÁRIO
16. Lá se foram quatro meses .................................................................86
17. enquanto isso, a vida acontece lá fora ......................................90
18. nem tudo é resistência ........................................................................94
19. um jardim para a esperança ..........................................................98
20. a cor da África ......................................................................................104
21. a peculiaridade do marché madina .........................................108
22. mulheres, mães e as amazonas da Guiné ...........................112
23. tambores mágicos ...............................................................................119
24. De volta ao dilema da cultura .......................................................123
25. a pedra no lago ....................................................................................128
26. sobre morrer, já que a morte não existe ................................133
27. Reclusão compulsória ........................................................................138
28. Quase a quarta esposa, eu?! .......................................................142
29. Ils sont où les noirs? ...........................................................................147
30. Paralisada pelo paradoxo ...............................................................151
31. Finalizando, à sombra do idealismo ........................................156
agradecimentos ........................................................................................160
Wontanara: estamos juntos? 7
Wontanara: estamos juntos? 8
Aos meus queridos amigos da Guiné, 
tambores que continuam tocando meu coração.
Wontanara: estamos juntos? 9
C’est une vérité évidente que personne ne viendra 
développer notre cher pays à notre place. Il faut 
compter sur chaque guinéen avant d’appeler les pays 
voisins, la communauté internationale avec sa 
cohorte d’organisation et d’ONG. Jeune de Guinée, 
si ce n’est pas nous, alors ce qui? Si ce n’est pas 
maintenant, alors ce quand? 1 
Ibrahim Sowh 
(um dos tambores que tocam a Guiné)
 1. É uma verdade evidente que ninguém virá desenvolver nosso 
querido país em nosso lugar. Devemos contar com cada guineense 
antes de chamar os países vizinhos e a comunidade internacional 
com sua corte de organizações e ONGs. Jovens da Guiné, se não
formos nós, então será quem? Se não for agora, então será quando?
Wontanara: estamos juntos? 10
Wontanara - estamos juntos? É o relato de uma vivência, é perspectiva, 
é comprometimento! É uma viagem pela África, uma crítica social e 
ao mesmo tempo uma proposta de ação, de amor ao próximo, unindo 
emoção e razão, vivência e conhecimento técnico. Este livro é um olhar 
para além do acadêmico, uma visão Humanista e Espiritualista da nossa 
corresponsabilidade na construção de um mundo mais justo, de uma 
vida mais digna para todos.
Antes de prosseguir, quero expressar a minha gratidão pelo convite, num 
primeiro momento, para revisar este manuscrito, não em seus aspectos 
teóricos ou linguísticos, mas naquilo com que eu podia colaborar: oferecer 
o feedback de um leitor que, apesar de nunca ter ido à África, comunga 
muitas ideias com a autora, minha amiga Andrea Silveira. Depois, num 
segundo momento, pelo convite para escrever o prefácio, o que muito 
me honrou, pois sei de seu afeto por esta obra.
De maneira imprevista e por mim não esperada, num reencontro com 
a autora, depois de quase um ano de sumiço do Brasil e após a sua 
aventura pela África, ela me deu a oportunidade de contribuir, com o meu 
olhar, para o registro da sua experiência em um projeto social naquele 
continente. Processo marcado também pelo seu desejo de sintetizar o 
momento de Vida, a história pessoal e a trajetória profissional, numa 
espécie de balanço sobre um trecho da sua caminhada – que, desde já, 
desejo que seja longa, pelo muito que ela tem a contribuir.
Wontanara – estamos juntos? Sim! Talvez eu seja a primeira feliz “vítima” 
dessa obra. Na realidade ninguém é vítima; todos nós, de alguma forma, 
somos os artífices de nossa vida, através das nossas escolhas! E espero 
que você, leitor, ao final se sinta também uma feliz vítima do encontro 
com este livro e possa responder SIM à pergunta inicial do seu título.
Certamente, este livro, que antevejo como um projeto, terá 
desdobramentos, pois possui um potencial para auxiliar a quem deseja 
participar de projetos sociais de uma maneira consequente! Sem dúvida, 
PrEFÁCIo
Wontanara: estamos juntos? 11
irá emocionar as almas sensíveis, já que foi construído com muito 
carinho. Fruto de um momento especial na vida de sua autora, dos seus 
sonhos, ideais, encontros, desencontros, realizações e fracassos, o que só 
o enriquece. É um livro com alma!
Sua obra é fruto de uma sólida formação acadêmica, de um rígido senso 
crítico e ético, de uma visão humanista e busca espiritual. Pelo menos é 
assim que vejo a autora, desde quando os nossos caminhos se cruzaram, 
intercalados de momentos distantes e outros mais próximos.
A emoção e a sensibilidade que relato no meu envolvimento com este 
seu projeto estão presentes ao longo de todo o livro, que fala de um 
certo modus operandis da autora e da sua proposta de ação social, baseada 
em afeto,na valorização do outro, no estímulo aos potenciais de cada 
pessoa, no engajamento pela construção de um mundo melhor para 
todos.
Neste início de século XXI a Humanidade e o planeta Terra se encontram 
em um momento crítico e de perigo. Aquele momento onde é real e 
muito próxima a possibilidade de autodestruição da Humanidade. 
Momento em que os valores dominantes se esgotam em si mesmo. 
Ponto onde o outrora remédio, vira veneno! Só a mudança de paradigma 
e a adoção verdadeira de novos valores poderão proporcionar uma 
saída! É real a possibilidade de destruição, mas o otimismo presente na 
visão Humanista aponta para a esperança e fé no potencial humano. O 
livro “Wontanara” toca nestas questões, ao relatar a experiência de uma 
psicóloga social num ponto da África, na Guiné, através do trabalho 
humanitário de uma ONG internacional.
A autora faz uma ponte entre culturas, comunidades e pessoas, como 
ela gosta de dizer: “construir pontes entre o abandono e o aconchego, 
entre o injusto e a igualdade de direitos, entre a miséria e a possibilidade 
de realizar sonhos”. Ponte entre culturas e visões de mundo é bem 
mais difícil do que construir uma ponte física entre dois pontos fixos 
e distantes, desafio para os engenheiros. Ponte entre as diversidades 
culturais, entre as diferenças sociais, econômicas ou educacionais, e entre 
as comunidades ou as pessoas que compõem a grande família Humana, 
é um desafio bem maior! Pois exige sensibilidade, escuta, empatia, 
compaixão, tolerância comprometimento, solidariedade. Não se tem 
fórmulas ou cálculo preciso na sua construção, muitas vezes precisa 
mais do que suor: demanda lágrimas, afeto, sorriso, gentileza, alegria.
Wontanara: estamos juntos? 12
Fiquei feliz que a autora, após conseguir transformar em um belo texto 
a rica experiência vivida, elaborou, em paralelo, o Caderno Técnico, 
propondo caminhos para uma ação social, a partir de sua visão de 
“intervenção” social, coerente com princípios éticos, com uma visão 
humanista, espiritualista e critica. Aos que se interessarem para além das 
crônicas e quiserem estar juntos em algum projeto de ação social, os 
dois livros são plenamente complementares: emoção e razão, ciência e 
espiritualidade, crítica e engajamento, noite e dia, sol e lua. Com os dois 
juntos a vivência não fica sem fundamentação e referências técnicas. O 
teórico não fica frio e vazio, ganha emoção, espiritualidade e valores.
Convido o leitor para saborear os capítulos deste livro e acompanhar, 
passo a passo, a história que levou a autora à África: suas expectativas, 
descobertas, frustrações e questionamentos. Mas, fiquem atentos 
às frases especiais e de efeito, ao longo do relato! Há muito material 
para reflexão nos momentos poéticos e belos, como um por de sol, e 
em outros, com críticas de tirar o fôlego, como um soco na boca do 
estômago dado por um pugilista profissional. Pelo menos, foi como eu 
senti! Diferentes leitores poderão experimentar diferentes emoções e 
chegar a outras conclusões. Eu sei que a mim emocionou! Me fez refletir! 
E sei que todos os que fazem parte da mesma tribo, a dos que anseiam 
por um mundo melhor e mais humano, irão se encantar.
WONTANARA!!
Guilherme Azevedo do Valle
Brasil, Curitiba, fevereiro de 2014. 
Wontanara: estamos juntos? 13
Wontanara: estamos juntos? 14
Wontanara2 é uma expressão africana que significa 
“estamos juntos”. Termo soussou, uma das etnias na Guiné3 
, amplamente utilizado pelas demais descendências do país. 
Palavra simples, carregando um universo de possibilidades 
para as relações fraternas entre povos de um mesmo país e 
diferentes continentes.
É difícil pronunciar essa palavra sem que o som não tenha 
como origem um lugar especial: o fundo do coração. Ela sai 
da nossa boca, explodindo dentro dos ouvidos do mundo, 
como fogos de artifício feitos de alegria e amor. “Estamos 
juntos” quer dizer “navegar no mesmo barco e coordenar 
os remos, de mãos dadas”. Implica nos reconhecermos em 
idêntico nível e posição, em sintonia e pé de igualdade.
Mais do que isso, Wontanara expressa o desejo genuíno de dois 
serem um só, buscando o elo comum. Traduz o testemunho 
partilhado e a cumplicidade no processo de ser e fazer. Revela 
o acolhimento da diversidade de todas as etnias, todos os 
credos. É a unidade incorruptível.
2. A pronúncia correta 
da palavra é: uontanará
3. A Guiné é também 
conhecida como 
Guiné-Conakry, para 
diferenciá-la da Guiné 
Bissau.
antEs 
mEsmo dE 
Começar
Wontanara: estamos juntos? 15
Assim, ao tentar descrever minha experiência na África, 
em apenas algumas páginas, não poderia encontrar palavra 
melhor para contemplar, com tanta qualidade e emoção, o 
que foi o meu cotidiano. Durante onze meses, não existiu 
dificuldade ou contratempo capaz de despertar em mim 
qualquer arrependimento por estar ali. Mesmo com todas 
as ressalvas e críticas sobre a intervenção institucional e as 
adversidades impostas pela realidade física do lugar, me sentia 
remando com os guineenses. 
Esta é uma história de amor, não apenas pela equipe 
maravilhosa com quem convivi. Amor que nasceu há muito 
tempo, sem eu perceber, e foi cultivado, por uma parte de 
mim, desde então. Me dei conta de que ele pulsava quando 
eu já estava instalada em Conakry, durante um seminário 
organizado com grupos de diferentes associações de apoio 
às pessoas vivendo com o HIV/AIDS. Após me apresentar, 
alguns deles perguntaram por que eu havia escolhido a África 
e, imediatamente, respondi: “Por amor. Um amor que me 
conquistou aos dez anos de idade!”
Ao voltar para o Brasil, vários amigos sugeriram que eu 
escrevesse sobre minha vivência. Inicialmente relutei. Havia 
divergido do modelo de intervenção da ONG em que 
trabalhei, tinha passado por situações delicadas no campo 
e não queria tornar públicos determinados “absurdos”. 
Somente depois de muito conversar e refletir sobre o assunto, 
entendi que não haveria mal algum em compartilhar minha 
jornada na Guiné.
Afinal, todas as vivências são permeadas de desafios e 
oportunidades. De coisas que inicialmente nos fazem mal, 
mas que depois, com o tempo, se tornam lições importantes 
para o nosso caminho. O que experimentei foi de uma 
riqueza ímpar e eu tive muito mais insights sobre a vida do que 
decepções. As ressalvas se referiam apenas a dois aspectos: 
a metodologia de intervenção e algumas contradições no 
campo da ética. Mas isso tem a ver com a minha forma 
de conceber o mundo e nossas ações sobre ele. Muitos 
voluntários viveram e continuam enfrentando as mesmas 
contingências que eu e reagiram e reagem de outras formas.
Wontanara: estamos juntos? 16
Portanto, as páginas que se seguem refletem um estado de 
alma (da minha!) muito mais do que uma verdade absoluta. 
Uma perspectiva (a minha!), muito mais que uma razão. 
Houve momentos de magia (de todas as cores!) e outros de 
puro descontentamento (organizacional). Alguns momentos 
de clareza e outros em que a realidade ficava turva demais 
para encontrar a porta de saída. Mas, em todos eles, eu não 
estava sozinha.
Minha crença espiritual me permitia reconhecer uma 
força sagrada acompanhando meus passos e estimulando 
o encontro com outras almas. Eu percebia as energias se 
convergindo, o que me possibilitou superar os desencantos e 
viver um grande amor pela África. Verdadeiras alianças, que 
me fizeram persistir no ideal humanitário.
Alguns podem tecer críticas, afirmando que estou 
supervalorizando uma experiência na Guiné, como se ela 
fosse representativa de um continente com muitos países. 
Seria um argumento legítimo, não fosse a intensidade do 
meu sentimento. Identifico-me não apenas com os soussous, 
malinkés, poulars, forestiers. Trata-se de um tipo de amor sem 
bandeiras.
Só tenho a agradecer por tudo e a todos. E esclarecer que estas 
linhas,mesmo que deixem escapar certo tom de contestação, 
representam minha maneira de honrar este coração africano.
Wontanara: estamos juntos? 17
Capítulo 1
Wontanara: estamos juntos? 18
Caminhava rua abaixo, em direção ao centro da cidade. 
Sem compromisso, sem destino certo. O plano era passar 
aleatoriamente pelas lojas para encontrar o que eu precisava. 
Mas nem lembro me exatamente o que era. Nessa altura do 
campeonato, isto não tem a menor relevância, pois esse dia 
mudaria a direção da minha vida, muitos anos mais tarde.
“No meio do caminho tinha uma pedra. / Tinha uma pedra 
no meio do caminho”. Uma pedra social. Do tipo que a 
sociedade tem costume de esconder ou ignorar. Mas o que 
fazia uma pedra no caminho do centro da cidade?
Alguns quarteirões antes de chegar no calçadão do comércio, 
passei em frente a uma casa e minha atenção foi capturada 
imediatamente. Havia uma espécie de orfanato instalado ali e 
várias crianças corriam pelo alpendre. Até aquele momento, 
não fazia ideia de que as crianças “podiam” ser abandonadas 
de verdade. Já tinha ouvido falar de instituições como aquela, 
mas nunca havia colocado meus olhos sobre uma. 
Igual a todas as crianças de classe média, numa cidade do 
Quando Eu 
CresCer 
. . .
1
Wontanara: estamos juntos? 19
interior, minha infância aconteceu na rua. Não porque meus 
pais me abandonaram ou fossem negligentes. A rua era o lugar 
onde a vida desabrochava, longe do controle dos adultos.
O contato com a realidade social era mediado pelas brincadeiras. 
Eu sabia da pobreza, da violência, da problemática social, 
do caos que poderia ser um lar desequilibrado. Isso fazia 
parte do meu contexto e relações de vizinhança. Era tudo 
“normal”. Simplesmente eu não tinha um olhar crítico para 
esses fenômenos. Por isto, como dizia Drummond, “Nunca 
me esquecerei desse acontecimento, / na vida de minhas 
retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do 
caminho tinha uma pedra.”
Mas eu era uma criança saudável e minhas retinas estavam, 
no máximo, condicionadas a ver o mundo colorido. Pelo 
menos, até eu tropeçar naquela pedra. Devia estar beirando 
os dez anos de idade. Entrei no orfanato como voluntária e 
ali resolvi: quando eu crescer, quero construir pontes entre 
o abandono e o aconchego, entre o injusto e a igualdade de 
direitos, entre a miséria e a possibilidade de realizar sonhos.
No meio do caminho, meus olhos se abriram diante do 
mundo e aprendi que a vida era muito mais complexa do 
que jogar taco na rua e mais desafiadora do que brincar 
de esconde-esconde. Embora eu já ensaiasse os primeiros 
confrontos com a realidade, por meio das minhas redações 
da escola, foi ali que o meu senso de humanismo adolesceu.
Os anos se passaram e aquela experiência social com as 
crianças do orfanato ocupou um lugar na minha memória 
remota. Por razões que ainda desconheço, minha vida de 
voluntária durou pouco. Tudo o que consigo recuperar desse 
arquivo é a imagem daquela casa azul e o registro das crianças 
em meio a uma gestão institucional questionável. Nos anos 
seguintes, minha vida foi tomada pelas tradicionais questões 
de uma adolescência rebelde e nunca mais voltei a enxergar a 
realidade com as mesmas lentes ingênuas.
A revolta se instalou no cotidiano, mas a preocupação maior 
era me adaptar ao meio ao invés de contestá-lo. Embora, 
dizem, meu poder de argumentação fosse aguçado, era mais 
Wontanara: estamos juntos? 20
fácil agir por conta própria do que lutar para ter razão. Naquela 
época, eu já deduzia: ser feliz e ter razão são, frequentemente, 
incompatíveis.
Olhando para aquele período, acho que o mais engraçado 
foi me deparar com o desejo de ser freira. Claro, minha 
motivação não era legítima e recebi orientações para canalizar 
meu potencial de solidariedade de outras formas. Foi quando 
a juventude chegou e debutou, intensamente, no curso de 
comunicação social. De repente percebi as janelas se abrindo 
no horizonte e a infinidade de coisas que precisariam mudar 
para que a nossa sociedade fosse, de fato, um espelho da 
centelha divina que existe dentro de nós.
A transformação tinha que começar dentro de mim. Por 
sorte, ou por destino, as contingências da vida se tornaram, 
gradativamente, grandes lições de amor e desamor. Elas 
retiraram, pouco a pouco, o véu de proteção que cobria meu 
ideal de sociedade. Ainda assim, eu passava a maior parte do 
tempo trabalhando no projeto de ser uma pessoa melhor e 
sobrava pouca energia para investir no projeto de salvar o 
mundo das injustiças humanas. Eu continuava procurando 
uma vocação para quando crescesse.
Wontanara: estamos juntos? 21
Capítulo 2
Wontanara: estamos juntos? 22
Com o meu histórico de vida, eu poderia ter sido a própria 
contradição ambulante. Andar descalça na praça, com o 
cabelo trançado, vestindo roupa de algodão cru e as orelhas 
enfeitadas com falsas penas de aves; colocar no pé um salto 
número dez, combinando com a bolsa e o jeans de marca, 
da última coleção para ir ao clube social. Desde a primeira 
vez que subi as escadas daquela casa azul para brincar 
com os “órfãos” até reconhecer a minha vocação, oscilei 
exageradamente pelos prováveis extremos. Sem nenhum 
arrependimento! Eu seria injusta se dissesse “pouco importa 
tudo o que eu fiz, afinal acabei me encontrando”, pois foi 
justamente esta ondulação existencial que me trouxe até 
aqui. A experimentação de todas as possibilidades permitiu 
o amadurecimento da minha vocação e também a lapidação 
de quem sou. Cada história vivida, todas as tentativas, erros 
e acertos. Detalhes pequenos, na ocasião, tornaram-se 
referência decisiva para as minhas escolhas, anos mais tarde.
Eu me lembro da regra defendida pelos meus pais para nos 
ajudar a colocar ordem no devaneio: “Nunca abandone as 
coisas pela metade. Defina sua meta e trabalhe por ela do 
EnContrando 
mInha 
voCação
2
Wontanara: estamos juntos? 23
começo ao fim!” Éramos incentivados a buscar a estabilidade 
como forma de manter o juízo e a normalidade. Mas eu 
queria e fazia qualquer outra coisa, exceto isto. Afinal, me 
encontrava em plena juventude, no desabrochar da identidade 
social. Queria arriscar e me tornei uma espécie de ovelha 
desgarrada.
Analisando minha trajetória, tenho uma coleção invejável 
de coisas deixadas para trás. Contradizendo o estabelecido, 
comecei e parei, sem concluir, diferentes atividades, cursos 
de música e esportes. Alimentava um enorme interesse pelo 
mundo e explorava suas fronteiras. Inclusive a primeira 
faculdade, de comunicação social, eu interrompi pela metade. 
Minha curiosidade era um dom precioso e, forjando exceções 
à regra, fui acreditando na intuição de que o cosmo tinha 
muito mais a oferecer. Era uma cidadã do mundo e isto 
constituiu um princípio fundamental: minha nacionalidade 
humana.
A abundância de experiências foi responsável por construir 
uma base sólida de valores pessoais e ajudou a esclarecer que 
a minha vocação, de fato, era ser engenheira: construir pontes 
para ligar a teoria à prática e unir caminhos; edificar portas 
de entrada para soluções factíveis de enfrentamento dos 
problemas; abrir janelas para expandir o potencial humano. 
Isto demandaria postura inovadora; flexibilidade para acolher 
o novo e me desapegar de paradigmas; determinação para 
transformar a realidade.
Foi assim que, em “idade mais avançada”, resolvi ser psicóloga 
e voltei para a Universidade. Porém, com o conhecimento já 
adquirido quando morei na França, não poderia escolher ser 
psicóloga e ponto. Observando vários trabalhos da psiquiatria 
cultural, realizados por alguns franceses, eu estava decidida a 
enriquecer a minha prática. 
Queria agregar a perspectiva de que somos seres conectados 
por uma força de atração muito além das tramas psíquicas. 
Porisso, tinha que acrescentar um qualitativo no meu papel: 
psicóloga social foi a alternativa que mais me aproximou 
daquela casa azul.
Wontanara: estamos juntos? 24
E toda vez que penso sobre como a minha vocação de 
engenheira ressignificou o meu trabalho como psicóloga, 
fico agradecida profundamente por ter quebrado a regra 
e assumido o compromisso com a mudança, com o “des-
envolvimento” da minha alma humana. Nem imaginava, 
quando subi as escadas daquele orfanato, a repercussão que 
ele teria na construção do meu Ser.
No campo profissional, depois de ter me formado, dei início 
a vários projetos, mas raros foram aqueles que eu mesma 
concluí. Não por falta de instrumentos ou de conhecimento. 
Apenas porque fazia parte da caminhada. Eu era somente 
coadjuvante do processo.
Acabei me especializando em construir pontes e em ajudar 
a travessia entre as margens. O resto, cada um fazia por si 
mesmo. Minha vocação se definiu assim: simplesmente criar 
ferramentas e condições para que as pessoas assumam o 
leme e posicionem as velas de maneira favorável ao sopro do 
universo sagrado.
Wontanara: estamos juntos? 25
Capítulo 3
Wontanara: estamos juntos? 26
Dizem que tatuamos nossos ideais na alma, mas que o 
cotidiano se encarrega de esconder as pistas que nos levam a 
reencontrá-los. Assim, passamos uma vida inteira a percorrer 
atalhos na busca da realização pessoal. Estrada afora, vamos 
espalhando as migalhas de pão e marcando o caminho de 
volta. Contudo, depois de vagar em círculos, constatamos 
que alguns episódios apenas nos distanciam do ponto de 
partida: a morada interior. Aprendemos que é desnecessário 
ir tão longe para chegar tão perto. Nem precisamos de tanto 
tempo.
Às vezes, um único raio de luz é capaz de nos fazer enxergar 
nosso caminho. Os contornos da estrada se tornam 
perceptíveis quando recebemos uma sacudida da vida. 
Daquelas que nos fazem perder o prumo, num primeiro 
instante, e em seguida recuperar a lucidez cósmica. 
Momentos mágicos que nos reconectam com a realidade da 
alma. É quando, enfim, conseguimos colocar nossa vocação a 
serviço da profissão para a qual nos preparamos e integramos 
tudo isto com o compromisso da transformação. O resultado 
o salto 
QuÂntICo3
Wontanara: estamos juntos? 27
é incontestável: engajamentotal!
No meu caso, o turning point 4 veio mascarado de perda. Foi 
preciso experimentar, de fato, minha capacidade de amor 
incondicional para recolocar o trem no trilho. Sempre achei 
a maternidade uma forma de desenvolvermos este potencial 
dentro de nós. Porém, acabamos transferindo nossas 
expectativas para os filhos, o que nos impede de amar sem 
barganha.
Já acompanhar alguém no seu leito de morte é, invariavelmente, 
um teste para a solidariedade e incondicionalidade do amor. 
Amálgama necessária no caminho. Ao exercitar a doação 
daquilo que tinha de melhor em mim, “des-cobri” o que 
tinha de melhor em mim e pude enxergar o quanto queria 
me entregar por completo à minha vocação.
Ainda encontro alguns resquícios de dúvida sobre o que faria 
se não tivesse passado por um luto. Porém, cada vez com 
menos frequência, questiono as estratégias do plano espiritual 
para me impulsionar até o começo do resto da minha vida. 
Aquele foi o raio de luz necessário na configuração do 
agoraqui.
Estar nesta situação, repassando minhas memórias e emoções, 
compilando os registros de uma vida inteira, representa a 
“cereja em cima do bolo”. Não tenho certeza do que vem 
pela frente. Abandonei essa preocupação no auge da minha 
equação africana. Aprendi a lidar mais com as possibilidades 
e a evitar expectativas.
Hoje, quando defendem a evolução da vida íntima em saltos 
quânticos, entendo bem o que isto significa. Compreendo por 
que muitas pessoas levam anos a fio para mudar de estágio, 
enquanto outras nem realizam mutações profundas. A tarefa 
é complexa, pois nossa existência transcende o tempo e o 
espaço. Semelhante àquelas tatuagens que gravamos na alma 
do infinito. É preciso morrer, a cada dia, para nascer na 
eternidade.
Encontrar um ponto de equilíbrio que viabilize a coexistência 
de todas as nossas descobertas e consiga harmonizar os ideais 
4. Momento em que 
ocorre uma mudança de 
paradigma significativa, 
impulsionando 
novos movimentos 
e configurações na 
vida, conforme explica 
Fritjof Capra.
Wontanara: estamos juntos? 28
e os dados de realidade com atos transformadores é o grande 
desafio de quem deu o salto e está prestes a aterrissar em um 
novo ciclo de vida.
Após despertar para o universo, foi fundamental juntar as 
peças do quebra-cabeça e processar a noção do todo nas suas 
várias partes. Ao fazer isso, constatei que a minha vida de 
“engenheira-psicóloga-social” carecia de rumos concretos e 
que, por fim, eu deveria me desapegar da rotina para ousar 
novos atalhos.
Naquele ano, a vida virou do avesso e eu comecei a entender 
minha vocação. Finalmente, estava pronta para abandonar o 
porto seguro e colocar meu barquinho em alto-mar!
Wontanara: estamos juntos? 29
Capítulo 4
Wontanara: estamos juntos? 30
Planejamos conforme o andar da carruagem ou, como 
ensinava Paulo Freire, educador brasileiro, o “caminho se faz 
caminhando”. Se pudéssemos integrar esta máxima em nossa 
prática, evitaríamos uma série de atropelos. Mas ainda que eu 
tivesse dado o salto quântico transformador, demorei alguns 
anos para incorporar este registro.
Depois do ano da reviravolta, fiz um retiro espiritual e 
um curso de introdução ao Budismo Tibetano na Índia e, 
na sequência, mergulhei no pragmatismo científico com o 
doutorado nos Estados Unidos. Esses dois eventos aceleraram 
meu movimento de sair da zona de conforto. O primeiro, 
porque reafirmou minha base de valores e consolidou a 
crença de que era crucial trazer para o campo profissional a 
vivência espiritual. O segundo, porque reforçou a necessidade 
de buscar outras estratégias de intervenção profissional que 
honrassem minha visão de homem e de mundo.
Voltei para o Brasil entusiasmada para sair do Brasil! Tinha 
clareza de que o meu lugar era não ter um lugar comum. 
Considerando as novas perspectivas de trabalho comunitário, 
WE PLAN AS 
WE GO4
Wontanara: estamos juntos? 31
estabeleci o prazo de cinco anos para redirecionar meu 
caminho.
Comecei a pesquisar várias instituições, a analisar diferentes 
possibilidades, e revigorei esse processo, me envolvendo 
com alguns projetos interessantes no cenário nacional. 
Minha experiência anterior com comunidades em situação de 
vulnerabilidade, o senso de organização e gestão de recursos 
e a capacidade tecnometodológica se tornaram cúmplices da 
minha vocação. Pela primeira vez, eu estava arquitetando um 
trabalho de corpo, alma e conhecimento. E sabia: em cinco 
anos me mudaria para sempre da minha casa e trabalharia 
como “engenheira”, num mundo sem fronteiras.
Mas planejamento não é uma camisa-de-força. Os cinco anos 
viraram três. E antes de abrir meu plano de voo para revisar a 
rota, o destino tomou as rédeas da carruagem em suas mãos, 
mudando discretamente seu curso. Desfiz o meu lar e tomei 
outros rumos, mesmo achando que estava me distanciando 
do plano original.
Mais uma lição e oportunidade de resignação com a proposta 
do universo. Sinal de que podemos planejar nossas ações para 
asseguramos alguns procedimentos. Porém, no final do dia, 
o resultado será, impreterivelmente, derivado dos pequenos 
passos e decisões que tomamos enquanto caminhávamos.
Foi então que decidi: daquele momento em diante, viveria a 
vida num tabuleiro de xadrez. Guardaria no pano de fundo a 
noção do todo e a função de cada peça. No mais, só escolheria 
o próximo passo quando a vida já tivesse feito sua jogada. 
E, com isto instituído, me aquietei.
Até o dia em que recebi um artigo sobre otrabalho de outra 
psicóloga numa ONG humanitária, de atuação no âmbito 
internacional. Nem me lembro qual era o projeto em questão, 
mas me recordo perfeitamente do sentimento avassalador 
me provocando: “Está na tua hora. Vai lá. Faz a inscrição e 
deixa acontecer!”.
Reuni meus documentos, revisei o currículo, escrevi a carta 
de motivação, preenchi todos os formulários solicitados e 
Wontanara: estamos juntos? 32
me propus realmente a desligar a cabeça desse fato. Aquela 
tradicional versão do efeito dominó é a melhor imagem 
para ilustrar o que aconteceu comigo depois que eu cliquei 
“enviar”.
Aliás, abrindo um parênteses, o encadeamento de eventos é 
uma constante na vida de todos nós, e não especialmente 
na minha. Assim como outras pessoas, eu também passei a 
prestar mais atenção no cotidiano e a perceber melhor o fluxo, 
quando inaugurei a minha “jornada do herói”. Não há nada 
de extraordinário nisso quando, humildemente, aceitamos o 
comum: o ordinário do ser, o natural e espontâneo da vida, 
a comunhão cósmica. As coisas fluem naturalmente, quando 
nos permitimos a entrega com o coração.
Duas semanas mais tarde, recebi o e-mail da ONG me 
convidando para participar do processo seletivo no Rio 
de Janeiro. Acontece que eu já estava até com a passagem 
comprada para visitar uma amiga carioca, exatamente no 
período em questão. Coincidência ou sincronicidade?
Wontanara: estamos juntos? 33
Capítulo 5
Wontanara: estamos juntos? 34
Somávamos apenas três participantes no encontro que eu 
acreditava ser uma dinâmica de seleção. Ao contrário do 
tradicional modelo utilizado pelos recrutadores, não havia 
concorrentes entre si. Cada profissional representava uma 
área: médica, paramédica (meu caso) e não-médica.
Apresentações feitas, falamos sobre nossas intenções e 
passamos a nos concentrar, essencialmente, sobre as muitas 
informações a respeito da instituição e do seu trabalho. Uma 
explanação bem aprofundada. Recebemos muito mais do 
que fornecemos. Se aquela reunião era para nos conhecerem 
melhor e analisar nosso potencial de colaborarmos com a 
Organização, então alguma coisa não estava muito clara. Mas, 
enfim, eles tinham nossos formulários em mãos, e talvez 
aquilo fosse suficiente.
Na medida em que a Organização era promovida, uma espécie 
de encantamento foi tomando conta de mim. Realmente, é 
muito animador você pensar que tem uma “liga de super-
heróis” em vigília, pronta para combater o mal e salvar o 
mundo de si mesmo. Principalmente quando você já sabe que 
o mundo Em GuErra
e a proposta de 
salvá-lo5
Wontanara: estamos juntos? 35
o mundo lá fora está em guerra e a miséria vem aniquilando 
populações inteiras.
O discurso do “estamos fazendo alguma coisa” pode ser 
bastante convincente. E, na prática, se analisarmos os 
números, os resultados contabilizam a ajuda: com um real 
por dia, no final do mês, você consegue atender cem pessoas 
com água potável ou tratar uma criança desnutrida. Pode não 
ser um valor significativo, mas o mundo precisa deles, desde 
sempre. 
E para sempre, muito provavelmente.
Participar de ações que podem fazer a diferença para 
milhares de pessoas é dignificante. A mínima possibilidade 
de contribuir para um bem maior já é, por si só, uma variável 
motivadora. Quem se inscreve num trabalho dessa natureza 
tem uma postura de solidariedade como base. Ninguém 
entra num projeto de salvar o mundo, pensando em ganhar 
dinheiro, status ou poder. Certo?
Errado! Pesquisas já demonstraram que as pessoas se 
dedicam a trabalhos solidários por razões diversas. Não 
necessariamente elas têm um projeto de sociedade justa e 
igualitária. É uma ilusão acreditar que todos os praticantes 
do voluntariado comungam da mesma Ética e têm a mesma 
perspectiva de ação.
Se eu pensava que a realidade seria diferente, por ser uma 
ONG internacional conhecida e sólida, fui logo mudando 
de ideia quando entrei na sala do recrutamento. A primeira 
pessoa que encontrei foi uma das participantes que chegou 
mais cedo. Procurando ser cordial com ela, tomei a iniciativa 
da conversa. Mas senti uma indiferença vindo do lado de lá, e 
pensei: “Nossa! Que destoante com este contexto!”
Imediatamente me corrigi, autopoliciando meus estereótipos. 
Porém, ao longo da apresentação sobre a instituição, essa 
pessoa fez colocações tão bizarras que provocaram uma 
desconfiança maior ainda: “Ah! Deve ser uma atriz contratada 
para o role play, tentando desestabilizar nossas crenças 
humanitárias. É parte do processo de seleção.” 
Wontanara: estamos juntos? 36
Claro, eu estava enganada! Tratava-se de uma candidata ao 
trabalho humanitário. Quando saí do escritório, me sentia 
feliz pela chance de ter participado daquele encontro e 
conhecido melhor a Organização, mas cheia de dúvidas a 
respeito da minha escolha. Repetia para mim mesma: “Se 
eles contratarem alguém com o perfil daquela pessoa, vai ser 
difícil acreditar na seriedade da ONG!”.
Devemos ser críticos sobre o propósito do voluntariado, mas 
é necessário aplicar a mesma lógica para analisarmos como as 
organizações sociais e humanitárias desempenham seu papel 
e suas funções. Em geral, somos seduzidos pelo próprio 
imaginário e passamos a acreditar que a resposta para a fome 
e flagelos das guerras está nessas doações e projetos. Isso 
representa um grande perigo. É fundamental usarmos um 
crivo menos ingênuo ao olharmos para essas instituições.
Muitas delas operam como fachada para diferentes interesses 
minoritários. São as ONGs que “pelo menos, estão fazendo 
alguma coisa”. Numa outra categoria, encontram-se aquelas 
que, efetivamente, estão interessadas no bem comum e 
atuam com Ética, no sentido mais amplo do termo. Como 
preconiza o ditado popular: “É preciso comer um saco de sal 
juntos para realmente conhecermos nosso parceiro”. Enfim, 
só enxergamos a realidade institucional quando nos tornamos 
parte dos bastidores.
Assim como nos deparamos com uma variedade de 
voluntários, também podemos encontrar todo tipo de 
instituição no terceiro setor. Acredito que tudo depende dos 
valores fundamentais da organização e da pessoa em questão. 
É perfeitamente compreensível que um voluntário selecionado 
se mostre inadequado para executar a tarefa, ao longo do 
tempo. E o inverso também é verdadeiro. Uma coisa é o 
que vemos ou queremos ver na propaganda, outra é o que 
descobrimos na realidade do trabalho de campo. Às vezes, 
o voluntário corresponde ao perfil desejado, mas o projeto 
foge dos seus parâmetros éticos.
Wontanara: estamos juntos? 37
Capítulo 6
Wontanara: estamos juntos? 38
Alguns dias depois do encontro na sede da Organização, 
recebi um telefonema informando que eu havia sido 
selecionada e passaria para o banco de profissionais reservas. 
Isto significava que, tão logo eles tivessem necessidade de 
um profissional com o meu perfil, eu seria convidada para a 
missão.
Num cadastro composto por centenas de pessoas de 
diferentes nacionalidades e perfis correlatos, isso poderia 
levar alguns meses. Não me importei com esta perspectiva. 
Sempre repetia, para mim mesma, que não importava o que 
fosse acontecer. Alguma coisa aconteceria, como sempre 
acontece, do jeito que deve acontecer.
Enquanto esperava, comecei a ter aulas particulares para 
desenferrujar o francês. Achava que poderia ser enviada para 
um país de língua francesa. Recebi materiais adicionais sobre 
o trabalho da e na ONG e me dediquei a estudá-los com 
bastante atenção. Comecei a providenciar os documentos 
complementares solicitados e preparei uma espécie de 
arquivo impresso para enviar ao Escritório.
sonhos QuE sE
realiZam6
Wontanara: estamos juntos? 39
Havia passado um mês, aproximadamente, e eu estava com 
outra viagem agendada para o Rio. Assim, resolvi fazer 
contato com os responsáveis dorecrutamento, para combinar 
a entrega da pasta pessoalmente, numa segunda-feira.
Cheguei à cidade no final da semana e, domingo à noite, tive 
um sonho: eu entrava no escritório da Organização, sendo 
recebida por um dos responsáveis, que me dizia: “Muito bem, 
temos uma surpresa para você. Encontramos uma missão 
que precisa de profissional com o seu perfil. Mas é num país 
da África, e você precisa partir dia 15 de novembro!”.
Acordei com o coração batendo mais forte do que os tambores 
de Angola! O sonho parecia extremamente real, daqueles 
em que você sente até o cheiro das coisas. Os detalhes da 
sala eram vivos demais. Entretanto, como psicóloga, eu não 
podia ignorar as reminiscências do dia anterior. Afinal, eu 
estava no Rio, com a minha pastinha de documentos na mala 
e a entrega agendada. Esperava ser chamada. Era natural que 
meu sonho expressasse o desejo de partir em missão. 
Quanto à sala, eu já havia estado ali antes e guardava as 
informações na minha memória. Sobre o país, quando 
fiz minha inscrição no processo seletivo, registrei como 
preferência projetos na África, Oriente Médio, Ásia e 
América Latina. Exatamente nesta ordem de interesse. Por 
isto, um país da África não era nenhuma surpresa, já que o 
inconsciente é porta-voz de nossos anseios mais íntimos. 
Levei pouco tempo para recuperar o fôlego e colocar os pés 
no chão. Precisei pular da cama rapidamente para atender o 
telefone. Do outro lado da linha, uma das pessoas da ONG 
perguntava se eu já havia chegado no Rio e quando passaria 
por lá, pois precisavam conversar comigo.
Meu corpo arrepiou todo e corri para o Escritório, a quatro 
estações de metrô. Mas àquela altura, já sabia o que estava 
para acontecer. Era só uma questão de chegar lá.
Entrando na sala, dessa vez foi minha alma que arrepiou. 
Tudo parecia exatamente do jeito que sonhei, inclusive os 
Wontanara: estamos juntos? 40
móveis. Na época do recrutamento, a disposição era outra, o 
que tornava meu sonho ainda mais significativo.
Emocionada com minhas constatações, recebi a notícia de 
que havia um projeto disponível para o meu perfil. O país de 
destino era de língua francesa, ficava na África ocidental e, se 
eu aceitasse o trabalho, teria que partir no início de novembro.
Se eu aceitei? Sequer cogitei recusar. Estava pronta para partir. 
Tudo aquilo fazia sentido na minha história e representava 
apenas mais uma peça do dominó se movendo. Eu só 
precisava me entregar, no fluxo dos acontecimentos. 
E foi o que eu fiz. Em menos de um mês, solucionei todas as 
minhas pendências e ainda fui para Machu Picchu, com meu 
filho. Uma dessas viagens eternizadas na memória da alma, 
pela qualidade do afeto e do reencontro com o sagrado. Três 
dias caminhando na trilha dos Incas foi a medida certa, antes 
de partir para a África. Mas isto é uma outra história.
Wontanara: estamos juntos? 41
Capítulo 7
Wontanara: estamos juntos? 42
Estava prestes a fazer uma mudança importante, de país e 
de trabalho. Morar nove meses em Conakry, na República 
da Guiné, e trabalhar numa ONG que eu desconhecia. Os 
amigos que acompanham meus passos sabem: mudança é 
palavra-chave, minha força motriz. Em constante movimento, 
tenho experimentado a vida nas suas diferentes perspectivas 
e aproveitado as oportunidades para alargar meus horizontes. 
Nem sempre consigo mudar, dentro e fora de mim, o que 
penso ser necessário. Mas pelo menos me lanço na roda do 
mundo e procuro girar com a energia transformadora.
Mudança, com o objetivo de aprimorar aquilo que somos, é 
sempre muito saudável. Levanta nosso astral, sacode a poeira 
e nos faz enxergar melhor a nós mesmos e ao mundo onde 
vivemos. Mudança, quando aproveitada na sua essência, nos 
tira da zona de conforto e impulsiona a novos aprendizados. 
Mudança é experimentar a si mesmo e o fluxo da vida em 
si mesmo. Às vezes, provocada por fatores externos; outras, 
por motivações internas; e, em algumas situações, pela 
combinação destas variáveis. Difícil definir o meu caso.
mEu soBrEnomE?
metamorfose7
Wontanara: estamos juntos? 43
Quando contava para as pessoas sobre as coisas que ainda 
estava para viver, algumas me diziam: “Espero que você 
encontre aquilo que busca”. Outras se solidarizavam: 
“Tomara que você se encontre” ou “que você se realize”, ou 
mesmo “que você encontre a felicidade que procura”.
Embora eu entendesse o sentido positivo que as pessoas 
atribuíam às suas falas e percebesse a torcida delas pelo 
“sucesso” das minhas empreitadas, me inquietava com o eco 
que essas colocações provocavam dentro de mim. Ficava 
me perguntando: “Seria possível uma pessoa ainda transitar 
neste planeta sem estar buscando alguma coisa? O que o fato 
de já me sentir realizada com a vida faz de mim: uma pessoa 
que não sabe reconhecer seus vazios e se coloca na busca 
permanente do Todo ou uma pessoa em paz com os vazios 
que a definem e que se coloca à disposição do Todo?”
Lembro-me de um período de noites escuras e provações, 
numa época em que eu estava sempre correndo atrás da 
felicidade, mas não a encontrava. Fazia muitas coisas, 
e nada. Experimentava várias coisas, e nada. Atribuía a 
responsabilidade pela minha realização e felicidade a tudo e a 
todos que estavam ao meu redor e, óbvio, nada. A felicidade 
nunca estava presente e sempre parecia algo a ser alcançado 
num futuro qualquer.
Custou muito (em vários sentidos!) para que eu, finalmente, 
entendesse o significado de Felicidade. E quando compreendi 
realmente o seu lugar, passei a Ser Feliz, permanentemente. 
Sem dúvida, fico triste com os antagonismos e desequilíbrios 
que permeiam nossas sociedades. As adversidades da vida me 
mobilizam profundamente. Mas me sinto feliz mesmo assim.
Seria a felicidade plena, ou qualquer outra plenitude, apenas 
uma ilusão? Ou simplesmente podemos defini-la como 
“o estado da alma que encontrou, dentro de si, o amor 
incondicional e tenta romper com as fronteiras geofísicas da 
sua condição material”?
Entendo que nenhuma doença, nenhum problema material 
ou dificuldade profissional, nenhum desentendimento pessoal 
ou desencontro afetivo, podem tirar de alguém a condição 
de Ser Feliz. Chamo isto de “felicidade sem fronteiras”. E 
Wontanara: estamos juntos? 44
minha alma é Feliz!
Por esta razão, meus movimentos significam para mim 
muito mais do que a busca da felicidade. Reconheço-os 
como “sonhos que transcendem a esfera do ideal, para se 
concretizarem na realidade da minha alma”. Do racional 
abstrato para o palpável, com os braços do coração.
E, assim, me deixo abraçar por essas oportunidades, como 
uma filha que recebe do Sagrado um presente de proporções 
eternas. Entrego todo o meu Ser à certeza da ressonância 
espiritual que essas experiências implicam. Acolho a 
metamorfose e agradeço.
Deixo crescer dentro de mim um sentimento forte de 
responsabilidade por Ser Feliz e de compartilhar isso ao meu 
redor, onde quer que eu esteja. E agradeço mais uma vez.
Permito que meu pensamento seja inspirado pelo 
conhecimento e vivência de outras pessoas, tomando para 
mim suas lições de humildade e determinação. E agradeço 
eternamente.
Coloco-me a serviço do que se direciona a mim, confiando 
e reconhecendo sua sincronia com o Universo. E então 
concluo: não há busca; apenas, realização!
Havia chegado a hora. Para aqueles que compartilhavam o 
mesmo caminho ou os seus atalhos, cabia registrar o meu 
carinho e apenas solicitar para me manterem em seus radares. 
Em breve eu partiria, mas manteria suas lembranças como 
uma luz acesa dentro do meu coração, finalmente africano!
Wontanara: estamos juntos? 45
Capítulo 8
Wontanara: estamos juntos? 46
A República da Guiné, quando comparada ao continente 
africano, permanece quase despercebida. Embora não seja 
muito pequena, é necessária uma boaescala para notarmos 
mais facilmente sua localização no mapa. O país faz fronteira 
com a Guiné Bissau, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa, 
o Senegal e Mali, além do Oceano Atlântico. Seu território 
é configurado em quatro regiões: Alta Guiné, Guiné Média, 
Guiné Marítima ou Baixa Guiné e Guiné Florestal. 
Do ponto de vista administrativo, essas regiões subdividem-
se em oito, nas quais constam 33 prefeituras, 38 comunidades 
urbanas, mais de 300 subprefeituras e comunidades rurais. 
Mesmo depois de viver onze meses na Guiné, não consegui 
compreender exatamente como é segmentada sua política. 
Só consigo resumir dizendo que o país tem um governo 
federativo, com presidente e primeiro ministro, mas ainda não 
se estabilizou; já foi palco de golpe militar e conflitos étnicos 
importantes; a marcha rumo à democracia ainda é lenta; 
a eleição presidencial deveria ter ocorrido no ano em que 
cheguei (2011), mas limitou-se à promessa dos governantes.
PEQuEno País
GrandEs
desafios
8
Wontanara: estamos juntos? 47
No total, são aproximadamente dez milhões de habitantes 
dos quais, dois milhões se concentram na capital, Conakry. 
Existe mais de trinta dialetos em todo o país, predominando 
quatro etnias: soussou, poular, malinké e forestier. A língua oficial, 
entretanto, é o francês, em função da sua colonização pela 
França. Praticamente 95% dos guineenses são muçulmanos 
e 5% professam outras religiões, em especial o catolicismo e 
a religião evangélica.
O clima tropical faz a temperatura permanecer quase sempre 
elevada (a média varia entre 29°C e 35°C), com muita 
umidade. Os meses de novembro a maio são os mais quentes. 
No período de junho a outubro chove bastante, e o calor 
ameniza um pouco. A falta de estrutura das vias públicas e 
as condições precárias de saneamento básico ajudam a piorar 
o cenário, na época das chuvas, contribuindo para aumentar 
as inundações constantes e provocar surtos de doenças, 
principalmente o cólera.
A Guiné é rica em ferro, diamante, ouro, bauxita e urânio. 
Entretanto, a taxa de desemprego é alta. O mercado informal, 
porém, tenta equilibrar o orçamento doméstico, permitindo 
a sobrevivência das famílias. O comércio ambulante é 
especialmente difundido na capital, que concentra um dos 
maiores mercados na região da África ocidental. Por onde se 
passa, encontramos pessoas (principalmente mulheres) com 
suas bacias e/ou cestos sobre a cabeça, vendendo comida e 
produtos industrializados.
Culturalmente a diversidade é grande, pois em cada região 
são adotados costumes particulares em relação a modo de se 
vestir, gastronomia, música, artesanato, entre outros hábitos 
sociais. Por outro lado, a taxa de analfabetismo é enorme: 
apenas 30% dos adultos sabem ler e escrever. O IDH 
da Guiné é um dos piores do ranking e mais da metade da 
população vive abaixo da linha da pobreza. É uma nação 
jovem (42% da população tem menos de 15 anos), com 
baixa expectativa de vida (54 anos). Imaginem, eu estava com 
quarenta e sete anos quando cheguei na Guiné, ou seja, 
muito perto da idade de ser considerada uma “sobrevivente 
anciã”. 
Wontanara: estamos juntos? 48
Wontanara: estamos juntos? 49
Em média, são registrados cinco filhos por família. O status 
social da mulher permanece no limbo. Há uma feminilização 
da pobreza e do HIV/AIDS. Neste último caso, a prevalência 
não é oficialmente expressiva (1,5% no país, 2,1% na capital) e 
ainda não existe um programa nacional inteiramente gratuito 
para a população. A dupla estigmatização/discriminação 
resiste como forte inimiga dos guineenses infectados pelo 
vírus e alguns costumes agravam ainda mais sua propagação: 
cerca de 96% das mulheres são excisadas5 ; o regime da 
poligamia, permitido entre os muçulmanos, favorece a 
contaminação (lembrando que, na Guiné, o homem pode se 
casar com até 4 mulheres).
Embora as adversidades sejam rotineiramente significativas, 
há uma aura de alegria no cotidiano guineense: o colorido 
das roupas, os panos que enfeitam as cabeças das mulheres, 
o sorriso sempre estampado no rosto, a movimentação nas 
ruas, a comilança desde as primeiras horas do dia. Para além 
da visível pobreza e precariedade de recursos materiais, 
encontramos a gentileza natural no aperto de mão, que é, 
impreterivelmente, acompanhado pelo nosso primeiro 
nome. Neste mundo, aparência e essência brigam entre 
si nas diferentes horas do dia, mas, no cômputo geral, é o 
encantamento pela alma humana que prevalece.
5. Excisão feminina 
significa cortar e costurar, 
total ou parcialmente, 
os genitais da mulher. 
Também conhecida 
como “mutilação genital 
feminina”.
Wontanara: estamos juntos? 50
Capítulo 9
Wontanara: estamos juntos? 51
“Base para 106... Base para 106!”
“Copiado 106.”
“Estamos saindo do aeroporto, em direção ao escritório 
central. Motorista e Andrea estão no carro. Câmbio!”
“Okay 106, bem entendido, Câmbio.”
E assim partimos, o motorista e eu (agora com uma nova 
identidade: expatriada6), numa daquelas camionetes brancas 
grandonas, inaugurando a temporada de eventos atípicos, para 
mim. Independente da distância ou finalidade, a conduta para 
todos os deslocamentos feitos com o veículo da Organização 
era essa: você chama a Base pelo rádio, informa o número do 
veículo, de onde sai, para onde vai e o nome dos passageiros. 
Mas se você mudar o destino ou fizer alguma parada, durante 
o percurso, também precisa comunicar o operador do rádio.
No aeroporto a espera para passar pela imigração havia sido 
diferente e longa. Entre tantas filas, acabei ficando por último 
dEsEmBarCando
no Campo9
6. Termo utilizado para 
se referir aos estrangeiros 
trabalhando num país 
diferente de sua origem.
Wontanara: estamos juntos? 52
(que novidade!), o que me deu a chance de observar toda a 
movimentação. Um vai-e-vem de pessoas acompanhadas por 
policiais (aliás, de quem pareciam muito amigas), furando a fila 
para se registrar no guichê dos agentes federais. Fiquei com a 
impressão de que havia algum favoritismo no procedimento, 
mas permaneci tranquila e calorenta. Após ver várias pessoas 
sendo maltratadas só porque haviam ultrapassado a linha 
vermelha traçada no chão, com a palavra “stop”, concluí que 
era mais prudente aceitar a lentidão do processo. 
Depois veio o “desembaraço” da bagagem, me lembrando 
de alguns aeroportos do Brasil, antigamente. Eles também 
tinham fiscais que conferiam seu ticket de bagagem e só então 
entregavam seus pertences. Como disse o funcionário do 
aeroporto, “assim é mais seguro e ninguém troca ou rouba 
sua mala”. Mas tanta precaução favorecia outro propósito, 
direcionado firmemente ao nosso bolso: “Pas de cadeau, 
madame?” 7 Pronto, também começava a “temporada da 
barganha”!
Recordo de quando fui ao Egito e tudo funcionava 
dessa forma. Em Angola, o padrão era o mesmo. Mais 
recentemente, no Peru, a experiência se repetiu. A barganha é 
quase como um ato obrigatório. Faz parte do código cultural 
global e é praticada por todo mundo, nos diversos lugares 
e situações. Portanto, espera-se que você também adote 
esse comportamento. Ou seja, não existe compra sem uma 
negociação acirrada.
Quando se trata de pedir propina, é bom você entrar no 
jogo do “Ahn? Não entendi!”, caso contrário sempre vai 
desembolsar um bom dinheiro para “presentear” todo 
mundo. No caso das compras, sou a favor de não pechinchar. 
Mas aprendi a ficar esperta e somar os valores rapidamente, 
para diminuir o risco de pagar mais do que o devido.
Voltando ao itinerário inicial, depois de alguns minutos de 
congestionamento e buzina ecoando intensamente, chegamos 
à sede da ONG, ao lado do alojamento onde eu permaneceria 
pelo resto do período. Mochila para lá e para cá, fui instalada 
e voltei ao escritório. Por coincidência, a coordenadora do 
projeto encerrava suamissão e havia uma festa de despedida. 
7. Expressão francesa 
que significa “sem 
presentinho, senhora?”
Wontanara: estamos juntos? 53
Quase todos os expatriados e o staff nacional estavam 
presentes, o que foi ótimo para conhecê-los. Senti-me um 
pouco perdida com tantas apresentações, mas foi divertida a 
interação. Até dancei em ritmo africano!
No dia seguinte, e até mesmo nas semanas seguintes, fui 
incapaz de repetir o nome daquelas pessoas. Realmente eram 
muitas, a música estava alta e os nomes guineenses são bem 
diferentes dos brasileiros. É horrível quando você reencontra 
a pessoa e não lembra se já haviam sido apresentados, muito 
menos qual o nome dela. Mas o fato é que os cidadãos 
guineenses são muito parecidos entre si. Tirando as 
mulheres, que dá para distinguir bem por causa das roupas 
(maravilhosas, diga-se de passagem!), os homens têm uma 
feição muito similar. Primeira dificuldade a ser superada no 
decorrer dos nove meses de missão.
Algumas poucas horas depois de chegar à festa, o cansaço 
me convidou para bater em retirada. Voltei ao alojamento e, 
surpresa... não tinha mais água. Já prevendo essa possibilidade, 
havia tomado um “último-belo-banho” em Bruxelas, onde 
fiquei por alguns dias lidando com questões administrativas 
na sede da ONG. Então, nada que um punhado de lenço 
umedecido não desse conta de disfarçar. Tomar banho de 
gato é uma lição aprendida nas minhas expedições para a 
Amazônia. Essa não era a minha primeira vez. Como dizia 
uma amiga apaixonada pelos seus felinos, “os gatos são bem 
limpinhos e higiênicos”. Voilà!
O alojamento era bem agradável, com estreita vista para o 
mar. Um prédio de estilo árabe e pé direito alto, causando a 
sensação de ser amplo. Tinha três andares: um apartamento 
em cada piso, destinado a três expatriados cada um, já que 
contava com três quartos individuais. Os apartamentos eram 
equipados com cozinha, copa, sala de estar e varanda. Parte 
do mobiliário era fornecido pelo proprietário e a outra parte 
ficava a cargo da ONG.
Wontanara: estamos juntos? 54
Wontanara: estamos juntos? 55
Durante a semana, o almoço era preparado por uma 
cozinheira contratada pelo projeto e servido, no refeitório do 
nosso escritório, para todos os funcionários que cotizavam 
os custos. Cabia aos expatriados providenciarem o café da 
manhã, jantar e refeições do final de semana, se organizando 
individualmente ou em parceria com os demais colegas do 
alojamento.
Como aterrissei em solo guineense no começo da noite de 
uma sexta-feira, só comecei a me inteirar do trabalho na 
manhã da segunda. Fui logo aprendendo que no final de 
semana a maioria dos expatriados aproveitava para descansar. 
Ritmo que não consegui respeitar. Mas, ainda assim, eu me 
obrigava a fazer algumas brechas refrescantes na piscina para 
aplacar o calor.
Para resumir as impressões gerais do primeiro contato: Viva! 
Estava tudo certo! Finalmente em solo africano! As pessoas 
eram realmente simpáticas e, surpreendentemente, a estrutura 
da ONG era excelente! Conakry mais se assemelhava a um 
canteiro de obras: “ótimo, o país está em expansão!”, deduzi. 
O trânsito caótico e com pouca sinalização (eles se entendiam 
com os gestos e, principalmente, as buzinas) fazia a agitação 
de São Paulo parecer uma brincadeira de criança. O calor 
era intenso (“mas, ufa... tem ar-condicionado no quarto, no 
escritório”, conclui esperançosa), com bastante umidade. 
Como em toda cidade de praia, gotejávamos!
Wontanara: estamos juntos? 56
Capítulo 10
Wontanara: estamos juntos? 57
África de muitos países, com um sincretismo cultural 
extraordinário, apesar da grande disputa de governos. Sem 
sombra de dúvidas, uma descrição rica sobre este continente 
pode ser encontrada no livro “Candongueiro – Viver e viajar 
pela África”, escrito pelo jornalista João Fellet. Ele viveu 
algum tempo em Angola e durante cinco meses percorreu 
pouco mais de dez mil quilômetros, visitando um total de 
quase quarenta cidades, em diferentes países da África. 
Recomendo! Seus relatos são ricos em detalhes e retratam 
muitas situações similares àquelas que eu pude observar na 
Guiné.
Em Conakry também a vida parecia acontecer, sobretudo, 
no espaço coletivo. Tudo se passa nas calçadas, em frente às 
casas. As pessoas cozinham e se agrupam na rua para comer 
e conversar, festejam casamentos e batizados, tomam banho 
de bacia, lavam a roupa, vendem coisas, cortam cabelo e 
amarram suas tranças... na rua! Muitas, inclusive, fazem suas 
necessidades fisiológicas em via pública.
BEm-vIndos a
Conakry10
Wontanara: estamos juntos? 58
Enquanto o lixo se acumula em determinados terrenos, os 
vários campos de futebol (de chão batido) estão quase sempre 
bem limpos e ocupados pelos jogadores. Para os guineenses, 
Brasil é sinônimo de Ronaldinho, Kaká, Roberto Carlos e, 
como não podia faltar, “Ronaldô”. Muitos, inclusive, ficaram 
tristes quando eu informei que o Fenômeno havia deixado 
o futebol, naquele ano. Os mais antigos ainda evocavam o 
nome do Pelé e faziam questão de registrar sua admiração 
pelo rei.
Na primeira semana de trabalho, fiz uma visita aos cinco 
Centros de Saúde com os quais trabalhávamos no projeto 
e tive a oportunidade de passar por diferentes bairros. Quer 
dizer, na prática, sua estrutura é similar: as casas são mais ou 
menos padronizadas e as ruas, na sua maioria, sem asfalto. 
Durante o percurso, muitas feiras, muitas mulheres e crianças 
de colo.
Nessas feiras abertas, podíamos encontrar de tudo. Desde 
alimentos até roupas e outros produtos industrializados, de 
uso pessoal e doméstico. As mulheres, na sua maioria, com 
os panos coloridos na cabeça. Dependendo do bairro, víamos 
mais ou menos muçulmanas de véu ou de burca. As crianças, 
invariavelmente nas costas das mães, sempre dormindo 
tranquilas, como se o mundo não existisse para além daquele 
corpo. Repetidamente, meus olhos eram capturados por 
imagens de crianças pequenas que carregavam, nas suas 
Wontanara: estamos juntos? 59
costas, um outro bebê (provavelmente irmão ou irmã). Era 
fascinante! 
No trânsito, muitas curiosidades. Às vezes, eles param o carro 
em fila tripla e ninguém mais passa na rua. Dá-lhe buzinar! 
Não existe ônibus municipal. O transporte coletivo é feito 
pelas Mabaras, como chamam as vans de lotação. Um dia 
vi uma delas cheia de crianças uniformizadas. Eram quase 
cinquenta! Nem consegui contar quantas cabecinhas avistava, 
tamanha aglomeração. O mesmo se repete para o transporte 
de carga. Os táxis, que em geral são veículos velhos, circulam 
com os porta-malas tão lotados, que nem podem fechar a 
tampa. Os pneus ficam arriados com o sobrepeso. Por mais 
surreal que possa parecer, vi um deles transportando um boi 
inteiro, amarrado pelas patas e com a cabeça ligeiramente 
tombada. Imagino que o boi estivesse morto. Pobre coitado. 
Tomara mesmo que tenha sido um boi morto!
Os primeiros quinze dias voaram. O trabalho fluía tão 
tranquilamente quanto a interação com o staff nacional e 
expatriados. As dificuldades iniciais com a língua e o impacto 
do calor logo cederam espaço para contemplar a convivência 
com os guineenses. Na maior parte dos dias, eu custava a pegar 
no sono, porque o coração não parava de pular de alegria e de 
sorrir me dizendo: “Obrigado por essa oportunidade!”
Wontanara: estamos juntos? 60
Wontanara: estamos juntos? 61
Capítulo 11
Wontanara: estamos juntos? 62
No dia primeiro de dezembro daquele ano realizamos um 
grande evento de sensibilização em favor da luta contra a 
estigmatização e a discriminação de pessoas vivendo com 
HIV/AIDS. Promovemos várias palestras ao longo do mês, 
visitando escolas, abrigos de jovens e centros de saúde. A 
mensagem, além de combater o preconceito, alertava sobre 
os riscos de contaminação e estimulavao diagnóstico precoce 
entre mulheres grávidas.
o taBu do
hiv/aids
na GuIné
11
Wontanara: estamos juntos? 63
A população tende a ignorar os cuidados básicos de proteção 
e a observância do tratamento quando descobrem sua 
soropositividade. As razões para isto compõem uma rede 
complexa de fatores culturais, sociais, políticos e econômicos. 
O país não conta com uma política de saúde efetiva no caso 
HIV/AIDS, embora exista um plano nacional elaborado 
de forma abrangente e competente. Na prática, as pessoas 
infectadas pelo vírus devem pagar pelo tratamento, o que 
representa uma fortuna.
Todo serviço de saúde é pago. Existem centros de saúde 
privados, confessionais (de organizações e/ou fundações 
da sociedade civil) e estatais, mas mesmo nesses últimos a 
assistência é cobrada, pois cada centro deve se autofinanciar 
por meio dos serviços prestados. Ou seja, não existe um plano 
social subsidiado. Independente da gratuidade oficialmente 
declarada, a disponibilização dos medicamentos não é 
assegurada: falta importação e distribuição equânime.
Do ponto de vista sociocultural, a coisa se complica ainda 
mais. Semelhante ao efeito dominó, uma variável puxa outra e 
juntas formam uma bola de neve capaz de propagar o vírus e 
comprometer a adesão ao tratamento. Muito resumidamente 
(e correndo o risco de não estar percebendo corretamente 
o cenário), ali uma pessoa diagnosticada HIV+ tem grandes 
dificuldades para anunciar sua condição, inclusive entre 
familiares. Motivos... variados! Ponto comum: a discriminação, 
a reclusão, o medo.
Quando a família é muçulmana, isso pode significar a 
completa exclusão da mulher. Ela é pressionada até o ponto 
de perder o direito sobre os filhos. Já o homem, ele teme o 
conflito entre suas diferentes esposas. Nos dois casos, não há 
sexo seguro, o que leva à contaminação de vários adultos do 
mesmo grupo. Sem contar as crianças geradas no anonimato 
da soropositividade. 
Porém, o problema de esconder a condição de HIV+ não 
existe apenas entre os muçulmanos. O mesmo se passa com 
famílias de outras religiões e, no geral, há muitos (muitos!) 
casos de abandono, divórcio, rejeição e suicídio.
Wontanara: estamos juntos? 64
Ao esconder sua soropositividade, a pessoa vive um pesadelo 
ainda maior (o peso do diagnóstico e a reclusão social) e 
também tem mais dificuldade para seguir corretamente 
seu tratamento. Seja por conta do dinheiro necessário para 
comprar a medicação ou porque precisa justificar o fato de 
tomar remédio, aos familiares e amigos da sua convivência. 
Mesmo no caso do nosso projeto, em que tudo era 
gratuito (diagnóstico, consultas médicas, acompanhamento 
psicossocial, exames, medicação e internação sempre que 
necessário), a adesão ao tratamento representava um dos 
pontos mais sensíveis.
Frequentemente, as pessoas relatavam que preferem esconder 
a medicação para tomá-la longe dos olhos dos outros. Levem 
em conta que a vida por lá é muito coletiva e compreenderão, 
de relance, o quanto isso complica a manutenção dos 
horários e a frequência com que ingerem corretamente os 
comprimidos. Resultado: o tratamento não funciona como 
esperado, inclusive podendo elevar a carga viral no organismo.
O problema se estende também para o nível clínico. É 
comum o fato de pessoas soropositivas não assumirem isso 
frente ao cônjuge também soropositivo e manterem relações 
sexuais sem proteção. Resultado: reinfecção, mutação do 
vírus, aumento da resistência em relação ao medicamento 
anteriormente utilizado.
A dificuldade do sexo protegido tem sua raiz na falta 
de informação sobre como utilizar o preservativo (seja 
masculino ou feminino), na escassez do produto de qualidade 
e, sobretudo, em mitos e verdades associados ao uso da 
camisinha: diminui a sensação e o prazer; se usar é porque 
está traindo o cônjuge. Para o africano adiciona-se, ainda, uma 
dose de machismo, pois isso é encarado como uma afronta 
para a sua virilidade. Mesmo algumas africanas sentem sua 
honra questionada: “Quem você pensa que eu sou? Não sou 
como essas por aí!”. Resultado: HIV 10 X 0 Proteção.
Eram muitas as histórias e as justificativas. Todas denunciavam 
o descaso, o descuido, a desvalorização da vida e das relações 
humanas. E não podemos pensar que isto ocorre somente 
entre as pessoas soropositivas. Estamos todos implicados 
Wontanara: estamos juntos? 65
nessa teia. Como eu nunca havia trabalhado diretamente 
com pessoas que lidam com o HIV no seu dia a dia, não 
saberia dizer, mesmo hoje, como as coisas acontecem em 
outros países. Porém, imagino que tudo isto não seja uma 
prerrogativa da Guiné. Reforçando o coro, o maior problema 
não é o vírus em si. Ele pode ser controlado e representa 
apenas a ponta do iceberg!
Wontanara: estamos juntos? 66
Capítulo 12
Wontanara: estamos juntos? 67
Assim comecei minha primeira reunião com o staff 
psicossocial do projeto, provocando um burburinho entre 
os presentes. No início da temporada encontrava dificuldade 
para discernir quando eles falavam em francês ou no dialeto 
local, pois misturavam as línguas numa mesma frase. Naquele 
dia, a equipe também reagiu como se não entendesse 
muito bem que eu tentava falar no dialeto soussou. Quando 
compreenderam aqueles sons, mesmo carregados de um 
sotaque desconhecido, todos demonstraram entusiasmo. Foi 
muito divertido.
Desejava agradecê-los por estarem todos ali, acolhendo 
mais um expatriado chamado a colaborar com o projeto. 
Queria sinalizar meu esforço para apreender sua realidade e 
compartilhar minha intenção de abrir nossos horizontes para 
o trabalho da equipe. A mensagem deveria sublinhar também 
minha posição de aprendiz.
WONTANARA
12
Ikhéna
Wonouwali Wotobarafa
MBaraGnakhalin
Wontanara 
 
Bom dia
Agradeço a presença de vocês
Estou feliz por estar aqui
Estamos juntos
 
Wontanara: estamos juntos? 68
Em meio à emoção de começar o trabalho, após quase vinte 
dias de passassion8 , mal podia acreditar que estava ali, naquela 
sala de reuniões, misturando soussou com francês para falar de 
temas tão familiares dentro da minha experiência profissional.
As perspectivas se mostravam realmente positivas e 
estimulantes. Minha equipe era composta por quinze 
guineenses, sendo dois assistentes sociais; uma enfermeira 
responsável pela testagem de novos casos; cinco pacientes 
cuja função era sensibilizar outros pacientes e a comunidade, 
através do testemunho; seis conselheiros, a maioria com 
formação em sociologia; e um assistente de coordenação. 
Formavam um grupo forte, dinâmico, interessado e motivado. 
Muitos deles já participavam do projeto algum tempo e 
conheciam bem as necessidades dos pacientes.
Quando cheguei, as atividades ainda eram desenvolvidas 
isoladamente. Faltava interação com os outros componentes 
do projeto (enfermeiros, médicos, parteiras) e a dimensão 
interdisciplinar do trabalho ainda carecia de reforço. 
A descentralização dos serviços oferecidos no Centro 
Comunitário de Saúde para as unidades de saúde, em 
diferentes bairros, começava a exigir mais atenção. Havia 
muito trabalho pela frente.
Depois de ir e vir em todos os serviços e trocar ideias com 
os demais profissionais do projeto, também apresentei duas 
propostas para o período da minha missão. A primeira, 
nacionalizar a minha função, significava fazer um coaching 
com o meu assistente. Devidamente preparado, ele poderia 
assumir a gestão do nosso departamento, dispensando a 
contratação de outro expatriado para o cargo. Tratava-se de 
um sociólogo guineense supercompetente e sensível. Uma 
daquelas almas íntegras que Deus coloca no mundo para 
fazer diferença ao seu redor.
A segunda, organizar o departamento psicossocial de forma 
integrada e articulada com os demais setores, representava 
um desafio maior. Havia pouco compromisso dos parceirose 
a política local na área de saúde dificultava bastante. Por outro 
lado, o potencial da equipe psicossocial ajudaria a superar as 
barreiras externas.
8. Expressão usada no 
projeto para definir 
o período de repasse 
de informações e 
orientações entre o 
expatriado em fim 
de missão e o recém-
chegado.
Wontanara: estamos juntos? 69
Para quem conhece um pouco o meu jeito de trabalhar, 
facilmente imagina como eu me sentia em casa. Esse projeto 
era a minha cara. Wontanara! Assim eu me reconhecia por lá: 
junto com o grupo, compartilhando o ideal do trabalho, em 
solo africano. Eu fazia parte daquele mundo.
Durante todo o período da minha missão, consegui realizar 
várias coisas com a equipe. Entre reuniões de trabalho 
e encontros sociais, fomos encurtando a distância e nos 
tornando mais íntimos. Com cada um, sem exceção, tive 
encontros fraternos. Não tenho nenhuma dúvida sobre a 
benção que eles representam na minha trajetória.
A tendência de aconchegar as pessoas com alguma palavra de 
conforto, sem perder a oportunidade para tocar seu coração 
e motivá-las para a vida, logo me rendeu fama. Em pouco 
tempo, ganhei o apelido de mamie9 entre os membros da 
minha equipe. Este jeito carinhoso foi rapidamente adotado 
pelos colaboradores guineenses dos outros departamentos e, 
sem que eu percebesse, até alguns expatriados passaram a 
utilizá-lo.
Sentia um respeito profundo pelo staff nacional e sabia que a 
recíproca era verdadeira. Estabelecemos um laço de amizade 
que permanece forte até o momento. Eles fizeram uma 
enorme diferença em meu ser e, quanto mais eu entendia 
a preciosidade daquelas pessoas, mais eu me sentia honrada 
por aquela oportunidade.
9. Expressão francesa que 
significa “vovozinha”.
Wontanara: estamos juntos? 70
Capítulo 13
Wontanara: estamos juntos? 71
Quando fui para a Guiné, a ONG executava dois projetos 
no país, ambos voltados para pessoas vivendo com HIV/
AIDS. Um deles era desenvolvido numa cidade do interior e 
o outro, do qual eu fazia parte, acontecia na capital. A sede 
da coordenação geral também ficava em Conakry, onde se 
concentravam as atividades administrativas e estratégicas de 
âmbito nacional.
Nosso projeto tinha sede e equipe de coordenação 
próprias. Cada departamento contava com um escritório 
e compartilhávamos a sala de reuniões, utilizada ainda 
como refeitório, já que almoçávamos nela todos os dias. 
Nossas atividades de campo aconteciam no Centro Médico 
Comunitário e em cinco unidades de saúde. Fazíamos 
deslocamentos todos os dias para trabalhar nesses locais.
O Centro Médico equivale a um hospital de pequeno porte e 
oferece os seguintes serviços: pronto socorro, hospitalização, 
centro cirúrgico para intervenções menos complexas, 
maternidade, pediatria, nutrição, vacinação, ambulatório 
de tuberculose (CAT), ambulatório de HIV/AIDS (CTA), 
dEsaFIos E
oportunidades13
Wontanara: estamos juntos? 72
laboratório de análises, farmácia e centro de testagem 
voluntária (CDV). Estrutura similar a uma combinação 
dos postos de saúde com os centros especializados e os 
ambulatórios médicos dos hospitais gerais.
As unidades de saúde seguem mais ou menos esse padrão, 
exceto pelo centro cirúrgico, o laboratório de análises e o 
CAT. Por estarem localizadas no interior dos bairros, parecem 
com as unidades de saúde brasileiras.
Por outro lado, a maternidade é uma realidade à parte. 
Funciona da mesma forma em todas as estruturas, seja de 
grande, médio ou pequeno porte. Raramente fazem cesariana. 
Os partos são auxiliados por parteiras e os obstetras atuam 
somente em casos de complicação. Nas unidades de saúde, 
quando necessária a intervenção cirúrgica, a mulher é 
imediatamente transferida para um centro médico maior. 
Se o parto é normal, a mãe e a criança recebem alta no mesmo 
dia, dependendo da hora em que ocorre. Fiquei impressionada 
com a movimentação da maternidade nos serviços de saúde. 
Só perdia mesmo para a quantidade de atendimentos da ala 
pediátrica, esta sim, surreal.
No projeto da ONG, desenvolvíamos atividades com as 
parteiras responsáveis pelo acompanhamento das gestantes. O 
teste para identificar a sorologia não fazia parte do protocolo 
de pré-natal e, por razões culturais e políticas, um número 
muito reduzido de grávidas se dispunham a fazê-lo. Nosso 
trabalho, então, consistia em estimular a realização do teste 
e, em caso de HIV positivo, as mulheres eram encaminhadas 
para consulta médica especializada, visando ao tratamento 
medicamentoso e psicossocial necessário. Quando ela entrava 
em trabalho de parto, aplicavam-se os cuidados diferenciados 
e a criança ingressava no programa de monitoramento, até o 
diagnóstico conclusivo da sua sorologia.
Para todos os pacientes (mulheres grávidas, demais adultos, 
jovens e crianças), o protocolo incluía diferentes atividades 
psicossociais, mas nem todas estavam devidamente 
implantadas nos serviços de saúde parceiros. Essa era uma 
das metas da minha missão.
Wontanara: estamos juntos? 73
No momento em que assumi, apenas o Centro Médico 
Comunitário contava com o pacote completo e as atividades se 
concentravam no CAT e no CTA. No primeiro ambulatório, 
fazíamos uma sensibilização10 na sala de espera, incentivando 
os pacientes com tuberculose a procurarem o CDV. Da mesma 
forma, se o resultado fosse positivo, a enfermeira da equipe 
encaminhava a pessoa para o CTA. E era nesse ambulatório 
que passávamos a maior parte do tempo. Ali realizávamos 
as consultas médicas, os atendimentos psicossociais e, numa 
sala anexa, as reuniões de grupo terapêutico.
Já nas unidades de saúde dos bairros, dispúnhamos de 
consultórios pequenos, o que restringia um pouco nossa 
ação. Na época, realizávamos somente as sessões individuais 
de aconselhamento e as palestras em sala de espera, mas 
caminhávamos firmes no propósito de ampliar o espaço com 
as atividades grupais.
Basicamente o departamento psicossocial se responsabilizava 
pelas seguintes tarefas: realização do pré-teste, teste do 
HIV (em parceria com a enfermagem) e pós-teste; sessões 
de aconselhamento para início do tratamento com os 
antirretrovirais; sessões de aconselhamento para reforçar 
a adesão ao tratamento; sessões de escuta-ativa; grupos 
de educação terapêutica com crianças, jovens e adultos; 
sensibilização na sala de espera; assistência social (benefícios 
e acompanhamento hospitalar).
No Centro Médico Comunitário contávamos com um grupo 
especialmente formado para essas práticas, mas nas unidades 
de saúde ainda precisávamos desenvolver mais as habilidades 
das equipes locais. Todas as atividades eram realizadas por 
“Mediadores” com formação escolar bastante limitada. 
Alguns deles já trabalhavam na unidade e foram designados 
para o atendimento psicossocial. Em outros casos, membros 
de alguma associação de pessoas vivendo com HIV/AIDS 
passaram a colaborar com o projeto, desempenhando esse 
papel.
As condições de trabalho em cada serviço variavam pouco. 
Mesmo sendo instituição de saúde, em geral, os serviços 
10. Conversa/palestra 
curta sobre determinado 
assunto, com o objetivo 
de informar e/ou 
despertar a reflexão dos 
participantes.
Wontanara: estamos juntos? 74
parceiros não dispunham da estrutura sanitária adequada. 
Faltava água e higiene básica. Nosso staff responsável pelo 
controle de infecção ficava em estado de polvorosa, pois 
realizavam inúmeras formações com os higienistas e, ainda 
assim, não conseguiam obter o resultado pretendido. Várias 
unidades de saúde sem eletricidade e sem esgoto adequado, 
tornavam um pouco mais complicado o processo de melhoria 
do atendimento.
A presença do comércio ambulante de comida na frente 
dos estabelecimentos e/ou dentro do pátio aumentava, 
significativamente, a sujeira. Ao longo do dia, o lixo se 
acumulava, pois as

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