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RESENHA: DOS DELITOS E DAS PENAS A obra Dos delitos e das penas, de autoria do criminologista e economista italiano Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, é peça fundamental no estudo do Direito, de modo bastante particular, no que tange ao Direito Penal. Em escrita sucinta, porém, profundamente reflexiva, ela agrega múltiplos assuntos que se entrelaçam para a compreensão desta complexa área jurídica, e a medida que progredimos na sua leitura, somos apresentados a uma tese ao mesmo tempo brilhante e inspiradora, que curiosamente não se detém com exclusividade aos aspectos empíricos, substanciais, com os quais muito se ocupa o Direito, mas propõe através deles uma análise metafísica que consegue atingir o íntimo de cada um dos apontamentos feitos, transportando leitores peritos ou leigos ao terreno universal da dialética. Pouco ortodoxa como fora para sua época, a obra permanece inquestionavelmente sensível à determinadas questões ainda existentes na atualidade. Entre seus primeiros capítulos, por exemplo, figura Dos indícios do delito e da forma dos julgamentos(VII), onde Beccaria dará ênfase à polêmica questão de legitimidade de evidências. Sabemos quão embaraçosa pode ser esta temática, dado haver um grande risco na tentativa de realização da justiça as forças do Direito acabarem processando pessoas inocentes. O pensador italiano determina que “As provas de um delito podem distinguir-se em provas perfeitas e imperfeitas”[1], onde as provas imperfeitas dependem umas das outras para existir acusação fundamentada, e as provas perfeitas são aquelas em que o menor indício sequer não abre margem para quaisquer dúvidas acerca da culpabilidade ou inocência do acusado. Em síntese, tenta-se preservar aquele que aguarda por uma resolução precisa do judiciário de uma punição gerada pelo engodo, muitas vezes surgido de pistas falsas postas diante das vistas dos julgadores, usando neste propósito de toda argúcia investigativa e observação dos critério que determinam a maior ou menor relevância das evidências em seu processo. No mesmo capítulo Beccaria acessa outra importante discussão, e que ainda divide muitas opiniões: trata-se das prerrogativas do Direito Livre. Escreve ele que “Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é uma ciência.”[2]. Ousamos interpretar os dizeres do autor ponto de vista em que, havendo relatividade nos resultados alcançados pela aplicação do Direito, ora pesando para este lado, ora para aquele, punindo e absolvendo à direção que sopram os ventos, não chegar-se-á a algum lugar de fato, pois tanto os indivíduos quanto as autoridades que desempenham a função de vigiar e punir devem ambos estar cientes dos limites da lei. Todo cidadão deve ter conhecimento dos seus direitos e deveres, deve estar ciente das sanções que pesam sobre si. Já as autoridades julgadoras precisam obedecer àquilo que a letra da lei permite, do contrário, se desfuncionaliza sua decisão final para com o cumprimento da justiça. Nos capítulo XXIV, ou Da medida dos delitos, XLI, ou Dos meios de prevenir crimes e XXXVIII, ou De algumas fontes gerais de erro e de injustiças na legislação, Cesare Beccaria transita por uma dimensão do plano jurídico que está minado por absurdos e controvérsias na produção, aplicação e conseqüências acarretadas pela lei. Em Da medida dos delitos, o autor saliente que a exata medida de um crime é o prejuízo causado à sociedade, sendo assim, não há outros pesos capazes de fazer seu cálculo com maior precisão. Os danos trazidos à sociedade pelos delitos cometidos devem estar sobrepostos a todas as demais disposições e circunstâncias que lhe pressuporiam abrandamento, pois, escreve o autor, “Freqüentemente, com a melhor das intenções, um cidadão faz à sociedade os maiores males, enquanto um outro lhe presta imensos serviços com a predisposição ao mal.”[3] Mas ainda assim, “é preferível prevenir os delitos a ter de puni-los[...]uma legislação boa não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhe possam causar”, argumenta ele em Dos meios de prevenir crimes.[4] E para prevenir os crimes, enfatiza o autor, basta que “fazeis leis simples e claras”. Não se trata de ampliar o leque de proibições que o Direito nos impõe, pois “a que ficaria o homem reduzido, se houvesse necessidade de proibir-lhe tudo o que pudesse lhe ser ocasião de praticar o mal?”.[5] No capítulo XXXVIII, Beccaria defende que “É por uma falsa idéia de utilidade que se procura submeter uma infinidade de seres sensíveis à singularidade simétrica que pode receber matéria bruta e sem vida; que se deixam de considerar as razões presentes, únicas capazes de impressionar o espírito humano de modo forte e durável, para utilizar razões remotas, cuja impressão é fraca e passageira, a não ser que uma grande força de imaginação, que apenas se encontra num pequeno número de homens, supra o afastamento do objeto, conservando-o sob relações que o aumentam e o aproximam.”[6] As leis imprecisas e arcaicas que o autor de Dos delitos e das penastentou combater, como consta em seu perfil biográfico[7], advinham da rigorosidade e tirania com que as instituições de Direito da época concebiam e lançavam mão da lei. Ainda no século XVIII, período em que viveu, Cesare Beccaria estava dirigindo-se mais exatamente à Igreja e seus órgãos policialescos, como a Santa Inquisição. Ele reconhece e exalta em sua obra o uso do medo como fator de coerção social, justificando que “as idéias religiosas foram indubitavelmente o único liame que pôde forçar os homens a viverem constantemente debaixo das leis.”[8] Foram, prossegue, “os benfeitores da humanidade esses homens corajosos que ousaram iludir seus semelhantes para os servir e que levaram a ignorância audaciosa até o pé dos altares”.[9] Porém, em observação as fatalidades inescapáveis geradas pelos equívocos e excessos cometidos ao longo dos mil anos da Idade Média, “como os erros podem ser subdivididos até o infinito, as falsas ciências que esses erros criaram tornaram os homens uma multidão fanática e cega, perdidos no labirinto em que se fecharam e prestes a chocar-se a cada passo[...]Os milagres mais incríveis e os favores mais evidentes que o céu lhe prodigalizou substituíram a política humana.”[10] Nesse sentido, o autor estabelece que, de certa forma superadas tais insidiosas legislações, devemos nos orientar na busca pela construção de uma sociedade justa aceitando que “a maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos propensos à prática do mal, é aperfeiçoar a educação.”[11] O filósofo e matemático grego Pitágoras tinha por máxima que “era preciso educar as crianças hoje, para não precisar punir os homens amanhã”. Cesare Beccaria constrói todo um arcabouço teórico para explicar sua visão jurídica inovadora e acaba chegando a mesmíssima conclusão: somente a educação tem força suficiente para frentear o mal e transformar o homem. Evidentemente, como escreve o cientista político francês Jacques Sémelin em seu livroDestruir e Purificar: usos políticos dos massacres e dos genocídios, ter educação não significa, em regra, ser bom e praticar o bem. Muito pelo contrário. Não se questiona, contudo, que esta possa ser descartada de qualquer projeto para a melhora do homem. E aqui gostaríamos de nos inserir numa última idéia beccariana a qual incita, de certa forma, tanto a nossa análise de como chegar a esse feliz resultado, quanto visitar à completude do livro Dos delitos e das penas: trata-se do capítulo XVI, ou Da pena de morte. Para o autor, a pena de morte “não se apóia em nenhum direito. É a guerraque se declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a eliminação desse cidadão”.[12] Apesar de sua oposição, ele argumenta que há apenas duas exceções onde a mencionada pena pode ser entendível: 1º na defesa da liberdade da pátria contra inimigos internos ou externos; 2º contra práticas terroristas que ameaçam sociedade. Existiria ainda uma terceira possibilidade enunciada, no entanto, esta parece ter ficado subliminar, e trás a idéia de que a pena de morte deveria ser usada como medida preventiva na ocorrência de novos crimes, ou seja, uma vez estes venham sendo praticados com regularidade – assassinatos em série; roubos sistemáticos, etc., ). Exceções à parte, o pensador italiano determina que “O rigor do castigo faz menor efeito sobre o espírito do homem do que a duração da pena, pois a nossa sensibilidade é mais fácil e constantemente atingida por uma impressão ligeira, porém freqüente, do que por abalo violento, porém passageiro.”[13] Em outras palavras, a morte é o fim do criminoso, não do crime. Qual a explicação dessa permanência do crime, uma vez que o seu praticante é retirado do meio social? Muito certamente há mais do que uma resposta plausível para essa questão, e as verdades por detrás das suas respostas, bem, “o destino das grandes verdades é não fulgurar senão como um relâmpago em meio à longa noite de trevas que cerca o gênero humano.”[14] Os lampejos da razão por vezes são de uma claridade intensa e magnífica, mas seu brilho ilumina por uma fração de segundo, antes de mergulhar tudo nessa névoa escura que impede de enxergar. Por isso o autor inquire: “Não é absurdo que as leis, que são a expressão da vontade geral, que detestam e punem o homicídio, autorizem um morticínio público, para afastar o cidadão do assassínio?.”[15]Aceitarmos a ineficiência de um método que remove provisoriamente o mal que se acomete sob o cidadão é parte de um processo bem maior, que nos permitiria compreender que “Todo ser sensível está dominado pelo império do hábito”, [16] e assim sendo, precisa receber impressões reiteradas de como viver seus direitos e deveres, estando ambos em absoluta conformidade com àquelas fontes primeiras de formação social, livres de particularidades materialistas. Devido a condições numerosas que tornam este último aspecto problemático, não deve impressionar em momento algum as recorrências do delito, apesar de todos os esforços para a suprimir definitivamente. CONCLUSÃO Dos delitos e das penas é uma obra cujo volume pouco chamativo ou brevidade dos pensamentos que encerra não refletem sua grandeza e profundidade filosófica. Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, a concebeu praticamente do nada, tendo que lançar mão de muita pesquisa e consulta às mentes esclarecidas de sua época, para ser capaz de entender aquilo que mais tarde configurar-se-ia no Direito Penal moderno. Cada argumento que apresenta ao leitor é uma imersão nas particularidades dessa vivência fundamental na sociedade, cuja evolução se faz num ritmo tão lento que beira ao imperceptível, em comparação às transformações rápidas e sutis na política e economia que lhe estruturam, o que qualifica as discussões propostas pelo autor como sempre convenientes e atuais. Pelo menos pelos próximos séculos.
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