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1 Carta aos Gálatas Da fenomenologia existencial à gramática da faticidade[1] Luiz Hebeche - UFSC Ó descabeçados gálatas, quem vos enfeitiçou? (Gl. 3,1) 2 A Carta aos Gálatas é proclamação. Nela se expressa o "mundo de Paulo", ou seja, a sua experiência da fé e as suas relações com as comunidades cristãs primitivas. Sua relevância está em que também trata do episódio da sua própria conversão e da luta para preservar a experiência originária da fé cristã. A proclamação de Paulo, portanto, expressa não só a luta contra a ameaça de degeneração dessa experiência, mas também as suas invectivas contra a lei mosaica. Ela expõe também a demarcação da diferença inarredável não só entre cristianismo e judaísmo, mas entre a experiência da vida fática e o misticismo. A nova fé proclamada é um caminho sem volta. A Carta é, portanto, um documento marcante da sua missão apostólica. Aí estão em jogo as atribulações da sua vida e a execução da sua missão, à medida que, como vimos, a sua missão confundiu-se com a sua vida, isto é, com o seu desenvolvimento religioso, que não foi uma mera adesão, mas uma "agitação apaixonada" com a nova fé que passou a proclamar. A proclamação, que na leitura heideggeriana de 1 e 2 Tessalonicenses, era direcionada pelas intensas expectativas da parusia, muda agora de enfoque. Essa mudança, porém, não pode ser entendida cronologicamente, pois faz parte da mesma acentuação da experiência fática. A "agitação apaixonada" deixa de ser entendida a partir do âmbito mental dos sentimentos para situar-se, como em Heidegger, nos fenômenos da vida fática, mas, como iremos mostrando, o critério para a paixão está na gramática da proclamação. E essa acentuação da vida, expressa na proclamação, vai muito além de uma imitação ou adoção. Por isso, não se trata de uma mera adesão, mas de uma radical conversão. Conversão que dizer virar às avessas, isto é, fazer um giro radical no modo de viver uma experiência. No caso de Paulo, essa revolução foi provocada pela experiência da fé cristã. A experiência da conversão, expressa na proclamação, passa a ser entendida a partir do cerne do "tornar-se cristão". A proclamação é ação, ou melhor, é a faticidade tornada palavra ou a palavra tornada faticidade. A proclamação expressa a acentuação da vida fática, portanto a eficácia da linguagem apostólica não está na argumentação racional, mas num operar que mantém a intensidade da experiência fática do cristianismo. E o que Heidegger pretende alcançar e recuperar é, precisamente, a experiência da fé cristã, como uma experiência central da vida fática. O caminho filosófico de volta para tal experiência pode ser trilhado pelos "indícios" que se encontram nessa Carta, ou seja, nas palavras em que se expressa a faticidade. Os temas nela debatidos, porém, já fazem parte da compreensão da nossa complicada forma de vida. E se elas tornam possível voltar à vida fática é porque, a rigor, nunca se sai dela. O que estaria, então, em jogo, senão a tarefa de impedir que a filosofia perca de vista a faticidade de onde surge? A apropriação filosófica das cartas paulinas visa impedir o esvaziamento fático da própria filosofia. Para isso, porém, uma filosofia da religião tem de enfrentar a si mesma, ou melhor, tem de destruir as formas de objetivação da vida religiosa. Daí porque a recuperação da faticidade cristã só poderá se levada a cabo destruindo os dogmatismos ontoteológicos que encobrem a sua própria origem. Isso poderia, por exemplo, ser feito interpretando os poemas de Dante ou as tragédias de Shakespeare, mas a tematização da Carta aos Gálatas mereceu uma especial atenção de Heidegger por significar um giro na tradição do pensamento clássico, que abriu caminho para o romance de amor cavalheiresco ou para o drama elizabetano, entre outros. 3 A nosso ver, contudo, tal atenção se deve a que essa carta não é um mero documento do passado cristão primitivo, mas faz parte da execução da própria faticidade humana, isto é, daquela originalidade cristã que todavia sobrevive em nossas vidas. E, portanto, é o interregno no qual a filosofia também luta contra a sua pasteurização. Há uma similaridade entre a proclamação apostólica e a proclamação filosófica. O apóstolo alerta para que não se extinga a força do espírito e o filósofo, por sua vez, para que não se deixe extinguir a força da filosofia. A filosofia não é apenas uma autocrítica da razão, mas uma luta contra seu esvaziamento fático pela razão. Instaura-se, desse modo, uma tensão originária que não pode ser obliterada, pois, se de um lado não há filosofia sem conceitografia e, portanto, sem esvaziamento fático, por outro esse esvaziamento atinge a própria filosofia, embora seja precisamente essa tensão que se torna o assunto mesmo da filosofia. Por isso, a filosofia enfrenta-se a si mesma. E isso tem algo a ver com a experiência cristã, pois não se trata de uma adesão racional, mas, antes, se assemelha a uma conversão radical. Não se adere à experiência fática por convencimento racional, opondo-se a deslizes irracionais. Ora, trata- se de investigar a origem dessa oposição racional/irracional. A interpretação da Carta aos Gálatas, mais uma vez, permite a Heidegger avançar para os fenômenos originários da vida cristã primitiva. Nela Paulo relata, explicitamente, a luta travada não apenas consigo mesmo, na situação de missionário, mas também contra os judeus e os judeus-cristãos de Jerusalém, como Pedro, o discípulo dileto, e Tiago, o "irmão do Senhor". E isso é importante para Heidegger, pois "nós encontramos aí a situação fenomenológica da luta religiosa, e da "luta mesma". Paulo encontra-se, aí, em luta com a sua paixão religiosa (religiösen Leidenschaft) e a sua existência de apóstolo, a luta entre a fé (Glaube) e a lei (Gesetz). Esse conflito, porém, nunca é definitivo, embora, nesse caso, a lei e a fé sejam duas indicações de caminhos sagrados (Heilswegs)"[2]. Ou seja, na luta religiosa que se encontra na Carta aos Gálatas se manifesta não apenas a vida fática do cristianismo primitivo, mas também o que Heidegger mesmo quer alcançar em termos filosóficos: a luta da vida mesma. E a luta da vida, enquanto luta religiosa, torna-se o cenário da luta filosófica, pois trazer à tona esses fenômenos originários faz parte da luta filosófica contra a reificação da vida humana. Não é a filosofia a mais relevante expressão da vida? Por isso, ir de encontro à reificação dos fenômenos originários, nos quais se mantém o fluxo da vida, faz parte da mesma tarefa de impedir o esvaziamento fático da filosofia. Heidegger pretende acessar o núcleo querigmático da experiência da fé e manter-se nele, antes da sua transformação em doutrina, antes do acréscimo do "ismo". Trata-se, então, de resgatar a experiência da fé cristã antes do seu congelamento nas concepções do mundo, como o cristianismo e o humanismo. As concepções do mundo são o amolecimento e a paralisia da autêntica experiência da fé, que Heidegger pretende retornar a partir da explicação fenomenológica de um fenômeno religioso concreto, como o que se encontra na Carta aos Gálatas; ou seja, a questão filosófica que teve desdobramentos teológicos em Bultman e Tillich, entre outros, é a partir de onde se pode, efetivamente, mostrar, não a diferença doutrinária entre cristianismo, judaísmo, islamismo ou hinduísmo, mas a diferença entre a experiência fática da religião cristã e as suas diversas formas de encobrimento, pois não se trata, no caso, de problemas empíricos, que possam ser objeto de estudo da antropologia cultural ou da história comparada das religiões. A diferença crucial está entre a faticidadedo estilo de vida cristã e o que tende a hipostasiá-la nas concepções do mundo. Desse modo, a reificação da experiência fática da religião cristã não está apenas no seu desvio para as outras concepções religiosas ou seitas, mas na sua própria transformação em concepção cristã do mundo. A estratégia heideggeriana visa socavar as concepções do 4 mundo para ir ao encontro da originária experiência da fé cristã; por isso, contrapõe-se ao próprio cristianismo enquanto este se transforma num corpo doutrinário e dogmático; ou seja, enquanto a experiência fática da proclamação apostólica converte-se em objeto de estudo teológico, enquanto a força das suas palavras originárias torna-se presa de uma liturgia que se repete a si mesma. A diferença fática, porém, não é apenas uma destruição, mas apropriação, e isto quer dizer que, na execução do cristianismo, encontram-se indícios da sua experiência fática originária, caso contrário nunca se poderia acessá-la. Desse modo a fé cristã, por exemplo, com a solidão de Pascal ou a atribulação de Kierkegaard, ou ainda nas teologias de Karl Barth ou Urs von Balthasar, mantém-se viva, ao contrário dos deuses gregos e romanos. Ninguém ora nos ruínas dos templos de Dionísio ou Apolo, nem mesmo os herdeiros heideggerianos do "esquecimento do seer (Seyn)", mas na execução da vida cristã nas missas, nos cultos, nos debates com outras religiões, nas aulas de teologia, nas cerimônias fúnebres ou de batismo e de casamento; nos programas de rádio e televisão, no teatro e no cinema (Pasolini, Tarkovsky, Scorcese, Mel Gibson), nas esculturas ou nas pinturas de Corregio, Andrea del Sarto ou Michelangelo, de Salvador Dalí e Portinari, ou nas músicas sacras de Mozart ou Bach, enfim, de um modo ou de outro, se encontram, nessas atividades civilizatórias, os vestígios da experiência cristã originária que o jovem Heidegger pretendia apropriar-se em termos fenomenológicos. O trecho do curso Fenomenologia da vida religiosa dedicado à Carta aos Gálatas é bastante exíguo. Algumas breves considerações e notas de pé de página é o que restou da lição original, por isso servem apenas como indicações para interpretação. O que resta nessas passagens, no nosso entender, se encontra no cerne do que Heidegger entendia da "luta de Paulo" contra o mundo clássico greco-judaico e judaico-cristão e o que, em Paulo, também se encontra na "luta de Heidegger" contra a objetivação da consciência histórica, bem como as suas invectivas com respeito ao conflito metafísico entre o racional e o irracional. A interpretação heideggeriana visa a contornar todo tipo de exegese teológica e dogmática. Ela tampouco limitar-se-á a abordagens históricas ou a meditações de cunho religioso, mas, antes, será mais um exercício em que se reintroduz o método fenomenológico de compreensão. A particularidade desse método está em que, partindo da compreensão prévia do fenômeno religioso, ele indica um caminho originário de acesso ao fenômeno da fé. Esse caminho não é o mesmo do método da ciência histórica, nem tampouco o método teológico, pois a fenomenologia radicalizada situa-se fora da moldura das comprovações ou explicações empíricas. Heidegger, como vimos, supunha que o recurso à compreensão fenomenológica abriria um novo caminho para a própria teologia. O Novo Testamento não é, originariamente, um objeto de estudo, mas a expressão da vida religiosa. A tentativa de uma compreensão segura é uma ilusão que, de inicício, deve ser abdicada. Desse modo, apenas "indícios" poderiam dar acesso à experiência religiosa expressa nesses textos. A questão é se os conceitos da fenomenologia heideggeriana podem escapar do dilema, isto é, até que ponto, sendo conceitos filosóficos, ainda expressam a experiência fática; por outro lado, sem eles, a experiência fática da vida religiosa também estaria condenada ao dogmatismo do inacessível, pois, nesse caso, nunca se converteria em tema filosófico. É possível uma abordagem filosófica da experiência da vida religiosa? Em que medida esta experiência reflui e impregna a própria vida filosófica? Não há garantias aqui, mas é nisso que se encontra a virtude do método fenomenológico. Como ele opera, 5 então? É preciso recuperar a força das palavras originárias das cartas de Paulo antes que elas se tornem prisioneiras dos conceitos da metafísica platônica. É preciso elaborar conceitos em que todavia persista a força dessas palavras. Isto é, conceitos que tornem possível mostrar o fundo fático do qual se origina a metafísica. Desse modo, a "luta de Paulo" é a luta de Heidegger, à medida que o desafio é a elaboração de conceitos que operem contra a tendência de encobrimento de seu sentido originário, que, no caso, se encontra na proclamação apostólica. É a luta contra os componentes metafísicos da teologia que, enquanto tal, é o esvaziamento da proclamação. Ora, essa é a orientação para a leitura da Carta aos Gálatas, que, junto com a Carta aos Romanos, tornou-se o núcleo dogmático do cristianismo. Isso ocorreu porque, nessas cartas, há um conteúdo herdado da tradição greco-judaica, que pode ser detectado com uma exegese primária, mas é preciso ir além e mostrar, no caso de uma fenomenologia da vida religiosa, que ele geralmente é entendido como um "conhecimento da fé" ("glaubendes Wissen")[3]. Ora, dogmatismo é socratismo. No socratismo a "questão do quê" encobriu a "questão do como". No diálogo platônico Eutifron Sócrates fez uma inversão, isto é, só se pode ser piedoso se se souber o que é a piedade. Com isso, os próprios deuses passam pelo salvo-conduto da razão: "o que é piedoso é aprovado pelos deuses por ser piedoso, ou mais bem é piedoso por ser aprovado pelos deuses?" (Eutifron, 9d). Ou seja, aí se originou a tentativa de explicar o fenomeno religioso. Essa tendência persiste na tradição cristã. Por isso, há resíduos de socratismo na epístolas paulinas, que só poderiam ser afastatados se se invertesse essa inversão. A experiência fática do cristianismo primitivo abriu essa possibilidade, mas o desenvolvimento da teologia tendeu, novamente, a ocultá-la sob o socratismo. Também a escatologia é socratismo. Heidegger entende que, na carta dirigida aos gálatas, é marcante, na "paixão do apóstolo", o componente escatológico vinculado à noção de felicidade ou bem-aventurança futuras, mesmo que, diferente da tradição grega, tal expectativa do futuro seja marcada pela aflição. Esses componentes escatológicos, porém, vinculam-se a uma posição existencial totalmente nova: "a salvação cristã". Aí se encontra, novamente, a luta contra a morte, pois, mesmo com a aparição do Messias, este mundo está marcado por ela, que, aliás, só desaparecerá com a parusia. Por isso, a fé é marcada pela luta. Ou melhor ainda, é na luta, e só por meio dela, que se explicita (expliziert) a fé, isto é, desta nova fé faz parte a experiência do "morrer com Cristo", pois a verdadeira fé (zwar Glaube) está na aceitação do Cristo salvador como o Messias. Tal experiência da aceitação não é uma passividade, como uma adesão a uma outra concepção do mundo, pois envolve uma essencial virada escatológica e, portanto, nela está em jogo a marcha ou o caminho para seu objetivo final, que também é feita da esperança da conclusão do começo (Vollendung des Anfangs)[4], qual seja, da vida feliz, perdida pelo pecado original. É, como veremos, a cristologia adâmica de Paulo[5]. O fim da história resgatará o que se perdeu no princípio. Enquanto isso não ocorre, está-se suspenso na corda bamba. Pois bem, Heidegger cortou as duas extremidades que prendiam a corda, que, efetivamente, coincidem num ponto, qual seja, o resgate da inocência perdida; e, assim fazendo, a fenomenologia deixou o ser humano sem apoio externo. Por isso, para acessar o caráter de suspensão da luta religiosa, Heidegger terá de afastar a sobreposição escatológica. E assim,a esperança passa a ser entendida não como algo a ser realizado no futuro, mas pela tensa expectativa da irrupção iminente do fim do mundo. A cristologia adâmica é, então, substituída pelos tons cinzentos da theologia crucis luterana do ser crucificado com Cristo e no morrer para que Cristo viva em mim (Gl 2, 19-20). 6 A expectativa da parusia, por oposição à estabilidade do "presente século mau"; a experiência da fé, por oposição à lei tradicional, como morte, fazem parte do cenário existencial em que se aproximam a luta filosófica de Heidegger e a religiosa de Paulo. A luta de Paulo contra a apostasia dos gálatas torna-se o cenário da luta de Heidegger contra a reificação da filosofia. Desse modo, a luta é a tensão entre vida e morte; o impedimento dessa tensão é a queda da autêntica vida cristã, cuja originalidade só poderá ser acessada se se impedir a queda da filosofia da religião na objetividade. Para isso é preciso destruir a tendência da fé cristã em tornar-se uma concepção do mundo. A dificuldade, porém, é encontrar acesso à experiência originária em que o iminente fim de todas as coisas passou a tomar parte decisiva na execução da vida fática. Essa experiência religiosa é posta em termos de faticidade, isto é, trata-se de acessar a tensão da experiência do fim. Por isso, para Heidegger, a experiência religiosa é um aspecto da experiência da vida fática. O que se situa para além dessa experiência é a metafísica inefável, no entanto o que lhe interessa é a execução fática dessa experiência. O "quê" socrático cede lugar ao "como" da experiência fática. Não se trata de apanhar o eterno ou o infinito, mas a experiência religiosa que subjaz a essa procura. É a experiência da finitude. E a radicalidade da experiência da finitude Heidegger encontrou no luteranismo, que recolhe e passa a empregar no seu projeto da hermenêutica da faticidade. O luteranismo provocou o abalo que reabriu essa possibilidade de acesso à vida cristã em que se deu essa experiência. Foi apenas com Lutero, portanto, que a luta contra o dogmatismo teve uma inflexão decisiva, embora deva-se acrescentar-lhe os devidos corretivos fenomenológicos. A theologia crucis se transforma em phenomenologia crucis. Para Heidegger, Paulo e Lutero são religiosos radicais, no entanto Lutero lê Paulo através de Agostinho. O pensamento de Agostinho, porém, forjou-se no neoplatonismo. Por isso, mesmo os comentários de Lutero precisam de correções. O seu curso sobre a vida religiosa é a conexão da recepção fenomenológica da tradição luterana e da recepção luterana da tradição fenomenológica. Chamamos essa conexão de "fenomenologia luterana". Tal recepção destaca, na epístola, o caráter de conflito. Paulo está em luta não apenas com as dificuldades pessoais da sua missão, mas também com os próprios gálatas. Os conflitos na Galácia envolviam não apenas uma luta contra a lei mosaica, mas contra toda a lei do mundo presente. Era preciso desviar-se deste para, com a maior radicalidade, apanhar o espírito. Na proclamação expressa-se o conflito entre o espírito e a carne. A proclamação é vocação, ou seja, a manifestação verbal desse conflito. Vocação também é missão. E esse é o privilégio dos cristãos, pois, para Paulo, é apenas Deus quem atua em toda a missão. Essa atuação, porém, envolve a atribulação existencial do "tornar-se cristão". Ou seja, o que o apóstolo faz não é obra dos homens, mas da graça. A graça, contudo, não é garantia de serenidade. Por isso, não é a "obra" dos homens que está em questão, mas a sua experiência da fé. Na leitura de Heidegger, polêmicas como a da circuncisão são, para Paulo, sinais externos de um conflito que pertence ao mundo público; a este âmbito também pertencem a lei e a moral, mas isso tem pouca relevância, pois o que é decisivo mesmo é "a fé em Jesus Cristo". Com isso, a lei mosaica passa a ser entendida a partir do "caminho sagrado" (Heilsweg), mas que Heidegger entende como "constituição existencial" (Existenzauffassung). Esse "caminho" para o sagrado só se assegura no apoio do compromisso (Halten der Gebote), que, aliás, pode-se perder a qualquer momento. A lei passa a fazer parte da morte à medida que ela se torna um desvio do novo caminho sagrado. Nos termos heideggerianos, a lei tem o caráter objetivo, mas a experiência da graça, do 7 sagrado, tem o sentido de execução fática. Heidegger, porém, desvia-se da oposição lei- graça (Gesetz-Gnade) e passa a entendê-la a partir da acentuação da vida. A leitura da Carta aos Gálatas será feita a partir do sentido de orientação da "dinâmica fenomenológica fundamental" (phänomenologishe Grunddynamik)[6]. Essa "dinâmica" leva a cabo a destruição das reificações da experiência fática. A dinâmica fenomenológica, porém, alimenta-se daquilo que destrói. A experiência da vida fática cristã constitui a nossa complicada forma de vida, e, como tal, não tem princípio nem fim. Desse modo, a maior expressão da dramaturgia da vida é a filosofia, mas como fenomenologia existencial. Antes de tematizarmos a posição de Heidegger, vejamos melhor a "situação do apóstolo" que se expressa na singularidade dessa carta, mesmo que corramos o risco de cair no "historicismo", pois nela proclamam-se as lutas do apóstolo em meio a apostasia generalizada que atingiu as igrejas da Galácia. Esses incidentes se encontram, em sua a origem, nas duas grandes vertentes da compreensão do evangelho, isto é, no conflito entre a versão de Paulo e a da Igreja de Jerusalém. O apóstolo dos pagãos luta em várias frentes e, em Gálatas, principalmente contra as versões judaizantes, que visavam manter a conexão entre o cristianismo e o judaísmo tradicional. Para Paulo, porém, a lei mosaica morreu. Por isso, ele encontra-se em luta, não apenas contra os deuses pagãos, mas contra a própria tradição em que se formou. A efetivação da sua luta levaria a uma revolução completa. O passado só tem sentido a partir da Boa Nova. Essa luta começara logo após a sua conversão quando, afastando-se de Jerusalém, o apóstolo parte para seu "retiro na Arábia" (Gl, 1, 17). Como também Heidegger dá a entender, pode ter sido um período de vida ascética ou, então, já o exercício da missão apostólica[7]. Se "Paulo está em luta", melhor ter-se-ia de aceitar a posição que ele já proclamava o evangelho junto aos nabateus e que seu regresso a Damasco, possivelmente, se deveu aos atritos criados em meio a eles, que, anos depois, ainda mantinham o propósito de prendê-lo. Posto nestes termos, porém, não se está correndo o risco de historicismo? Esse risco pode ser afastado se entendermos que Heidegger interpreta as epístolas paulinas desde o "tornar-se cristão". Desse modo, as vicissitudes e as alegrias do apóstolo, os perigos que enfrentou nas estradas e no mar e também nas comunidades adversas a ele e que culminaram com o seu martírio, são pensadas como luta religiosa. Ou seja, a missão apostólica centrava-se na condição do cristão, mas só é possível acessar essa condição porque, como já dissemos, ela já faz parte da nossa complicada forma de vida; se não fosse assim, então o historicismo seria inevitável. Nossa complicada forma de vida sustenta-se na execução da vida fática. Esse é também o "locus fenomenológico" a partir do qual entende-se a apostasia dos gálatas. Não se trata, portanto, de explicação histórica, mas da compreensão do que teria "enfeitiçado" as igrejas da Galácia. Este "que", porém, é pensado a partir do "como" da execução fática. Essa é a situação da luta de Paulo, ou seja, da luta contra as versões que tendiam a enfraquecer e deturpar a autenticidade do "tornar-se cristão". Para Heidegger, não se tratava de uma luta política, mas principalmente religiosa. Ocorre que os aspectos centrais dessa luta tendem a ser encobertos pelo dogmatismo, noutras palavras, tendem a ser perdidos por aquilo que, demodo semelhante, enfeitiçou os gálatas: as versões que encobrem a genuína experiência do cristianismo. Para enfrentar a dificuldade criada pelas diferentes versões que deturpavam o evangelho, logo no início da carta ele se autoproclama: "Paulo, apóstolo, não pelos homens nem por intermédio de nenhum homem, mas por obra de Jesus Cristo e de 8 Deus pai" (PaËlow épÒstolow, oÈk ap' ényr≈pvn oÈd¢ di' ånyr≈po, éllå diå 'Ihso XristoË ka‹ YoË PatrÚw) (Gl, 1, 1). A auto-apresentação do apóstolo faz parte da proclamação e, enquanto tal, dos conflitos do seu mundo. Ou seja, de início ele se encontra em luta contra o que ameaça a autêntica condição existencial do cristão. Ele procura manter a força do que já proclamara nas igrejas da Galácia e que era radicalmente diferente do que seus adversários divulgavam. Esse primeiro versículo delineia o tema da carta, a derrelição cristã dos gálatas. A luta contra a sua apostasia é melhor entendida a partir das divergências de Paulo de Tarso, formado na leitura da Septuaginta, mas convertido ao cristianismo, com os líderes das Igrejas de Jerusalém e de Antioquia, cristãos que, todavia, não haviam abandonado o judaísmo. Dessa forma, ao se tornar apóstolo dos pagãos, ironicamente seus maiores adversários não eram os sacerdotes ateus, mas os que ameaçavam submeter a novidade do cristianismo à caducidade dos mandamentos da lei mosaica e ao código sinaítico. Em sua estratégia missionária Paulo sempre teve de enfrentar, nas palavras de O'Connor, as "táticas judaizantes". Portanto, visto a partir do "tornar-se cristão", a maior dificuldade não era a cultura da Galácia, ainda que, nela, também houvesse a tendência de regresso ao paganismo. Os gálatas, vale lembrar, eram descendentes dos gauleses, que, por sua vez, descendiam dos celtas, e que, guerreando, acabaram por se instalar nas proximidades da Anatólia. Em 25 a.C. a Galácia tornou-se uma província romana. A cultura pagã desse povo, porém, não trouxe maiores empecilhos a Paulo e aos seus companheiros de evangelização, Barnabé e Silas. Algumas comunidades da Galácia foram, rapidamente, convertidas ao cristianismo por eles, como foi o caso de Antioquia da Psídia, Icônio, Listra e Derbe, embora a carta de Paulo, provavelmente, se dirija às comunidades setentrionais da Galácia. Segundo essa posição "norte-galática", a carta era dirigida às Igrejas da Frígia, nas vizinhaças de Trôade. O importante é que foram os pregadores cristãos, demasiado dependentes do judaísmo, que causaram os maiores entraves à consolidação da tarefa missionária nessa região. Foi a influência dessa tradição, que, por estar aparentemente muito próxima, passou a ameaçar as igrejas da Galácia. A versão cristã de Igreja de Jerusalém, portanto, demasiadamente dependente da tradição vetero-testamentária, foi o principal motivo que, na ausência de Paulo, enfeitiçou os gálatas. Havia, é claro, várias modos de apostasia, mas, pela carta do apóstolo, foram principalmente os pregadores judeus-cristãos que estavam levando os gálatas a dar um passo para trás. O argumento dos judeus-cristãos era claro: se o Messias surgira sob a lei mosaica, então esta continuava sendo a base do evangelho. Com isso, ameaçava-se a novidade do cristianismo. Na leitura heideggeriana, porém, isso significava a queda da autenticidade cristã. O caráter insidioso e sedutor das "táticas judaizantes" se encontra na origem mesma do cristianismo, à medida que a religião nascente apoiava-se em seus fundadores, as "três colunas" (Pedro, Thiago e João), que, ao contrário do fariseu Saulo, haviam sido perseguidos por gente como ele. Paulo, porém, enfrenta essas autoridades investidas de uma aura sagrada, pois tiveram o privilégio de haver convivido pessoalmente com Jesus, que, aliás, dera a Pedro o primado da sua Igreja, como se encontra na conhecida passagem: "E eu digo-te que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela" (Mt 16, 18). Que autoridade, então, lhes poderia ser maior? Daí a insistência de Paulo na afirmação do seu evangelho, que recebera diretamente de Jesus, sem a intermediação de nenhum homem; com isso, ele, no mínimo coloca-se no nível dos "doze", que conheceram o Senhor pessoalmente, mas sem havê-lo traído, como o fez Judas, ou tê-lo negado três vezes, como o fez Pedro, ou tê-lo deixado a 9 sós com seu destino, no Getsêmani, como fizeram as "três colunas". Para Paulo, as "três colunas", por não terem compreendido a autêntica mensagem de Cristo, insistindo em vinculá-la à lei mosaica, erraram mais uma vez. Se eles, que o conheceram pessoalmente, que ouviram suas prédicas, seus milagres, seus sermões, faziam decair agora a força do evangelho, então o que dizer dos outros homens? Não seria Paulo apenas mais um entre eles? Por isso, a sua posição não poderia ser menos contundente e desafiadora: o evangelho que proclamava lhe foi revelado diretamente pelo Senhor (Gl 1, 11, 12). Desse modo, a luta de Paulo pelo "verdadeiro evangelho" não expressa apenas a pretensa salvação dos fiéis da apostasia. Heidegger entende que a luta de Paulo confunde-se com a religião de Paulo, isto é, a religião de Jesus expressa nos quatro evangelhos não é da mesma índole da religião do apóstolo. Essa distinção permite a Heidegger afirmar que, basicamente, a carta não se dirige apenas à salvação dos gálatas, pois o seu tema é também a demarcação das fundações do cristianismo originário. Tampouco se trata de considerações sobre formas religiosas contraditórias, como a judaico-farisaica, pois "Paulo está a construir sua própria posição religiosa"[8]. Ou seja, a luta apostólica contra o enfeitiçamento dos gálatas só pode ser entendida a partir da execução desse novo cenário da experiência religiosa. Para Heidegger, porém, nessa carta Paulo está, basicamente, em luta contra a apostasia, ou seja, a perda da condição de cristão, como enfraquecimento da proclamação. A rapidez com que os gálatas foram enfeitiçados, segundo Barbaglio, se deveu à consistência dos argumentos dos adversários, mas, para a fenomenologia luterana, a apostasia foi a de terem entrado no jogo deles, isto é, o engano dos gálatas não é entendido de modo cognitivo, mas como perda ou queda da força da proclamação. É desde aí que se coloca o espanto do apóstolo pela perda da fé no Cristo crucificado: "Ó descabeçados gálatas, quem vos enfeitiçou?" (âW énÒhtoi Galãtai, t¤w Ím˝w §bãskann;). Em termos heideggerianos, o "enfeitiçamento", deixa de ser entendido como um processo mental, de modo que essa passagem pode ser colocada assim: como se deu o deslize para fora da experiência fática cristã? Como a acentuação da vida fática cristã voltou a ser presa daquilo que lhe é externo? Do ponto de vista das interpretações tradicionais, contudo, trata-se de discernir objetivamente quem teria enfeitiçado os gálatas. Quem eram os adversários de Paulo e o que eles pensavam? Para responder a essas questões Barbaglio, entre outros, segue os passos da tradição e da história da Igreja; para este autor, é difícil saber quem eram e o que pensavam os sublevadores, pois já havia, nessas comunidades, as seduções das mais variadas concepções religiosas do evangelho e, principalmente, a mais insidiosa delas, que fundia cristianismo e judaísmo, de onde provinham as difamações contra o apóstolo, daí o misto de lamentação e advertência em que é denunciada a ação dos opositores e apóstatas. A situação na Galácia se assemelhava à da Antioquia da Síria, onde conviviam pagãos, ex-pagãos, judeus, ex-judeus e cristãos de várias procedências, daí a pergunta "Quem vos efeitiçou?" aparentemente não especificar a apenas uma delas, o que deu origem a muita disputa. Barbaglio resume assim as variadas especulações sobre os possíveis sublevadores: 1) judeus-cristãos judaizantes, ou seja, apegados à lei mosaica eà circuncisão; 2) cristãos judaizantes, mas de origem pagã; 10 3) judeus-cristãos de tendência gnóstica; 4) cristãos gnósticos ou gnostizantes de origem pagã; 5) representantes de um movimento sincretista judeu-cristão-gnóstico; 6) dois grupos distintos e opostos: os judaizantes e os libertários entusiastas[9]. Esse esquema abrangente, entretanto, do qual participam os libertários e os gnósticos, não se sustenta, prevalecendo principalmente a posição 1, pois assim como em toda a revolução, os adversários são os que estão mais próximos, no caso, estavam aqueles que emprendiam, como em Antioquia e Corinto, as "táticas judaizantes" ou, nas palavras do apóstolo, "os falsos irmãos intrusos" (parisãktow cdad°lfow) (Gl 2, 4), ou seja, os homens que, enviados de Jersulalém, não só interromperam o jogo duplo de Pedro, mas, possivelmente, com a concordância deste, passaram a atacar a versão paulina do evangelho, isto é, esses falsos irmãos eram "os da parte de Tiago" (épÚ 'Iak≈bo) (Gl 2, 12). Por conseguinte, foi a sua versão exageradamente judaizante do evangelho que enfeitiçou os gálatas, e é contra ela que Paulo luta, embora a queda da fé dos gálatas também ameaçava torná-los, outra vez, reféns do seu passado pagão, isto é, dos "elementos do mundo". Por tudo isso, a luta de Paulo é radical, pois, ao invés de apoiar-se na tradição, ele passou a proclamar a total independência em relação a ela, e a diatribe, que começara na assembléia de Jerusalém, chegou ao extremo na Galácia. Posto nestes termos, tem-se informações que podem ser objeto de investigação histórica ou estilística, mas, desse modo, perde-se, então, a expressão da experiência fática prévia ao domínio cognitivo ou especulativo. Por isso, a apostasia dos gálatas, na leitura de Heidegger, não é um problema histórico e, dessa forma, só pode ser acessada a partir do modo como o apóstolo proclama o evangelho. A proclamação é a acentuação da vida. Proclamar é lutar contra a tendência ao esmorecimento da vida cristã. Ou seja, a proclamação é a luta contra o enfeitiçamento dos gálatas. Desse ponto de vista, o que enfeitiçou os gálatas foi a queda da proclamação, recorrendo à terminologia de Wittgenstein, na "lógica da informação"[10]. É a partir dela que se entende que o cerne dessa luta é a experiência da vida religiosa. Essa luta, no entanto, começara na assembléia de Jerusalém e no enfrentamento que o apóstolo fez a Pedro, em Antioquia. As disputas e as decisões tomadas foram decisivas para o triunfo do cristianismo no Ocidente, do qual Paulo tornou-se a coluna principal. Na interpretação heideggeriana, porém, o risco de historicismo se encontra na tendência a inverter o caráter de execução da proclamação pela explicação histórica, que, aparentemente, é reforçada pelos relatos autobiográficos do apóstolo. Temos de entender essas passagens, portanto, não como relatos de fatos objetivos, mas como proclamação. Se nos versículos citados o apóstolo se autodefine como único e autêntico proclamador do evangelho é porque o que proclama já é a sua luta contra a derrelição dos gálatas. Desse modo, os acontecimentos em Antioquia e Jerusalém, para não se falar de Corinto, têm de ser entendidos desde a 11 proclamação apostólica e, portanto, desde a perspectiva em que se confrontam o fático e o fatual. Não se pode perder de vista que a explicação histórica é precisamente um desvio da autenticidade cristã que precisa ser evitado se se procura destruir o que encobre a experiência religiosa cristã original. Por isso, chamamos a atenção para o risco de historicismo que se encontra na "teologia de Paulo", isto é, na inclinação por substituir a experiência religiosa, expressa na proclamação, pela disputa argumentativa e, portanto, teorética. Desse modo, tem-se de compreender os acontecimentos a partir da condição da faticidade cristã. Heidegger procura fazer uma inversão da argumentação para a proclamação. É a partir desse giro que se entende, por exemplo, os conflitos com os apóstolos hierosolimitanos. O conflito não diz respeito a eventos passados, pois seu sentido se encontra na execução da vida fática, ou seja, ele faz parte da luta contra a apostasia. É na luta contra a perda de autenticidade que esses conflitos ganham sentido, ou melhor, só a partir da sua execução fática é que eles têm sentido e, como vimos na leitura das Cartas aos Tessalonicenses, esse sentido está na acentuação da vida pela expectativa da parusia, que implode a tradicional divisão entre passado, presente e futuro. Essa é a perspectiva em que se compreende os acontecimentos de Antioquia da Síria e Jerusalém, quando o apóstolo denunciou a irrelevância das tradicionais práticas sacrificiais e dietéticas judaicas, e também a insignificância do debate sobre circuncisão ou incircuncisão para a nova experiência da fé. Provavelmente Paulo, Barnabé e Tito tenham sido representantes da Igreja de Antioquia na assembléia de Jerusalém, por volta de 51 d.C. Os temas em debate nessa assembléia foram, basicamente, a evangelização dos pagãos e a prática da circuncisão. As "três colunas" e Paulo chegaram a um acordo (Gl 2, 9). Eles continuariam sendo os apóstolos dos judeus e Paulo prosseguiria em sua missão junto aos pagãos. Em Antioquia, no entanto, esse acordo sofreu um abalo, pois, nessa cidade, as duas tendências entraram em choque, ao menos entre os judeus de língua grega, na qual formou-se Paulo, e os de língua aramaica ou hebraica. Aí já encontravam-se germinando as versões do cristianismo que ameaçaram levar os gálatas à apostasia. Também foi em Antioquia, esse "centro irradiador da abertura missionária"[11], que Paulo começou a radicalidade da sua proclamação apostólica quando entendeu o abismo entre Cristo e a lei mosaica. Foi aí que denunciou a hipocrisia de Pedro e de Barnabé, que comiam com os pagãos, mas, quando chegaram os emissários de Jerusalém, afastaram-se deles, temendo a sua repreensão. Em Antioquia, porém, o relevante não foi a disputa pessoal com a autoridade de Pedro, mas o que ela representava, isto é, a persistência da tradição judaica; por isso, aí se deu o primeiro enfrentamento das "táticas judaizantes", isto é, o apóstolo teve de lutar contra a força da tradição da Torá que ameaçava transformar o cristianismo num apêndice do judaísmo. Os conflitos na Galácia foram ainda mais complexos e agravados pela cruzada dos judeus- cristãos contra o modo como o apóstolo proclamava o cristianismo. Daí a sua insistência de que a proclamação não foi dada ou mediada por nenhum homem, mas foi-lhe conferida diretamente por Jesus Cristo e também pela graça Deus, "desde o ventre de minha mãe" (ı éfor¤saw m §k koil¤aw mhtrÒw mo) (Gl 1, 15). Esse versículo tem o forte sentido de predestinação. Segundo a interpretação teológica e histórica dominante, o apóstolo recorre a esse argumento para melhor defender sua posição frente aos seus adversários na Galácia. Ele afirma que Cristo se lhe revelou diretamente, que não houve mediação de nenhum outro homem; com isso duas questões são emparelhadas: a origem divina do seu evangelho e da sua missão apostólica. Ora, a interpretação que coloca o apóstolo como um predestinado são restolhos teológicos que Heidegger recusa, destacando o caráter dramatúrgico da carta 12 em que, dando continuidade à auto-apresentação dos versículos 1, 11 e 12, o apóstolo chama a atenção que o evangelho anunciado aos gálatas não tem uma medida humana, mas divina. "Porque não o recebi, nem aprendi de nenhum homem, mas pela revelação de revelação de Jesus Cristo (épokalÊcvw 'IhsoË XristoË)" (Gl 1, 12). Aqui ressurge o fantasma do historicismo. Ou seja, na leitura desse versículo é-se inclinado a entender o significado de "revelação" como um processo mental, isto é, a figura de Jesus Cristo apareceu ao apóstolo ou numsonho ou em vigília, de modo que ele pôde vê-lo e ouvi-lo; nesse caso, Jesus seria uma representação ou uma imagem mental. Ora, entender-se o versículo como um processo reflexivo é o socratismo que Heidegger pretende destruir, daí a sua insistência com o conceito fenomenológico-existencial do "tornar-se cristão". Nessa perspectiva, a "revelação" não envolve um processo mental. O seu significado está na acentuação da experiência fática, ou seja, a revelação faz parte da experiência religiosa e da luta do apóstolo contra a queda dessa experiência na apostasia. Do mesmo modo, Heidegger contorna as leituras metafísicas de Paulo que entenderiam a graça como destino por oposição à liberdade para destacar que a afirmação do apóstolo só pode ser compreendida a partir da sua situação da luta entre a vida cristã e a sua degeneração. Ora, tomar essa passagem em termos de liberdade ou fado, é, todavia, continuar preso no modelo conceitual da metafísica grega, pois o relevante é a experiência fática da vida cristã. Para resgatá-la, inverte-se o procedimento argumentativo socrático e, portanto, tenta-se afastar a experiência da fé de suas elucidações teorizantes. Com isso, põe-se em questão não apenas a consciência histórica moderna, mas a teologia que ainda se pode encontrar em Paulo. A fenomenologia, como logosterapia, será feita a partir do que chamamos, parodiando o jovem Heidegger, de "diferença fática", isto é, a diferença entre experiência da vida fática e experiência empírica. Em termos mais simples, a diferença entre faticidade e fatualidade. Nesse sentido, a logosterapia não um é mero entendimento, mas a destruição das interpretações de Paulo que tornam as suas cartas em objeto das ciências do espírito. Por exemplo, quando o apóstolo descreve a sua visita a Pedro, nestes termos: "Depois, passados três anos, fui a Jerusalém para ver e falar com Cefas (flstor∞sai Khf˝n), com quem fiquei quinze dias" (Gl, 1, 18). O significado do verbo flstor›n se assemelha ao do substantivo "história" (Historie); isto é, desde Heródoto e Tucídides, ele tende a ser entendido como ver ou testemunhar e, portanto, como informar ou relatar fatos ou acontecimentos. Nesse caso, encontra-se-ia, em Paulo, a tendência de informar sobre fatos, no caso, a sua visita a Pedro, mas o verbo grego apenas diz respeito ao ir ao encontro, à visita ou à estada na companhia do apóstolo hierosolimitano. Esse é também o caso das "recordações pessoais", ou seja, quando o apóstolo passa a lembrar dos seus primeiros contatos com os gálatas. Essas "recordações pessoais", na versão da maioria dos intérpretes, dão a idéia de passado que é, todavia, colocado a partir do presente, mas, como vimos na interpretação de Tessalonicenses, isso rompe com o caráter fático do "tornar-se cristão", pois a proclamação cristã originária confunde-se com a acentuação da vida. O tempo objetivo é tragado pela urgência da vida. O sentido do tempo está nessa acentuação da vida que tende a ser enquadrada nos calendários ou nos relógios. Parte das "recordações 13 pessoais" do apóstolo estão em Gl 4, 12-20, elas continuam marcadas pela luta de "nós" contra "eles", os judeus-cristãos apostasiantes: 12 Façam-se como eu (g¤nsy Àw §g≈), porque também eu fiz-me como vocês (˜ti kég∆ …w Ím›w), eu vo-lo peço, irmãos; vós em nada me ofendestes (oÈd°n m ±dikÆsat:). 13 E sabeis (o‡dat) da primeira vez que vos anunciei o Evangelho na aflição da carne (ésy°nian t∞w sarkÚw). 14 E vocês (Ím«n), devido a minha carne enferma, não me desprezastes nem me cuspistes (pirasmÚn Ím«n §n tª sark¤ mo oÈk §joynÆsat oÈd¢ §jptÊsat), ainda que ela fosse uma provação para vocês (pirasmÚn Ím«n); ao contrário, me recebestes como um anjo de Deus, como Jesus Cristo. 15 Onde está, pois, aquela vossa alegria? Por que posso testemunhar que então, se fosse possível, vós arrancaríeis os olhos para mos dar. 16 Tornei-me eu vosso inimigo, porque vos disse a verdade? (g°gona élhyÊvn Ím›n;) 17 Eles estão cheios de zelos por vós, mas não corretamente; antes querem vos separar para que os sigais. 18 É bom que sejais sempre zelosos pelo bem e não só quando eu me encontro entre vós (par›mai m prÚw Ímaw). 19 Filhinhos meus (tkn¤a mo), por quem eu sinto de novo as dores do parto (oÏw pãlin »d¤nv), até que Jesus Cristo se forme em vós (m°xriw (íxriw) oB morfvyª XristÚw §n Ím›n). 20 Bem quisera estar agora convosco e matizar o tom de minha voz (fvnÆn), porque estou perplexo a vosso respeito (˜ti époroËmai §n Ím›n). Paulo não se dirige aos adversários, mas aos gálatas, visando mantê-los no que ainda os distingue, isto é, na experiência cristã da fé por oposição a tudo o que tende a enfraquecê-la ou a desviá-la. As distâncias espaciais ("queria estar com vocês") e temporais 14 ("quando lhes anunciei pela primeira vez o Evangelho") passam a ser compreendidas como proclamação, como acentuação da vida. O significado das agradáveis recordações do passado não é apenas uma contraposição às decepções do presente, pois o que está em jogo é a perda da experiência da fé. É a partir dela que se entende não apenas o tempo, mas os "adversários", que são denunciados, não a partir de um debate argumentativo, mas como derrelição da experiência da fé do "tornar-se cristão", pois essa experiência não é um processo de adesão, mas uma decisão radical. Essa condição, porém, não tem garantias. "Deus não é um apoio". Por isso, pode-se perdê-la. Ou melhor, faz parte dessa experiência resistir às seduções e aos apelos da apostasia. Desse modo, as "recordações pessoais" deixam de ser entendidas a partir do esquema passado-presente-futuro para serem, então, concebidas de dentro da experiência cristã; mas como tal experiência tem basicamente uma expressão (critério) lingüístico e não mais o ser-aí monocêntrico, passamos a chamá-la de "gramática da faticidade"; ou melhor, a fenomenologia da linguagem, enquanto logosterapia, passa a ser compreensão da diferença entre linguagem da expressão e a lógica da informação, como no esquema: [{(eu, vocês = nós = tornar-se cristão) x (eles = a apostasia, a queda da experiência cristã)} = {autenticidade x inautenticidade da vida fática cristã = linguagem da proclamação (faticidade) x linguagem da objetivação (fatualidade)}] = gramática da faticidade. Os versículos citados anteriormente encontram-se no modo de compreensão expresso na proclamação apostólica e, desde a qual, já não há mais volta. As "recordações pessoais" são proclamação, pois, nela, o evangelho já está em execução enquanto experiência da fé cristã. Tal experiência, porém, envolve a possibilidade do fracasso, pois a apostasia dos gálatas indica os limites da missão apostólica. E é a partir desse já-estar-em- execução que se entende como a temporalidade está vinculada à possibilidade do fim dos tempos. O núcleo dessa experiência é a aflição pela incompletude e precariedade da condição cristã neste mundo; por isso as recordações das "alegrias" do passado só têm significado a partir da aflição, pois foi deste núcleo que os gálatas se desviaram. É o típico paradoxo cristão: encontrar alegrias nas aflições. "Alegria" é manter-se firme na "verdade do evangelho". Essa verdade não é de cunho epistêmico, pois é a experiência da aflição; ou seja, nem mesmo as obras podem servir de justificativa, pois não há outro fundamento senão Jesus Cristo: "Se alguém edifica sobre este fundamento com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, estopa, manifestada será a obra de cada um, pois o dia do Senhor (Advento) a fará conhecer, visto que será revelado no fogo e o fogo provará qual seja a obra de cada um. Se subsistir a obra do que a sobreedificou, receberá prêmio. Se a obra de alguns arder, ele sofrerá o prejuízo, mas será salvo, apesar disso, como por meio do fogo"(1Cor 3, 12-15). Essa tensa expectativa do "dia do Senhor", que atravessa a condição cristã destoa das alegrias prazerosas do hedonismo aristotélico ou epicurista, do mundo platônico das idéias esvaziado de faticidade, mas também do voluntarismo estóico. Por isso, quando Paulo pede que os gálatas que se tornem ou se façam (g¤nsy) como ele, isto é, tal ele 15 próprio o fez, não se trata apenas de uma imitação, como se houvesse uma imagem reguladora fixa na qual os gálatas pudessem se espelhar. Se o apóstolo os incita a fazerem- se como ele, é porque, ambos, partilham da experiência da fé que já está em execução. Esse versículo não pode ser explicado apenas pelo contexto histórico em que ambos tenham se afastado e se libertado do judaísmo, pois o significado desse contexto está na execução fática do discurso proclamador[12]. A volta para o judaísmo quer dizer a perda da experiência fática do cristianismo. Vimos que Heidegger não o toma como uma mera imitação ou reflexo, mas como um estar em execução da nova condição do "tornar-se cristão". Mas a quem o apóstolo e os gálatas imitam, senão a Jesus Cristo? "Rogo-vos, pois, que sejais meus imitadores, como eu sou de Jesus Cristo" (1 Cor 4, 16; 11, 1). E, de modo ainda mais explícito, "Sede meus imitadores, irmãos, e ponde os olhos naqueles que andam conforme o modelo que tendes em nós" (Fl 3, 17). Ora, expressões como "imitar", "pôr os olhos", "conforme o modelo" dão a idéia de exterioridade, ou seja, como se os imitadores estivessem de fora e se comparassem com a figura do apóstolo, que, por sua vez, imita o modelo de Jesus Cristo. Esse é o problema da cristologia de Paulo, que tende a tornar o cristianismo mais uma imagem do mundo, mas que perde a genuína experiência da fé, que exige o transcender, a reificação das representações do mundo. Se o "tornar-se cristão" é uma ruptura com a objetividade da lei, também é uma ruptura com a sua reificação numa imagem ou modelo de Jesus Cristo, pois o que está em jogo não é um modelo fixo, mas a experiência da fé, cuja tensão, aliás, explode todos os modelos. Essa perspectiva é central para a tarefa de "desmitologização" feita pela teologia luterana. Ou seja, Heidegger não dispensa a noção de imagem, mas a entende como execução, como um "fazer-se como" finito e inacabado. Dispensa, com isso, a imagem fixa da condição cristã a favor do "fazer- se" ou do "tornar-se" partícipe da mesma condição e, portanto, de estar na iminência da salvação e da danação. Aliás, como se poderia "imitar um modelo", se Deus não é um apoio? Este é o problema central, pois deve-se "assumir" não uma imagem de Jesus Cristo, mas a experiência da vida fática que está em suspensão. No núcleo dessa experiência está a proximidade do abandono. Não há salvação sem a provação da indigência. Como poderia haver uma imagem fixa de tal experiência? O apóstolo incita os gálatas a se tornarem como ele, mas o risco aqui é o de que se imite uma imagem externa à execução fática, pois como dar uma resposta objetiva à pergunta crucial: "Quem é Jesus Cristo?" Ela não só não pode ser objetivamente respondida, como pressupõe, ou melhor, faz parte dessa experiência salvífica inconclusa. O paradoxo está em que, por um lado, nas palavras do apóstolo, "não há outro fundamento, senão Jesus Cristo" (1Cor 3, 11), mas, por outro lado, de que Deus não é um apoio, pois, com Jesus Cristo, a experiência da fé em Deus tornou-se a própria crise do homem. O erro de intérpretes, como Barbaglio e Schlier[13] está em que, ao reconhecerem a liberdade cristã em relação à lei, voltarem a aprisioná-la na objetividade do modelo ou da imagem. O apóstolo e os gálatas, porém, se fizeram iguais, não a partir de um modelo fixo, mas porque ambos partilham do mesmo "mistério". E como imitar um mistério? Do ponto de vista fenomenológico não há mistério, mas dificuldades e, entre elas, está a luta para driblar o mistério da metafísica para encontrar um acesso à experiência do mistério, pois esta antecipa-se ao mistério da experiência, o que lhe permite mostrá-lo. Por conseguinte, o que eles partilham não é uma imagem fixa, pois a imagem de Jesus Cristo não é um evento mental com contornos definidos, mas execução da experiência da aflição originária. Desse modo "imitar", "tornar-se como" ou "fazer-se como" é manter-se em suspensão na dramaturgia da vida cristã. Como vimos na interpretação de 2 Tessalonicenses, o significado do conceito de "imagem" é a sua execução fática. As noções 16 de imagem ou de modelo não são apoios, embora exijam firmeza. As "recordações pessoais" não são descrições das imagens do passado, mas fazem parte da temporalidade existencial que já está em execução na proclamação. E proclamação é a linguagem como expressão e, nesse sentido, não pode ser confundida com a linguagem da objetivação. Para John Eadie, no entanto, o sentido da expressão g¤nsy …w - "imitar", "tornar-se como", "fazer-se como" - se estende do começo do versículo 12 ao 16, como um chamamento a sua conduta prévia entre os gálatas para que estes voltem a ser como ele. Nesse caso, a sucessão de aoristos mostra que o apóstolo escreve sobre um ponto de vista anterior no tempo, possivelmente lembrando a sua primeira estada entre eles[14]. Toda essa passagem é marcada pela recordação do passado. Ora, o aoristo é uma conjugação verbal tipicamente grega que indica haver ocorrido uma ação em época passada, sem especificar se, no momento em que se fala, ela está inteiramente realizada. Isso dá a essa conjugação o caráter de uma ação que todavia não se realizou por completo e, portanto, ela distingue-se tanto do futuro quanto dos pretéritos perfeito e mais-que-perfeito. De qualquer modo, a "sucessão de aoristos", nessa passagem, enquanto "ação verbal em estado puro, sem considerar nem a duração, nem o grau de acabamento do processo", ainda é concebida a partir da metafísica do presente do indicativo. Na língua grega clássica o aoristo é, por exelência, o "tempo da narração histórica no indicativo". Basicamente, "o sentido básico do tema do aoristo é o de indicar um momento qualquer no processo verbal, seja no início, seja no meio, seja no fim de uma ação (aoristo pontual)"[15]. Esse momento qualquer - essa ação verbal em estado puro - é ainda entendido a partir do presente. Ora, na metafísica da presença, imagens ou modelos, são concebidos objetivamente e, desse modo, levam à queda da proclamação na lógica da informação. Na linguagem da proclamação, porém, a temporalidade deixa de ter significado a partir do apoio naquilo que está presente para vincular-se à urgência da vida na perspectiva do fim de todas as coisas. O apoio como idolatria. A rejeição da idolatria, que já estava no Antigo Testamento, adquire agora uma outra orientação, pois, por meio da morte de seu Filho, Deus mostrou a sua face problemática distante da antiga proibição de mostrar a face de Javeh, como se encontra em Jeremias, em que o profeta alerta para a relevância do arrependimento para a redenção: Como se envergonha o ladrão quando o apanham, assim se envergonham os da casa de Israel; eles, os seus reis, os seus príncipes, os seus sacerdotes e os seus profetas, Que dizem a um pedaço de madeira: Tu és meu pai; e à pedra: Tu me geraste. Pois me viraram as costas e não o rosto; mas, em vindo a angústia, dizem: Levanta-te e livra- nos. 17 Onde, pois, estão os teus deuses, que para ti mesmo fizeste? Eles que se levantem se te podem livrar no tempo da tua angústia; porque os teus deuses, ó Judá, são tantos como as tuas cidades (Jr 2 26-28). As chagas da carne de Cristo, no entanto, comportam uma dramaturgia que explode todas as tentativas de reduzi-la a algum "ídolo", antropologia ou humanismo judaico- cristão, pois, enquanto auto-idolatrias do homem, esses "ídolos" também são, na experiência do "tornar-secristão", absurdos. A tensa imagem de Cristo, porém, faz parte da autocompreensão que, para ser acessada, precisa da tarefa da destruição de todas as tentativas que tendem reduzi-la a uma representação mental reificada e, portanto, destituída da faticidade da proclamação apostólica. Em termos da gramática da faticidade a imagem de Cristo, expressa na proclamação apostólica, está aquém da concepção do mundo do cristianismo e dos humanismos que nela se formaram. Paulo incita os gálatas para que o imitem, tal como ele imita Jesus Cristo. A questão de como imitar Jesus Cristo, contudo, pressuporia a questão de quem ele teria sido ou qual o sentido da sua mensagem. A resposta a essa questão seria dada pela cristologia, ou seja, a disciplina que estuda Jesus Cristo, que procura explicá-lo como acontecimento histórico e sagrado, mas, como estamos mostrando, a imitação confunde-se com a experiência fática da salvação cristã e, como tal, a questão sobre "quem" é Jesus Cristo não pode ser objetivamente respondida. A imitação não é algo externo, o que implicaria o argumento do terceiro homem, mas, ao contrário, tem o sentido da execução da experiência do "verdadeiro evangelho", que não pertence à lógica da informação, mas à acentuação da vida das palavras da proclamação. Ora, é nessa direção que também se interpreta o versículo 19, em que o apóstolo sente novamente algo como as dores do parto "até que Cristo se forme em vós" (morfvtª XristÚw §n Ím›n). A expressão "em vós" (§n Ïm›n), para Schlier, diz respeito à comunidade cristã da Galácia e não a cada um de seus membros em particular. Aí se encontra, então, a noção do "corpo de Cristo"[16]; ou seja, à medida que os gálatas recuperarem a sua experiência da fé haverão também de ter fortalecido, cada qual a seu modo, o "tornar-se cristão". Ora, comunidade e particularidade é um par metafísico que passa a ser colocado a partir da experiência da vida fática. O significado de "corpo de Cristo", porém, deixa de ser entendido como a unidade da comunidade ou de "um só indivíduo" para ter o seu significado entendido a partir da acentuação da experiência fática. A aparente segurança do corpo de Cristo é ameaçada ou sacudida pela carne de Cristo. E a apostasia dos gálatas significa o desvio dessa experiência. Porém, a interpretação tradicional entende esse versículo como a necessidade de repetir a antiga presença de Jesus Cristo entre eles, pois, nas palavras de Schlier "sua defecção da verdade do Evangelho, que já está em curso, torna necessário que o deslumbramento tenha que repetir-se"[17]. O problema de Schlier, todavia, é entender o caráter executivo do "já estar em curso do Evangelho" de modo cronológico, isto é, que o antigo "deslumbramento" dos gálatas possa ser resgatado com uma nova predicação apostólica que possa, então, revigorar a fé autêntica perdida pelos gálatas. Esse resgate, porém, envolve novamente a figura de Cristo, 18 pois a expressão, à primeira vista, indica a necessidade de uma reformatação da imagem de Cristo, que se esvaiu da mente dos gálatas. Para Schlier, a palavra morfoËn (formar), no Novo Testamento, aparece apenas aqui. Gonzáles Ruiz, por sua vez, chama a atenção para que, "no Novo Testamento, morfÒv é um recurso técnico para indicar a plasmação do embrião no seio materno". Com isso, o seu significado distinguir-se-ia do grego clássico. Ainda segundo este autor, entretanto, a "plasmação de uma comunidade cristã era equivalente à progressiva assimilação e agregação a Cristo"[18]. Neste caso, também Cristo torna-se um modelo externo, ou seja, o mediador destaca-se da vida fática para funcionar como uma imagem reguladora que, então, pode voltar ao seio da comunidade à medida que esta aproximar-se dela. Essa é a origem do historicismo da Cidade de Deus agostiniana, no entanto a exterioridade é uma queda da proclamação, como é o caso da apostasia dos gálatas. A sua apostasia não é a perda de uma imagem, mas a derrelição do "tornar-se cristão". A tendência imagística, porém, é resistente, mesmo quando se procura aboli-la na vertente mística, pois essa passagem é similar a uma outra, nas palavras de Heidegger, "marcada pela terminologia do Helenismo e decisiva para a mística de Paulo": "já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gl, 2, 20)[19]. Aqui a interpretação pode seguir dois rumos: pode ser que à medida que vou fazendo em mim uma imagem de Cristo ela acaba por eliminar todas as outras imagens, mas também, ao contrário, a noção de que Cristo possa viver em mim ocorre apenas à medida que eu me vou esvaziando das imagens do mundo, inclusive das minha próprias imagens; nesse caso, a imagem de Cristo é substituída pelo nada, como é o caso da mística do mestre Eckahrt. Ora, a mística é o esvaziamento das imagens do mundo, mas é também o esvaziamento da acentuação da vida fática. O nada da vida mística é conquistado à custa da derrelição da faticidade. Ou seja, junto da "teologia de Paulo" há uma "mística de Paulo" que também precisa ser destruída para se conquistar algum acesso à autêntica experiência fática cristã. Mais adiante voltaremos a examinar essa passagem; por ora, insistiremos na noção de imagem ou forma de Cristo como esvaziamento da faticidade, tal como pode ser encontrada na maior parte das interpretações convencionais. Frederick Bruce, por exemplo, destaca as imagens visuais do versículo 19, seguindo, desse modo, a tradição onto-teo-lógica que atravessa a história da metafícica ocidental. Para garantir-se Cristo é preciso formar dele uma imagem que permaneça presente. Nas palavras de Agostinho: "Formai-vos à imagem de Cristo, quem se conforma a ela aceita Cristo" (Formatur Christus in eo, qui formam accipit Christi)[20]. Do mesmo modo a passagem "até que Cristo se forme em vós" é também entendida, por Bruce, como até que os gálatas vejam Cristo do mesmo modo como o apóstolo o vê e, portanto, para que ambos possam ter a mesma imagem vívida de Cristo[21]. Se por "vívida", aqui, entender-se uma representação mental que permanece claramente presente, então ela é esvaziada de faticidade. Paulo, porém, destaca nesse versículo, recorrendo à metáfora vívida de que a pregação do evangelho assemelha-se às dores do parto e, portanto, a imagem de Cristo tem sua execução vinculada à experiênca da dor. E mesmo o neoplatonismo de Agostinho está embebido de faticidade cristã, portanto a noção agostiniana da imagem de Cristo não pode ser entendida totalmente independente da "cura", ou seja, da aflição da vida. A questão, portanto, é a de como entender-se essa passagem fora da metafísica da presença. Bruce, por exemplo, na seqüência de sua interpretação recorre a uma passagem similar de 2Cor 3, 18, onde parece reforçar-se ainda mais a noção de imagem mental: "Todos nós, pois, vendo de rosto descoberto como num espelho a glória do Senhor, somos transformados na mesma imagem, de claridade em 19 claridade, como pelo Espírito do Senhor". Tem-se aí mais uma amostra do que, na interpretação tradicional, se entende como a "teologia de Paulo", e é dentro desse modelo explicativo, que Bruce, entre outros, interpreta a Carta aos Gálatas. E mesmo quando reconhece a Carta como uma linguagem vívida em que o apóstolo expressa a intensidade de seu amor pelos gálatas, essa interpretação ainda se dá dentro do modelo da "teologia de Paulo", a mesma que recorre à noção de espírito, associada à de interioridade; citando Calvino: nascitur in nobis, ut vivamus eius vitam (ele nasceu em nós, para que possamos viver sua vida). Ora, é nesse modelo que ele interpreta a passagem em que a formação da imagem de Cristo é associada com a metáfora das dores do parto (pãlin »d¤nv), isto é, nos termos do embrião formado no útero materno até alcançar a maturidade e ficar pronto para nascer[22]. O problema é entender-se que essa formação dá-se através de dificuldadese sofrimentos chegando-se, por fim, à imagem de Cristo, ou, em outras palavras, que, depois das dores do parto, nasce uma nova criança, também depois das dores da proclamação apostólica nasce na comunidade gálata uma nova imagem, a imagem de Cristo, isto é, há um antes (first time) em que Paulo pregou o Evangelho, mas cuja imagem de Cristo foi diluída na apostasia, e há um segundo tempo (second time), no qual, tendo Paulo permanecido fiel a ela, pode, então, ressuscitá-la na mente dos seus fiéis, ainda que novamente sofrendo as dores do parto[23]. Entendida deste modo, contudo, a imagem de Cristo seria externa à linguagem da proclamação. O nascimento dessa imagem é como um parto doloroso, mas, depois dele, a dor é substituída pela alegria do recém-nascido. Isto é, a aflição do nascimento cederia lugar à segurança da imagem estabilizada. Bruce dá um passo importante em sua interpretação ao reconhecer que a metáfora do nascimento é mais vívida que a fórmula catequética de "formação" ou "constituição" (putting on) quando da renovação do homem interior. Nesse caso o apóstolo induziria a um renascimento do interior do homem a partir da imagem de Cristo. Ele recorre às seguintes passagens nas quais a experiência da vida fática cristã é concentrada na interioridade do homem, isto é, nos resíduos da "teologia de Paulo": "Por isso não desfalecemos; mas, ainda que nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia" (2Cor 4, 16); "E vos renoveis no espírito da vossa mente" (Ef 4, 23); "Para que possais andar dignamente diante do Senhor, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda a boa obra, e crescendo no conhecimento de Deus" (Cl 1, 10); "mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo" (Rom 13, 14). Ora, apesar de entender a metáfora do "embrião" como mais intensa do que a noção de "formação", Bruce continua, porém, entendendo essa metáfora dentro do modelo metafísico do homem interior versus o homem exterior. E, do mesmo modo, a noção do novo homem por oposição ao velho. Essas metáforas, porém, estão comprometidas com a metafísica da representação mental. Ou seja, a "justificação pela fé" não anula apenas a lei mosaica, mas também qualquer tipo de justificação objetivadora e, portanto, a linguagem da metafísica que tende a encobri-la, tomando as noções de "conhecimento de Deus", "andar diante do Senhor", "revestir-se de Jesus", etc., fora do seu sentido de execução e, portanto, vinculando-a à lógica da informação, a mesma que reifica a expressão "imagem de Cristo", afastando-a da linguagem da proclamação[24]. Alguns intérpretes aproximar-se-iam da versão heideggeriana, isto é, da sua fenomenologia luterana, ainda que, na falta de corretivos fenomenológicos, mantenham-se todavia presos à linguagem da metafísica. É o caso de John Eadie, no século XIX, e, mais recentemente, de Friedrich Mayer. Os comentários de Eadie mantêm-se na tradição do "homem interior" do protestantismo; para Mayer, a "cristandade (Christenheit) está na experiência do julgamento do passado mais 20 próximo". Ele entende que a passagem "até que uma imagem de Cristo se forme em vós" (bis das Christus in euch eine Gestalt gewinne) é determinada pelo sofrimento semelhante às dores do parto; e, portanto, a falta da constituição dessa imagem é a razão (Grund) da falsa posição dos gálatas, o que atormentaria o apóstolo. Os gálatas tiveram uma bela e forte impressão da vinda do Senhor, eles o conheceram (erkannt), mas isso foi no começo, pois, logo depois, a verdadeira "imagem em Cristo" ("Gestalt in Christus") não os acompanhou, dado que, seduzidos pela apostasia, essa imagem esmoreceu e quase se perdeu. A constituição, o vir a ser dessa imagem (Gestaltgewinnen), começou depois que se lhes indicou, por meio da palavra, a boa mensagem (guten Botschaft). Essa imagem é semelhante à parábola do filho pródigo (Lc 16, 27 e 28), isto é, o pai festeja o retorno do filho que considerava morto; de modo semelhante, exceto pelas angústias, o apóstolo entenderia que aqueles que, pelo batismo, assumiram a nova aliança, tampouco poderiam ser considerados como mortos ou perdidos, pois, diferentemente dos incrédulos e dos pagãos, a semente plantada quando do seu batismo nascerá mais tarde, pois o novo homem cresce como o homem natural, que, depois da infância, ingressa na luta da adolescência, mas para isso precisa obter, desta, uma imagem clara e distinta e, finalmente, depois de vários anos, pode, então, na idade varonil, delinear de modo mais preciso os traços de seu caráter, isto é, aquilo que o distingue propriamente[25]. O homem novo já possui esses traços na infância, porém de modo desconhecido, pois é apenas no decorrer de seu desenvolvimento deve ele atingir o que lhe é essencial. Esse processo doloroso de formação da "imagem de Cristo", essa via crucis da imagem, poderá então retirar os gálatas do caminho errado e reconduzi-los à verdade do evangelho, mas isto porque eles nunca a perderam totalmente. Mayer, portanto, entende que a proclamação apostólica tem a capacidade de reformar imagens na mente dos gálatas. As palavras corretas dariam origem a uma imagem mental correta. Nas suas palavras, "o conceito de constituir uma imagem (Der Begriff vom Gestaltgewinnen) faz-se necessário, pois, mais uma vez, indica a constituição ou a formação (Werden) espiritual do homem interior (inneren geistlichen Menschen)"[26]. Nesse caso, a formação do homem interior estaria assegurada na imagem, mas, então, a "imagem de Cristo" tornar-se-ia um apoio. Ou melhor, a noção de "tornar-se imagem" (Gestaltgewinnen) se assemelharia à de "tornar-se um apoio" (Halt zu gewinnen), o que, como vimos, é uma blasfêmia, pois "Deus não é um apoio". Essa dificuldade está em que a "imagem de Cristo" nunca é clara, pois é a expressão da consistência da fé que, constantemente, é ameaçada pelo esmorecimento e, como tal, faz parte da experiência da fé. A via crucis não é um caminho histórico de adequação a uma imagem, mas a luta contra a sua diluição. Em termos filosóficos, é a perda do sentido de execução da imagem, isto é, quando a imagem se torna um evento mental ou sucessão temporal. A essa tensão, que não pode ser evitada, e tampouco pode ser ocultada, chamamos de "diferença fática". Não é por mero acaso que o mesmo Mayer que fala de imagem clara e distinta, no fim de seu comentário sobre essa passagem retoma uma oração nestes termos: "Ah Senhor, Senhor, qual é, então, a imagem que, em Ti, nós devemos obter?" (Ach Herr, Herr, welches es die Gestalt, die wir in Dir erlangen sollen?)[27]. Em John Eadie a noção de "formar-se em Cristo" também está vinculada à aflição apostólica pela minoridade dos gálatas, e tal preocupação marca decisivamente essa passagem da epístola. A acentuação da vida fática está em que na expressão "até que Cristo 21 se forme em vós" está conectada com o fim dos tempos, ou seja, a tarefa da "formação em Cristo" está vinculada à urgência da vida, cujo ápice está no fim de todas as coisas. A imagem de Cristo nunca será completa neste mundo e nestas mentes. Ou melhor, isso só se dará quando do Advento, isto é, quando sobrevir o fim do mundo. Antes disso a imagem de Cristo estará sempre ameaçada pela imagem do Anticristo. No Apocalipse de João é marcante a descrição do confronto entre as imagens do Anticristo e a chegada triunfal de Cristo, que com apenas um sopro faz desaparecer seu adversário. Não poderia haver uma formação completa da imagem de Cristo sem seu triunfo definitivo. Ocorre que não há triunfo definitivo, pois o que se acentua aí é a dramaturgia dessas imagens na experiência da vida fática cristã primitiva. E por "primitivo" não se entenda o passado, mas o que, da experiência cristã originária, continua tendo significação na nossa complicada forma de vida. Ora, reformatação de Cristo, para Eadie, não é um apelo à regeneraçãodas igrejas da Galácia, cujo espírito, seduzido pelos apóstatas, desviou-se da autêntica experiência da fé, mas a sua "formação completa com resultados visíveis". O cuidado aqui seria evitar o deixar-se levar pelas metáforas visuais. Segundo Eadie, a angústia de Paulo não está no passado e, portanto, na regeneração dos gálatas, mas no futuro, até que eles adquiram uma "perfeita maioridade espiritual". De qualquer modo tanto o passado, enquanto "regeneração", quanto o futuro, como uma "perfeição", são concebidos como a adequação à "imagem de Cristo". A regeneração ou a adequação, porém, não são processos mentais que envolvem alguma imagem virtual, pois a "imagem de Cristo" encontra-se na efetiva execução da experiência da fé, na qual a felicidade não está no sucesso em que se encaixa a uma imagem, pois tal adequação já mostra que houve uma perda dessa experiência. Por isso, a contemplação da "imagem de Cristo" é o esvaziamento da experiência da fé na qual se dá a execução da sua imagem. A sentido da noção de "imagem de Cristo" encontra-se na experiência da fé e não em alguma teoria das representações mentais[28]. Do mesmo modo, a recepção do quadro Cristo na cruz, de Lucas Cranach, o Velho, não está nas imagens mentais privadas, mas nas representações sombrias carregadas de dor e sofrimento que se encontram na execução pública da obra. A compreensão da obra, portanto, não é uma relação entre ela e um processo subjetivo e privado. A compreensão é o domínio técnico das sutilezas do "ver". As "representações" do quadro são um domínio técnico partilhado, mas inacabado. Por isso, a obra está publicamente em constante execução. O "passado", o "futuro" e o "presente" estão em execução na compreensão. Esse "estar-em-execução", porém, é autônomo em relação ao "presente". A compreensão não é um processo mental, isto é, ela tampouco depende do que está presente-diante-do-intérprete. A metafísica da presença é a reificação do estar em execução. No contexto da proclamação apostólica também os passivos "formar-se" ou "conformar-se" estão vinculados ao sofrimento do apóstolo pelo enfraquecimento da fé. Eadie está correto ao tomar a expressão "até que Cristo se forme em vós" como não dizendo respeito à antecipação das alegrias vindouras, mas à tristeza e à angústia pela superficialidade ou minoridade da fé dos gálatas (tkn¤a mo), mas cai em dificuldades ao entendê-la nos termos de evolução para uma "perfeição espiritual", como se houvesse uma meta externa que propiciasse orientação à experiência da vida fática. Sua terminologia "maioridade-minoridade", porém, poderia ser entendida como autenticidade-inautenticidade, no entanto a noção de maioridade significa que já foi superada a fase anterior. Para Heidegger, porém, a luta entre autenticidade e a inautenticidade faz parte da experiência da vida fática. Não há triunfo definitivo, embora a perda da sua diferença signifique, em termos filosóficos, como estamos mostrando, a queda 22 da linguagem da expressão na linguagem da objetivação. Aqui o vocabulário heideggeriano pode ser alterado e a diferença entre ambas dar-se-á agora nos termos da linguagem da faticidade e da linguagem da fatualidade, ou seja, no comentário de Eadie já se encontra a tensão entre a linguagem da experiência da fé e a sua tendência de encobrimento pela linguagem da objetivação. Ora, Eadie também destaca o nascimento de um novo homem, mas que também herda as dores do seu parto e, no qual, a genuína "imagem de Cristo" mostra-se espezinhada e agastada pela experiência da fé e pelo sofrimento da carne. A "verdade do evangelho" anda junto da agonia espiritual pela busca incessante da formação em Cristo, que Eadie entende como um penoso "trabalho da alma", pois "Cristo" é "um princípio de vida e de santidade, não um Cristo meramente contemplado, mas um Cristo que persiste com seu espírito; não uma especulação sobre sua pessoa ou sobre sua doutrina, nem uma defesa veemente de uma crença ortodoxa, nem o conhecimento do seu caráter e obra, nem a profissão de fé nele, com uma submissão externa às ordens da sua igreja"[29]. Eadie, porém, continua preso a uma metafísica dramatizada da imagem em que Cristo é ainda concebido como uma amostra vísivel e simétrica que deve ser, pelos gálatas, reproduzida em suas vidas. A tensão fática, no entanto, está em que a vivência da significação da expressão "imagem de Cristo" deixa de ser uma mera representação passiva para assumir o significado dramático da formação de Cristo nos membros da comunidade, como luz em suas mentes, como lei em suas consciências, como amor em seus corações, ou seja, como o mais decisivo na formação de seu espírito; não como um mero processo de adequação, mas, ao contrário, como impulso e poder, que tende a açambarcar e tragar toda a sua natureza interior. Essas interpretações, todavia, preservam a "teologia de Paulo" que precisa ser destruída para que se possa acessar à originalidade da "luta de Paulo", pois, como vimos, para Heidegger, é surpreendente quão pouco Paulo é teórico e dogmático. Esse "pouco", porém, são os resíduos metafísicos que surgem da tendência de queda da linguagem da proclamação na linguagem da objetivação. Só o resgate desse Paulo originário permitiria encontrar-se, então, o acesso à genuína experiência da fé cristã manifestada na proclamação apostólica. Por isso a luta de Paulo torna-se acessível a partir da luta de Heidegger contra a reificação da linguagem da proclamação. Ora, a noção de processo mental surge da objetivação da linguagem, o que Wittgenstein chama de modelo objeto-designação. Ou seja, a transformação em cristão sugere um processo mental de aproximação a uma "mesma imagem" e, portanto, a um mesmo modelo mental, que, para Heidegger, deve ser destruído para que se possa resgatar a execução da experiência da fé. O "tornar-se cristão", porém, não é um processo imagístico mentalista, mas o estar em suspensão da experiência inconclusa da fé e, por isso mesmo, a imagem de Cristo deixa de ser um apoio ou uma idéia reguladora objetivamente concebida. Assim, não se trata de uma aproximação a uma imagem fixa, mas de um mergulho na experiência do "mistério de Cristo", experiência que coloca em xeque tudo aquilo que tende a permanecer. A imagem de Cristo situa-se na linguagem da proclamação, ou seja, a "imagem de Cristo" é entendida, então, a partir da dramaturgia de Cristo expressa na linguagem, que se antecipa à concepção cristã do mundo. 23 Nas interpretações tradicionais, portanto, a figura de Jesus Cristo tende a ser entendida como algo externo à experiência da vida fática, o que, como estamos a mostrar, é rejeitado pela fenomenologia heideggeriana e, mais ainda, pela gramática da faticidade. Isso ocorre porque o significado dessa palavra vincula-se à noção de figura, à medida que esta também quer dizer "plasmar", "formar", "configurar", "ganhar", "conformar-se a", "tomar a forma de", etc. Desse modo, a expressão "até que Cristo se forme em vós" (bis Christus in euch Mensch geworden ist)[30] também dá a idéia de um processo de refiguração ou de incorporação da imagem de Jesus Cristo, perdendo-se o caráter executivo da noção de imagem ou figura, como se existisse apenas uma imagem ou modelo fixo de Cristo a que os homens se pudessem adequar. Isso envolveria uma queda da linguagem da proclamação na lógica da informação. A anterioridade da gramática não é um "apoio", mas a execução da linguagem, o que marca uma proximidade, não uma identidade, com o propósito de Heidegger. A noção de apoio ou de meta encontra-se em Schlier ao afirmar: "Quando se ilumina a igreja, é a figura de Cristo que sai à luz. E é esta figura a meta dos trabalhos apostólicos"[31]. A noção de "meta", como estamos mostrando, geralmente opera como uma idéia reguladora e, portanto, torna-se encobridora da experiência fática
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