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O Corpo no Cinema: Pensamento em Movimento

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See	discussions,	stats,	and	author	profiles	for	this	publication	at:	https://www.researchgate.net/publication/221807706
O	corpo	no	cinema:	pensamento	em	movimento
THESIS	·	MAY	2005
READS
137
1	AUTHOR:
Monica	Toledo	Silva
University	of	Campinas
8	PUBLICATIONS			0	CITATIONS			
SEE	PROFILE
Available	from:	Monica	Toledo	Silva
Retrieved	on:	07	April	2016
 1
 
 
 
Monica Toledo Silva 
 
 
 
 
 
O CORPO NO CINEMA: PENSAMENTO EM MOVIMENTO 
 
 
 
 
 
Comunicação e Semiótica 
Mestrado 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica 
de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em 
Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Prof.Dra. Christine Greiner. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PUC/SP 
 
 
 
São Paulo 
2005
 2
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Aos meus pais, que mesmo céticos 
 sempre acreditaram em tudo. 
 3
RESUMO 
 
 
Inspirados pela proposta do filósofo Gilles Deleuze segundo a qual o elemento do 
cinema é o gesto e não a imagem, propomos o pensamento-ação do corpo como o modo de 
organização do filme. Para tanto, partimos da hipótese de que o corpo tem um lugar ainda 
não devidamente abordado pela teoria do cinema, embora a prática apresente exercícios 
preciosos de diferentes formas de representação, no contexto dos modos de organização dos 
gestos e das imagens criadas no corpo e a partir dele. 
 
O cinema apresenta-se como uma mídia suficientemente complexa para discutir o 
movimento em geral e, ao mesmo tempo, para colaborar com a pesquisa específica de 
buscar o “lugar do corpo” no filme. No decorrer do texto, sugerimos que estudar o corpo em 
movimento é reconhecê-lo como processador de comunicação na cena cinematográfica. 
Propomos conduzir os modos de construção da narrativa fílmica, expondo três recursos 
distintos de apropriação do corpo na criação de sentido: quando o lugar do corpo no filme 
está representado pela câmera, quando se organiza no corpo do personagem, e quando se 
apresenta na paisagem fílmica. 
 
Além de uma introdução histórica e conceitual que propõe uma taxonomia inédita das 
representações do corpo no filme, a dissertação apresenta dois capítulos. No primeiro, 
analisa um único filme, onde o pensamento do corpo não só ilumina bem estes três lugares 
propostos, como parece criar e conduzir a narrativa, estendendo-se a outros corpos em cena 
que dirigem nossa percepção e determinam uma estética e uma composição singulares. 
Trata-se da obra de Jean-Pierre e Luc Dardenne, “O Filho” (Le fils, 2002). No segundo 
capítulo, fazemos um exercício de criação em video, cuja linguagem propõe novas 
discussões e contribuições para o entendimento da construção de imagens a partir de um 
pensamento em movimento: “Brevidade” (2005). 
 
Como metodologia, trabalhamos com cruzamentos interteóricos específicos, a partir 
das pesquisas de especialistas como Jacques Aumont (1997), François Jost e André 
Gaudreault (1990), José Lino Grunewald, Phillippe Dubois e Arlindo Machado (2004); e das 
investigações de alguns conceitos estudados pelos neurocientistas António Damasio (1999), 
Rodolfo Llinás (2003) e Gerald Edelman (2003), redimensionados pelos filósofos Gilles 
Deleuze (1984, 2000), George Lakoff e Mark Johnson (2001) e pelas pesquisadoras Helena 
Katz e Christine Greiner (2005) no que se refere especificamente aos estudos do corpo como 
objeto da comunicação. Dentre as inúmeras conexões que poderiam ser estudadas, 
destacamos os tópicos referentes ao estudos do tempo, do movimento, da criação de 
imagens internas e dos trânsitos com o ambiente. Trata-se, portanto, de um exercício teórico-
prático para selecionar informações dos textos acadêmicos e científicos e trazê-los ao 
contexto artístico e comunicacional, através de uma interseção teórica e uma proposta 
criativa, cujo objetivo principal é iniciar um processo que deverá ser continuado no doutorado, 
no sentido de tornar os estudos do cinema disponíveis a pesquisas realizadas em outros 
campos, repensando, assim, sob outra perspectiva, a sua própria linguagem. 
 
 
 
 
SUMMARY 
 
 
Inspired by the philosopher Gilles Deleuze’s propose that the element of cinema 
is the gesture and not the image, we propose the thinking- action of the body as the 
mode of organization of a film. Therefore, we follow the hipotesis that the body has a 
place not yet explored by the cinema’s theory, although in pratic it presents precious 
exercices of different forms of representation, in the context of the organizational modes 
of gestures and images created in the body and from the body. 
 
Cinema presents itself as a media complex enough to discuss movement in 
general and, at the same time, to colaborate with the specific research for the “body’s 
place” in the film. Along the text, we suggest that studying the body in movement means 
to recognize it as a communication processor in the cinematographic scene. We 
propose to conduct the modes of construction of the filmic narrative, exposing three 
distinct resourses of body appropriation in the creation of sense: when the place of the 
body is represented by the camera, when it organises itself in the character’s body, and 
when it is presented in the film locations. 
 
Besides an historical and conceptual introduction which proposes an unique 
taxonomy of the representations of the body in the movies, the Monograph presents two 
Chapters. In the first one, it analyses one single film, where the body thinkings not only 
iluminate well these three places, but also seam to create and conduct the narrative, 
being extended to other bodies in scene that conduct our perception and determine an 
aesthetics and a film composition that are singular. This is the Jean-Pierre and Luc 
Dardenne film, Le fils (“The son”, 2002). In the second chapter we develop a creative 
exercise of video-art, which language porposes new discussions and contributions for 
the understanding of the image construction of a thought in movement: Brevidade 
(“Brief”, 2005). 
 
As a methodology, we work with specific intertheoric conexions, from the 
research of specialists as Jacques Aumont (1997), François Jost and André Gaudreault 
(1990), José Lino Grunewald, Philippe Dubois and Arlindo Machado (2004), and from 
the investigations of a few concepts studied by the neurocientists António Damasio 
(1999), Rodolfo Llinás (2003) and Gerald Edelman (2003), redimensioned by the 
philosophers Gilles Deleuze (1984, 2000), George Lakoff and Mark Johnson (2001) and 
by the researchers Helena Katz and Christine Greiner (2005), in what is related to the 
body studies specificaly as an object of communication. In the many possible conections 
that could be developed, we emphasize the topics refered to the studies of time, of 
movement, of the creation of internal images and of the body transit with the ambient. It 
is about a theorical -practical exercise that selects informations in the academic and 
scientific texts in order to bring them to an artistic and communicational context, through 
a theoric intersection and a creative propose, aiming to get started a process that shall 
be continued in a Doctorship, in the sense of turning the cinema studies disposable to 
researchers from other areas, and therefore extending not only the cinema’s 
perspectives but its own language. 
 4
SUMARIO 
 
 
 
Introdução...............................................................................................................05 
Primeiros Passos.....................................................................................................06O lugar do corpo na câmera....................................................................................09 
O lugar do corpo no ator..........................................................................................18 
O lugar do corpo no espaço.....................................................................................28 
O pensamento em ação na nouvelle vague............................................................36 
Últimas notas: tecendo uma rede de imagens........................................................42 
 
Capítulo Um: “O Filho” .........................................................................................45 
A memória................................................................................................................48 
A paisagem..............................................................................................................55 
A câmera..................................................................................................................61 
Últimas notas...........................................................................................................67 
 
Capítulo Dois: “Brevidade” ..................................................................................69 
Anotações sobre o video “Brevidade” .....................................................................80 
 
Conclusão...............................................................................................................85 
 
Bibliografia.............................................................................................................86 
 
Filmografia..............................................................................................................90 
 
Anexo......................................................................................................................92 
 
 
 5
INTRODUÇAO 
 
 
Certa vez, o filósofo francês Gilles Deleuze argumentou que o cinema poderia 
apagar a falsa distinção entre imagem enquanto realidade psicológica e movimento 
enquanto realidade física. Assim, o elemento do cinema seria o gesto e não a imagem, 
uma vez que as imagens seriam sempre “imagens-movimento”, corpos móveis, em 
eternas mediações. “Imagens cinematográficas não são nem poses eternas nem corpos 
imóveis de movimento, mas sim corpos móveis, imagens por si só em movimento”. 
(Deleuze apud Agamben, 2000:06) 
 
De certa forma, o objetivo deste estudo é experimentar a proposta deleuziana, 
propondo o pensamento-ação do corpo como modo de organizar o filme. Para tanto, 
partimos da hipótese de que o corpo tem um lugar ainda não devidamente iluminado no 
cinema pela teoria crítica, embora a prática tenha apresentado, há muitos anos, exercícios 
preciosos de diferentes formas de representação, no contexto dos modos de organização 
dos gestos e das imagens criadas no corpo e a partir dele. 
 
O cinema apresenta-se como uma mídia suficientemente complexa para discutir o 
movimento em geral e, ao mesmo tempo, para colaborar com a pesquisa específica de 
buscar o “lugar do corpo” no filme. A exemplo do que afirma o geógrafo brasileiro Milton 
Santos (2003), o lugar não deve ser entendido como sinônimo de local, mas como uma 
rede comunicativa. O “lugar do corpo” seria, neste sentido, um corpo em movimento que 
apresenta-se como processador de comunicação na cena cinematográfica. 
 
Propomos então conduzir os modos de construção da narrativa fílmica, expondo 
num primeiro momento três recursos distintos de apropriação do corpo na criação de 
sentido: quando o lugar do corpo no filme está representado pela câmera, quando se 
organiza no corpo do ator, e quando se apresenta na paisagem fílmica, ou seja, nos 
espaços lugarizados de onde emerge o movimento (ou o não-movimento, também uma 
referência cognitiva fundamental). 
 
Além de uma introdução histórica e conceitual à hipótese que acabamos de sugerir, 
a dissertação apresenta dois capítulos. No primeiro, será analisado um único filme, onde o 
pensamento do corpo não só ilumina bem estes três lugares propostos, como parece criar 
e conduzir a narrativa, extendendo-se a outros corpos em cena que dirigem nossa 
percepção e determinam uma estética e uma composição singulares. No segundo 
capítulo, faremos um exercício de criação como aplicação prática deste pensamento, das 
imagens do corpo para imagens em video, cuja linguagem propõe novas discussões e 
contribuições para o entendimento da construção de imagens a partir de um pensamento 
em movimento. 
 
 Em termos metodológicos, chamamos a seguir de “primeiros passos” não um 
histórico das diversas experiências que sugerem o lugar do corpo no filme, ou mesmo das 
teorias do corpo que iluminam tais pesquisas. Trata-se de uma suscinta introdução, de 
natureza inevitavelmente fragmentada e de certa forma hipertextual, com diferentes 
entradas que têm como objetivo sugerir a importância da presença do corpo na cena 
cinematográfica, ajudando a criar ignições para uma análise fílmica mais ampla, assim 
como para o exercício poético que apresentamos ao final. 
 6
Primeiros Passos 
 
 
A partir dos anos 80, os estudos do corpo têm mostrado como este se relaciona co-
evolutivamente com o ambiente e como esta relação muda as formas de comportamento 
do corpo. Estes pensamentos (António Damasio, 1996 e 1999, Gerald Edelman, 1992, 
Rodoldo Llinás, 2002, George Lakoff e Mark Johnson, 1999, Gilles Deleuze, 1984 e 2000) 
marcaram a condução teórica desta dissertação, ajudando a questionar o lugar do corpo 
no filme: como ele está presente, como significa, como constrói imagens e dialoga com os 
recursos do texto fílmico, construindo com ele semioses1 e novas possibilidades de 
geração de sentido. 
 
Alguns tópicos destas bibliografias do corpo dizem respeito a aspectos científicos e 
filosóficos e proporcionaram uma abertura para pensar o corpo no filme de outra forma, 
diversa da tradicional análise cinematográfica, composta na maioria das vezes por autores 
e pesquisadores especializados na estética desta arte. Exemplos das abordagens são os 
tempos do corpo, a qualidade metafórica do corpo, as relações entre “dentro e fora” e suas 
construções de discurso no corpo e no mundo, a criação de imagens internas, suscetíveis 
e ao mesmo tempo ativadoras dos acontecimentos cognitivos do corpo, como a memória e 
a emoção, e a elaboração destes pensamentos e ações internas na expressividade 
corporal de gestos e movimentos particulares. Portanto, fragmentos destas recentes 
teorias serão aqui explicitados para discutirmos e aplicarmos este pensamento ao discurso 
fílmico, numa ótica de análise mais ampla, e ao mesmo tempo, numa aplicação bastante 
específica. 
 
O que se sabe hoje acerca da consciência e do inconsciente cognitivo, da 
construção de sistemas simbólicos e da criação de metáforas, refere-se ao modo como 
estas habilidades são processadas corporalmente. A organização dos estados corporais, 
as ações simples e complexas, assim como a organização das obras artísticas e dos 
processos dinâmicos da comunicação, não são mais compreendidos como produtos finais. 
Estudos recentes acerca do corpo, da arte, da tecnologia, da imaginação e do universo 
subjetivo como mediadores, buscam a compreensão dos processos de comunicação no 
corpo e colaboram com o entendimento de seus processos de significação com outros 
corpos, na relação com a cultura, com os ambientes diversos e assim por diante. 
Paisagens, imagens e movimentos de dentro e de fora do corpo aparecem 
 
1 A semiose é o processo em que algo funciona como um signo. É o processo em que alguém se 
dá conta de uma coisa mediante uma terceira. Trata-se de um dar-se-conta-de mediato. Os 
mediadores são os veículos sígnicos, os dar-se-conta-de são os interpretantes,os agentes do 
processo são os intérpretes. Os fatores da semiose são fatores relacionais. A semiótica estuda 
todos os objectos desde que participem num processo de semiose. (António Fidalgo, Universidade 
da Beira Interior, Covilhã, Portugal) Irene Machado (2002) acrescenta: “Semiose da informação 
designa o movimento de criação de linguagem num cosmos dialógico ou num cosmos 
potencializador de informações ávidas de se constituirem em linguagem. Se entendemos semiose 
como "ação inteligente do signo", não se pode ignorar que `inteligência´ aqui não é apego ao novo, 
mas sim busca de mananciais expressivos favoráveis à representação”. 
 
 
 
 7
metamorfoseados em seus diferentes estados. Como já sugeria Deleuze (apud Agamben, 
2000), o que o gesto mostra é o estar na linguagem dos humanos como pura mediação. 
 
Esta possibilidade de percepção do corpo em cena, sob formas diversas, 
representado por elementos de grande carga significativa no filme, abrange nossa 
capacidade interpretativa e expõe o corpo sob suas distintas formas de representação no 
espaço fílmico, justamente proporcionando a riqueza na construção dos discursos. É esta 
a função da aplicação de algumas teorias do corpo para análise dos filmes. Não se trata 
de explicar a gênese do processo de criação, mas de redimensionar fragmentos das obras 
e propor novas possibilidades de leitura. 
 
 
Em aspectos distintos, cineastas apropriam-se do corpo para a construção de 
significados em cada narrativa específica, de acordo com os propósitos do roteiro, do 
espectador almejado, da produção, do país e do momento sócio-cultural em que se 
realiza, assim como das possibilidades financeiras e intelectuais das quais dispõe o 
diretor. Observamos ao longo da história, em distintas cinematografias, a presença do 
corpo como o corpo câmera, o corpo subsidiado no papel do ator, o narrador subjetivo, o 
corpo como o lugar da ação e, até mesmo o corpo ausente, que é apenas um vestígio de 
movimento, dentre outras possibilidades. Construções narrativas onde o corpo, de alguma 
forma, conduz a história, fazendo-se valer de recursos do filme que lhe dão suporte e 
ignição de sentido. 
 
O cinema russo, nas lentes de Dziga Vertov, Sergei M. Eisenstein e Alexandr 
Sokúrov, o cinema alemão dos anos 20, precursor do terror clássico e imortalizado no 
movimento expressionista nas mãos de Robert Wiene, Fritz Lang, F.W. Murnau, o neo-
realismo italiano, em alguns filmes de Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Roberto 
Rossellini, o cinema inglês de autores tão distintos como Ken Loach e Alfred Hitchcock, o 
cinema americano clássico dos anos 40, o gênero western, Lars von Trier e Thomas 
Vintenberg no movimento dinamarquês Dogma, a nouvelle vague japonesa; todos estes 
importantes movimentos da sétima arte, que representam momentos históricos e culturais 
distintos, contêm exemplos que serviriam como material de estudo a esta proposta de 
leitura fílmica sob o viés de uma bibliografia do corpo. 
 
Federico Fellini, Luis Buñuel, Glauber Rocha e Jean-Luc Godard, em exemplos por 
hora surrealistas, eloquentes, inomináveis, criadores de realidades, como também, em 
planos distintos, Ingmar Bergman, Alain Resnais, David Lynch e Stanley Kubrick. Estes 
grandes autores rendem estudos exclusivos diante da riqueza de obras criativamente 
únicas e, a cada filme, inovadoras, encontrando no corpo seu ponto de partida para 
apropriações e representações as mais diversas.2 
 
 
 
 
 
 
 
2 É importante salientar que a proposta desta dissertação é expor um pensamento, não um 
mapeamento fílmico de todas as experiências referentes ao corpo, o que seria de fato uma 
impossibilidade. 
 8
Michelangelo Antonioni 
em “As amigas” (“Le 
amiche”, 1955) cria uma 
cena onde podemos 
perceber claramente a 
composição dos corpos 
que extrapola uma 
simples narrativa. Na 
praia, amigas expõem 
sentimentos conturbados 
em belíssimas 
composições de seus 
corpos atribulados; as 
ações são também 
internas. É inverno e o 
vento forte dissipa 
gestos maiores; os 
corpos permanecem em 
trânsito em curtas narrativas de breves diálogos, fragmentados em composições em preto 
e branco. As “amigas”, certamente belas em seus dramas frívolos, acionam suas emoções 
traduzidas em corpos inquietos, expostos em gestos inacabados e adulterados por novos. 
Antonioni enquanto isso cria quase uma obra- prima a cada still – pinturas móveis. 
 
 
Apesar dos inúmeros exemplos possíveis, para não perder o foco, esta Introdução 
vai se restringir a breves citações de filmes selecionados a fim de ilustrar as três 
representações do corpo propostas. O Primeiro Capítulo expõe então a análise mais 
aprofundada de um único filme, a obra de Jean-Pierre e Luc Dardenne, “O Filho” (“Le fils”, 
2002) e no Segundo Capítulo, “Brevidade” (2005), o experimento criativo em vídeo a partir 
de novo estudo das narrativas da imagem, desta vez exposto como uma conversa poética 
com o corpo no fluxo das imagens, da tela e do mundo. 
 
Durante todo o percurso (tanto no exercício teórico como no prático) a leitura dos 
filmes será enriquecida por teorias que investigam, de modo implícito e explícito, 
pensamentos do corpo vivo e atuante no mundo. Nesta busca, criamos conexões do corpo 
no filme como seu próprio veículo de expressão. A partir de seleções das pesquisas de 
alguns teóricos do cinema (especialmente Jacques Aumont (1997), François Jost e André 
Gaudreault (1990), José Lino Grunewald3 e Phillipe Dubois (2004)), buscamos relações 
com pequenos fragmentos da pesquisa dos neurocientistas António Damasio, Rodolfo 
Llinás e Gerald Edelman, assim como dos filósofos Gilles Deleuze e os também linguistas 
 
3 Os artigos do crítico de cinema José Lino Grunewald* (1931-2000) publicados no período de 1958 
a 1970 nos jornais “Correio da manhã”, “Jornal do Brasil” e o quase underground “Jornal de Letras” 
foram coletados e organizados pelo jornalista Ruy Castro e publicados no livro “Um filme é um filme: 
o cinema de vanguarda dos anos 60” (2001). Esta obra constitui uma excelente fonte de pesquisa e 
inspiração sobre os filmes não só desta década mas do cinema em geral, tornando-se uma leitura 
indispensável para todos os amantes da sétima arte. 
* O autor, carioca, foi também poeta, ensaísta, tradutor de antologias poéticas inglesas e francesas, 
articulista político e pesquisador da música popular brasileira. Sobre cinema, publicou “A idéia do 
cinema” (1969), antologia de textos de Eisenstein, Resnais, Benjamin e outros. 
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 9
George Lakoff e Mark Johnson. Trata-se de uma tentativa de tirar informações dos textos 
acadêmicos e científicos e trazê-los ao contexto artístico, através de uma interseção 
teórica e uma proposta criativa, a fim de que o cinema também se beneficie destes 
estudos, repensando, sob outra perspectiva, a sua própria linguagem. 
 
 
Este lugar do corpo existe no filme? Ele é discutido no cinema? Como constrói 
seus discursos em sua realidade múltipla e potencialidade de representação próprias? 
Primeiramente, esta Introdução discute essas questões a partir das representações do 
corpo propostas nas três abordagens distintas, apresentadas a partir de dois exemplos de 
filmes para cada possibilidade de expressão do lugar do corpo: no recorte do lugar do 
corpo na câmera, analisamos os filmes “Assédio” (“Besieged”, 1998), de Bernardo 
Bertolucci, e “O prisioneiro da grade de ferro” (2003), de Paulo Sacramento. Os filmes 
escolhidos para o estudo do lugar do corpo no ator são “A liberdade é azul” (“Bleu”, 1993), 
de Krzysztof Kielówski e “O livro de cabeceira” (“The pillow book”, 1996), de Peter 
Greenaway. A terceira forma de representação do lugar do corpo no filmeaparece 
identificada na paisagem de “A última gargalhada” (“Der Letzte mann”, 1924), de Friedrich 
Wilhelm Murnau, e “Bagdad Café” (1987), de Percy Adlon. Dentro de cada categorização 
ilustramos com imagens e breves comentários outros filmes, que também poderiam ser 
analisados sob esta ótica bibliográfica, mas aqui aparecem apenas para tecer uma rede de 
imagens. Ao final, apresentamos dois filmes do movimento francês da nouvelle vague, “O 
acossado” (“A bout de soufflet, 1960), de Jean-Luc Godard, e “Jules e Jim” (“Jules et Jim”, 
1962) de François Truffaut, como exemplos onde identificamos as três representações do 
lugar do corpo no filme, apresentadas de modo absolutamente enredado. 
 
 
 O lugar do corpo na câmera 
 
O cinema reproduz de certa forma o paradoxo do movimento, o intercâmbio entre o 
eterno e o fugaz e entre a imagem do corpo, imaginada (pelo corpo criador), capturada 
(pela câmera), e recriada (pelo filme). O corpo em movimento, no ambiente do filme, atribui 
ao cinema a multiplicação de sua potencialidade criativa. Possibilidades submersas em 
cada corpo ganham vida pela supremacia do movimento. Este está em toda parte, pois é 
dinâmico, simultaneamente acionador e acionado pelas ações internas e externas ao 
corpo. Os acontecimentos do mundo são processados nele e, por sua vez, a memória, a 
percepção e as sensações interiores são expressas, quando externalizadas, através dos 
movimentos corporais. No cinema, as imagens criadas a partir dos corpos presentes 
naquele espaço constituem pólos geradores de sentido a serviço desta narrativa. Ao 
mesmo tempo, ao registrar uma ação instantânea, o cinema atribui-lhe um novo sentido. A 
ação co-existe com outros elementos do espaço cinematográfico, dentro do seu discurso. 
 
O cinema é um mecanismo dotado de recursos e tecnologia abundantes para 
explorar o fluxo do movimento corporal. O registro imagético do corpo em movimento, 
durante a execução de um gesto, passo ou expressão corporal, é também um avanço em 
direção à percepção da dança no corpo, pois ao registrar uma ação instantânea o cinema 
atribui-lhe também um novo sentido (fílmico), criado a partir da coexistência com outros 
elementos do espaço cinematográfico dentro de um discurso construído para aquele 
contexto. 
 
 10
 As imagens em movimento habitam um complexo campo discursivo no espaço 
sócio-cultural-espacial das cidades, e revelam potenciais semióticos. O “material” poético é 
tudo o que o artista pode encontrar a seu alcance: palavras, sons, imagens etc. (Viktor 
Chklovski, 1976) O cinema constrói uma linguagem própria em composições de cena, no 
processo de criação de sentido, na filmagem, na montagem, na direção dos atores, na 
estética da cena, na exploração intensiva de um destes recursos ou na somatória de 
todos. “Na poesia o próprio material já tem um caráter dinâmico. Existe apenas a 
linguagem de uma estrutura determinada como seu coeficiente formacional, que por sua 
vez é formado, ou deformado, por essa estrutura.” (op.cit: 40/42) 
 
 
“Arca Russa” (“Russian Ark”, Aleksandr Sokúrov, 2002): A câmera “narra” 300 anos 
da história dos russos através de um passeio num só plano contínuo por 33 salas 
do Heritage Museum (São Petersburgo) num filme magistral com 3 orquestras e 
2.000 atores. 
 
 
O corpo no espaço cinematográfico dialoga consigo próprio, além de fazê-lo com 
todos os outros elementos do filme, da iluminação ao figurino, do cenário ao áudio. Em sua 
dança particular, o corpo se expressa em movimentos descontínuos, aparentemente livres 
mas ordenados, em gestos particulares, pequenas sequências e fluxos intermitentes, 
impulsos do corpo aberto às pressões de movimentos internos que vêm compor o espaço. 
A partir do corpo é expresso o conteúdo da obra. Podemos observá-lo e recriá-lo com um 
olhar poético, com uma visão artística, acrescendo-lhe novos conteúdos e reproduções 
estéticas. Neste ambiente o lugar torna-se determinante, funcionando para as imagens 
verdadeiramente como um corpo que fala, mesmo quando está em silêncio. 
 
 11
O cinema então organiza suas informações a partir da organização das imagens, 
que constróem um discurso a partir daquele texto artístico4. Estas imagens são orientadas 
pelo corpo que, no espaço fílmico, cria campos de comunicação. Pode ser esclarecedor, 
neste momento, lembrar que não apenas no cinema mas na imagem da dança num corpo, 
por exemplo, há também a imagem de uma dança interna. É a pesquisadora Helena Katz 
(1994) quem introduz o entendimento do movimento de dança como um “pensamento do 
corpo”. Cada vez que o movimento migra, ele muda, trazendo outras questões, condições, 
contextos, movimentos. A habilidade de dançar se constrói através do sensório-motor do 
corpo, que como qualquer outro organismo, se transforma pela informação que agrega. A 
dança seria, portanto, a soma do que o corpo faz (movimento) com aquilo que este fazer 
produz. Dançar representa o resultado de um conjunto de informações que materializam-
se como corpo. (Katz, 2004)5 O movimento no cinema pode ser entendido, por analogia, 
de modo semelhante. 
 
 
 
4 A pluralidade de princípio das leituras possíveis de um texto artísico é a carga significante da arte 
(inacessível a uma linguagem não artística). O texto artístico nos oferece leituras híbridas, e é “um 
sentido construído com complexidade: todos os seus elementos são elementos de sentido”. (Iuri 
Lotman, 1978:41). 
 
5 Observamos esse movimento peculiar nos filmes “Assédio” e “Último tango...”, a partir do 
movimento criado em cena, pela câmera e pelos atores em “A liberdade é azul” e “Os amantes da 
Ponte Nova”, a partir da condução de cena pelo personagem. O movimento condutor do sentido, 
nestes e em outros momentos mais localizados dos outros filmes abordados, nos permitiria ir além 
da distinção proposta das formas de representação do corpo (pelo ator, pela câmera e pela 
paisagem): o movimento flui pelos espaços do filme e estabelece a emoção e o sentido da cena, 
como deve ser. O sentido criado pelo movimento nos permite a compreensão da história a nível da 
sensação. Este corpo materializado não precisa ser o corpo do ator, mas pode estar representado 
no espaço cênico composto para os movimentos determinantes do sentido, por sua vez em alguns 
casos fortemente representados pela câmera. Estaríamos falando de um pensamento da dança na 
construção cênica e significação através do movimento. 
 12
 
 
Em “O Último tango em Paris” (“The last tango in Paris“, Bernardo Bertolucci, 
1972), o aparato fílmico também é cúmplice de um romance tumultuado. A 
câmera “solta”, perdida, como Jeanne (Maria Schneider), tomada por sentimentos 
confusos, e como Paul (Marlon Brando), tomado por desejos tardios. Ele 
recompõe-se de uma perda gerando uma relação amorosa sustentada pelo 
anonimato. O movimento se organiza a partir da vivência circunstancial da 
personagem, de acordo com o contexto que a levou até ali – a possibilidade de 
reiniciar o romance. Ambos bêbados procurando por compassos corporais que 
organizem seus sentimentos. Só o que um conhece do outro é o gesto do corpo; 
nenhuma história pessoal, apenas o tempo presente. 
 
 
Se a dança é também a sustentação do caráter de mídia dos movimentos 
corporais, o gesto como a exibição de uma mediação, ela é o processo de tornar um meio 
visível como tal, e permite a emergência do que seria estar-numa-mídia sendo um corpo, 
demandando a compreensão do mesmo em processo, no mundo, na cidade e no cinema, 
espaço onde se perpetua “eternamente” na linguagem, numa espécie de mediação 
“corporificada”. Diferente dos atos reflexos, para reconhecer os fenômenos complexos de 
um corpo em movimento na cena fílmica é interessante partir de uma aliança entre os 
níveis de atuação neurofisiológicoe fenomenológico. Neste campo de enfrentamentos, 
Segundo Katz e Greiner (2004:19), “o fluxo é inestancável, a comunicação inevitável, e o 
pensamento, nada além do que os movimentos internalizados do corpo”, como veremos 
pontualmente ao longo desta pesquisa. 
 
 13
O movimento toma forma a partir de um impulso, desejo, intenção ou pressão 
interna, e cada qual leva sua carga significativa única, a partir do contexto ou cenário no 
qual está inserida. A movimentação é particular e derivada portanto, para além do impulso 
interno, do contexto socio-cultural-psicológico de quem a executa – fato que garante a 
criação de tipos na narrativa audiovisual, cada qual com suas maneiras peculiares de se 
movimentar, suas gesticulações e representações espaciais. Cabe aos diretores criar 
distinções, visualidades possíveis e passear por inúmeras possibilidades de representação 
proporcionadas pela condição expressiva do corpo exposta pela câmera. Neste caminho 
de construção de sentido fílmico, através do movimento da câmera, diferentes exemplos 
podem ser expostos, como veremos a seguir. 
 
 “Assédio” (“Besieged”, 1998), filme de Bernardo Bertolucci, mostra um romance 
entre um pianista inglês (Sr.Kinsky) e uma jovem africana (Shandura) que trabalha e vive 
em sua casa. O espaço doméstico abriga um romance platônico, protagonizado pela 
câmera, que reproduz tentativas de aproximação e os incômodos dos dois ao serem 
conquistados um pelo outro. As paredes da casa, os detalhes decorativos, compõem seus 
sentimentos puros e abafados. A representação do movimento neste filme está centrada 
nos corpos do casal (representado por David Thewlis e Thandré Newton) nos meandros e 
espaços por onde eles transitam. A grande escada do hall que divide os dois, tem a forma 
de um espiral e ocupa o centro da casa. Nela, subindo e descendo, os dois corpos tentam 
se encontrar, despistando, conquistando em segredo. O movimento da câmera 
“personifica” seus sentimentos ambivalentes e metaforiza seus desejos, acompanhados 
por nós num redemoinho de pequenas ações. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A linguagem narrativa da câmera em movimento torna supérfulos os diálogos, quase 
inexistentes. As frases são mínimas e breves por todo o filme, narrado também pela 
música, elemento de suporte à constância gerada pelos movimentos do aparato 
cinematográfico. Ele toca piano e por esse “veículo” comunica seu amor, somando ao som 
dos teclados seus gestos e olhares. Qualquer discurso verbal pode também ser substituído 
pelos movimentos da câmera, que flagra seus pequenos gestos, respirações e atitudes. 
 
 14
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
As cenas na cidade são sempre tumultuadas e cheias de gente e movimento, 
contrastando com o sossego da casa do artista. Como se o tempo de fora fosse diverso do 
tempo da casa, “suspenso no presente”, espaço de ações pessoais. É uma possível 
metáfora para ela, que não pode entregar-se ao seu desejo, pois há um mundo lá fora 
onde ela também faz parte (é estudante de medicina) e precisa pensar em sua vida 
passada e futura. A própria música, tão significante, é outra metáfora à diferença entre 
eles: “não entendo sua música!” ela diz a certa altura, rendendo-se aos sentimentos 
tumultuados. O piano, assim como as escadas, parecem aproximá-los e ao mesmo tempo 
afastá-los, em jogos de movimentos onde servem de acesso comunicativo ou de realce à 
discrepante diferença sócio-cultural dos dois – ela mora em baixo, ele em cima. 
 
 Esta câmera atuante passeia pelo corpo dela, exibindo suas curvas e a tensão 
disfarçada nos leves movimentos. O aparato fílmico parece respirar com ela e exalar calor 
e sensualidade latente. Os movimentos da câmera parecem realizar com a protagonista 
seu trabalho de faxina, em detalhes, limpando molduras e esculturas. O olhar, 
disfarçadamente, procura por ele. Há uma cena em especial, o momento em que ela traz 
um aspirador de pó para os tapetes, e o aciona enquanto o outro compõe seu tema 
principal, na qual ele se inspira nos movimentos corporais dela. Ela, neste único momento 
do filme, deixa-se observar e demonstra prazer, olhando-o diretamente e aprovando sua 
criação com sorrisos tímidos e breves ensaios de dança. A comunicação corporal desta 
sequência traduz todo o sentimento dos dois, aqui compactuado e denunciado pela 
câmera. Mas como o amor é impossível, o ruído do aspirador briga com o piano, a melodia 
se perde, e tudo termina com um telefone que toca. 
 
Este filme de Bertolucci, nos momentos tensos dela, quando está assustada ou 
receosa da aproximação sutil e galante do inglês, a câmera se aproxima em primeiro 
plano, e o diretor adiciona o recurso do slow motion. Instantes onde suas ações se 
organizam, suas emoções se reordenam em novas composições. Por exemplo, quando 
ele a presenteia com um belo anel: ela se assusta e teme uma aproximação. Vai devolvê-
lo, ele se declara – primeiro com a música, depois com os olhos, depois com palavras, e 
ela por fim se descontrola: nesse instante raro a câmera permanece estática enquanto ela 
 15
treme e chora, sem disfarçar seu desespero. A narrativa é conduzida pela linguagem do 
movimento até o fim, quando estáticos, ambos escutam a campainha insistente do marido 
que retorna, deitados de olhos abertos sem se mover, a câmera também fixa. Por fim ela 
se levanta, nesse único instante abandonando a câmera, e a cama. 
 
 
O gesto da câmera, assim como o gesto que se organiza no corpo, tem 
especificidades que nascem da própria ação. A qualidade do movimento pressupõe o 
gesto em seu projeto singular. Sua experiência se define por “grande modulação 
perceptiva, pela capacidade de projeções e de ficções que são tanto o fruto do trabalho 
das sensações, quanto elas são o seu efeito.” A escolha por determinado movimento, seu 
modo de articulação e sintaxe específica, é uma solução resultante de variações 
determinantes em dado contexto, como “modalidades de orientação, de espacialização ou 
de construção do espaço do seu gesto, suas modalidades temporais, respiratórias e 
rítmicas próprias.” (Isabelle Launay, 2003:115) 
 
Assim, os personagens apresentados nesta introdução experimentam sua 
existência como corpos processos. A câmera acompanha o pensamento do personagem e 
nos conduz por suas veredas, como vimos no processo da conquista amorosa em 
“Assédio” e “O último tango em Paris”, ambos de Bertolucci. A memória, ainda que queira 
ser apagada, está latente em seus gestos e é determinante na condução (por vezes em 
movimentos contínuos da câmera) das ações dos personagens. O estudo da ação 
corpórea é o de uma identidade, diante da particularidade expressa em cada corpo, 
capturada e recriada pelo corpo da câmera. 
 
As últimas quatro décadas têm evidenciado que a razão é dependente do que 
acontece no corpo. Corpo, cérebro e as interações com o ambiente fornecem as bases 
para a comunicação. Marshall McLuhan propôs em 1964: “nós damos forma às nossas 
ferramentas, que dão forma a nós”6, abrindo o caminho para as investigações das 
próximas duas décadas, que vão explorar o conceito de embodiment7. O estudioso nos 
inspira a tratar a comunicação e o sistema nervoso no mesmo território teórico. (Katz e 
Greiner, 2004:16) 
 
 
Um bom exemplo desta estratégia no cinema ocorre com os presos do extinto 
complexo presidiário do Carandiru, em São Paulo, que viabilizaram uma realização 
 
6 “We shape our tools, and therefore our tools shape us.” 
 
7 O conceito de embodiment interessa a esta pesquisa na medida em que mostra como também no 
corpo do filme o movimento está encarnado e pode ser entendido como um processo permanente e 
dinâmico de construção-estruturação do desenvolvimento do organismo vivo. Segundo Lela Queiroz 
(2004:172),“quando se efetua a corporalizaçãode uma ocorrência, a transformação que se dá 
dentro se expressa fora, num novo padrão de organização, propondo a via dupla no processo, cujo 
parâmetro é a interação entre os diversos sistemas compondo dentro/foras do organismo.” A partir 
do conceito de embodied mind a razão abstrata não está separada do sistema sensório-motor, mas 
emerge com base neste. A mente é um processo que emerge de um corpo vivo: consciência e 
memória são propriedades que ganham existência na mente em um determinado momento, e não 
informações estocadas. (Eloísa Domenici, 2004:94) 
 
 16
cinematográfica do diretor Paulo Sacramento, em 2003. Suas vidas foram registradas por 
eles próprios, em posse de câmeras de video cedidas pelo diretor. O filme “O prisioneiro 
da grade de ferro” esboça a realidade e o cotidiano destes homens reclusos, a partir de 
seus próprios pontos de vista, ou seja, da singularidade das suas condições corpóreas. 
 
O conceito de embodied encontra aqui um sentido muito particular; os presos, 
atores e autores; personagem e cinegrafista são a mesma pessoa. A idéia do processo 
permanente de construção e estruturação do organismo vivo, da corporalização de uma 
ocorrência e exibição de processos dos corpos dos presos, transformados naquele 
ambiente que induz seus corpos a se adaptarem e a criarem novas imagens e ações 
corpóreas. Consciência e memória são habilidades cognitivas da mente humana, e se 
processam em novos movimentos como informações ativas que constróem novos sentidos 
no espaço e diante da câmera. 
 
 
As imagens capturadas na casa de detenção em 2001 começam pelo aviso do 
cinegrafista: “Aí rapaziada, o filme começa agora. Esse é o Carandiru de verdade”. As 
cenas se passam nas celas e imediações dos pavilhões, onde acompanhamos as 
atividades criadas por eles pra matar o tempo: desenham, esculpem, fazem pipas, bolas de 
couro, pintam, grafitam; cantam, tocam. Criam imagens e se expressam, construindo um 
mundo para si de resistência e sobrevivência corpórea. 
 
 
 
 “Aqui podemos enxergar o que 
as grades nos impedem” 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São cordiais e lúcidos, sérios, se apresentam para a câmera dizendo o nome 
completo, seguido pelos números, do prontuário, do código da pena, e do pavilhão, que 
fazem parte de sua existência interna, como parte de sua identidade. Os corpos são 
enquadrados nesse sentido também, as sequências de números que passam a fazer parte 
de sua vida de interno. Falam da vida de fora como “passado” e contam um pouco do que 
fazem ali em seus “presentes”, tão diversos quanto a história de cada um. O filme é 
composto por muitos depoimentos e planos fechados nos rostos. A câmera delata 
pequenos detalhes das celas ilustrando as falas de cada um. São homens realistas e 
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 17
respeitados, e a câmera também os respeita, numa linguagem quase sempre documental, 
formal também nos planos de conjunto dos ambientes. 8 “Uma palavra mal colocada pode 
custar a vida. Errou, paga com a vida.” Todos os pavilhões destilam a cachaça. “Pinga na 
cadeia é caro”, afirma um enquanto exibe o processo artesanal. “O barato é a maior 
responsa, e droga na cadeia é luxo.”, diz outro, enquanto prepara papelotes de maconha. 
 
O corpo que conduz a câmera e registra os outros corpos, todos compactuando 
uma realidade viva e retratada nos “auto-retratos” (sub-título do filme), são todos vivos sob 
o sentido literal da sobrevivência pelo movimento. Inventam atividades: a capoeira, os 
cantos, as cartas; o comércio de roupas, de cigarro, de tatuagem, de crack, de sexo. Criam 
regras – como a faxina coletiva no dia que antecede a visita – vocabulários – “água de 
fogo”, “maria louca”, para a cachaça; “a raspa da canela do diabo”, para o crack – e 
atividades comunitárias, sempre por iniciativa própria: a escola de boxe, a assembléia de 
Deus, a roda de samba, os “sobreviventes do rap”, a pastoral carcerária, a umbanda, o 
futebol. As letras de rap são verdadeiros gritos de resistência dos corpos, que cantam e 
dançam celebrando um movimento essencial, num processo de socialização, promovendo 
instantes de uma certa alegria, um certo alívio ao preservarem a própria dignidade. Dança, 
sonho, respeito. Em alguns destes momentos a câmera é mais pessoal e intimista, 
participando da ação da cena, como acontece num jogo de futebol e com um grupo de rap 
ao fim do filme. 
 
“Nós somos seres humanos, trabalhadores, isso que vocês vêm aqui é a realidade” 
– diz um, aplaudido por outros. A câmera é a mídia de expressão deles com o mundo. À 
noite saem no pátio e denunciam a sujeira indignante com os muitos ratos que passeiam 
ali. À noite “é difícil achar palavras”, diz um detento enquanto captura imagens de sua vista 
da janela, que dá pro metrô e pra cidade. “Sou um amador, um preso, na luta da 
conquista”. 
 
O cinema absorve todas as formas 
de arte, associadas aos princípios 
diversos da expressão. A arte 
cinematográfica é terreno fértil de 
experimentação e considerada “a 
maior das revoluções estéticas.” 
diz Luiz Nazário ( 2001) É uma 
linguagem que se apropria de 
outras -- da dança, do corpo, da 
câmera, do espaço – para a partir 
delas criar seus próprios 
significados, através da presença 
do movimento em suas mais 
diversas formas. As possibilidades 
de manipulação do instante, 
capazes de revelar a surpresa do 
 
8 Os detentos fizeram uma oficina de video com o diretor do filme e aprenderam a manipular as 
câmeras naquela linguagem padrão documental, presente em muitas das cenas. Eles porém se 
sentem à vontade para gravar como bem entendem, apropriando-se do aparato como melhor se 
identificam com ele. 
 
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 18
cotidiano, permitem sugerir, provocar, registrar percepções – que dão significado às 
imagens. Nesta pesquisa de mestrado, além de revolução estética, a arte cinematográfica 
apresenta-se como tecnologia cognitiva processadora de conhecimento. 
 
O cinema apropria-se do elemento rítmico como significante, seja através da 
movimentação do próprio ator (correndo, fugindo, apressado, lento e receoso, curioso e 
cuidadoso), seja através do uso da câmera (que também pode correr, pode ser 
inconstante, subjetiva, denunciadora, ou estática, fixa). Cada movimento de câmera, 
somado à opção por determinado enquadramento e composição de um quadro, encontra 
seu sentido. Em “Assédio” ela atua como o próprio sentimento confuso dos dois, enquanto 
em “O Prisioneiro...” ela está presente como uma ferramenta de denúncia, ganhando o 
corpo dos detentos para contar suas histórias. O recurso da câmera num filme pode ser 
tão determinante, portanto, quanto a própria atuação dos personagens, traduzindo suas 
sensações, emoções, e mesmo suas ações. 
 
 
O lugar do corpo no ator 
 
Nossa gramática corporal é organizada por nossa história de sensações corporais, 
imagens mentais, criações categorizadas, fluxos de pensamentos, memórias e ações, 
internos e externos. O movimento corporal nasce de situações específicas onde 
sinestesias operantes em nosso corpo integram também a percepção e nossa capacidade 
de observação e interação com o meio, captando novas informações que serão 
processadas e transformadas em outras, garantindo a condição de estar vivo, e em fluxo. 
O neurologista português António Damasio explica: a cada novo sentido, a cada nova 
percepção, temos um novo corpo. (1996) 
 
A potencialidade corpórea pode, no entanto, estabelecer uma certa independência 
em relação às condições externas de tempo e espaço. Ela é que faz com que este corpo 
reaja de determinada forma em articulações, olhares e gestos. Vivemos no mundo e 
somos subalternos ao seu sistema de organização, enquantointernamente somos livres: 
pensamos, recriamos, percebemos, elaboramos teorias próprias e conceitos particulares, 
enfim criamos nossa própria realidade, a partir das realidades de nosso corpo. “Os 
conceitos de unidade e totalidade”, citando Dietmar Kamper (2000/2002)9, “são categorias 
de um sonhar superado”. A imaginação pressupõe a criação das imagens internas, e a 
realidade interna é fruto dos processos do mundo internalizados naquele corpo criador. 
Tais acontecimentos acontecem no corpo e as formas como este reage e exterioriza seus 
“pensamentos” é germinadora de novos fluxos de informação: os gestos no mundo são 
pessoais, são registros reativos, particulares e fragmentários. Este corpo instável, atuante, 
trabalha infinitas formas dentro de parâmetros possíveis de ação. 
 
 
9 Os textos de Dietmar Kamper (1928-2001), filósofo, poeta, atleta, dentre outras coisas, foram 
introduzidos no Brasil pelo prof.Dr. Norval Baitello Junior, através do CISC, Centro Interdisciplinar 
de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia, junto à Pós-Graduação em Comunicação e 
Semiótica da PUC-SP. Kamper foi professor da Universidade Livre de Berlim, iniciador de dez 
simpósios internacionais sobre temas da antropologia histórica como corpo, senso, alma, tempo e 
silêncio. Não há publicações deste autor alemão no Brasil, e trechos de suas obras e artigos são 
traduzidos e disseminados pelo CISC, do qual foi membro emérito, desde 2000. 
 19
Jacques Aumont (1997) argumenta que a obra contém um sentido, um sentimento, 
uma emoção, um potencial de afeto que encontra na realidade o que deveria encontrar 
nela, remetendo assim a operação expressiva ao destinatário da obra. Sem querer-se 
conceber a expressão como vontade ou determinismo, ela tem lugar na forma, enquanto 
que esta ultrapassa a “simples” representação, e atua por sua própria conta. Assim, ela 
não é e nem sustenta nada, mas é sempre historicamente contextualizada e portanto 
eminentemente variável. A expressividade se aloja na forma, não em um estilo. 
 
 
 
Os dois personagens de Leos 
Carax em “Les amants du Pont-
Neuf” (“Os amantes da ponte 
nova”, 1991) estão presentes em 
movimento frenético, por vezes 
descontrolado, em seus corpos 
por vezes alcoolizados, por 
vezes apaixonados. Sequências 
bruscas dos atores em jogos de 
composições constantemente 
recriadas aumentam o sentido 
de fragmentação psicológica. O 
espaço da ponte é “aberto”, 
vazio, solitário, e de passagem. 
A locação dialoga com a 
situação de seus moradores 
provisórios. A atriz Juliette 
Binoche (Michelle) nos leva para os meandros da consciência e do seu pensamento, em 
suas lutas e dilemas acerca de uma cegueira iminente que ela quer esquecer. A câmera 
frequentemente instável denuncia seu estado interior, sua dor aguda, seus movimentos 
eloquentes, seu olhar sensível para a pintura. A atriz representa no corpo a condição de 
mendiga; absorve novas informações e abstrái-se de outras, reconstruindo-se a cada 
gesto. 
 
 
Neste contexto, as emoções também têm fortes componentes cognitivos que 
mesclam sentimentos, desejos, julgamentos e, quando externalizadas ganham forma na 
ação. A emoção é o mais complexo estado ou processo mental, pois se mistura com todos 
os outros processos (Edelman, 1992). As emoções representam a base pré motora, pois 
detêm a maioria de nossas ações, assim como o tônus muscular serve de base para a 
execução de nossos movimentos. (Llinás, 2002). É com a ajuda destes nossos 
“processadores naturais” (nossos corpos vivos), que somos capazes de processar os 
acontecimentos do mundo, ingerí-los por tempo indeterminado e explorá-los também 
indefinidamente, através de gestos destinados a uma comunicação com o outro ou de 
gestos solitários, pessoais. O importante é não interromper o fluxo, mas juntar-se a ele, à 
vida através do movimento constante que não permite que conhecimento, apreensão, 
dúvida ou desejo se estanquem. Nesse caso teríamos o tempo suspenso, o abandono da 
ação espontânea, a incompatibilidade com o mundo, que nos tornaria cada vez mais 
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distantes em nossas realidades múltiplas. Para fazer parte deste tempo há que se contar 
com o “movimento de pensamento, com a ajuda dos corpos animados”. (Kamper, op.cit) 
 
 
 “Os cafajestes”, de Ruy Guerra (1962), é tido como o 
primeiro filme de vanguarda realizado no Brasil, 
colocando-se de forma radical numa linha moderna de 
invenção. Dois amigos buscam dinheiro chantageando 
mulheres, que eles fotografam em situações 
comprometedoras: nuas ou semi-nuas, em belíssimas 
tomadas na praia. O filme celebra o corpo do ator, nos 
homens ativos e perdidos, como elas, em especial 
Norma Bengell, que expõe seu corpo nu violentamente 
fotografado, numa mistura de constrangimento e 
prazer, dor e vigor do corpo feminino, em imagens 
exuberantes – areia e água são outros corpos que 
somam-se a estes em uma composição expressiva e 
natural – onde a luz e sombra parecem também 
banhar os corpos, e os movimentos da câmera e do 
carro só acrescentam intensidade. As cenas no carro, 
durante passeios quase sem destino, também 
celebram os corpos, rostos em silêncio ou falas 
desimportantes nas composições banhadas por vento 
e movimento. “Os cafajestes” é “organicamente 
vinculado ao problema do comportamento e trabalho 
com o ator no complexo fenomenológico do estar, em 
lugar de um ser prédeterminado pelas modulações 
semânticas da linguagem verbal. Depurada noção de 
fluência e ritmo, no plano intimista e regido por um 
tempo interno de adequação psicológica ao que os 
elementos transmitem. Conflito diacrônico entre os 
elementos visuais e sonoros, numa “subversão de 
todos os índices funcionais de ordem”. (Grunewald, 
apud Ruy Castro, 2001:112/114). 
 
 
No corpo, como no cinema, a construção de imagens tem que vir de um corpo vivo, 
com propriedades derivadas de seu balanço homeostático precário, de sua necessidade 
inerente de sobrevivência, e de seu senso que promove a sobrevivência válida. (Damasio, 
1996) O corpo está em constante estado de instabilidade e auto-organização, e este 
estado é sua condição de existência. O ator em cena, o dançarino no palco ou o homem 
na rua, revela sua “presença” e a emergência de alterações e estados do corpo, enquanto 
ser vivo, a cada momento, em relação a si mesmo e ao ambiente. 
 
“A maneira como nós conceitualizamos o mundo não depende primariamente de 
proposições e palavras mas, antes de tudo, de maneiras de entendimento e pensamento 
que estão enraizadas em padrões de nossa atividade corporal: é uma razão encarnada.” 
(Johnson, apud Domenici 2004:94) Um bom exemplo deste argumento é trabalhado no 
filme “A liberdade é azul”, onde a personagem Julie (Juliette Binoche) recompõe-se de 
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uma situação traumática a partir de seu corpo desestabilizado. A impressão que temos no 
filme é que a cada cena seu corpo se atualiza, absorvendo informações do meio, 
processando-as em novos movimentos e percepções a cada instante renovados – como 
se, respirando, seu corpo voltasse à vida. 
 
Cada indivíduo vivencia sua continuidade temporal, que se relaciona com 
abstrações experimentadas, completa o neurocientista Gerald Edelman (1992). A criação 
de significado toma forma com o histórico de sensações corporais e das imagens mentais, 
de maneira que nosso “sistema de sentido” é carregado de emoção. Nosso pensamento 
requer também imagens, intenções, sugestões e razão lógica: trata-se de uma mistura de 
atividades mentais em níveis diferentes. Qualquer que seja a forma do pensamento, ele é 
detonado por processos metafóricose metonímios. Pensamentos são conduzidos por 
outros pensamentos, por imagens, por desejos. 
 
Em “A liberdade é azul” (“Bleu”, 1993), primeiro filme da trilogia das cores do diretor 
polonês Krzysztof Kielówski, a cor, como já se poderia imaginar de antemão, é um signo 
predominante. O azul no filme é a metáfora da perda de um ente querido. Simboliza a dor 
sublime, a dor que não tem tamanho, a dor que não cabe no corpo, a dor que não vai 
acabar nunca e que pelo mesmo motivo, por uma questão de vida ou morte, representa a 
sublimação da perda e a opção pela vida. A vida deste corpo sobrevivente naturalmente 
carregará consigo as imagens, os sentimentos e as sensações presentes da perda, num 
passado a cada gesto presente. 
 
A cena inicial é um breve passeio de luzes, faróis de carros em movimento, 
seguida pela sequência azul da batida ao amanhecer. Julie (Juliette Binoche) perde o filho 
e o marido num acidente de carro. A primeira cena é recheada já de azuis em planos de 
detalhe representando em parte a memória da personagem e em parte narrando alguns 
detalhes da tragédia. 
 
A protagonista mantém sua força, na voz, no olhar; mas às vezes seus gestos 
denunciam sua fraqueza. No quarto azul de sua mansão, esvaziado pelos criados à sua 
ordem, ela puxa com força um pedaço do lustre de pedras azuis. Suas pernas e tronco 
não se sustentam e ela se deixa sentar pesadamente à porta de uma sala; em seguida, os 
brilhos das pedras são refletidos em seu rosto. Ela não chora, e mantém apertados na 
mão os cacos azuis do lustre. O corpo em frangalhos. Sua força se revela tão grande 
quanto a intensidade da dor. 
 
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Ainda na casa, ela toca pela primeira vez o piano, lendo as notas (a câmera 
concentra seu foco num único ponto no centro da tela, reproduzindo seu ponto de vista, 
prejudicado pelo acidente), e logo em seguida interrompe, fechando-o brutalmente, e olha 
para a piscina à sua frente, para virem reflexos azuis novamente bater em seu rosto. Seria 
o tema da cor sua memória? Em frente à lareira ela esvazia a bolsa e encontra um pirulito 
azul da criança. Com muito cuidado, em gestos delicados, pega-o, abre cuidadosamente o 
papel brilhante para em seguida mastigar o pirulito brutalmente, em outra contraposição de 
intensidades gestuais, talvez numa experiência de uma memória corporificada. 
 
Saindo da mansão, descendo a rua a pé, ela arrasta os dedos fechados no muro 
de pedra, numa dor silenciada. Para manter os gestos firmes e os passos seguros, parece 
amenizar sua emoção compensando com uma dor física – assim como em momentos 
anteriores os gestos bruscos formam oposições, como com o pirulito e o lustre. 
 
No café, ela escuta um flautista na rua. Um plano de detalhe de uma gota num 
pedaço da xícara ilustra sua memória – o corpo vazio, o tempo suspenso. Através de 
silêncios e movimentos ela tenta se recompor. Lapsos de tempo acontecem em quatro 
instantes no filme, como pausas do pensamento, deixando perguntas no ar em momentos 
de fade out, a tela negra, a trilha forte, numa representação explícita do tempo de Julie. 
 
 
 23
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
No processo de recuperação, o corpo se mantém em movimento. Ela mergulha na 
piscina de um azul intenso, onde nada, relaxa e chora. A trilha-tema e o azul estão sempre 
em seu pensamento, revelando-se como analogias a diferentes níveis de sua consciência. 
Por exemplo, quando ela dorme na escada do prédio; quando toma sol num banco de 
praça; quando tenta sair da piscina e obriga-se a recuar e mergulhar no silêncio. 
 
Sua dor nunca é exteriorizada em palavras. Ela não procura amigos com os quais 
poderia discorrer sobre o assunto. Quando chora na piscina, nem nós percebemos: 
apenas uma vizinha, com quem ela minimamente se socializa, percebe e adverte: “você 
está chorando!”, enquanto ela limita-se a exibir seu triste sorriso. Um exercício interno do 
corpo que permeia toda a narrativa que mais parece representar seu processo pessoal 
pela vida e felicidade, um caminho pelo azul. Na última cena, nua, ela chora em silêncio, e 
vive. 
 
As conexões criadas vão além da história e memória: cenários fictícios, conexões 
imaginadas. A informação no corpo se dá em rede: em “A liberdade é azul” 
acompanhamos explicitamente o processo de recuperação de Julie, enquanto ela se 
envolve em pequenas ações sucessivas que lhe garantem que seu corpo se mantenha 
vivo e no mundo, necessariamente em movimento. Cada um à sua maneira, todos os 
filmes asseguram o corpo como processo, não como produto. 
 
 
Juliette Binoche interpreta em seus personagens nos dois filmes abordados aqui, 
“A liberdade é azul”, e o brevemente comentado 
“Os amantes da ponte nova”, uma experiência 
comum: a memória viva. No primeiro, o passado se 
faz presente a cada instante em que ela se depara 
com um objeto azul, que por sua vez a remete à 
trilha-tema do filme, composição incompleta do 
marido morto. No segundo filme, ela vai viver numa 
ponte como uma moribunda a fim de esquecer e 
fugir de um problema de saúde. Nos dois casos a 
personagem abandona sua vida anterior e entrega-
se a uma nova experiência, num novo lugar – no 
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 24
entanto, é todo o tempo atormentada pelos fatos que se fazem a cada instante presentes 
em seus pensamentos e ações. 
 
Damasio (1996) refere-se às imagens baseadas em qualquer modalidade sensorial 
– imagens sonoras, imagens do movimento no espaço, imagens olfativas, entre outras – 
mais do que imagens visuais apenas. As imagens descrevem tanto o mundo externo ao 
organismo, quanto o interno a ele. Ele argumenta que a capacidade de gerar imagens 
possivelmente evolui e existe porque as imagens possibilitam aos organismos otimizar 
respostas. Quer dizer, a perfeccionar repertórios existentes de movimento e planejar 
outros, ainda mais bem sucedidos. 
 
O cérebro trabalha por meio de imagens mentais, construídas com a percepção 
dos estados do corpo. Quando um objeto interage com o corpo, a percepção desse objeto 
se dá por meio das alterações no padrão de atividade dos tecidos corporais. “Não existe 
percepção pura do objeto em um canal sensorial como, por exemplo, a visão. Para 
perceber um objeto, visualmente ou de algum outro modo, o organismo requer tanto os 
sinais sensoriais especializados como os sinais provenientes do ajustamento do corpo, 
que são necessários para a ocorrência da percepção.” (Damasio, 1999:193). O objeto é 
continuamente re-codificado com dados das reações do próprio organismo ao perceber 
aquele objeto, em cada momento. Todo evento perceptivo seria então um ato cognitivo. 
Uma vez que os estados do corpo constituem as emoções, o objeto é categorizado com 
um valor emocional associado, de acordo com ele. Damasio salienta ainda que a 
consciência é um mecanismo altamente adaptativo. Associações entre os símbolos 
definem campos semânticos: ouvir, memorizar ou uma palavra pode ativar efeitos para 
subsequente lembrança ou identificação de outras palavras/ associações em categorias 
relacionadas. Uma informação anterior pode sensibilizar o sistema a interpretar uma nova 
informação de determinada maneira, como nos sistemas baseados em reconhecimento.De 
certa maneira, nossa história fica registrada na rede neuronal e a maneira como as 
conexões são formadas nelas emerge da história particular do indivíduo. (Domenici, 
2004:98) 
 
Tal estratégia cognitiva é facilmente identificada nos filmes que analisamos, uma 
vez que contam com objetos muito representativos. Por exemplo, o lustre azul em “A 
liberdade é azul”, representa uma perda; o diário que será apresentado adiante em “O livro 
de cabeceira” simboliza o desejo da personagem de tornar-se escritora, e assim pordiante. 
 
Sobre a relação dos estados emocionais com as ações (e especialmente com a 
mobilidade), em condições normais é um estado emocional que produz o impulso e o 
contexto interno para a ação. O comportamento em sua diversidade (detalhes, 
expressões) é modulado pelos eventos psicológicos não experimentados conscientemente 
(eventos como possibilidade). Os sistemas cerebrais relacionam as propriedades 
sensórias10 do mundo externo com motivações e memórias geradas internamente. Dessa 
forma a consciência seria um modo focal e passageiro, usado pelo contexto do momento e 
descartado. 
 
 
10 Sensações são produto da atividade em andamento do sistema nervoso, que encontram seu 
caminho até o estágio da consciência (Llinás, 2002) 
 25
Inspirados por este raciocínio, caminhamos para uma nova possibilidade fílmica. O 
filme de Peter Greenaway “O livro de cabeceira” (“The pillow book”, 1996) parece 
alimentar-se da idéia da emoção e dos eventos psicológicos que engatam ações 
momentâneas. A narrativa não é cronológica em “O livro de cabeceira”. Os tempos são 
suspensos e se entrecruzam: a protagonista (Vivian Wu) lê no presente o diário que 
mantinha desde os seis anos, quando por sua vez ouvia e se inspirava em histórias e 
imagens de um diário escrito há quase mil anos. Até o fim do filme, irá escrever inspirando-
se em seus acontecimentos presentes e passados, numa recriação poética de suas 
memórias latentes – seu pai, seus amantes, a vida em Hong Kong e Kyoto. A metáfora da 
caligrafia japonesa, que através do movimento se fixa nos corpos temporariamente, 
referenciando ações perdidas no tempo, encontram sentido em seu próprio corpo criador. 
 
 A poética do corpo surge em imagens temporárias (o texto escrito que se apaga 
em pouco tempo), conduzidas por um corpo temporário (que, sempre em movimento, refaz 
seu percurso e sua história, levando cada forma a um novo sentido. As sensações e ações 
da protagonista são tão móveis quanto suas escrituras, por sua vez reproduzidas numa 
mídia também dinâmica – o filme, a imagem em movimento. 
 
A jovem escritora japonesa Nagiko Kiyohara se propõe a 
escrever treze livros, cada qual sobre um tema, a serem 
entregues para um editor a quem odeia e promete 
vingança por haver explorado seu pai, também escritor, 
durante o passado. A fim de chamar a atenção do editor 
para sua escrita e conseguir ser publicada, a jovem 
passa a escrever em corpos masculinos, alguns de 
amantes, outros de desconhecidos. 
 
O motivo é antigo: desde os quatro anos, em datas de aniversário, seu pai lhe pinta 
o rosto e a nuca numa tradição oriental do nascimento, e ela então herda a paixão pela 
escrita nos corpos. Primeiramente se oferece como papel, para que os outros escrevam 
em seu corpo. Até que conhece um tradutor inglês (Ewan McGregor), cuja terrível 
caligrafia a faz recusá-lo, e ele então lhe inspira com a frase ícone: “Write me. Treat me 
like the page of a book”. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 26
Começa então seu exercício criativo de escrever sobre os corpos dos outros. Tem 
início também seu romance com Jerome, o jovem inglês, com quem celebra a arte da 
caligrafia corporal, mas também usa como acesso ao editor maldito. O corpo de Jerome 
torna-se o mensageiro do primeiro livro. 
 
O filme de Peter Greenaway é uma oferenda aos sentidos, sobretudo à visão. 
Leituras feitas na infância por sua mãe do livro de cabeceira milenar de Sei Shonagon que 
nas mãos de Greenaway tornam-se visões: o texto lido é sobreposto a imagens descritas, 
e com elas a caligrafia japonesa sobrepõe-se às imagens em cena, ao tato, apreciado 
desde cedo, quando ao ter o rosto e nuca pintados pelo pai ela aprecia o contato com a 
tinta, e o olfato. Nagiko se encantava com o cheiro de todos os papéis, que a faziam 
lembrar do cheiro da pele: “O aroma de um papel em branco é como o da pele de um novo 
amante, que faz uma visita surpresa vindo de um jardim em dia chuvoso”. 
 
Os sentidos do corpo explorados no filme, ou brindados pelo diretor em 
sobreposições de imagens e estímulos visuais, conduzem a história por eixos temporais e 
cenários diversos. As próprias imagens do filme também nos transportam ao texto escrito, 
em sobreposições de escrituras por vezes chinesas em imagens dos corpos ou cenários, 
onde se desenrola a próxima cena. 
 
As metáforas do corpo utilizadas nesta narrativa, portanto, passam pelas imagens 
de textos produzidos pelo corpo da protagonista em outros corpos, recriando sentidos em 
novas imagens corpóreas. O filme é fortemente representado pela presença do corpo: o 
corpo produtor de sentido, o corpo condutor da informação, o corpo receptor e leitor que 
por sua vez reproduzirá os textos do outro em uma nova mídia, a do texto finalmente 
impresso. Sutilezas, gestos que se transformam em imagens, que se transformam em 
palavras faladas, que se transformam em palavras escritas, e que se transformam em 
gestos. Sentidos expostos em imagens, sentimentos expostos em gestos, texto traduzido 
na pele. “Agora serei a caneta, não só o papel”, ela diz, ao iniciar sua obra inédita. 
 
Nagiko estava determinada a cultivar amantes que lembrassem sua paixão pela 
caligrafia. Poemas de pele, com sentidos apropriados: “a palavra significando chuva 
deveria cair como uma chuva, a que significasse fumaça deveria flutuar como fumaça”, 
conforme lhe insina um calígrafo ancião. Os corpos neste filme de Greenaway são 
transformados em veículos de informação, em fluxo – tanto os corpos, quanto os textos 
escritos celebram a efemeridade da condição corpórea e a fragilidade do conteúdo 
artístico. “Corpos mensageiros” são despidos de sua própria história para conduzir outra, 
da artista, para o editor, que se apressa em copiar o texto de autoria desconhecida – 
detalhe que confirma a noção de valorar o texto em fluxo. Este filme expõe o sentido da 
impermanência para os orientais, a noção de valor e de perda, na valorização da posse de 
objetos queridos. Após a morte de seu precioso amante, Nagiko reflete: “seus livros eram 
muito ruins para serem queimados”. Sua própria opção de escrita, nos corpos, celebra o 
acaso e a constante possibilidade da perda, como um de seus “livros”, que se desfaz no 
corpo molhado de chuva de um mensageiro. 
 
 27
 
 
 
A a-forma, o surgimento de algo que se crê acontecimento, nunca está num filme 
inteiro, mas apenas em momentos particulares, frações de tempo ou de extensão. A cor 
continua sendo um veículo privilegiado desse cinema experimental, sobretudo a cor em 
movimento, que parece arrancar-se dos objetos para converter-se em aventura singular. 
Isto está explícito nos dois filmes analisados como representações do corpo no ator: em “A 
liberdade é azul” o azul onipresente de sua memória atuante, e em “O livro de cabeceira” 
as tonalidades japonesas dos vermelhos e dos papéis de seda e cenários orientais, que 
desde a infância inspiram as ações da protagonista. 
 
A gesticulação de um personagem sugere traços de seu perfil psicológico, e pode 
conduzir a ação na qual transcorre a cena. Tudo permaneceria na condição de esboço, 
vibrando com uma tensão imanente: os registros transitórios realizados pela câmera 
cinematográfica, que criam a impressão de que o momento foi capturado em toda sua 
plenitude; o corpo instável, pensante, que reage de infinitas formas; e o corpo estável, 
concreto e estruturado, que dá a sensação de que tudo ali está sob controle. Os corpos 
que habitam o mundo são tão complexos e transitórios quanto ele, cheios de intenções, 
tensões e possibilidades contínuas. 
 28
O sistema de informações que é o corpo humano emerge quando se organiza 
como uma mídia dos processos em curso, expondo a transitoriedade da forma. Olhar o 
corpo significa olhar o ambiente que constitui sua materialidade– há que dar-se ênfase ao 
caráter processual dessas operações em fluxo inestancável. Juntamente com os cinco 
sentidos está o movimento, nesse mesmo conjunto de características do corpo humano. 
(Ginsburg, 2001) O movimento como pensamento, o pensamento como existência 
corpórea, a condição corpórea explícita no movimento. Este fluxo está exemplificado em 
todos os filmes apresentados na introdução desta pesquisa: “Bagdad Café”, “A liberdade é 
azul”, “Assédio”, “Livro de Cabeceira”, e nos presentes apenas em imagem, como “Os 
amantes da ponte nova” e “O último tango...” – narrativas apoiadas no movimento, em 
suas formas e contextos particulares; protagonistas que recriam seus gestos para dar 
continuidade às suas próprias existências. 
 
Compreender o corpo como mídia de comunicação requer uma abordagem 
interdisciplinar e interteórica mais complexa. Ler o corpo significa sempre reconstrui-lo. À 
luz da fenomenologia são propostas novas nomenclaturas, como a da corporalidade no 
lugar de corpo (Bernard, 2001), na tentativa de afirmar a plasticidade do fluxo de 
informações, e negar a metáfora do organismo como aquilo que é inato e comum a todos. 
Escritos recentes apresentam o corpo como um resultado sempre transitório dos 
processos de co-evolução, um contínuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental. 
(Katz e Greiner, 2004) No compasso destas propostas é que sugerimos aqui uma leitura 
interteórica do corpo representado nos filmes, com uma imensa variedade de 
possibilidades de representação do corpo do personagem em cena conduzindo a 
narrativa. Estas parecem por vezes tão amplas quanto as possibilidades de representação 
do corpo no mundo, e mais que isso, de um corpo em suas próprias imagens. 
 
 
 O lugar do corpo no espaço 
 
O corpo humano, na plenitude de seus movimentos, visíveis e não visíveis, 
interage absolutamente com o ambiente que o cerca, e este ambiente é igualmente 
determinado por ele, através de suas ações. As ações deste sujeito são também um 
esboço de sua história de vida, de seus sonhos, medos, em sua sensação própria 
traduzida ali ao vivo, em cada lugar. Vivemos no presente do mundo com todos os nossos 
tempos e possibilidades corpóreas. 
 
 
 “Vidas Secas” (Nelson 
Pereira dos Santos, 1963), 
baseado no romance 
homônimo de Graciliano 
Ramos, traduz a situação de 
calamidade subumana do 
nordeste brasileiro, mantendo 
o estilo seco da obra original, 
ao constatar o impasse dos 
personagens devorados pela 
miséria, fome e êxodo 
constante. O diretor encontra 
 29
efeitos análogos aos do romance ao alcançar “uma apropriação feliz e consciente dos 
denominados “tempos mortos”, criados por Michelangelo Antonioni, em passagens 
exasperadas pela técnica dos vazios estáticos e plenos de significação.” (Grunewald, apud 
Ruy Castro, 2001:129) Os protagonistas – o homem, a mulher, os filhos e a cachorra 
Baleia – permitem que o espaço, e seus corpos neste espaço, da seca, fale mais forte que 
qualquer palavra, “colaborando nas composições plásticas dos quadros estilizados do 
sofrimento ou da poesia de um áspero cotidiano”. (op.cit:130) 
 
 
O desenvolvimento da linguagem do cinema é ancorado pelas infinitas 
possibilidades abertas deste texto essencialmente híbrido (o corpo). Há a tendência de 
voltar a câmera para os eventos do homem, na tarefa de registrar o movimento que 
levanta um conjunto de questões, relacionando-se à tarefa de registrar narrativas. O olhar 
a cidade, a criação de narrativas corporais a partir da comunicação com o espaço e seus 
conteúdos, variantes e “fontes” de sentido, constitui também uma potente fonte criativa. 
 
Como vimos, a relação do corpo com o ambiente é sempre processual. As 
informações disponíveis no meio nos são apresentadas no âmbito das relações, de 
maneira que cada corpo cria sua organização no espaço de modo particular, a partir da 
seleção de informações que lhe são válidas (familiares, instigantes, provocadoras...), e que 
despertam sensações em relação às suas memórias e imagens mentais. Dessa maneira, o 
ambiente é provedor de uma variedade de relações entre observador e contexto. A 
interpretação é também um processo de corporificação. (Terrence Deacon, 1997) 
 
Nesse sentido, um bom exemplo é apresentado por F.W. Murnau em “A última 
gargalhada” (“Der Letzte mann”, 1924). A obra cria altos contrastes de cor e distorções 
imagéticas para retratar as sensações de seu protagonista, que perde seu posto de status 
pessoal para rebaixar-se ao trabalho no banheiro de um grande hotel. Os pesadelos que 
vive, seu sofrimento agudo perante a impotência da velhice e sua suposta inutilidade 
refletem-se nas imagens da cidade, que é transformada em suas próprias visões internas. 
Ele antecipa em imagens o desgosto da família e o escárnio de vizinhos, presentes em 
corpos grotescos de seus cenários domésticos. 
 
Num primeiro momento, o personagem exibe toda sua pompa expressa no seu 
andar, peito estufado, orgulho do trabalho expresso nos olhos e nos cantos dos lábios. Os 
cenários são ricamente expostos, a decoração luxuosa do hotel, composta pelo mobiliário 
ostensivo, assim como seus hóspedes, e os funcionários impecáveis em seus uniformes. 
O personagem acompanha tudo, carregando e descarregando malas incessantemente. 
Com o mesmo orgulho ostenta seu impecável uniforme diante da grande porta giratória de 
vidro do hotel, o local de entrada e saída onde ele age com seu corpo e seu coração. 
 
O cenário de seu bairro é bem diferente de seu luxuoso local de trabalho, e ali 
também é respeitado por todos, mantendo a mesma pompa, sua postura orgulhosa do 
cargo. Entra e sái todos os dias ostentando o impecável uniforme, sempre observado e 
admirado por todos os vizinhos, que ali vivem como num cortiço, compartilhando 
atividades e fofocas. Mais tarde, quando é dispensado de sua função, todos ali de suas 
janelas o observam com escárnio e o cenário simples transforma-se em pesadelo. 
 
 
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Quando ele perde o cargo e volta pra casa, há uma festa de casamento. Todos 
bebem e comemoram felizes; ele esconde sua tragédia com tristes sorrisos. Na sala da 
casa vazia, ao fim da festa, ele bebe sozinho e realiza seus gestos como se estivesse no 
trabalho de doorman: faz continências, abre os braços, apita – reproduz as ações do cargo 
perdido. A mulher mal pode se conter em gargalhadas. Há uma sequência de bêbados no 
pátio da cortiço, que cantam e dançam. A alegria e relaxamento se contrapõem à sua dor 
e angústia, seu pesadelo pessoal. A casa gira com sua embriaguez. Ele sonha com a 
porta giratória do antigo posto, enorme, em movimento. No sonho é mais forte que todos: 
segue-se a sequência transfigurada de cenas do saguão do hotel, com tudo em 
movimento contínuo. Sem foco, a câmera dança. Ele vê seu percurso pela cidade 
transformar-se radicalmente, como se a arquitetura ganhasse vida e quisesse engoli-lo, 
zombando dele, em seu imaginário aterrorizado. Suas emoções, sua tristeza aguda, o 
sentimento de humilhação, transformam em paisagem externa suas imagens internas, e 
tudo à sua volta parece querer expulsá-lo, por vezes sugá-lo, tratando-o como um ser 
medíocre, inútil e impotente. A conexão entre as sensações corpóreas do personagem e 
do espectador se dá no corpo do espaço onde ele está. Ele vê as paredes, as ruas, as 
janelas, moverem-se e tudo transformar-se num circo de horrores. 
 
Da porta do hotel ele cria o mundo. Portas de vidro giratória equivalem à 
celebração da passagem da vida, o fluxo das pessoas. O banheiro é a estagnação: não há 
vista, paisagem ou movimento. O uniforme lhe foi arrancado do corpo violentamente – ele 
em estado de choque não se move. Presenciamos sua situação traumática, suas ações 
internas, o corpo em transformação. Sua

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