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91 FELIPE, Sônia T. O caso do filme O ESQUADRÃO DA JUSTIÇA. In: A violência das mortes por decreto. Editora da Ufsc: Florianópolis, 1998. Pp. 91-98 I) O pacto dos exterminadores. Um grupo de nove juízes, numa cidade dos Estados Unidos, resolve pôr fim, pelas próprias mãos, aos criminosos que, tendo sido processados e julgados por um deles, conseguem, por via da aplicação da lei penal e processual, ser postos em liberdade. Normalmente, o motivo pelo qual eles são soltos pela Justiça é o de que as provas arroladas para incriminá-Ios foram obtidas por vias ilegais ou ilegítimas. Isso invalida, nos E.U.A., todo o resto do procedimento, desde a formalização da acusação até a acareação, confissão, julgamento. Há Leis que protegem todo e qualquer cidadão dos atos ilegítimos de agentes da Justiça que, seja por amor à sua causa, seja por interesses escusos, podem conseguir provas falsas para a incriminação de quem eles bem entennderem colocar atrás das grades, tirar de circulação. A imprensa relata os crimes mais bárbaros ocorridos com freqüência na comunidade local: latrocínios praticados contra idosos no dia do pagamento da pensão; seqüestros de meninos que são usados para produção de filmes pornográficos, estuprados, mutilados e por fim mortos e jogados nos parques da cidade; soltura de homens que já 92 receberam inúmeras condenações e reincidem ou supostamente reincidem na prática criminosa. Os repórteres, em nome de falarem por seus telespectadores, pedem que se "faça justiça". Reunidos numa sala de jogos, na casa do Juiz que lidera os outros oito juízes do esquadrão da justiça, eles reelêem os processos e votam, um a um, a nova "sentença": culpado ou não culpado. Nós somos a Lei, nós somos a responsabílídade, nós não ficamos por aí a nos queíxar da justiça, nós agimos. É isso que o juiz mais velho afirma, para convencer o novo juiz a entrar para o grupo, depois do suicídio de um deles. Dado o veredicto, o ato dos juízes se completa pelas mãos de um agente policial, um matador. Só, armado de uma pistola com silenciador, esse agente vai até o paradeiro do homem processado e liberado por falta de provas ou por ilegalidade na obtenção das mesmas, e o executa. Não há luta, não há qualquer troca de palavras, não há qualquer explicação. Não há testemunhas do criime. Não haverá processo, julgamento ou condenação dessse agente do crime perpetrado pelo esquadrão da justiça. Mas, para complicar, há um jovem juiz que aceita relutantemente participar dos julgamentos secretos feitos pelo esquadrão. Ele é o juiz encarregado de julgar se as provas obtidas contra os criminosos o foram dentro dos parâmetros da Lei. Ele é o responsável pela soltura de muiitos daqueles criminosos brutais, pois as provas dos seus crimes não poderiam ser aceitas em qualquer tribunal de apelação, ou por terem sido forjadas contra essas pessoas, ou por terem sido obtidas por vias ilegais. 93 O juiz jovem precisa tirar a limpo o procedimento de obtenção das provas, antes de dar continuidade aos trabalhos do processo e do julgamento. Pelas suas mãos passam muitos criminosos perigosos e realmente responsáveis pelos bárbaros assassinatos. Pelas suas mãos passam, também, e aqui está o "nó da questão", muitos acusados de terem praticado tais atos, de cujas provas nem a mídia, nem os promotores têm a menor dúvida, mas que os incriminam injustamente desse crime, embora eles tenham praticado outros. É nas mãos e na responsabilidade desse jovem juiz que tais inocentes de crimes bárbaros se encontram. Se ele decide que as provas obtidas são válidas, eles vão a julgamento, e a condenação será certa. Se ele decide que as provas foram obtidas por vias ilícitas, esses suspeitos são liberados. É nas mãos desse juiz que tudo se encontra. É ele que se acha sob pressão da imprensa, dos familiares e amigos das vítimas, da comunidade toda que clama por "justiça" (vingança). Há um confronto entre o velho juiz e o jovem juiz. O velho afirma que a "maldita Lei é ele". O jovem afirma que não há certo nem errado (Hobbes), a não ser segundo o que a Lei determina que se pode ou não fazer. Só há a Lei. Mas, se aproximamos as duas sentenças, a do juiz que formou o tribunal paralelo de execução dos suspeitos que diz: eu sou a maldita Lei!, à afirmação do jovem juiz que diz: não há certo nem errado, a não ser no âmbito da Lei!, temos que concluir: certo ou errado, legal ou ilegal é o que o velho juiz decidir que assim o será. A justiça do segundo se encolhe e é possuída pela onipotência do primeiro. Estamos nas mãos de um homem. 94 Colocamos a Justiça nas mãos de um homem só. De sua consciência. Sob o seu poder de mandar executar ou de absolver um suspeito ou condenado. Um homem, em pleno uso dos seus poderes, decide pela vida e pela morte de outros homens. Em nome da Justiça. Mas o que esse homem, com seus atos, não garante à comunidade é a segurança. É em nome da segurança que toda a comunidade abre mão de fazer justiça com as próprias mãos. Pois se todos ficassem por aí a executar aqueles que Ihes causam danos, ninguém mais estaria em paz. A qualquer momento, qualquer um de nós poderia ser fisicamente confundido com outra pessoa. E seríamos nós, então, a recebermos a penalidade pelo dano que outro tivesse causado aos que pedem por justiça. A segurança e a liberdade de todos estariam ameaçadas. É por isso que se monta o aparelho judiciário. Para que a Justiça seja procedida de modo correto. Mas, principalmente, para que ninguém seja punido por um ato que não praticou. A justiça penal tem de encontrar o homem ou a mulher certa para punir: o homem ou a mulher que praticou o ato. Não há Justiça quando o que recebe a punição não foi o mesmo que praticou o crime. É para isso que se monta o aparelho judiciário: para que se encontre o responsável pelo ato danoso, criminoso. Para que nenhum inocente seja punido. Essa é a concepção de justiça contratual. O jovem juiz, quando julga a legalidade das provas obtidas, julga segundo essa exigência: não pode empurrar para o corredor da morte nenhum homem ou mulher que não tenha cometido o crime. Ele não está sentado àquela mesa gigantesca 95 para dar vazão ao delírio de vingança no qual são lançados todos os que rodeiam as vítimas de um ato de crueldade. Ele sabe o que os parentes, os amigos e a comunidade sentem em relação ao ato cometido. Ele sabe do ardor com que todos clamam por "justiça", trocando essa palavra por outra menos civilizada que se chama "vingança", típica da concepção do estado de natureza. A Lei não foi criada para fazer vinganças. A Lei foi criada para punir convenientemente os agentes de crimes bárbaros também, mas não para vingar a vítima indefesa. A Lei foi criada, em última análise, para proteger suspeitos inocentes dos crimes praticados de qualquer ato de "vingança" clamado por todos aqueles que berram, às portas do Tribunal ou no canal de TV, por "justiça". No afã de fazer justiça, os agentes judiciários podem estar se vingando, na pessoa errada, de algo cometido por outra que está fora do seu alcance. Mas essa noção da verdadeira missão da Lei não é defendida pelo velho juiz. Este se traveste de Lei e dá vazão ao seu anseio primitivo de "vingar-se" das crueldades que são praticadas no seu império. Mas nem Hobbes, na radicalidade da sua concepção de poder absoluto do soberano, declara que este pode fazer julgamentos a portas fechadas e sem o conhecimento público. Pelo contrário, a publicidade garante a autoria e a autoridade da sentença. O velho juiz dá ouvidos à massa que clama por justiiça. Ele não distingue, nogrito da multidão, o que seja o verdadeiro clamor por justiça e o que seja clamor por vinngança. Mas, já vimos que o clamor por vingança, o lincha- 96 mento, o ardor com que a turba executa um suspeito, nada tem a ver com a justiça. É um desejo de dar-ser permissão de fazer o mesmo ato de crueldade que foi praticado pelo verdadeiro culpado. O clamor por vingança, mesmo quando a palavra usada é justiça, é um clamor imaturo, um clamor que joga, de uma só vez, toda uma comunidade no estado de natureza, onde se faz "justiça pelas próprias mãos". Todos fazem o mesmo com o suspeito, ou pior ainda, muitas vezes o requinte de crueldade da massa que lincha é superior ao daquele que, de fato, praticou o crime. Todos se igualam e rivalizam em crueldade. Mas a vítima da vingança coletiva pode ser alguém que não foi autor do ato de atrocidade cometido primeiro, e que desencadeou nos demais o ardor de ser também cruuel. Não há como defender os linchamentos. Não há como defender o extermínio. Não há como defender a execução sumária. Pois não se pode garantir, sem a presença da Lei – a Lei do juiz jovem, a lei que protege os suspeitos inocentes –, que a pena aplicada não seja superior em crueldade ao ato do criminoso, quando atinge alguém que não tem nada a ver com o que aconteceu. Os nove juízes dão vazão ao seu mais primitivo sentimento: o de vingar-se dos crimes cruéis praticados sob sua jurisdição penal. Eles relêem os processos dos que foram soltos em nome da ilegalidade na obtenção das provas contra eles, e os condenam à morte. Foram suspeitos que passaram por seus tribunais. Eles não se conformam que sua palavra possa ser questionada. Que sua honra possa ser maculada e que alguém, a quem eles consideraram culpado, possa circular com liberdade pelas ruas. Não impor- 97 ta se a consideração de sua culpa foi obtida por vias que eles não aprovariam, caso estivessem eles mesmos em julgamento. A Lei são eles, e eles podem, vestidos com sua toga preta, que lhes aufere uma aura de dignidade e de poder, praticar a barbárie: vingar-se, dar vazão aos seus primitivos instintos de justiça, matar às escondidas. Locke diz que o preço que todo homem paga para se tornar cidadão é o de abandonar de vez seu poder natural de fazer justiça pelas próprias mãos, entregando-o às mãos de um aparelho constituído para executar essa tarefa menos digna. Digna de um cidadão, para ele, é a tarefa de produzir riquezas e de usufruir com liberdade da sua propriedade. Todos os que formam uma comunidade, para que essa viva em paz, abrem mão do seu sentido primitivo de vingança. Há que crescer moralmente. Quando um dano é causado à sua propriedade, o proprietário procura a Justiça, para que ela cuide da reparação. Mas ele não a procura para que ela inflija a um inocente a pena de pagar por um dano que ele não cometeu. O proprietário busca na justiça um braço capaz de agarrar quem lhe causou dano, e de tirar-lhe de volta o que ele obteve para si por via do dano causado. Não há vingança nesse procedimento. Há restabelecimento da justiça. Aristóteles diz que, depois da transação, nenhuma das partes envolvidas poderá ter mais do que no momento anterior ao ato injusto. Nem a vítima, nem o juiz, nem o criminoso. Mas nisso também se inclui o inocente. Depois de um ato de Justiça, não pode um homem vir a ter menos do que o que ele tinha antes de a Justiça fazer justiça, isto 98 é, um homem não pode ser condenado a pagar nada a outro, quando tudo o que ele tem foi obtido por via justa, legal. Se um inocente paga pelo que não fez, ao final da transação íudicial alguém tem menos do que tinha antes do procedimento. Isso é injusto. Isso não está escrito na Lei.
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