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FILOSOFIA CRÍTICA E RAZÃO JURÍDICA – SIMONE GOYARD-FABRE 1. Introdução: O pensamento jurídico, a partir do século XVI, começa a sofrer um notável progresso, em que ganhou um espírito novo, separado da rotina e dos dogmas da escolástica, do qual decorreu na orientação aplicada aos estudos humanos, a ocupação significativa da reflexão filosófica e da confiança no raciocínio. Contudo, foi apenas na virada deste século, que de fato houve mutação intelectual, metodológica e epistemológica, tendente expressamente à racionalização da esfera jurídica. Vale salientar que à este tempo (início do sec. XVII), a razão ganhava força em todos os campos e que Descartes foi autoridade importante para esta metamorfose nas diretrizes do pensamento humano. Entretanto, no tocante à esfera jurídica, a transformação dada pela razão foi mais evidente, ponto no qual desponta Hugo Grócio como introdutor de uma nova forma de pensar Direito, conduzindo ao surgimento doutrinal do Direito Internacional. a) Hugo Grócio Grócio, com sua obra “De jure belli ac pacis”, publicada em 1625, não apenas coloca a razão como cerne de seu pensamento, como revoluciona a Ciência do Direito. Ele introduz o jusnaturalismo racionalista, consolidando uma impactante mudança na forma de pensar o universo jurídico. Para ele, a ciência jurídica deveria ter como base o encaminhamento racional semelhante àquele que se desenvolve na matemática. Dentre as razões mais fortes que o levaram a escrever sua obra, destacam-se: 1- vontade de reagir à situação nociva provocada pela guerra em vários locais do mundo; 2- prestar serviço à jurisprudência, de forma a sistematizar a ciência do Direito (= sanar a carência metodológica do Direito). Ele desenvolve, pois, modo de pensamento e método específico (“discursivo”) que consagram a sua independência intelectual e sua vontade de racionalização do direito, ao passo que, à maneira dos matemáticos, desconsidera a reflexão de todo fato particular, evitando discussões polêmicas e descartando o dogmatismo. Para ele, cabia: 1- fundamentar os fatos nas razões mais evidentes; 2- ordenar as matérias (sistematizar/categorizar); e 3- distinguir aquilo que parecia ser semelhante ou pelo menos, de mesma natureza, mas que, em verdade, apresentava diferença muito real. Conclui-se, então, que a evidência racional, a exigência de ordem lógica e de um pensamento claro e distinto (que varresse as confusões e equívocos) eram as diretrizes (“cânones”) da “nova ciência do Direito” proposta por ele. Depreende-se que o direito, a partir desse momento, não poderia mais fazer parte de disciplinas que dependessem da experiência ou da crença. Os juristas só pensariam em direito através de sua relação com axiomas e definições, e só o estabeleceria por meio de provas estritamente racionais. A ordem jurídica não se dedicaria à resolução de problemas singulares à conjuntura política do momento, uma vez que a metodologia imputada ao Direito o afastaria dos dogmatismos especulativos aos quais estavam submetidos pensadores do jusnaturalismo teológico, como Aristóteles e Maquiável. Para Grócio, o universo jurídico deveria necessariamente libertar-se da teologia, pois “mesmo que se supusesse que não há um Deus ou que Ele não se interessa pelas coisas humanas”, o Direito continuaria a existir. Ao racionalizar a ordem jurídica, ela se tornaria laica. Esta emancipação do direito significa que sua validade não deve ser procurada em alguma transcendência incompreensível ao homem, de modo a originar-se na razão humana. O direito, como já foi dito, deveria ser claro e apresentar distinções de seus conceitos, compondo máximas da razão reta que, se fosse desprezada, estaria condenada a divagar fora da ciência. A razão, que sabe usar a complementaridade entre análise e síntese, passa a ser fio condutor da ordem jurídica, revolucionando o estudo do Direito, tornando o universo jurídico autárquico e racionalmente independente, que, entretanto, se confunde com o direito natural, o entendendo enquanto expressão da própria natureza do ser racional que o homem é. Algumas críticas foram aplicadas à nova forma de pensar direito [trazida por Grócio]: 1- a autoconfiança da razão, conduzindo ao “espírito sistemático” do Direito, inevitavelmente o condenaria a fechar-se em si mesmo; 2- o direito estaria condenado a uma unificação sem qualquer flexibilidade, aproximando-se da rigidez estéril do formalismo. A resposta a tais argumentos veio sem muito tardar: a razão impõe à compreensão do Direito a necessidade de ordem e unidade, recusando que o universo jurídico obedeça à espontaneidade, aos particuralismos e às diferenças presente a cada tempo e espaço, de modo que ao invés de tratar do pluralismo individualista ora predominante no Renascimento, Grócio propõe uma metodologia de afastamento entre Direito e dogmatismos especulativos. A razão seria a ordenada condução dos pensamentos no mundo jurídico, agindo em si mesma como um princípio que ordena ou proíbe, determina o justo ou o injusto. O “espírito geométrico” acoplado ao Direito por Grócio apresenta intrinsecamente ao desenvolvimento de um novo método, a aplicação filosófica da razão que, para além de seu modo de trabalho, prefigura ao Direito o princípio da normatividade jurídica, necessária para toda construção válida e eficaz. Para Grócio, o direito natural é um “requisito racional propriamente humano”; o direito natural está inserido na natureza humana. Ele reconhece apenas ao homem, por ser dotado de razão, o privilégio do direito natural. Logo, para ter direito natural, o homem deve ser racional e, por isso, a racionalidade é um requisito (próprio do homem) para possuir direitos naturais. Como uma voz interior, esse direito indicaria o que é moralmente necessário (justo) e o que estivesse em desacordo com ele seria injusto. O direito natural, portanto, teria o efeito imediato de tornar certas ações obrigatórias ou ilícitas, fundamentando a regra puramente racional do justo e do injusto. Vale salientar que Grócio, ao afirmar o direito natural como reflexo da natureza racional humana, não renega a importância de Deus como princípio necessário do mundo e que a racionalidade não dispensa a vontade divina. 2. As restrições perante o racionalismo jurídico triufante Em sua hostilidade contra os dogmatismos frutos do pensamento escolástico, a reflexão jurídica-filosófica do século XVII, iniciada por Grócio, incontestavelmente enaltecia os poderes da razão, os quais seriam capazes de corrigir as crenças e os erros do passado. Na esfera do direito e da política, o homem moderno despertou a tarefa de substituir, mediante o raciocínio e o esforço, as obscuridades dos dogmas, dos mistérios e do inexplicado. “De maneira geral, o humanismo racionalista, em todos os caminhos do conhecimento e da ação, abriu uma via que Grócio e depois os cartesianos prenunciavam brilhante”. Para muitos, a razão, sobre a qual todos concordavam em dizer que era o elemento diferenciador entre o homem e os animais, era a prova do direito natural e a arquiteta de seu potencial normativo; por outro lado, outros sustentavam que como o universo jurídico não se deixaria reduzir em sua própria arquitetura, a um diagrama lógico-matemático, o princípio de razão suficiente seria, em verdade, insuficiente. Assim, até mesmo na época em que emergiu o racionalismo [“racionalismo-rei”], manifestaram-se resistências e, o jusnaturalismo foi a constante que, indubitavelmente, esteve presente na bifurcação pela qual atravessou os dois grandes séculos da modernidade jurídica. b) Samuel Pufendorf Situar o pensamento de Pufendorf como se ele fosse pura e plenamente seguidor da obra deGrócio, a ponto de torná-los, ambos, pais fundadores da “Escola do direito natural moderno” é muito precipitado. Em verdade, eles inauguram na doutrina jusnaturalista, duas correntes diversas cujas diferenças filosóficas lançaram certa sombra em suas obras concernentes ao racionalismo. Mesmo quando a razão encontra sua mais segura e gloriosa expressão, no meio século englobante a Grócio, Descartes, Hobbes, Pufendorf e Locke, não é possível sustentar que suas filosofias procedem de uma única e mesma inspiração. O que se pode afirmar, contudo, é que entre o projeto epistemológico “De jure belli ac pacis” (1625, Grócio) e a intenção filosófica de “De jure naturae et gentium” (1672, Pufendorf) existe similitude quanto à ambição de dar ao universo jurídico uma forma racional e sistemática. A diferença entre Grócio e Pufendorf na missão de alcançar a sistematização e imputar ao direito o racionalismo, reside na forma como concebem seus respectivos programas de pesquisas. Não somente o corpus jurídico seria logicamente ordenado, como suas regras seriam deduzidas dos princípios primeiros da razão. Se a razão controlava o conhecimento e a ação humana, era, pois, “senhora” do mundo inteiro. Os preceitos da razão seriam, em verdade, o próprio direito natural, que nem mesmo Deus, se assim desejasse, poderia mudar. De fato, mesmo que Pufendorf afirmasse a intenção de constituir um “sistema do direito natural”, ele se afasta do esquema hipotético-dedutivo dos matemáticos (inspiração do método desenvolvido por Grócio). Para o jurisconsulto, o método racional deveria ser também acompanhado de pesquisa experimental. O que conferiria ao direito caráter de ciência seria um discurso dedutivo, baseado no princípio fundamental do direito natural. Se a “lei natural fundamental” constitui realmente a base do sistema dedutivo do direito, há de se deduzi-las no próprio estudo experimental da condição humana: somente se permite compreender no homem as tendências contrárias que o agita e fomenta, quando se examina a realidade humana. Esta estrutura de base no direito natural é “elaborada a partir da observação da natureza das coisas e dos homens, as quais não podem ser postas em dúvida por qualquer um que tenha razão sadia”. Para Pufendorf, o direito natural estaria vinculado à obrigação imposta aos homens pela “lei natural” desejada por Deus. Diferentemente de Grócio, que descartava da jurisprudência científica as verdades e os dogmas teológicos, estipulando que o direito natural seria próprio da natureza humana, Samuel entendia que, se o homem possuía capacidade de discernir o certo do errado, o justo do injusto, somente o conseguia por Deus ter desejado fazê-lo diferente dos animais (e não porque a razão em si o habilitou para isso). “Deus acrescentou à natureza primitiva dos homens, pela impositio de sua própria vontade uma dimensão de cultura que expressa sua liberdade em ato e os caracteriza como seres morais”. Para o jurisconsulto, portanto, o erro cometido por Grócio e por Hobbes consiste em ter entendido direito natural como manifestação da [simples] natureza [humana], mesmo que racional. Em verdade, o direito natural é uma regra em que a razão humana reconhece a normatividade da lei natural desejada por Deus. A razão é, então, instrumento para alcance do conhecimento do direito natural, submetida à determinação de vontades. (1- vontade divina, criadora do ser e da ordem do mundo; 2- vontade humana, na medida em que cabe ao homem corresponder à obrigação que está vinculada à lei de natureza). É importante observar que, dentro do caráter volitivo apresentado por Pufendorf ao tratar do direito natural, não existe a possibilidade de haver vontade humana que negue a razão, visto que ela é instrumento necessário para o conhecimento da vontade de Deus (lei natural). c) Barbeyrac (e os limites dos poderes da razão) Jean Barbeyrac foi tradutor tanto das obras de Grócio, quando das de Pufendorf e contribuiu para a análise de ambas, ao observar a divisão que separava os dois grandes jurisconsultos do século XVII. Barbeyrac chama atenção para o perigo de atribuir à razão extremo poder. Se, à racionalidade é imputada a função de tudo construir e compreender, não se pode aplicá-la tal competência, sem supereristimar os poderes de que é dotada a natureza humana (enquanto razão). Embora o humanismo racionalista apresente o grande mérito de emancipar o pensamento moderno, libertando-o dos mitos antigos e das diretrizes teológicas, aplica à razão pretensões exorbitantes de poder. O mau uso da razão traz o risco de ocasionar temíveis desvios dogmáticos. Importa, pois, criticar a razão não enquanto anti-racionalismo, mas reconhecer à ela foco mais diretivo do que constitutivo. 3. Rousseau Para Rousseau, a razão tal como se delineava pelos pensadores do século XVII viria a bloquear num futuro próximo a compreensão do direito. Sob a serenidade dos jurisconsultos que elaboraram seus métodos de sistematização do direito, Rousseau identificou hesitações e incertezas que corroíam as próprias fundações do Direito. Em pleno ápice do racionalismo [“racionalismo-rei”] ele observou “a mitologia racionalista” na qual iram triunfar “ídolos do céu lógico”: a verdade no mundo do conhecimento e a liberdade no universo prático. Pôs-se, porém, a questionar: será pertinente que os homens recorram com tanta frequência a essa celebríssima razão, pois, afinal, ela está longe de andar com movimentos sempre retos?. É em torno dessa indagação, fruto da percepção que o mito da transparência é acompanhado de uma mentira, que Rousseau reflete sobre o homem e suas obras. Suas indagações e reflexões acerca da razão humana não o enquadram, porém, como antirracionalista intransigente: para ele, não se poderia negar a razão, pois, a renúncia dela, seria a renúncia à qualidade do homem, aos direitos da humanidade e até, dos deveres. Prefere ele se entregar a uma atividade de examinação, sem, contudo, destruir a confiança que há na razão: deve-se discernir nela os riscos de contradição ou de antinomia e identificar os limites que não podem ser transgredidos sem causar perigo. Com efeito, de um lado, a razão que ele reconhece no homem não é a cartesiana, dona da verdade; mas sim, é a razão enquanto faculdade (uso que se faz dela): ela indica no homem uma incontestável potencialidade de sabedoria que ele precisa para alcançar sua liberdade, mas também pode significar se, se afastar dos limites naturais a ela impostos, desvio para especulações inúteis, as quais seriam o caminho do erro. Aos olhos de Rousseau, transgredir os marcos da razão e torná-la uma operária do saber absoluto é o pior de todos os erros do espírito. Por isso importa, em primeiro lugar, devolvê-la a seu papel de uso razoável – liberto dos cânones tradicionais do jusnaturalismo teológico e também, livre dos esquemas epistemológicos empregrados pela lógica construtivista da ciência jurídica inaugurada com Grócio.
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