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Atitude Critica

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Relativismo, fundamentalismo e posição crítica
celso r braida
A história da humanidade pode ser vista como a história da tomada de consciência da ilusão e 
do reconhecimento dos erros da convicção. Em dado momento, perante a certeza convicta, um 
acontecimento põe tudo a perder, uma emergência abrupta do real vem destruir o véu protetor. A 
atitude natural é de confiança no que acontece e no que se apresenta, é de confiança sobretudo no 
modo como as coisas se dão e no modo como se diz o que acontece. O mundo está aí, nós o 
percebemos e nós o dizemos. No entanto, a conversa com outros e a consciência do passado nos diz 
que as coisas podem ser bem diferentes, que o que tomamos por real e por verdadeiro pode ser 
ilusório e falso.
1. O relativismo pode ser visto como a posição a partir da qual a verdade (correção, validade) 
de uma proposição é relativa a alguma coisa que varia a cada situação; outra versão do relativismo é 
a tese de que o ter por verdadeiro (por um sujeito ou comunidade) fundamenta a verdade das 
proposições. O fundamentalismo, ao contrário, seria a posição a partir da qual a verdade de uma 
proposição é relativa a algo que não varia a cada situação. O fundamentalismo as mais das vezes é 
confundido com o dogmatismo; porém, dogmáticos são apenas aqueles fundamentalismos que 
aceitam como verdadeira alguma proposição, ou discurso, a partir da qual e na qual todas as 
verdades se fundam. A tese fundamentalista é mais forte do que a tese dogmática, pois implica que 
a verdade de qualquer discurso funda-se em algo independente e não-relativo ao discurso. Dito de 
outro modo, para o relativista a verdade de uma proposição funda-se em algo variável; para o 
fundamentalista, a verdade funda-se em algo fixo. Alguns preferem usar a noção de tempo para 
fazer essa distinção: para o relativista o fundamento da verdade é temporal, para o fundamentalista 
esse fundamento é eterno. Normalmente, o fundamentalista acredita também que ele tem acesso ao 
fundamento da verdade e que quem dele discorda está no erro. Por sua vez, o relativista em geral 
também acredita que ele está na verdade e que toda discordância não implica em erro de nenhuma 
das partes. Nesse sentido, ambos acreditam na verdade. Além disso, o relativista e o 
fundamentalista concordam num outro ponto, qual seja, ambos absolutizam a própria posição, pois, 
para ambos, os argumentos, práticas e opiniões dos outros que pensam diferente não são razões 
suficientes para se questionar a verdade de suas próprias posições. Nada do que o outro diz abala a 
sua própria posição, para um porque toda diferença é sinal de erro, para o outro porque toda 
diferença é conciliável com a sua verdade.
2. Agora, considere-se a seguinte situação. Na aldeia A tem-se por verdadeiro que (1) o aborto 
não é crime, que (2) fumar tabaco não acarreta mal-formação fetal, e (3) que a água é uma 
substância simples; na aldeia B vizinha, ao contrário, tem-se por falsas as proposições (1), (2) e (3). 
Durante séculos uma aldeia tentou impor-se culturalmente sobre a outra, com base na suposição 
comum a ambas de que a verdade deveria ser única e exclusiva, que a verdade tinha um fundamento 
independente das opiniões dessa ou daquela aldeia, pois cada uma acreditava ter o acesso a esse 
fundamento. Muitos morreram na luta pela verdade. Até que um dia um sábio andarilho e errante 
resolveu a disputa mostrando que a diferença de opinião das duas culturas não precisava ser 
resolvida. Ele disse, “o homem é a medida do que é e do que não é. A verdade é relativa ao homem 
e toda aldeia é uma manifestação do humano, logo ambas as aldeias estão com a verdade, apenas 
têm culturas e visões das coisas diferentes.” “Pensem comigo”, disse ele, “considerem as coisas do 
meu ponto de vista; para mim é verdade que (1) (2) e (3) são verdadeiras na aldeia A e que é 
verdade que na aldeia B tais não são verdadeiras”. Os habitantes de ambas as aldeias tiveram de 
concordar com o sábio, ele estava dizendo a verdade, e não pertencia a nenhuma das aldeias. A 
partir desse dia ninguém mais morreu pela verdade; cada aldeia dizia e ensinava que a verdade era 
relativa a cada aldeia, e que não era necessário brigar pela verdade. Todos estavam contentes e 
passaram a fazer festas comuns. Então, um dia uma moça engravidou com um moço da outra aldeia. 
Mas, ao perceber a gravidez disse para o moço que iria fazer aborto, pois ainda era muito cedo para 
ter filhos. O moço, indignado, disse que isso era um crime hediondo e inaceitável, e que caso ela o 
fizesse ele seria punido em sua aldeia, pois ele era co-responsável pela gravidez. Então, ela virou-se 
para ele e disse: “eu vou abortar porque eu fumo tabaco desde há muito tempo e isso, segundo o que 
se acredita na sua aldeia, fará mal para a criança.” O moço teve que concordar com ela. Mas, ele 
não podia aceitar o aborto. Então, ele disse: “mas você não acredita que o tabaco faça mal, logo, o 
seu argumento não vale...”. Ela retrucou, “na minha aldeia o aborto é permitido!” Não conseguiram 
ficar em paz.
Essa urgência, esse aparecimento do real bruto, a gravidez não planejada, fez balançar a 
confiança no pacto relativista que havia apaziguado as duas aldeias. A solução relativista não era 
capaz de resolver a questão. Se aceitassem o aborto, um dos lados teria de qualificar o ato e os seus 
responsáveis como criminosos. Então, um menino cego e mal-trapilho disse veladamente ao povo 
das duas aldeias: eu “quero falar de sua mania de negar o que é, e de explicar o que não é”. “Vocês 
compreenderam mal o sábio estrangeiro. Ele disse a sua verdade, não que a verdade era relativa. Ao 
contrário, o que ele disse era que havia apenas uma verdade, essa: que nossa aldeia tinha por 
verdadeiro exatamente o que a outra tinha por falso e vice-versa. Essa é a verdade. Mas, vós, por 
não quererem admitir a realidade do conflito, iludidos que estavam por sua própria vaidade da posse 
da verdade, viram apenas a parte que lhes interessava, aquela que confirmava as suas velhas 
verdades. Essa gravidez veio mostrar o auto-engano em que vivemos desde então.” Todos se 
calaram e a noite caiu sobre as cabeças confusas e o sono veio cheio de pesadelos.
3. Abaladas na sua certeza e convicção, dessa vez as aldeias não lutaram, porém. As duas 
aldeias reunidas iniciaram uma discussão em comum acerca das próprias crenças, pois agora elas já 
não tinham mais a força da verdade e o problema atingia as duas partes. Primeiro, chegaram a 
conclusão que ser o aborto um crime era uma questão de costume antigo na aldeia B, pois no que 
acreditavam firmemente era que tirar a vida de alguém era crime, e alguém um dia estendeu essa 
tese para a vida intra-uterina. Depois, concordaram que ser o tabaco causa de mal-formação era uma 
opinião baseada na observação de casos reais no passado na aldeia B, e que a aldeia A não 
acreditava nisso porque nunca houve casos semelhantes lá. Quanto ao terceiro caso, em ambas as 
aldeias não havia nenhum argumento, mas tão somente uma crença que foi aceita como princípio, já 
que nenhuma experiência ou fato passado indicava que a água era ou não era simples. Depois de 
muito pensar, chegaram a conclusão de que não sabiam a verdade. Se desesperaram. Pensaram de 
novo e muito mais. Fumaram longos cachimbos durante três noites e três dias. Não resolveu. 
Suspenderam a crença na verdade de suas crenças, e decidiram investigar mais e melhor tais 
assuntos. Assim nasceu a ciência entre eles. Decidiram chamar o menino cego de filósofo, pois ele 
não tinha a verdade, mas a desejava.
Muito tempo depois, quando a nova criança já corria atrás das borboletas e dos pirilampos, as 
duas aldeias voltaram a se reunir para tomar uma decisão. Guiados pela palavra do menino cego,haviam percebido que um fato ser crime ou não era diferente de um fato causar outro fato e, mais 
ainda, que ambos esses casos eram diferentes de uma coisa ser assim ou não-assim. A primeira 
ilusão havia se dissipado por meio de uma reflexão conceitual. Mas isso ainda não era suficiente. 
Decidiram, em comum acordo, que (a) o aborto somente não seria crime quando se comprovasse 
que o feto seria incapacitado para viver autonomamente, e (b) em qualquer caso, quando ambos os 
pais concordassem até antes do final da oitava semana de gravidez. Ficaram todos felizes, pois, a 
partir desses dois pontos comuns puderam manter a opinião de ambas as aldeias sobre o assunto. O 
aborto era e não era crime, mas não sob o mesmo aspecto. Quanto ao problema da relação entre 
fumar tabaco e mal-formação fetal, descobriram que (c) isso acontecia apenas quando as futuras 
mães fumavam durante a gestação e (d) que esse efeito era anulado se o tabaco era da espécie alfa, 
produzido somente na aldeia A. Novamente ficaram felizes, pois não precisaram abandonar suas 
antigas crenças, mas tão somente aperfeiçoá-las. O terceiro caso ainda está por resolver. Nenhuma 
experiência ou observação pode verificar a simplicidade ou a complexidade da água. Na aldeia A, 
todavia, desenvolveu-se uma teoria atômica da matéria, e por ela pode-se inferir que a água é 
complexa, e pelo menos conteria dois elementos distintos. Entretanto, na aldeia B desenvolveu-se 
uma teoria energética da matéria, pela qual todas as substâncias, inclusive os átomos previstos na 
teoria da aldeia A, são quantidades de energia, da qual infere-se que a água é simples em última 
análise. Porém, eles estão agora sem verbas para construir um equipamento que testaria essas duas 
inferências. Resolveram fundar uma universidade financiada por aqueles que têm mais posses e 
vivem melhor nas duas aldeias, pois descobriram que muitas outras suas crenças também eram 
obscuras e conflitantes. Ainda era noite, e havia muito por investigar.
(E nós, como revisaríamos as conclusões das aldeias? Como resolvemos nossos conflitos de 
opinião? Não somos relativistas quando nos querem convencer de algo que nos desagrada, e não 
somos fundamentalistas quando atacam nossas certezas? Hem, hem?)
4. As duas aldeias passaram de uma posição fundamentalista, na qual cada uma tinha a verdade 
absolutamente e os diferentes estavam errados absolutamente, para uma posição relativista, na qual 
a verdade das próprias crenças não implicava o erro dos que pensassem diferente, mas em que 
também a aceitação da verdade dos outros diferentes não implicava a revisão das próprias. Diante 
da emergência real da gravidez, eles adotaram uma posição crítica em relação às próprias crenças, 
questionando-se sobre a validade do ter por verdadeiro de ambas as aldeias. Essa posição é a mais 
frágil de todas e a mais difícil de se ocupar, pois ela exige que toda diferença de opinião seja 
considerada como indício de ilusão ou engano, não do outro diferente, mas das próprias crenças, e 
que nenhuma verdade estabelecida seja imune ao questionamento. Diante de um conflito de 
verdades, a posição crítica suspende o ter por verdadeiro de todas as partes envolvidas. E toda 
solução, ou veredicto, tem de se fundar em critérios aceitáveis em comum por todas as partes em 
litígio. E, mesmo assim, uma vez estabelecida uma verdade com base em critérios comuns, se 
alguém discordar, tem de ser feita uma revisão dos critérios comuns. Difícil permanecer nessa 
posição. Pensar, julgar, decidir e viver a partir dela tornam-se atividades de risco, pois as certezas e 
verdades solidificadas pela tradição podem desmoronar de uma só vez.
A posição crítica recusa, por conseguinte, tanto o fundamentalismo dogmático quanto o 
relativismo fácil. Se não nega a verdade, também não se nega a rever as verdades. A posição crítica 
aceita do relativismo a tese de que não há verdade absoluta, independente de qualquer coisa, mas 
também aceita do fundamentalismo a tese de que a verdade não é variável ao bel prazer das 
consciências. O crítico então conclui que apenas em relação a um critério ou método comum se 
pode aceitar uma proposição como verdadeira ou não. Mas, dado e aceito o critério, a verdade de 
uma proposição torna-se independente da vontade dos interessados. Se as duas aldeias fixarem a 
Tabela Periódica como o critério comum, elas terão de aceitar que a água é um complexo de 
oxigênio e hidrogênio. Mas, também terão de aceitar que os átomos são de uma única energia 
concentrada. Desaparece a relatividade da verdade, ao mesmo tempo que desaparece a verdade 
absoluta. As luzes dos pirilampos e dos fogos-fátuos apagam-se, a aurora anuncia o dia claro. 
(Essas três posições não são as únicas alternativas. A partir da posição crítica se pode divisar 
ainda: uma que recusa inteiramente a noção de verdade (ceticismo), outra a partir da qual as 
proposições não são verdadeiras em relação a algo (deflacionismo), e a posição do artista, aquele 
que inventa e faz mundos e discursos sem se perguntar pela verdade.)
Florianópolis, 2007.

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