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DEMOCRACIA/DITADURA I. A democracia na teoria das formas de governo r Desde a Antiguidade até hoje, o termo 'democracia' foi sempre usado para indicar uma das formas de governo, ou seja, uma das diferentes maneiras pelas quais pode ser exercido o poder público. Especificamente, indica a forma de governo em que o poder político é exercido pelo povo . ...l Na história do pensamento político, o espaço onde se situa a discussão sobre a opinião, os caracteres, as qualidades e os defeitos da democracia é a teoria e a tipologia das formas de governo. Portanto, qualquer discurso sobre a democracia não pode prescindir de determinar as relações entre democracia e outras formas de governo, pois só assim se pode definir o seu carácter específico. Por outras palavras, como o conceito de democracia pertence a um sistema de conceitos que constitui a teoria das formas de governo, não pode ser compreendido na sua natureza a não ser em relação aos outros conceitos do sistema cuja extensão delimita e por ele é, por sua vez, delimitado. Considerar o conceito de democracia como parte de um sistema mais amplo de conceitos permite dividir a exposição de acordo com os diferentes usos dados à teoria das formas de governo por cada um dos diferentes autores ou por todos eles ao mesmo tempo. Estes usos são três: descritivo (ou sistemático), pr:,escritivo (ou axiológico) e histórico. No seu uso descritivo ou sistemático, uma teoria das formas de governo conduz à classificação e, logo, à tipologia das formas de governo existentes ao longo da história, compreendida com base na determinação daquilo que as une e daquilo que as diferencia, numa operação que não é diferente da do botâ nico que classifica as plantas, ou do zoólogo que classifica animais. No seu uso prescritivo ou axiológico, uma teoria das formas de governo admite uma série de juízos de valor na base dos quais as diferentes constituições são não só alinhadas uma ao lado da outra, mas postas segundo uma ordem de preferência, conforme se as julgue bo:!s ou más, óptimas ou péssimas, melhores ou piores, e assim sucessivamente. Finalmente, pode falar-se no uso histórico duma teoria das formas de governo, quando dela nos servi mos não apenas para classificar as diferentes constituições, ou aconselhar uma em lugar da outra, mas também para descrever os diferentes momen tos sucessivos do desenvolvimento kistórico considerado como uma passa gem obrigatória de uma forma para outra. Quando o uso prescritivo e o uso histórico são conexos, como acontece amiúde, a descrição das diferen tes fases históricas acaba numa teoria do progresso ou da regressão con forme a forma melhor esteja no fim ou no princípio do ciclo. 192 DEMOCRACIA/DITADURA Partindo desta premissa, dedicar-se-á a primeira parte deste artigo ã ilustração das diferentes maneiras como a democracia foi entendida nas tipologias historicamente relevantes (§ 2), dando conta, em segundo lugar, das diferentes e opostas apreciações a que ela foi submetida, em diferentes épocas e por diferentes autores (§ 3), fornecendo enfim algumas indicações quanto ao lugar que lhe foi atribuído em algumas das principais filosofias da história que marcaram as etapas do processo histórico de acordo com a passagem duma forma de governo a outra (§ 4). É desnecessário salientar que os três usos nunca são completamente separados, e frequentemente a mesma tipologia contém os três entrelaçados: para dar um exemplo clás sico, temos a célebre teoria das formas de governo apresentada no oitavo livro da República de Platão, que é uma descrição dos caracteres específicos das diferentes constituições, que são arrumadas por ordem hierárquica da melhor ã pior, e uma outra arrumação hierárquica que coincide com a res pectiva ordem cronológica, da mais antiga à mais recente. Depois desta primeira parte, em que a democracia aparece como um elemento de um sistema conceptual, a segunda dedicar-se-á à análise da democracia nas suas diferentes interpretações a actuações históricas : em particular, às distinções entre a democracia dos antigos e a dos modernos (§ 5), a democracia representativa e a directa (§ 6), a democracia política e a social (§ 7), a democracia formal e a substancial (§ 8). A estas diferentes formas de democracia correspondem, na terceira parte, diferentes interpre tações da ditadura: de um modo particular, a ditadura dos antigos (§ 9) ã qual se contrapõe a ditadura moderna (§ 10), e especialmente a ditadura revolucionária (§ li) . 2. O uso descritivo Com respeito ao seu significado descritivo, a democracia é, na tradição dos clássicos, uma das três formas possíveis de governo na tipologia em que as diferentes formas de governo são classificadas com base no número diferente dos governantesla democracia é, em particular, aquela forma de governo em que o poder é exercido pelo povo todo, ou pelo maior número, ou pela maioria, e por isso se distingue da monarquia e da aristocracia, em que o poder é exercido, respectivamente, por uns ou por poucos.JNo Polí tico, de Platão, a célebre tripartição é introduzida assim: «- Não é para nós a monarquia uma das formas do poder político? - Sim. - E depois da monarquia poder-se-ia colocar a dominação dos poucos. - Como não? - A forma de constituição não é, por acaso, o poder da multidão, e não foi chamada de "democracia"?» [29Id]. A distinção das formas de governo com base no número dos governantes é retomada por Aristóteles por estas palavras: «É necessário que o poder soberano seja exercido por urna pessoa só, por poucos ou pelo maior número» [Política, 1279a].rA classificação relativa ao número, Aristóteles acrescenta uma outra relativa à diferente maneira de governar, ou para o bem comum, ou para o bem de quem governa, pelo que deriva a distinção não menos célebre entre formas boas e más. O termo 'democracia' é reservado por Aristóteles ã forma má, 192 193 DEMOCRACIAlDITADURA j enquanto a forma boa é designada pelo termo geral que significa constitui ção 'politeia'. No terceiro dos textos fundamentais da tradição clássica, que foi extraído do sexto livro das Histórias de Políbio, a teoria das formas de governo começa com estas palavras: "A maior parte daqueles que trataram destes assuntos ensinam-nos que existem três formas de governo chamadas, respectivamente, reino, aristocracia e democracia» '[VI, 3]. O termo 'demo cracia' volta a designar o governo da maioria na sua forma boa: à forma má, Políbio atribui o termo 'oclocracia'. Está certo que 'õuma tipologia, como a clássica, que distingue as diferentes constituições principalmente com base no critério do número dos governantes, existe, de qualquer maneira, uma forma de governo, chame-se ela democracia ou outra coisa, que é caracterizada face às outras por ser o governo da maioria em vez do de poucos, dos mais face aos menos, da maioria face à minoria ou a um grupo restrito de pessoas (ou até de uma só), c que, por isso, o conceito de democracia é, na tradição dos antigos e que chegou sem interrupção até nós, extremamente simples e constante. Para citar apenas alguns dos clássi cos da filosofi a política, este significado de democracia conjugado com a tripartição das formas de governo, de acordo com o número, encontra-se novamente no Defemor Pacis de Marsílio de Pádua, nos Discom' slllla prima deca de Maquiavel, no De la républiqlle de Bodin, nas obras políticas de Hobbes, em Espinosa, em Locke, em Vico e, com especial atenção não à titularidade mas ao exercício do poder soberano, no Co1ltrat social de Rousseau. i Não obstante a prevalência da tripartição, por vezes ela foi substituída por uma bipartição. Esta substituição deu-se em operações diferentes: ou agrupando unicamente numa espécie democracia e aristocracia contraposta à espécie monarquia; ou, também, agrupando numa espécie só monarquia earistocracia, e contrapondo-a à espécie democracia.;!A primeira recomposi ção é a adoptada por Maquiavel no Principe, onde se lê, logo nas primeiras linhas, que «todos os estados, todas as dominações que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são repúblicas ou principados» [1513, ed. 1977 p. 5] r A segunda foi a que acabou por prevalecer na teoria política contemporânea, em que a tripartição clássica vem sendo substituída pela distinção primária e fundamental entre democracia e autocracia. Um dos autores que mais contribuiu para difundir e consolidar esta distinção foi Kelsen, o qual, na General Theory of Law and State [1 945], depois de ter observado que a tripartição tradicional com base no número é superficial, adopta outro critério distintivo, a maior ou menor liberdade política, e conclui que «assim é mais correcto distinguir dois tipos de constituições, em vez de três: democracia e autocracia» (trad. it. p. 289).J A distinção maquiaveliana (retomada por Montesquieu, que no entanto regressa à tri partição, acrescentando à monarquia e à república, como terceira forma, o despotismo) é, contudo, baseada no critério do número, sendo inclusive dominada pela ide ia de que a distinção essencial é aquela que existe entre o governo de um só (que é e não pode deixar de ser uma pessoa fisica) e o de uma assembleia (que é e não pode deixar de ser uma pessoa jurídica, quer seja uma assembleia de optimates ou de representantes do povo), e por isso democracia e aristocracia podem ser proveitosamente consideradas como uma espécie só, sob o nome aglutinante de república (que pode ser, 194 DEMOCRACIA/DITADURA de facto, democrática ou aristocrática). A distinção entre democracia e autocracia baseia-se num princípio completamente diferente, por sua vez inspirado na observação de que o poder ou ascende de baixo para cima, ou descende de cima para baixo ....Para a justificar, Kelsen serve-se da distinção • entre autonomia e heteronomia; democráticas são as formas de governo em - que as leis são feitas por aqueles a quem se dirigem Ce são exactamente normas autónomas), autocráticas, aquelas em que os que fazem as leis não são aqueles a quem se dirigem Ce são exactamente normas heterónomas). Enquanto a classificação resultante da formação do Estado moderno absor veu a democracia no conceito mais geral de república, a classificação mais vulgarizada na teoria contemporânea engloba tanto a monarquia como a aristocracia no conceito mais geral de autocracia, e dá especial relevo à democracia considerada como um dos dois pólos em que convergem, embora em diferente medida e nunca totalmente, todas as constituições existentes. 3. O uso prescritivo No que diz respeito ao seu significado prescritivo, a democracia pode ser considerada, como de resto todas as outras formas de governo, com sinal positivo ou negativo, isto é, como uma forma boa e, portanto, a lou var e a aconselhar, ou como uma forma má e, portanto, a censurar e a desaconselhar. Toda a história do pensamento político é percorrida pela discussão acerca da melhor forma de governo: no interior desta discussão, um dos termos recorrentes é a argumentação pró ou contra a democracia. O início desta polémica pode considerar-se remontar a Heródoto [His tórias, 111, §§ 80-82], que refere a discussão entre três personagens persas, Otão, Megabizo e Dario, sobre a melhor forma de governo a instaurar na Pérsia depois da morte de Cambises: cada um dos três defende uma das três formas clássicas e refuta as outras duas. O defensor da democracia, Otão, depois de ter criticado o governo monárquico, porque o monarca "pode fazer o quer, sem prestar contas a ninguém», designa o governo do povo com «o nome mais belo de todos os outros: igualdade de direitos» e define-o como aquele em que "o governo está sujeito à prestação de contas, e todas as decisões são tomadas em comum ». Tanto ao defensor da aristo cracia, Megabizo, como ao defensor da monarquia, Dario, é atribuído, pelo contrário, o papel de argumentar com vista a demonstrar que o governo do povo é uma forma má. Segundo o primeiro, «nada há mais insensato e insolente do que uma multidão incapaz, de modo que não é tolerável que, "para fugir à prepotência dum tirano, se deva cair na insolência dum povo desenfreado». Para o segundo, «quando é o povo que governa, é impossível que não surja a corrupção na esfera pública, a qual não gera inimizades mas, pelo contrário, duráveis amizades entre os malvados ». Nesta discussão que teria acontecido durante a segunda metade do século VI a. c., e que é referida por um documento do século seguinte, alguns argumentos pró e contra a democracia são apresentados e fixados de uma vez por todas. No pensamento grego, o elogio e a condenação alternam-se. O elogio mais 194 ~-nria pode 195 DEMOCRACIA/DITADURA célebre é o de Péricles no discurso aos Atenienses em louvor dos primeiros mortos da Guerra do Peloponeso: «Temos uma constituição que não emula as leis dos vizinhos, dado que nós somos mais exemplo para os outros do que imitadores. E visto que ela é regida de forma a que os direitos civis compitam não a poucas pessoas, mas à maioria, ela chama-se democracia: perante as leis, no que diz respeito aos interesses privados, todos cabem num plano de paridade enquanto, no que diz respeito à consideração pública na administração do Estado, cada um é preferido conforme a com petência que revela num determinado campo, não pela procedência de uma classe social mas por aquilo que vale. E no que diz respeito à pobreza, se uma pessoa pode fazer algo de bom pela cidade, não é impedido pela humildade da sua condição social. Nós vivemos livremente nas nossas rela ções com a comunidade, e em tudo o que diz respeito à desconfiança resul tante das relações recíprocas na vida do dia a dia, sem nos irritarmos com o vizinho quando ele faz qualquer coisa que lhe dá prazer, e sem nos pro vocarmos mutuamente moléstias que, sim, não são prejudiciais, mas apenas desagradáveis aos nossos olhos. Sem nos prejudicarmos praticamos recipro camente as relações privadas, e na vida pública é sobretudo a reverência que nos impede de transgredir as leis, em obediência aos que estão nos lugares de comando e às instituições postas ao serviço de quem sofre injus tiça e, particularmente, àquelas que, embora não sendo escritas, acarretam para quem as transgride uma vergonha reconhecida por todos» [Tucídides, Guerra, lI, 37] . Nesta passagem os traços pelos quais a democracia é con siderada como uma forma boa de governo são essencialmente os seguintes: "é um governo não a favor da minoria mas da maioria; a lei é igual para todos, tanto para os ricos como para os pobres e, portanto, é um governo de leis, quer sejam escritas quer não sejam escritas, e não de homens; a liber dade é respeitada tanto na vida privada como na vida pública, onde não conta a pertença a este ou àquele partido, mas o valor pessoal. No oitavo livro da República de Platão, pelo contrário, encontra-se a d-;saprovação mais célebre. A democracia é aqui considerada e analiticamente descrita como uma forma degenerada, se não como a forma mais degenerada, que é a tirania. As quatro formas degeneradas, no que diz respeito à cidade ideal, são arrumadas nesta ordem de degradação sucessiva: timocracia, oligarquia, democracia, tirania. Enquanto a oligarquia é o governo dos ricos, a demo cracia é o governo não do povo mas dos pobres contra os ricos. O princípio da democracia é a liberdade que se converte logo em excesso pela falta de freios morais e políticos que é característica do homem democrático, pelo nascimento do desejo descomedido de satisfazer as necessidades supérfluas para além das necessárias, pela falta de respeito às leis e pela condescen-· dência geral à subversão de qualquer autoridade-, pelo que o paiteme o filho e o mestre, por exemplo, teme e adula os alunos, e os alunos riem-se dos mestres e dos pedagogos» [563a] . Com Aristóteles fica definida a dis tinção entre as três constituições boas e as três más, segundo o critério de governar para o bem comum ou para o bem próprio, destinada a tornar-se um dos lugares-comuns do pensamento político subsequente. Nesta siste matização, o governo da maioria aparece seja como forma boa, sob o nome de politeia, seja como má, sob o nome de democracia. Não diferentemente 196 DEMO RACIA/DITADURA de Platão, Aristóteles também define a democracia como governo dos pobres e, em consequência, como governo da maioria apenas pela razão de que os pobres são geralmente, em qualquer Estado, mais numerosos do que os ricos. Mas tal como o governo dos ricos, o governo dos pobres é também um governo a favor duma única parte, e por isso, de acordo com a definição de bom governo segundo o critério do bem comum, é um governo corrompido. Com Políbio mudam os nomes, não o ordenamento das formas de governo, em três boas e três más: a forma boa de governo popular é a democracia em que o povo «se ocupa dos interesses públicos», forma má é a degeneração da demo racia, ou oclocracia (governo da plebe), em que «a multidão, de facto, habituada a consumir os bens de outrem e a viver às custas do próximo, quando tiver um chefe magnânimo e ousado que não pode aspirar aos cargos públicos pela sua pobreza, usa a violência e coerentemente recorre ao assassínio, ao desterro, à divisão das terras» [Histórias, VI, 9]. A tipologia das formas de governo no seu uso prescritivo não é só um juízo absoluto sobre a bondade desta ou daquela forma, mas também um juízo relativo à bondade duma forma relativamente às outras. Nesta pers pectiva, a discussão acerca da democracia não diz apenas respeito a saber se a democracia é ou não uma forma boa ou má, mas alarga-se para saber se é melhor ou pior do que as outras, ou seja, qual é o seu lugar numa ordenação axiológica (isto é, segundo o valor) das constituições. Numa tipologia que não distinga as formas puras das corruptas, são três as teses possíveis: se a democracia é a melhor, a pior, ou se está entre a melhor e a pior. As teses historicamente mais frequentes e notáveis são as primeiras duas, pois o confronto dá-se habitualmente entre as duas formas extremas que são exactamente a monarquia e a democracia. Numa tipologia que dis tinga as constituições nas suas formas pura e corrupta, o confronto torna-se muito mais complexo: a democracia, de facto, pode ser tanto a pior (ou a melhor) das formas boas, como a melhor (ou a pior) das más, ou também pode ser simultaneamente a melhor (ou a pior) das formas boas e a melhor (ou a pior) das formas más. No pensamento grego, as teses mais vulgares são duas: a platónica (no Platão do Político), em que a democracia é ao mesmo tempo a pior das boas e a melhor das más (enquanto, pelo contrá rio, a monarquia é a melhor das boas e a pior das más), tendo como conse quência que a diferença entre a democracia boa e má é mínima (enquanto é máxima a que existe entre monarquia e tirania); a polibiana, segundo a qual a democracia está no fundo tanto das formas boas como das más, o que quer dizer que é concomitantemente a pior das boas e a pior das más. Numa tipologia como a da República platónica, que conhece apenas formas degeneradas, o problema axiológico consiste em atribuir à democracia um lugar no processo de degenerações sucessivas: para Platão, é pior do que a timocracia e do que a oligarquia, mas melhor do que a tirania. Enfim, numa tipologia como a de Vico, que só conhece formas boas ( boas no sen tido em que cada forma corresponde a uma determinada fase de desenvol vimento da humanidade; ao Zeitgeisl, como dirá Hegel), o problema axioló gico consiste em atribuir à democracia o seu lugar próprio no processo de sucessivos aper feiçoamentos: para Vico, a democracia, ou, para usar a lin 197 DEMOCRACIA/DITADURA guagem deste autor, a república popular, é uma forma melhor do que a república aristocrática, mas é pior do que o principado. (Tanto para Vico como para Platão o governo do povo não é uma forma extrema, isto é, uma forma que se encontre no início ou no fim da série, como acontece, pelo contrário, na maioria das teorias políticas, mas é uma forma intermédia). Na discussão geral em torno da melhor forma de governo, os clássicos do pensamento político moderno, que acompanham com as suas reflexões o surgir e o consolidar-se dos grandes estados territoriais prevalentemente monárquicos são, pelo menos até à Revolução Francesa, com excepção de Espinosa, favoráve is à monarquia e contrários à democracia. É o que acontece com Bodin, Hobbes, Locke, Vico, Montesquieu, Kant, Hegel. Enquanto alguns destes autores, que consideram as diferentes formas de governo no seu desenvolvimento h istórico, como Vico, Montesquieu, Hegel, exaltam a monarquia como a forma de governo mais adequada à sua época, outros, como"'Hobbes e Bodin, fazem uma comparação em abs tracto, em que consideram todos os argumentos t radicionais contra o governo do povo, todos os motivos antigos e modernos do antidemocra - "...-. tismo (os quais se transmitem sem variações sensíveis no publicismo qe ~ta dos nossos dias )~O décimo capítulo do De cive de Hobbes, intitu lado Specierum trium civ itatis quoad illcommoda singularum comparatio, pode ser considerado como paradigmático: os argumentos contra a democracia podem ser reunidos em dois grupos: os que dizem respeito ao sujeito governante (a assembleia popular comparada com o poder único do rei) e os que dizem respeito à maneira de governar. Os defeitos das assembleias populares são a incompetência, o domínio da eloquência (e, portanto, da demagogia), a formação de partidos que impedem a constituição de uma vontade colectiva e favorecem a rápida mudança das leis, a falta de sigilo. Os inconvenientes do poder, quando é exercido pelo povo, consistem numa maior corrupção - porque numa democracia os cidadãos famélicos, e que devem ser satisfeitos pelos agitadores, são em número maior - e na menor segurança causada pela protecção que os demagogos são obrigados a con ceder aos seus apoiantes, maior corrupção e menor segurança que não são compensadas por uma maior liberdade. O Tractatus de Espinosa foi escrito para demonstrar a superioridade do governo democrático mas, infeliz mente, a parte dedicada a esta forma de governo ficou incompleta. Porém, comparando Espinosa com Hobbes, autores em muitos aspectos muito próximos no que respeita aos princípios de base e, portanto, legitimamente comparáveis, consegue-se entender a razão pela qual Espinosa, embora par tindo da mesma visão realística do poder e da mesma maneira d'e conceber a fundação do Estado, defendeu, na comparação entre as diferentes formas de governo, a tese diametralmente oposta à hobbesiana. O que os divide é a concepção distinta do fim último do Estado, que para H2b~s é a paz e a õrdeffi, e prnÊspiiiosa, a liberdadf\p iferençi que, por sua vez, repousa numa outra mais profunda, que permite, mais do que todas as outras, con trapor os escritores que se situam e:r parte principis, isto é, ao lado dos governantes para justificar o direito que estes têm de comandar e o dever dos súbditos de obedecer, aos que se situam ex parte poputi, ou seja, do lado dos governados para defender o direito destes de não serem oprimidos, DEMOCRACIA/DITADURA 198 199 e o dever dos governantes de publicar leis justas.rPara os que se ponham ex parle principis, o problema principal do Estado é o da unidade, que até - ~ pode prejudicar a liberdade dos indivíduos; para os que se ponham ex -parce populi, o problema principal é o da liberdade dos indivíduos, que até pode prejudicar a unidade:.1A discussão entre o defensorda monarquia e o da democracia é sempre uma discussão entre dois contendores com pontos de vista opostos para analisar e apreciar o mesmo fenómeno. A solução que o defensor da democracia dá para o problema da liberdade, que é, repito-o, o problema do Estado considerado pela parte do governado, é, em última análise, a identificação do governado com o governante, ou seja, a elimina ção do governante como figura separada da do governado. Esta identifica ção é enunciada claramente por Espinosa uando, ao expor «os fundamen tos do governo democrático », afirma que «nele ... ninguém transfere para outrem o seu direito natural próprio de maneira tão definitiva que, mais tarde, não possa vir a ser consultado; mas defere-o para a maior parte da sociedade inteira de que ele é membro. E, por esta razão, todos continuam a ser iguais, tal como eram no estado de natureza precedente ::,, [1670, trad. it . 384-85] . Uma afirmação que não pode deixar de evocar a ideia central em que se inspira a obra daquele que é considerado o pai da democracia moderna: a ideia de uma associação mediante a qualr: cada um, juntando-se a todos, não obedeça contudo senão a si mesmo, e fique livre como dantes»J [Rousseau 1762, trad. it. p. 23]. O tema rousseauniano da liberdade como autonomia, ou da liberdade definida como «a obediência de cada um à lei que se prescreve», torna-se, depois das revoluções americana e francesa, e depois do nascimento das primeiras doutrinas socialistas e anarquistas, um dos argumentos princi pais, se não o principal, a favor da democracia no que diz respeito a qual quer outra forma de governo, que, quando não democrática, não pode dei xar de ser autocrática. O problema da democracia vai-se cada vez mais identificando com o tema do autogoverno, e o progresso da democracia com o alargamento dos campos em que o método de autogoverno é sujeito a verificação. O desenvolvimento da democracia, desde o princípio do século passado até hoje, tem coincidido com a progressiva extensão dos direitos políticos, quer dizer do direito de participar, se não através da elei ção de representantes, pelo menos através da formação da vontade cole c tiva. 10 progresso da democracia coincide com o fortalecimento da convic ção de que, depois do iluminismo, o homem, como dizia Kant, saiu da menoridade e, como um maior já sem tutela, deve decidir livremente da própria vida individual e colectiva. À medida que um número sempre maior de indivíduos conquista o direito de participar na vida política, a autocracia recua e a democracia progride. Ao lado do argumento ético a favor da democracia entendida como actuação no plano especificamente político do valor supremo da liberdade, a avaliação positiva da democracia - autonomia em relação à autocracia - heteronomia apoia-se geralmente em outros dois argumentos, o primeiro mais propriamente político, o segundo genericamente utilitário. O argumento político baseia-se numa das máxi mas tradicionais mais vulgares no pensamento político de todas as épocas, segundo a qual os detentores do poder tendem a abusar dele.'-Toda a história do in en: res e i>e dei. ~ . 198 ponham . que até para 199 DEMOCRACIA/DITADURA do pensamento político pode ser considerada como uma longa, ininterrupta - e apaixonada discussão acerca das diferentes maneiras de limitar o poder: uma delas é o método democráticÇ,;jUm dos argumentos mais consistentes a favor da democracia é que o povo não pode abusar do poder contra si mesmo ou, por outras palavras, sempre que o legislador e o destinatário da lei são a mesma pessoa, o primeiro não pode prevaricar em prejuízo do segundo. O argumento utilitarista baseia-se numa conhecida máxima tradi cional (na verdade, menos sólida) segundo a qual os melhores intérpretes do interesse colectivo são os que pertencem à colectividade de cujo inte resse se trata, isto é, os próprios interessados: neste sentido, vox populi vox dei. 4. O uso histórico Durante séculos e até Hegel, os maiores escritores políticos serviram-se das formas de governo para traçar as linhas de desenvolvimento do pro cesso histórico entendido como a sucessão de uma determinada constitui ção a outra, segundo um certo ritmo. É preciso ver que lugar ocupam em alguns dos grandes sistemas de democracia. Primeiro, importa distinguir as filosofias da história em termos regressivos, segundo os quais a etapa seguinte é uma degeneração de precedente; em termos progressivos, segundo os quais a etapa seguinte é um aperfeiçoamento da precedente; em termos cíclicos, segundo os quais o curso histórico, depois de ter percor rido em sentido regressivo ou sentido progressivo todas as etapas, torna ao princípio. Nas histórias regressivas (Platão) ou cíclico-regressivas (Políbio) dos antigos, a democracia ocupa geralmente o último lugar numa sucessão que prevê a monarquia como primeira forma, a aristocracia como segunda, a democracia como terceira. Exemplar, inclusive pela influência que exer ceu sobre os escritores modernos (pense-se de modo particular no Maquia vel do segundo capítulo dos Discorsi), a periodização de Políbio que apre senta em rápida síntese a sucessão das seis formas através da alternância da forma com a respectiva forma má: «Espontânea e naturalmente surge antes de quarquer outra forma a monarquia, da qual deriva, a seguir a oportunas correcções e transformações, o reino. Quando esse incorre nos defeitos que lhe são co-naturais e se transforma em tirania, é abolido e a aristocracia ocupa o seu lugar. Quando, segundo um processo natural, ela degenera em oligarquia e o povo indignado castiga a injustiça dos chefes, surge a demo cracia. Quando essa, por sua vez, se mancha de ilegalidade e violência, com o passar do tempo, constitui-se a oclocracia» [Histórias, VI, 4] . Na Idade Moderna, a idade das grandes monarquias, quando a con cepção regressiva dá lugar à progressiva, o campo de observação dos escri tores é enormemente alargado e a sucessão dos antigos aparece invertida: a monarquia já não se encontra no princípio do ciclo mas no fim. Vico considera-se um inovador porque, depois do estado ferino (que ainda não é social) e do estado das famílias (que ainda não é estatal), faz começar a história dos estados não pela monarquia, mas pela república aristocrática, à qual sucede a república popular e, finalmente, o principado. No De universi DEMOCRA IA/DITADURA 200 iuris uno principio et uno fine , define o governo popular como aquele em que vigoram "a paridade dos sufrágios, a livre expressão das sentenças e o igual acesso de cada um a todas as honras, sem exclusão das supremas, em virtude do censo, ou seja, do património» (1720, trad. it. p. 166] (o princí pio de que o censo é a base dos direitos políticos durará, como se sabe, até à Revolução Francesa e além). Uma característica da tipologia de Vico, aliás, é que ela acaba em dicotomia com um processo diferente dos já conhecidos e indicados: as duas dicotomias mais vulgares são monarquia e república (com a reduccio ad lmum de democracia e aristocracia), ou tam bém democracia e autocracia (com a reduccio ad unum de monarquia e aris tocracia). Para Vico a diferença essencial passa entre a república aristocrá tica, por um lado, que representa a época dos heróis, e a república popular e monárquica, por outro, que representam ambas, embora em diferente medida, a época dos homens, e, portanto, a tricotomia clássica pode resolver-se na dicotomia aristocracia e "governos humanos» (isto é, demo cracia e monarquia) nos quais "por força da igualdade dessa inteligente natureza, que é a natureza mesma do homem, todos são iguais em virtude das leis, porque todos nasceram livres nas próprias cidades, assim livres populares, emque todos ou a maioria são as forças legítima da cidade, através das quais eles são os senhores da liberdade popular; ou nas monar quias, nas quais os monarcas tornam iguais todos os súbditos com as suas leis e, sendo só eles os detentore de toda a força das armas, apenas se distinguem na natureza civil» [1744, § 927]. Na importan te classificação das formas de governo, exposta e minucio samente ilustrada por Montesquieu no Esprit des lois, a monarquia mais uma vez aparece como a forma d governo mais adaptada aos grandes estados territoriais europeus, enquanto o despotismo é a forma de governo mais convincente para os povos orientais, e a república (que, à imitação de Maquiavel, compreende tanto a república democrática como a aristocrá tica), povos antigos. Segundo a natureza, o governo republicano é definido como aquele em que "o povo todo ou algumas famílias gozam do poder supremo» (1748, trad. it. p. 83J; segundo o princípio, ou seja, segundo a "mola» que o faz mover, é o que se caracteriza pela virtude (enquanto o monárquico tem por princípio a honra, o despótico tem o medo). T anto no capítulo em que é esclarecida a natureza da democracia, como no dedicado ao princípio, os exemplos são tirado da história grega e romana, e neles se encontra esta afirmação: "Os políticos gregos, que viviam num governo popular, reconheciam na virtude a única força de o sustentar. Os políticos de hoje falam-nos apenas de manufacturas, de comércio, de finanças, de riquezas, até de luxo» (ibid., pp . 85-86). Na passagem onde vem desenvol vido o conceito de virtude e é definido como "o amor pela república» (ibid., p. 115J, as fontes da definição são notoriamente clássicas. A natureza e o princípio do despotismo são ilustrados com exemplos tirados dos povos orientais; a natureza e o princípio da monarquia, com exemplos tirados dos grandes estados europeus, como Espanha, França, Inglaterra. A tripartição de Montesquieu torna-se o critério fundamental para a interpretação do processo histórico da humanidade na filosofia da história 200 rremas, em o princí 'õe sabe, até e Vico, ......~-.-.re dos já , ou tam monar uas nas se 201 DEMOCRACIAlDITADURA de Hegel, que pode ser considerada como a última grande filosofia da his tória em que a evolução da civilização é vista através da passagem de uma forma de governo a outra (depois de Hegel, a maioria das ftlosofias da his tória consideram como indicadores da evolução as formas sociais, as rela ções de produção, etc. ). Numa obra da juventude o desenho geral em que será compreendida e desenvolvida a imensa matéria da filosofia da história da idade madura está já traçado nas suas linhas principais: «A continuidade da cultura mundial levou o género humano, depois do despotismo oriental e depois que degenerou a república que dominara o mundo, a esta posição intermédia entre as duas precedentes» que é «o sistema de representação» próprio «de todos os estados europeus modernos» [1799-1802, trad. it. p. 83]. Nas Lições sobre a Filosofia da História, o tema é retomado e desen volvido nas suas linhas essenciais com estas palavras: "A história universal é o processo através do qual se dá a educação do homem do descomedi mento da vontade natural ã universal e ã liberdade subjectiva. O Oriente apenas sabia e sabe que só um é livre; o mundo grego e romano, que alguns são livres; o mundo germânico, que todos são livres. A primeira forma que, por isso, nós vemos na história universal é o despotismo; a segunda é a democracia e a aristocracia, e a terceira é a monarquia» [1830-31, ed. 1934 p. 150]. Para Hegel, portanto, como para os maiores escritores políticos que retlectem sobre a formação e o crescimento do Estado moderno, a democracia é uma forma de governo que pertence ao passado. Contra o conceito de soberania popular, elaborado em antítese ã soberania que existe no monarca, Hegel escreve nos Elementos de Filosofia do Direito (isto é, na obra marcante no que diz respeito ã essência do seu pensamento político): "O povo, considerado sem o seu monarca e sem a organização necessária e imediatamente conectiva da totalidade, é a multi dão informe, que já não é o Estado, à qual já não diz respeito qualquer das determinações que existem, apenas na totalidade formada per se» [1821, § 279, anotação] . Fazendo da monarquia constitucional o momento culmi nante do desenvolvimento histórico, Hegel, filósofo da idade da restaura ção, fecha uma época. 5. A democracia dos modernos Na idade em que se foram formando os grandes estados territoflals, através da acção centralizadora e unificadora do príncipe, o argumento que se tornou clássico contra a democracia consistia em afirmar que o governo democrático era possível apenas nos pequenos estados. O próprio Rousseau estava convencido de que uma verdadeira democracia nunca t inha existido porque, entre outras condições, exigia um estado muito pequeno, «onde fosse fácil para o povo reunir-se e onde cada cidadão pudesse facilmente conhecer todos os outros» [1 762, trad . it. p. 93]. Mas, enfim, quando Hegel exaltava a monarquia constitucional como única forma de governo em que se deveria ter reconhecido o espírito do mundo depois da Revolu ção Francesa, já tinha nascido um governo republicano e tinha-se tornado tão forte que atraía a atenção e a admiração de alguns espíritos inquietos e antevidentes, num grande espaço (num espaço destinado a tornar-se muito DEMOCRACIA/DITADURA 202 maior do que o ocupado pelos principais estados europeus): os Estados Unidos da América. A falar verdade, alguns dos fundadores do novo estado, que demons traram, nas disputas teóricas e nas construções constitucionais, conhecer bem o pensamento político clássico e moderno, quiseram que não se con fundisse a república, que tinham em vista e para a qual tinham trabalhado, com a democracia dos antigos . Sobre a democracia dos antigos o juízo de James Madison no Federalisl (n.o 10) não se distingue do dos mais obstina dos antidemocratas: "As democracias sempre ofereceram espectáculo de turbulência e de divergências, sempre demonstraram estar em contraste com qualquer forma de garantia da pessoa ou das coisas; e viveram uma vida que foi tão breve, quão violenta a sua morte» [Hamilton, Jay e Madi son 1787-88, trad. it. p. 61] . Mas a forma de governo que Madison deno mina democracia, segundo a lição dos clássicos chegada até Rousseau, era a democracia directa. Por república, pelo contrário, entende o governo repre sentativo, aquela mesma forma de governo a que nós hoje chamamos convencidos de que nos grandes estados não é possível outra democracia senão a representativa, embora em alguns casos corrigida e integrada por instituições de democracia directa -, sem necessidade de mais especifica ções, democracia que contrapomos a todas as formas antigas e novas de autocracia. Escreve Madison: "OS dois grandes elementos de diferenciação entre uma democracia e uma república são os seguintes: em primeiro lugar, no caso desta última, há uma delegação da acção governativa a um pequeno número de cidadãos eleitos pelos outros, em segundo lugar, ela pode alargar a sua influência a um maior número de cidadãos e a uma maior extensão territorial» [ibid., p. 62]. Deste passo emerge a opinião firme de que existe um nexo necessário entre Estado representativo (ou república) e dimensão do território e que, por isso, a única forma de governo não autocrática num grande estado é o governo representativo, que é uma forma de governo democrático corrigido ou mitigado ou limi tado e, como tal, compatível com um território muito extenso e com uma população numerosa (além disso, no caso dos Estados Unidos, também muito dispersa). Que a passagem da democracia directa à democracia indi recta é objectivamente determinada pelas condições doambiente e, por tanto, lã república não é tanto uma forma oposta à democracia mas a única - democracia possível em determinadas condições de território e populaçã~é confirmado por este passo: "Outro ponto de diferenciação [entre democra cia e governo representativo] é o seguinte: um regime republicano pode abranger um maior número de cidadãos e um território mais extenso do que um regime democrático e é esta mesma circunstância que faz com que as possíveis manobras das facções sejam menos de temer no primeiro do que no segundo caso» [ibid., p. 63]. Deve-se a Alexis de Tocqueville, que em 1835 publicou o primeiro volume de De la démocracie en Amérique, o reconhecimento, quase a consa gração, do novo estado no novo mundo como forma autêntica da democra cia dos modernos contraposta à democracia dos antigos. Na advertência à edição de 1848, TocquevilIe escreve que a América resolveu, enfim, o pro blema da liberdade democrática que a Europa vem a pôr-se só no momento - 202 Estados .ento 203 DEMOCRACIA/DITADURA presente: «Há sessenta anos na América reina, soberano, posto em prática da maneira mais directa, mais ilimitada, mais absoluta, o princípio da sobe rania do povo, que introduzimos ontem no nosso país» [Tocqueville 1848, trad. it. p. 10] . Para quem escreve estas palavras a distinção entre demo cracia directa e democracia representativa já não tem qualquer relevância; «Às vezes é o próprio povo que faz as leis, como em Atenas; às vezes são os deputados, eleitos com sufrágio universal, que o representam e agem em seu nome sob a sua vigilância quase directa». O que importa é que o poder esteja de facto, directamente ou por interposta pessoa, nas mãos do povo; que vigore como ,<lei das leis» o princípio da soberania popular, onde «a sociedade age "por si mesma" sobre si mesma», e «não existe poder fora dela e não há ninguém que ouse conceber e, sobretudo expri mir, a ideia de o procurar em outro lugar». Este capítulo sobre o princípio da soberania popular na América conclui-se com estas palavras: «O povo reina sobre o mundo político americano, como Deus sobre o universo. Ele é a causa e o fim de tudo: tudo deriva dele e tudo a ele reconduz» [Toc queville 1835-40, trad. it. p. 77] r Contrariamente à democracia dos antigos que, baseada num governo de assembleia, não reconhece nenhuma enti dade intermédia entre o indivíduo e o Estado, no qual Rousseau que é o ...--.b seu moderno defensor condena as sociedades parciais, acusadas de dividi rem o que tem de permanecer unido, a democracia dos modernos é plura lista, assenta na existência, na multiplicidade e na vivacidade das socieda des intermédias J Para além da igualização das condições, a sociedade americana impressionou Tocqueville pela tendência dos seus membros para se associarem a fim de promoverem o bem público, de tal modo que «independentemente das associações permanentes, criadas pela lei com o nome de municípios, cidades e condados, há uma multidão de outras que devem o seu nascimento e o seu desenvolvimento apenas a vontades indi viduais » [ibid., p. 226]. E o associacionismo torna-se um critério novo (novo em relação aos critérios tradicionais que sempre se basearam exclusi vamente no número de governantes) para distinguir uma sociedade demo crática, como ressalta deste trecho que surpreende pela sua incisividade: «Nas sociedades aristocráticas, os homens não precisam de se juntar para agir, porque já estão solidamente unidos. «Todo o cidadão rico e poderoso está como que à frente de uma asso ciação permanente e necessária, que se compõe de todos os que dependem dele e que ele faz convergir na execução dos seus desígnios . - "Nas democracias, por sua vez, todos os cidadãos são independentes e ineficientes, não podem quase nada sozinhos e ninguém pode obrigar os seus semelhantes a dar-lhe a própria cooperação. Se não aprendem a ajudar-se livremente, caem todos na impotência» ,[ibid. , p. 598]. 6. Democracia representativa e democracia directa No século que decorre desde a época da restauração até a Primeira Guerra Mundial, a história da democracia coincide com a afirmação dos estados representativos nos principais estados europeus e com o seu desen - DEMOCRACIA/ DITADURA 204 volvimento interno, de tal modo que a complexa tipologia das tradicionais formas de governo será progressivamente reduzida e simplificada na con traposição entre os dois campos opostos das democracias e das autocracias. Tendo presente os dois traços fundamentais salientados por Tocqueville na democracia americana, o princípio da soberania do povo e o fenómeno da associação, o estado representativo, tal como a pouco e pouco se viera a consolidar na Inglaterra e dela se difundi ra através do movimento constitu cional dos primei ros decénios do século XIX na maioria dos estados euro peus, passou por um processo de democratização segundo duas linhas: r'õ alargamento do direito de voto até ao sufrágio universal masculino e feminino e o desenvolvimento do associativismo político, até à formação dos partidos de massa e ao reconhecimento da sua função pública. N ada pode mostrar melhor este duplo processo que o confronto entre o statuto do Reino da Sardenha promulgado por Carlos Alberto em 4 de Março de 1848, logo transformado na primeira carta constitucional do reino de Itália (1861 ), e a constituição republicana elaborada e aprovada pela Assembleia Constituinte eleita em 2 de Junho de 1946 após o final da Segunda G uerra Mundial e entrada em vigor quase exactamente um século depois do Estatuto albertino em 1 de Janeiro de 1948. Antes de mais, atra vés dos sucessivos alargamentos dos direitos políticos que ocorreram em 1882, em 1912, em 1919 e em 1946 (sem considerar a extensão do voto aos maiores de dezoito anos em 1975), o eleitorado italiano passou de pouco mais de 2 por cento dos habitantes para os 60 por cento aproximadamente. Em segundo lugar, com a passagem da monarquia à república também o cargo supremo do Estado se tornou electivo e, portanto, no sentido técnico da palavra, representativo. Em lugar do senado de nomeação régia, a segunda câmara é eleita, ela também, por sufrágio universal. Com a insti tuição das regiões às quais foi atribuído um poder legislativo fez-se uma tentativa (cujos resultados é demasiado cedo para julgar) de redistribuir o poder político entre o centro e a periferia. Finalmente com o reconhecer a todos os cidadãos «o direito de se associarem livremente em partidos polí ticos para concorrerem com método democrático para a determinação da política nacional" (art.o 49) quis-se fazer a legitimação das organizações que através da agregação de interesses homogéneos facilitam a formação duma vontade colectiva numa sociedade caracterizada pela pluralidade dos grupos e por fortes tensões sociais. A consolidação da democracia representativa não impediu, por outro lado, o regresso, embora em formas secundárias, à democracia directa. Pelo contrário, o ideal da democracia directa como a única verdadeira democra cia nunca faltou, e foi sempre mantido vivo por grupos políticos radicais, que tiveram sempre a tendência para considerarem a democracia represen tativa não como urna inevitável adaptação do princípio da soberania popu lar às necessidades dos grandes estados mas um censurável ou erróneo des vio da ideia originária do governo do povo, para o povo, através do povo. Como bem se sabe, Marx acreditou poder recolher alguns apontamentos de democracia directa na breve experiência de direcção política feita pela Comuna de Paris entre Março e Abril de 1871. Lenine retomou com força o tema em Estado e RelJolução [1 917], o ensaio que devia guiar a mente e a 205 acção do _ vem nu interesse ". res, ou o f:," ~ mandato vigor, cu contas deput o por deo - das repú'gente dos neo 204 r outro ~ecra. Pelo ~ul!mocra dicais, presen popu eITÓneo des • do povo . .....~ülInentos de "'eira pela m força 205 DEMOCRACIA/DITADURA acção dos construtores do novo Estado que estava a surgir das cinzas da autocracia czarista. A democracia directa foi contraposta amiúde, como forma própria da futura democracia socialista, à democracia representativa, condenada como forma imperfeita, dimidiata e enganadora de democracia e, além disso, como única forma de democracia possível num Estado de classe como o Estado burguês . Sob o nome genérico de democracia directa entendem-se todas as formas de participação no poder, que não se resol vem numa ou noutra forma de representação (nem na representação dos interesses gerais, ou política, nem na representação dos interesses particula res, ou orgânica): a ) o governo do povo através de delegados investidos de mandato imperativo e, portanto, revogáveis; b) o governo de assembleia, isto é, o governo não só sem representantes irrevogáveis ou fiduciários, mas também sem delegados; c) o referendo. Destas três formas de democracia directa, a primeira foi escolhida na constituição soviética actualmente em vigor, cujo art. O 142 diz que «todo o deputado tem obrigação de prestar as contas aos eleitores do próprio trabalho e do trabalho dos Sovietes dos deputados dos trabalhadores, e pode ser afastado em qualquer momento, por decisão da maioria dos eleitores », e na maior parte das constituições das repúblicas populares; a segunda pertence normalmente à fase emer gente dos movimentos colectivos, à fase do assim chamado «Estado nas cente» anterior à institucionalização, do qual são exemplos recentes o movimento de contestação dos estudantes e comissões de zona ou de bairro das grandes cidades; a terceira foi incluída nalgumas constituições pós-bélicas, tal como a italiana (art .o 75). Destas três formas de democracia directa, a segunda e a terceira não podem substituir sozinhas, e de facto nunca substituíram, as diversas formas de democracia representativa prati cáveis num estado democrático como, de resto, as várias formas de demo cracia representativa nunca pretenderam substituir, e de facto nunca subs tituíram, as formas autoritárias de exercício do poder, tal como, por exemplo, em todos os estados que também se chamam democráticos, aque las que são próprias do aparelho burocrático; e, portanto, não podem cons tituir por si só uma verdadeira alternativa ao Estado representativo: a segunda porque é aplicável apenas nas pequenas comunidades, a terceira porque é aplicável só em circunstâncias excepcionais e de particular rele vância. Quanto à primeira, com a formação dos grandes partidos organiza dos que impõem uma disciplina de voto, às vezes férrea, aos representantes eleitos nas suas listas, a diferença entre representação com mandato e representação sem mandato torna-se cada vez mais evanescente. rO depu tado eleito através da organização do partido passa a ser um mandatário, se não dos eleitores, do partido que o penaliza retirando-lhe a confiança toda a vez que ele se subtraia à disciplina, a qual, portanto, se torna um sucedâ neo funcional do mandato imperativo por parte dos eleitores~ 7. Democracia política e democracia social o processo de alargamento da democracia não se verifica apenas atra vés da integração da democracia representativa na democracia directa mas também, e sobretudo, através do alargamento da democratização entendida DEMOCRACIA/DITADURA 206 como institUlçao e exercício de mecanismos que permitem a participação dos interessados nas deliberações de um corpo colectivo, recorrendo a cor pos diferentes dos políticos. Resumindo, pode dizer-se que se hoje se deve falar de desenvolvimento da democracia, ele não consiste, como amiúde se diz, erroneamente, na substituição da democracia representativa pela democracia directa (substituição que é, de facto, impossível nas grandes organizações), mas rna passagem da democracia na esfera política, quer dizer, na esfera em que o indivíduo é entendido como cidadão, à democra cia na esfera social, onde o indivíduo é entendido na multiplicidade dos seus estatutos, por exemplo de pai e filho, de cônjuge, de empresário e de trabalhador, de professor e de estudante, e inclusiva mente de pai de estu dante, de médico e de doente, de oficial e de soldado, de administrador e de administrado, de produtor e de consumidor, de gerente de serviço público e de utente, etc.; por outras palavras, na extensão das formas de poder ascendente, que até agora ocupara quase exclusivamente o campo da grande sociedade política (e das pequenas associações voluntárias amiúde politicamente irrelevantes), ao campo da sociedade civil nas suas diferentes articulações, da escola à fábrica . Por conseguinte, as formas actuais de desenvolvimento da democracia não podem ser interpretadas como a afir mação de um novo tipo de democracia, antes devem ser entendidas como a ocupação, por parte de formas inclusivamente tradicionais de democracia, de novos espaços, ou seja, de espaços dominados até agora por organiza ções de tipo hierárquico ou burocrático. Uma vez conquistado o direito à participação política, o cidadão das democracias mais avançadas percebeu que a esfera política é, por sua vez, incluída numa esfera muito mais ampla, a esfera da sociedade no seu con junto, e não há decisão política que não seja condicionada ou até determi nada pelo que acontece na sociedade civil e, portanto,ruma coisa é a demo cratização da dirccção política, o que aconteceu com a instituição dos parlamentos, e outra é a democratização da sociedad~.l Consequentemente, pode muito bem acontecer um estado democrático numa sociedade em que a maioria das instiruições, da família à escola, da empresa aos serviços públicos, não são governadas democraticamente. Daí a pergunta que carac teriza mais do que todas as outras a acrual fase de desenvolvimento da democracia nos países politicamente mais democráticos: «É possível a sobrevivência de um estado democrático numa sociedade não democrá tica?» Pergunta que pode ser formulada também desta maneira: «A demo cracia política foi, e ainda é agora, necessária para que um povo não seja governado despoticamente. Mas ela é também suficiente?" Até há bem pouco tempo, quando se queria dar uma prova do desenvolvimento da democracia num determinado país, considerava-se como indicador o alar gamento dos direitos políticos, do sufrágio restrito ao sufrágio universal; mas, nesta perspectiva, não é possível qualquer desenvolvimento ulterior, uma vez alargado o sufrágio, em quase todos os lugares, também às mulhe res e, nalguns países, como a Itália, o limite de idade reduzido para dezoito anos. Hoje, quem quiser ter um indicador do desenvolvimento democrático de um país deve ter em conta já não o número das pessoas que têm direito a votar, mas o número das áreas, diferentes das que são tradicionalmente - - 207 9. À LU<:...a.;;.a governo, sociedad 207 DEMOCRACIAlDITADURA políticas, em que se exerce o direito de voto. Dito de outra maneirar quem quiser, hoje, formular um juízo sobre o desenvolvimento da democracia num determinado país não tem de perguntar: «Quem vota?", mas «Aonde - se vota?". j 8. Democracia formal e democracia substancial o discurso sobre o significado de democracia não pode considerar-se concluído se não se der conta do facto de, para além da democracia como forma de governo de que até agora se falou, ou seja, como um conjunto de instituições caracterizadas pelo tipo de resposta que é dada às duas pergun tas «Quem Jioverna?" e «Como governa?", a linguagem política moderna conhecértam~o significado de ~ocracia como regime caracterizado pelos fins ou valores para. cuja astul!Ção um determinado gru-R0pol:.!!ifo tende ~~ra. O princípio destes fins ou valores, a que é alegado com vista a distinguir, já não apenas formalmente mas também a nível de conteúdo, um regime democrático de um regime não democrático, é a igualdade, não obviamente a igualdade histórica que foi introduzida nas constituições libe rais quando elas ainda não eram formalmente democráticas, mas a igual dade social e económica (pelo menos parcialmente). Assim, foi introduzida a distinção entre democracia formal, que diz respeito à forma de governo, e democracia substancial, que diz respeito ao conteúdo desta forma. l Estes dois significados encontram-se perfeitamente fundidos na teoria rousseau niana da democracia, pois o ideal igualitário em que se inspira realiza-se na formação da vontade geral e, portanto, são ambos historicamente legítimos. A legitimidade histórica, aliás, não é suficiente para se acreditar que tenhamos, não obstante a identidade do termo, um elemento conotativo comum, e isso é tão verdadeiro que pode verificar-se historicamente uma democracia formal que não consiga cumprir as principais promessas conti das num programa de democracia substancial, e, vice-versa, uma democra cia substancial que se reja e desenvolva através do exercício não democrá tico do poder. A prova desta falta de um elemento conotativo comum é a esterilidade do debate sobre a maior ou a menor democraticidade dos regimes que se inspiram no princípio do governo do povo, outros no prin cípio do governo para o povo. Cada um dos regimes é democrático segundo o significado de democracia escolhido pelo defensor e não é democrático no significado escolhido pelo adversário. Se calhar, o único ponto até onde um e outro poderiam convergir é que uma democracia per feita deveria ser, ao mesmo tempo, formal e substancial. Mas um regime deste género pertence, até este momento, ao género dos futuráveis . 9. A ditadura dos amigos  medida que a democracia foi considerada como a melhor forma de governo, como a menos má, como a forma de governo mais adaptada às sociedades económica, civil e politicamente mais evoluídas, a teoria das 208 DEMOCRACIAlDITAD RA formas de governo no seu uso prescritivo simplificou a tipologi3 tradicional e polarizou-se, tal como se disse, em torno da dicotomia democracia! /autocracia. De resto, na linguagem comum, o termo que veio a prevalecer para designar o segundo membro da dicotomia não é 'autocracia' mas 'ditadura'. Hoje em dia, impôs-se de tal maneira o hábito de chamar 'dita duras' a todos os governos que não são democráticos, e que geralmente surgem depois de derrubarem democracias precedentes, que o termo tecni camente mais correcto, 'autocracia', foi relegado para os tratados de direito público, e a grande dicotomia hoje dominante não é aquela que se baseia na contraposição entre democracia e autocracia, mas aquela que contrapõe, embora com um uso historicamente distorcido do segundo termo, a demo cracia à ditadura. A denominação de ditadura estendida a todos os regimes que não são demo racia difundiu-se sobretudo após a Primeira Guerra Mundial, tanto através do apaixonado debate sobre a forma de governo instaurada na Rússia pelos bolchevistas, baseado nas diferentes interpreta ções do conceito marxista de ditadura do proletariado, como através do uso feito pelos adversários do termo 'ditadura' para designar os regimes fascis tas, começando pele italiano. Esta contraposição da ditadura ã democracia, num universo de discurso em que democracia assumiu um significado pre valentemente eulógico, acabou por fazer de 'ditadura' , contrariamente ao uso histórico, um termo com significado prevalentemente negativo, que era próprio, na filosofia clássica, de outros termos como 'tirania', 'despotismo', e, mais recentemente, 'autocracia'. Já em 1936, Elie Halévy podia definir a sua própria época como «l'ere des tyrannies», mas hoje já ninguém usaria esta expressão para defmir os vinte anos entre as duas guerras mundiais: os regimes que Halévy chamara «tiranias» passaram à história com o nome de «ditaduras» . 'Ditadura', como de resto tirania, despotismo e autocracia, é um termo que também nos vem da Antiguidade Clássica. Mas, diferentemente destes últimos, teve originariamente uma conotação positiva. Em Roma, chamou-se dictator a um magistrado extraordinário, instituído cerca do ano 500 a. c., e que se manteve até finais do século III a. C., que era designado por um dos cônsules em circunstâncias excepcionais, tais como a condução de uma guerra (<<dictator rei publicae gerundae causa») ou o esmagamento de um motim (<<dictator seditionis sedandae causa»), e ao qual se atribuíam, pela excepcionalidade da situação, poderes extraordinários, que consistiam sobretudo na falta de distinção entre o imperium domi, que era o comando soberano exercido dentro dos limites da cidade, por isso mesmo subordi nado a limites que hoje diríamos constitucionais, como a provocatio ad populum, e o imperium militiae, que era o comando militar exercido além desses limites, e por isso mesmo não subordinado a limites constitucionais. A exorbitância do poder do ditador era contrabalançada pela sua efemeri dade: o ditador era designado para a duração do papel extraordinário que se lhe confiava e, em todo o caso, nunca além de seis meses nem além da duração do cargo do cônsul que o nomeava. O ditador, portanto, era um ma istrado extraordinário de facto~ mas legítimo, porque a sua instituição er a revista pela constitui ão e o seu oder era )ustI Icado pelo estado de necessidade (o estado de necessidade é considerado pelos juristas como um 208 hamou-se 500 a. c., -!~do por um ':::ond~ de uma ~[o deum - ~ 209 DEMOCRACIA/DITADURA facto normativo, isto é, um facto idóneo para suspender uma situação jurí dica precedente ou para impor uma situação jurídica nova). Resumida mente, as caraçterísticas da ditadura romana eram: Tã) estado de necessi dade, no que diz respeito ã legitimação; b) plenos poderes, no que diz respeito à extensão do comando; e) unicidade do sujeito investido do comando; d ) efemeridade do carg~Sendo magistratura monocrática, com poderes extraordinários mas legítimos e limitados no tempo, a ditadura distinguiu-se sempre da tirania e do desRotismo que, na linguagem vulgar, Sãõ frequememente côõfundidos . .9 tirano (iDonocr~o, exerce um poder a~soluto, m~s qão é j egítimo ~ nem seq\ler necessariamente temporário. O déspota é monocrático, exerce um poder absoJuto, ~ legítimo .!D~ão teülpõrario lPêlÕ contrá rio é um regime prolongado, como o demonstra o ~xemplo clássico do despotismo oriental). Todas estas três formas têm em comum a monocraticidade e o absolutismo do poder, mas tirania e ditadura distinguem-se porque a segunda é legítima e a primeira não o é; despo tismo e ditadura distinguem-se porque, embora ambas sejam legítimas, o fundamento de legitimidade da primeira é de natureza histórico-geográfica, e o da segunda é o estado de legitimidade. A ditadura distingue-se da tira nia e do despotismo com base no seu carácter temporário. Foi este carácter de efemeridade que permitiu que os grandes escrito res políticos lhe dessem geralmente uma avaliação posit iva. Num capítulo dos Diseorsi intitulado significativamente L 'autorúà diclalOn·a feee bene e non danno alia R epubliea romana, Maquiavel confuta os que afirmaram ser a ditadura o resultado "do tempo da tirania de Roma" [1 513-19, ed. 1977 p. 210], porque a tirania (referindo-se a César) não foi o efeito da ditadura, mas sim do prolongamento da ditadura para além dos limites de tempo estabelecidos. E vê correctamente na efemeridade e na especificidade do comando do ditador o seu aspecto positivo: "O ditador era designado a prazo e não perpetuamente, e para obviar apenas àquilo para que era criado; e a sua autoridade estendia-se desdeo poder de deliberar per se acerca das soluções urgentes que se impunham para aquela situação especí fica até o fazer qualquer coisa sem conselho, e castigar cada um sem apelo; mas nada podia fazer que fosse prejudicial ao Estado, como teria sido reti rar autoridade ao Senado ou ao Povo, desfazer a velha ordem da cidade e fazer uma nova" [ibid.). No COnlral social, Rousseau, depois de ter obser vado que as leis não podem prever todos os casos possíveis e que há situa ções excepcionais em que é oportuno suspender momentaneamente o efeito delas, afirma que «nestes casos raros e evidentes provê-se à segurança pública com um aeto particular que a confia ao mais digno» [1762, trad. it. p. 164). Esta delegação pode dar-se de duas maneiras diferentes, ou aumentando a autoridade do poder legítimo, e neste caso altera-se não a autoridade das leis mas tão-só a forma da sua administração, ou também, quando o perigo é tal que o sistema das leis ordinárias pode constituir um obstáculo à acção resolutiva, nomeando um chefe supremo (o ditador em si) que «mande calar todas as leis e suspenda momentaneamente a autori dade soberana» [ibid. ). T ambém para Rousseau, a ditadura só é saudável se for rigorosamente limitada no tempo: «Seja qual for a maneira em que este importante cargo seja outorgado, é necessário fixar a sua duração num prazo DEMOCRACIA/ DITADURA 210 muito breve, que em nenhum caso possa ser prorrogado ... e passada a necessidade urgente, a ditadura torna-se tirânica e vã» [ibid., p . 167]. 10. A ditadura moderna Como claramente resulta da história desta magistratura e das interpre tações clássicas que dela se deram, o ditador exerce poderes extraordinários mas apenas no âmbito da função executiva (não da legislativa). Tanto M aquiavel como Rousseau entendem certamente este limite, escrevendo um, como já se viu, que o ditador não podia fazer coisa que fosse «prejudi cial para o Estado»; o outro, que «a suspensão da actividade legislativa», que cabe ao ditador, «não a abole», porque «o magistrado que a manda calar não a pode fazer falar» [Rousseau 1762, trad. it. p. 165]. Só na idade moderna, na das grandes revoluções, o conceito de ditadura é estendido ao poder instaurador da nova ordem, quer dizer, ao poder revolucionário, que, como tal, conforme diz Maquiavel, desfaz as velhas ordens para fazer as novas. Na sua conhecida obra sobre a ditadura [1921], Carl Schmitt dis tingue a ditadura clássica, a que chama, citando Bodio, «comissária» (no sentido em que o ditador desempenha o próprio papel nos limites da «comissão» recebida), da ditadura dos tempos modernos, ou revolucionária, a que chama « oberana», a qual «vê em qualquer ordenamento existente um estado de coisas a remover completamente com a própria acção» e, portanto, «não suspende um'.l constituição vigente agindo sobre um direito por ela previsto e, por isso mesmo, constitucional, mas tenciona criar um estado de coisas em que seja possível impor uma constituição tida por autêntica» (trad . it. p. 149). Também a ditadura revolucionária nasce em estado de necessidade e exerce poderes excepcionais e, pela sua natureza, temporários (pelo menos nos propósitos iniciais), e por estas razões fica-lhe bem o nome de ditadura, mas o papel que lhe é atribuído ou que se lhe atribui é mais vasto: não é bem o de põr remédio a uma crise parcial do Estado, como pode ser uma guerra externa, um motim, mas é o de resolver uma crise total, uma crise ue õe mesmo em causa a existência dum determinado regime, como pode ser uma guerra civil (uma guerra, ist;-é, que pode marcar o fim do velho ordenamento e o nascimento de um novo). Enquanto o ditador comissário é investido do próprio poder pela constitui ão isto é, tem um poder constituído, o ditador soberano recebe simbolicamente o próprio poder por uma auto-investidura ou por uma investidura popular, embora simbólica, e assume um poder constituinte. Como caso exemplar deste segundo tipo de ditadura pode lembrar-se o da Convenção Nacional que decide em 10 de Outubro de 1793 suspender a constituição do mesmo ano (que nunca mais voltaria a vigorar) e estabelece que o governo provisório será «revolucionário» até que não se consiga a paz. No que diz respeito à ditadura clássica, a ditadura jacobina já não é uma magistratura monocrática, embora se destaque nela a personalidade de Robespierre, mas é a ditadura dum grupo revolucionário~concretamente da Comissão de Salvação Pública. 210 e passada a t:' 167). mterpre ordinários ~tan\"a) . Tanto screvendo prejudi islativa», qu.e a manda '~ó na idade por em - 211 DEMOCRACIA/ DITADURA Esta dis~ciaç~, ~ conceito de ditadura e o c;onceito de poder monocrático, deve ser sublinhada porque assinala a passagem do lJSO clás sico do t~r~mo, que também depois da revolUção é aplicado ao regi~e introduzido por Napoleão, interpretado como ditadura militar, ao uso moderno, divulgado através dos. escritos de Marx e Engels. ~stes últjm91 o termõ, usãdo em expressões como 'ditadura da burguesia' e 'ditadura do protetariado' , não se refere já a uma pessoa e nem sequer a um grupo de pessoas, mas com c~rteza a uma classe i.nreira, embora enfraquecendo o~seu signifi_cado originário de tal maneira que poderia ser proveitosamente subs tituído pelo termo 'dominação' , como de resto se dá numa expressão tipi camente marxiana e engelsiana como 'classe dominante'. Aliás, o carácter distintivo mais importante entre ditadura clássica e ditadu~oderna w á iiãextensão do R0..s!er,..9.!!e j~não é só ci;ginscrit~ ã função executiva, n!as se estende à função legislativa e até à constituinte} ainda que no caso espe cífico o governo revolucionário francês tenda a apresentar-se como um governo que não abole mas suspende excepcionalmente e provisoriamente a constituição e, portanto, como ditadura no sentido clássico da palavra. Na realidade, a diferença da ditadura revolucionária (ou contra-revolucionária é o mesmo) f!lce_à comissária 'deve sa~tar-se não através das declarações de princípios, entre as quais nunca falta o solene anúncio da própria efe meridade, mas nos factos, ou seja, nos efeitos que ela produz no ordena mento anterior. 11. A ditadura revolucionária Um passo posterior na história da fortuna do conceito de ditadura é o que lhe fazem dar os predecessores de uma revolução (que, de facto, não ocorreu) igualitária, Babeuf, Buonarroti e companheiros, protagonistas da conspiração dos Iguais (9-10 de Setembro de 1795). No pensamento desses homens, particularmente de Buonarroti, que, sobrevivendo à condenação dos seus camaradas, se tornou nos últimos anos da sua longa vida o histo riador e o teórico da conjuração no livro Conspirarion pour l'égalité dite de Babeuf [1828], era muito clara a ideia de que a revolução tivesse de ser levada a cabo por um punhado de homens, simultaneamente animosos e iluminados, e que à explosão revolucionária se devesse seguir um estado transitório marcado por poderes excepcionais concentrados nas mãos de poucas pessoas (verdadeiro precedente histórico do estado de transição de Marx e Lenine) que, finalmente, a nova sociedade dos Iguais tivesse de ser instaurada só depois de a ditadura revolucionária conseguir e liminar - recorrendo, se necessário fosse , à violência, nem só contra os opressores mas também contra o povo, considerado como «incapaz de se regenerar por si mesmo» qualquer vestígio do passado. Buonarroti escreve que para superar as dificuldades que se interpõem ao êxito da revolução é pre cisa a fo rça de todos, mas esta força não é nada «se não for dirigida por ma vontade forte, constante, iluminada, imutável» e que «muitas reformas são precisas antes que a vontade geral possa ser emitida e reconhecida» [1828-29, trad. it. p. 496) . Uma das tarefas que Buonarroti atribui ao governorevolucionário dos «sábios » consiste em preparar a nova constituição DEMOCRACIA/ DITADURA 212 que deverá concluir a fase revolucionária, mostrando de tal maneira, sem deixar lugar a dúvidas, que o carácter principal da ditadura revolucionária é o exercício do poder soberano por excelência, que é o poder constituinte. Resta sublinhar que, não diferentemente do uso clássico do termo, inclu sive no novo contexto, 'ditadura', pelo facto de ter mudado o próprio signi ficado descritivo, nada perdeu da conotação originária positiva com res peito ao significado valorativo. Diferentemente do uso hodierno, em que 'ditadura' em contraposição a 'democracia' assumiu, enfim, como já obser vei, uma conotação quase sempre negativa, o primeiro uso de 'ditadura' para indicar a ditadura revolucionária (e, de resto, também a ditadura mili tar) evoca o apoio que gozou o magistrado romano chamado em situações excepcionais a salvar a república de guerras ou motins, e o termo é usado ainda com uma conotação geralmente positiva. De resto, não se pode esquecer que no século XVI II foi usado com uma conotação positiva, pela primeira vez, também o termo 'despotismo' na contraposição que o fisio crata Le Mercier de la Riviere demarcou com nitidez entre despotismo arbitrário, «produzido pela opinião que se presta a todas as desordens, a todos os excessos, a que a ignorância o torna susceptível», e despotismo legal, "estabelecido natural e necessariamente sobre a evidência das leis duma ordem essencial» e, portanto, entendido como a melhor forma de governo que em virtude da monocraticidade e o absolutismo do poder tem condições de ler desapaixonada e perfeitamente o grande livro da natureza e declarar e fazer aplicar as únicas leis que têm de regular a ordem social: as leis naturais. Bastou um ad jectivo, 'iluminado', para mudar o valor de um termo como 'despotismo', execrado por séculos. Quando Buonarroti chama ' iluminada' à vontade da junta de corajosos que terá de guiar a revolução e 'sábios' aos componentes do governo do estado de transição, convida-nos a aproximar a ideia de ditadura revolucionária da de despo tismo iluminado. A ideia da ditadura revolucionária como governo provisório e tempo rário, imposto por circunstâncias excepcionais, foi uma constante da teoria e da prática de Blanqui, não da teoria política de Marx, que falou de dita dura do proletariado no sentido de domínio de classe e não de uma junta e am- a menos de um partido e, por isso, não no sentido tradicional de forma - tip\ca de exercício de poder, não naquele sentido que o termo conservou substancialmente na passagem da ditadura clássica à moderna. As únicas anotações que Marx faz acerca do estado de transição são xtraídas da experiencia da Comuna de Paris entre Março e Maio de 1871 e visam mos trar que o governo da Comuna é uma forma de democracia mais avançada do que a democracia representativa dos mais desenvolvidos estados bur gueses. Não obstante, Engels no prefácio aos escritos de Marx sobre as guerras civis em França aponta na Comuna de Paris uma primeira e terrí vel experiência da ditadura do proletariado. Porém, isso, possivelmente, torna mais exemplarmente evidente que uma coisa é o domínio de classe (ditadura em sentido não técnico), outra cOIsa é a forma âe governo em que este domíníõ""Semanifesta (que não era, de facto, no caso da Comuna, pelo menos na interpretação de Marx, uma ditadura no sentido técnico). Na expressão marxiana 'ditadura do proletariado', o termo 'ditadura' não tem significado valorativo particularmente relevante: desde que todos 212 Comuna, .o técnico). ~c_-~ -----() 'ditadura' - . que todos 213 DEMOCRACIAlDITADURA os Estados são ditaduras no sentido de dominação de uma classe, o termo i~ica substãnciâ lmente um estado de coisas e tem, por isso, um sentido essencialmente descritivo. A passagem do- significado apreciativo positivo próprio da ditadura, enquanto magistratura ou enquanto governo revolu cionário, ao significado apreciativo negativo, hoje prevalecente, como já se disse no início, deu-se em virtude de por 'ditadura' se entender agora, cada vez mais, não genericamente o domínio de uma classe mas uma forma. de governo, quer diz.er, uIlla man.5;.ira de exercício do poder. Na extensão do conceito cabem mais ou menos todas as modalidades não dCiTiõcráticas de exercício do poder: neste alargamento das suas conotações, o conceito de ditadura perdeu progressivamente alguns traços essenciais que serviram para denotar, primeiro que tudo, o do estado de necessidade e o da efeme ridade, mesmo aquelas denotações que justificaram durante o decurso de toda a filosofia política uma apreciação positiva da instituição (o ditador romano) e da forma de governo por ela exemplificada (a ditadura revolu cionária). [N. B.j. Buonarroti, F. 1828 Conspiration pour /'égali/é di/e de Babeuf, Librairie romantique, Bruxellc" (trad. ir. Einaudi, Torino 19712). [1828-29] [Acerca das características do governo revQlucionárip], fragmento manuscrito publicado in A. Galante Garronc, Filippo B/Jonarrozi c i rivoluzionan' deU'Ollacen/o (/828-/837), Einaudi, Torino 1951. Espinosa, B. 1670 Trac/a/us /heologico - poli/icus, Künraht, Hamburg (trad. it . Einaudi, Torino 1972) [trad. porr. 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