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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/221807706 O corpo no cinema: pensamento em movimento THESIS · MAY 2005 READS 137 1 AUTHOR: Monica Toledo Silva University of Campinas 8 PUBLICATIONS 0 CITATIONS SEE PROFILE Available from: Monica Toledo Silva Retrieved on: 07 April 2016 1 Monica Toledo Silva O CORPO NO CINEMA: PENSAMENTO EM MOVIMENTO Comunicação e Semiótica Mestrado Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Prof.Dra. Christine Greiner. PUC/SP São Paulo 2005 2 Aos meus pais, que mesmo céticos sempre acreditaram em tudo. 3 RESUMO Inspirados pela proposta do filósofo Gilles Deleuze segundo a qual o elemento do cinema é o gesto e não a imagem, propomos o pensamento-ação do corpo como o modo de organização do filme. Para tanto, partimos da hipótese de que o corpo tem um lugar ainda não devidamente abordado pela teoria do cinema, embora a prática apresente exercícios preciosos de diferentes formas de representação, no contexto dos modos de organização dos gestos e das imagens criadas no corpo e a partir dele. O cinema apresenta-se como uma mídia suficientemente complexa para discutir o movimento em geral e, ao mesmo tempo, para colaborar com a pesquisa específica de buscar o “lugar do corpo” no filme. No decorrer do texto, sugerimos que estudar o corpo em movimento é reconhecê-lo como processador de comunicação na cena cinematográfica. Propomos conduzir os modos de construção da narrativa fílmica, expondo três recursos distintos de apropriação do corpo na criação de sentido: quando o lugar do corpo no filme está representado pela câmera, quando se organiza no corpo do personagem, e quando se apresenta na paisagem fílmica. Além de uma introdução histórica e conceitual que propõe uma taxonomia inédita das representações do corpo no filme, a dissertação apresenta dois capítulos. No primeiro, analisa um único filme, onde o pensamento do corpo não só ilumina bem estes três lugares propostos, como parece criar e conduzir a narrativa, estendendo-se a outros corpos em cena que dirigem nossa percepção e determinam uma estética e uma composição singulares. Trata-se da obra de Jean-Pierre e Luc Dardenne, “O Filho” (Le fils, 2002). No segundo capítulo, fazemos um exercício de criação em video, cuja linguagem propõe novas discussões e contribuições para o entendimento da construção de imagens a partir de um pensamento em movimento: “Brevidade” (2005). Como metodologia, trabalhamos com cruzamentos interteóricos específicos, a partir das pesquisas de especialistas como Jacques Aumont (1997), François Jost e André Gaudreault (1990), José Lino Grunewald, Phillippe Dubois e Arlindo Machado (2004); e das investigações de alguns conceitos estudados pelos neurocientistas António Damasio (1999), Rodolfo Llinás (2003) e Gerald Edelman (2003), redimensionados pelos filósofos Gilles Deleuze (1984, 2000), George Lakoff e Mark Johnson (2001) e pelas pesquisadoras Helena Katz e Christine Greiner (2005) no que se refere especificamente aos estudos do corpo como objeto da comunicação. Dentre as inúmeras conexões que poderiam ser estudadas, destacamos os tópicos referentes ao estudos do tempo, do movimento, da criação de imagens internas e dos trânsitos com o ambiente. Trata-se, portanto, de um exercício teórico- prático para selecionar informações dos textos acadêmicos e científicos e trazê-los ao contexto artístico e comunicacional, através de uma interseção teórica e uma proposta criativa, cujo objetivo principal é iniciar um processo que deverá ser continuado no doutorado, no sentido de tornar os estudos do cinema disponíveis a pesquisas realizadas em outros campos, repensando, assim, sob outra perspectiva, a sua própria linguagem. SUMMARY Inspired by the philosopher Gilles Deleuze’s propose that the element of cinema is the gesture and not the image, we propose the thinking- action of the body as the mode of organization of a film. Therefore, we follow the hipotesis that the body has a place not yet explored by the cinema’s theory, although in pratic it presents precious exercices of different forms of representation, in the context of the organizational modes of gestures and images created in the body and from the body. Cinema presents itself as a media complex enough to discuss movement in general and, at the same time, to colaborate with the specific research for the “body’s place” in the film. Along the text, we suggest that studying the body in movement means to recognize it as a communication processor in the cinematographic scene. We propose to conduct the modes of construction of the filmic narrative, exposing three distinct resourses of body appropriation in the creation of sense: when the place of the body is represented by the camera, when it organises itself in the character’s body, and when it is presented in the film locations. Besides an historical and conceptual introduction which proposes an unique taxonomy of the representations of the body in the movies, the Monograph presents two Chapters. In the first one, it analyses one single film, where the body thinkings not only iluminate well these three places, but also seam to create and conduct the narrative, being extended to other bodies in scene that conduct our perception and determine an aesthetics and a film composition that are singular. This is the Jean-Pierre and Luc Dardenne film, Le fils (“The son”, 2002). In the second chapter we develop a creative exercise of video-art, which language porposes new discussions and contributions for the understanding of the image construction of a thought in movement: Brevidade (“Brief”, 2005). As a methodology, we work with specific intertheoric conexions, from the research of specialists as Jacques Aumont (1997), François Jost and André Gaudreault (1990), José Lino Grunewald, Philippe Dubois and Arlindo Machado (2004), and from the investigations of a few concepts studied by the neurocientists António Damasio (1999), Rodolfo Llinás (2003) and Gerald Edelman (2003), redimensioned by the philosophers Gilles Deleuze (1984, 2000), George Lakoff and Mark Johnson (2001) and by the researchers Helena Katz and Christine Greiner (2005), in what is related to the body studies specificaly as an object of communication. In the many possible conections that could be developed, we emphasize the topics refered to the studies of time, of movement, of the creation of internal images and of the body transit with the ambient. It is about a theorical -practical exercise that selects informations in the academic and scientific texts in order to bring them to an artistic and communicational context, through a theoric intersection and a creative propose, aiming to get started a process that shall be continued in a Doctorship, in the sense of turning the cinema studies disposable to researchers from other areas, and therefore extending not only the cinema’s perspectives but its own language. 4 SUMARIO Introdução...............................................................................................................05 Primeiros Passos.....................................................................................................06O lugar do corpo na câmera....................................................................................09 O lugar do corpo no ator..........................................................................................18 O lugar do corpo no espaço.....................................................................................28 O pensamento em ação na nouvelle vague............................................................36 Últimas notas: tecendo uma rede de imagens........................................................42 Capítulo Um: “O Filho” .........................................................................................45 A memória................................................................................................................48 A paisagem..............................................................................................................55 A câmera..................................................................................................................61 Últimas notas...........................................................................................................67 Capítulo Dois: “Brevidade” ..................................................................................69 Anotações sobre o video “Brevidade” .....................................................................80 Conclusão...............................................................................................................85 Bibliografia.............................................................................................................86 Filmografia..............................................................................................................90 Anexo......................................................................................................................92 5 INTRODUÇAO Certa vez, o filósofo francês Gilles Deleuze argumentou que o cinema poderia apagar a falsa distinção entre imagem enquanto realidade psicológica e movimento enquanto realidade física. Assim, o elemento do cinema seria o gesto e não a imagem, uma vez que as imagens seriam sempre “imagens-movimento”, corpos móveis, em eternas mediações. “Imagens cinematográficas não são nem poses eternas nem corpos imóveis de movimento, mas sim corpos móveis, imagens por si só em movimento”. (Deleuze apud Agamben, 2000:06) De certa forma, o objetivo deste estudo é experimentar a proposta deleuziana, propondo o pensamento-ação do corpo como modo de organizar o filme. Para tanto, partimos da hipótese de que o corpo tem um lugar ainda não devidamente iluminado no cinema pela teoria crítica, embora a prática tenha apresentado, há muitos anos, exercícios preciosos de diferentes formas de representação, no contexto dos modos de organização dos gestos e das imagens criadas no corpo e a partir dele. O cinema apresenta-se como uma mídia suficientemente complexa para discutir o movimento em geral e, ao mesmo tempo, para colaborar com a pesquisa específica de buscar o “lugar do corpo” no filme. A exemplo do que afirma o geógrafo brasileiro Milton Santos (2003), o lugar não deve ser entendido como sinônimo de local, mas como uma rede comunicativa. O “lugar do corpo” seria, neste sentido, um corpo em movimento que apresenta-se como processador de comunicação na cena cinematográfica. Propomos então conduzir os modos de construção da narrativa fílmica, expondo num primeiro momento três recursos distintos de apropriação do corpo na criação de sentido: quando o lugar do corpo no filme está representado pela câmera, quando se organiza no corpo do ator, e quando se apresenta na paisagem fílmica, ou seja, nos espaços lugarizados de onde emerge o movimento (ou o não-movimento, também uma referência cognitiva fundamental). Além de uma introdução histórica e conceitual à hipótese que acabamos de sugerir, a dissertação apresenta dois capítulos. No primeiro, será analisado um único filme, onde o pensamento do corpo não só ilumina bem estes três lugares propostos, como parece criar e conduzir a narrativa, extendendo-se a outros corpos em cena que dirigem nossa percepção e determinam uma estética e uma composição singulares. No segundo capítulo, faremos um exercício de criação como aplicação prática deste pensamento, das imagens do corpo para imagens em video, cuja linguagem propõe novas discussões e contribuições para o entendimento da construção de imagens a partir de um pensamento em movimento. Em termos metodológicos, chamamos a seguir de “primeiros passos” não um histórico das diversas experiências que sugerem o lugar do corpo no filme, ou mesmo das teorias do corpo que iluminam tais pesquisas. Trata-se de uma suscinta introdução, de natureza inevitavelmente fragmentada e de certa forma hipertextual, com diferentes entradas que têm como objetivo sugerir a importância da presença do corpo na cena cinematográfica, ajudando a criar ignições para uma análise fílmica mais ampla, assim como para o exercício poético que apresentamos ao final. 6 Primeiros Passos A partir dos anos 80, os estudos do corpo têm mostrado como este se relaciona co- evolutivamente com o ambiente e como esta relação muda as formas de comportamento do corpo. Estes pensamentos (António Damasio, 1996 e 1999, Gerald Edelman, 1992, Rodoldo Llinás, 2002, George Lakoff e Mark Johnson, 1999, Gilles Deleuze, 1984 e 2000) marcaram a condução teórica desta dissertação, ajudando a questionar o lugar do corpo no filme: como ele está presente, como significa, como constrói imagens e dialoga com os recursos do texto fílmico, construindo com ele semioses1 e novas possibilidades de geração de sentido. Alguns tópicos destas bibliografias do corpo dizem respeito a aspectos científicos e filosóficos e proporcionaram uma abertura para pensar o corpo no filme de outra forma, diversa da tradicional análise cinematográfica, composta na maioria das vezes por autores e pesquisadores especializados na estética desta arte. Exemplos das abordagens são os tempos do corpo, a qualidade metafórica do corpo, as relações entre “dentro e fora” e suas construções de discurso no corpo e no mundo, a criação de imagens internas, suscetíveis e ao mesmo tempo ativadoras dos acontecimentos cognitivos do corpo, como a memória e a emoção, e a elaboração destes pensamentos e ações internas na expressividade corporal de gestos e movimentos particulares. Portanto, fragmentos destas recentes teorias serão aqui explicitados para discutirmos e aplicarmos este pensamento ao discurso fílmico, numa ótica de análise mais ampla, e ao mesmo tempo, numa aplicação bastante específica. O que se sabe hoje acerca da consciência e do inconsciente cognitivo, da construção de sistemas simbólicos e da criação de metáforas, refere-se ao modo como estas habilidades são processadas corporalmente. A organização dos estados corporais, as ações simples e complexas, assim como a organização das obras artísticas e dos processos dinâmicos da comunicação, não são mais compreendidos como produtos finais. Estudos recentes acerca do corpo, da arte, da tecnologia, da imaginação e do universo subjetivo como mediadores, buscam a compreensão dos processos de comunicação no corpo e colaboram com o entendimento de seus processos de significação com outros corpos, na relação com a cultura, com os ambientes diversos e assim por diante. Paisagens, imagens e movimentos de dentro e de fora do corpo aparecem 1 A semiose é o processo em que algo funciona como um signo. É o processo em que alguém se dá conta de uma coisa mediante uma terceira. Trata-se de um dar-se-conta-de mediato. Os mediadores são os veículos sígnicos, os dar-se-conta-de são os interpretantes,os agentes do processo são os intérpretes. Os fatores da semiose são fatores relacionais. A semiótica estuda todos os objectos desde que participem num processo de semiose. (António Fidalgo, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal) Irene Machado (2002) acrescenta: “Semiose da informação designa o movimento de criação de linguagem num cosmos dialógico ou num cosmos potencializador de informações ávidas de se constituirem em linguagem. Se entendemos semiose como "ação inteligente do signo", não se pode ignorar que `inteligência´ aqui não é apego ao novo, mas sim busca de mananciais expressivos favoráveis à representação”. 7 metamorfoseados em seus diferentes estados. Como já sugeria Deleuze (apud Agamben, 2000), o que o gesto mostra é o estar na linguagem dos humanos como pura mediação. Esta possibilidade de percepção do corpo em cena, sob formas diversas, representado por elementos de grande carga significativa no filme, abrange nossa capacidade interpretativa e expõe o corpo sob suas distintas formas de representação no espaço fílmico, justamente proporcionando a riqueza na construção dos discursos. É esta a função da aplicação de algumas teorias do corpo para análise dos filmes. Não se trata de explicar a gênese do processo de criação, mas de redimensionar fragmentos das obras e propor novas possibilidades de leitura. Em aspectos distintos, cineastas apropriam-se do corpo para a construção de significados em cada narrativa específica, de acordo com os propósitos do roteiro, do espectador almejado, da produção, do país e do momento sócio-cultural em que se realiza, assim como das possibilidades financeiras e intelectuais das quais dispõe o diretor. Observamos ao longo da história, em distintas cinematografias, a presença do corpo como o corpo câmera, o corpo subsidiado no papel do ator, o narrador subjetivo, o corpo como o lugar da ação e, até mesmo o corpo ausente, que é apenas um vestígio de movimento, dentre outras possibilidades. Construções narrativas onde o corpo, de alguma forma, conduz a história, fazendo-se valer de recursos do filme que lhe dão suporte e ignição de sentido. O cinema russo, nas lentes de Dziga Vertov, Sergei M. Eisenstein e Alexandr Sokúrov, o cinema alemão dos anos 20, precursor do terror clássico e imortalizado no movimento expressionista nas mãos de Robert Wiene, Fritz Lang, F.W. Murnau, o neo- realismo italiano, em alguns filmes de Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Roberto Rossellini, o cinema inglês de autores tão distintos como Ken Loach e Alfred Hitchcock, o cinema americano clássico dos anos 40, o gênero western, Lars von Trier e Thomas Vintenberg no movimento dinamarquês Dogma, a nouvelle vague japonesa; todos estes importantes movimentos da sétima arte, que representam momentos históricos e culturais distintos, contêm exemplos que serviriam como material de estudo a esta proposta de leitura fílmica sob o viés de uma bibliografia do corpo. Federico Fellini, Luis Buñuel, Glauber Rocha e Jean-Luc Godard, em exemplos por hora surrealistas, eloquentes, inomináveis, criadores de realidades, como também, em planos distintos, Ingmar Bergman, Alain Resnais, David Lynch e Stanley Kubrick. Estes grandes autores rendem estudos exclusivos diante da riqueza de obras criativamente únicas e, a cada filme, inovadoras, encontrando no corpo seu ponto de partida para apropriações e representações as mais diversas.2 2 É importante salientar que a proposta desta dissertação é expor um pensamento, não um mapeamento fílmico de todas as experiências referentes ao corpo, o que seria de fato uma impossibilidade. 8 Michelangelo Antonioni em “As amigas” (“Le amiche”, 1955) cria uma cena onde podemos perceber claramente a composição dos corpos que extrapola uma simples narrativa. Na praia, amigas expõem sentimentos conturbados em belíssimas composições de seus corpos atribulados; as ações são também internas. É inverno e o vento forte dissipa gestos maiores; os corpos permanecem em trânsito em curtas narrativas de breves diálogos, fragmentados em composições em preto e branco. As “amigas”, certamente belas em seus dramas frívolos, acionam suas emoções traduzidas em corpos inquietos, expostos em gestos inacabados e adulterados por novos. Antonioni enquanto isso cria quase uma obra- prima a cada still – pinturas móveis. Apesar dos inúmeros exemplos possíveis, para não perder o foco, esta Introdução vai se restringir a breves citações de filmes selecionados a fim de ilustrar as três representações do corpo propostas. O Primeiro Capítulo expõe então a análise mais aprofundada de um único filme, a obra de Jean-Pierre e Luc Dardenne, “O Filho” (“Le fils”, 2002) e no Segundo Capítulo, “Brevidade” (2005), o experimento criativo em vídeo a partir de novo estudo das narrativas da imagem, desta vez exposto como uma conversa poética com o corpo no fluxo das imagens, da tela e do mundo. Durante todo o percurso (tanto no exercício teórico como no prático) a leitura dos filmes será enriquecida por teorias que investigam, de modo implícito e explícito, pensamentos do corpo vivo e atuante no mundo. Nesta busca, criamos conexões do corpo no filme como seu próprio veículo de expressão. A partir de seleções das pesquisas de alguns teóricos do cinema (especialmente Jacques Aumont (1997), François Jost e André Gaudreault (1990), José Lino Grunewald3 e Phillipe Dubois (2004)), buscamos relações com pequenos fragmentos da pesquisa dos neurocientistas António Damasio, Rodolfo Llinás e Gerald Edelman, assim como dos filósofos Gilles Deleuze e os também linguistas 3 Os artigos do crítico de cinema José Lino Grunewald* (1931-2000) publicados no período de 1958 a 1970 nos jornais “Correio da manhã”, “Jornal do Brasil” e o quase underground “Jornal de Letras” foram coletados e organizados pelo jornalista Ruy Castro e publicados no livro “Um filme é um filme: o cinema de vanguarda dos anos 60” (2001). Esta obra constitui uma excelente fonte de pesquisa e inspiração sobre os filmes não só desta década mas do cinema em geral, tornando-se uma leitura indispensável para todos os amantes da sétima arte. * O autor, carioca, foi também poeta, ensaísta, tradutor de antologias poéticas inglesas e francesas, articulista político e pesquisador da música popular brasileira. Sobre cinema, publicou “A idéia do cinema” (1969), antologia de textos de Eisenstein, Resnais, Benjamin e outros. QuickTime™ and a PNG decompressor are needed to see this picture. 9 George Lakoff e Mark Johnson. Trata-se de uma tentativa de tirar informações dos textos acadêmicos e científicos e trazê-los ao contexto artístico, através de uma interseção teórica e uma proposta criativa, a fim de que o cinema também se beneficie destes estudos, repensando, sob outra perspectiva, a sua própria linguagem. Este lugar do corpo existe no filme? Ele é discutido no cinema? Como constrói seus discursos em sua realidade múltipla e potencialidade de representação próprias? Primeiramente, esta Introdução discute essas questões a partir das representações do corpo propostas nas três abordagens distintas, apresentadas a partir de dois exemplos de filmes para cada possibilidade de expressão do lugar do corpo: no recorte do lugar do corpo na câmera, analisamos os filmes “Assédio” (“Besieged”, 1998), de Bernardo Bertolucci, e “O prisioneiro da grade de ferro” (2003), de Paulo Sacramento. Os filmes escolhidos para o estudo do lugar do corpo no ator são “A liberdade é azul” (“Bleu”, 1993), de Krzysztof Kielówski e “O livro de cabeceira” (“The pillow book”, 1996), de Peter Greenaway. A terceira forma de representação do lugar do corpo no filmeaparece identificada na paisagem de “A última gargalhada” (“Der Letzte mann”, 1924), de Friedrich Wilhelm Murnau, e “Bagdad Café” (1987), de Percy Adlon. Dentro de cada categorização ilustramos com imagens e breves comentários outros filmes, que também poderiam ser analisados sob esta ótica bibliográfica, mas aqui aparecem apenas para tecer uma rede de imagens. Ao final, apresentamos dois filmes do movimento francês da nouvelle vague, “O acossado” (“A bout de soufflet, 1960), de Jean-Luc Godard, e “Jules e Jim” (“Jules et Jim”, 1962) de François Truffaut, como exemplos onde identificamos as três representações do lugar do corpo no filme, apresentadas de modo absolutamente enredado. O lugar do corpo na câmera O cinema reproduz de certa forma o paradoxo do movimento, o intercâmbio entre o eterno e o fugaz e entre a imagem do corpo, imaginada (pelo corpo criador), capturada (pela câmera), e recriada (pelo filme). O corpo em movimento, no ambiente do filme, atribui ao cinema a multiplicação de sua potencialidade criativa. Possibilidades submersas em cada corpo ganham vida pela supremacia do movimento. Este está em toda parte, pois é dinâmico, simultaneamente acionador e acionado pelas ações internas e externas ao corpo. Os acontecimentos do mundo são processados nele e, por sua vez, a memória, a percepção e as sensações interiores são expressas, quando externalizadas, através dos movimentos corporais. No cinema, as imagens criadas a partir dos corpos presentes naquele espaço constituem pólos geradores de sentido a serviço desta narrativa. Ao mesmo tempo, ao registrar uma ação instantânea, o cinema atribui-lhe um novo sentido. A ação co-existe com outros elementos do espaço cinematográfico, dentro do seu discurso. O cinema é um mecanismo dotado de recursos e tecnologia abundantes para explorar o fluxo do movimento corporal. O registro imagético do corpo em movimento, durante a execução de um gesto, passo ou expressão corporal, é também um avanço em direção à percepção da dança no corpo, pois ao registrar uma ação instantânea o cinema atribui-lhe também um novo sentido (fílmico), criado a partir da coexistência com outros elementos do espaço cinematográfico dentro de um discurso construído para aquele contexto. 10 As imagens em movimento habitam um complexo campo discursivo no espaço sócio-cultural-espacial das cidades, e revelam potenciais semióticos. O “material” poético é tudo o que o artista pode encontrar a seu alcance: palavras, sons, imagens etc. (Viktor Chklovski, 1976) O cinema constrói uma linguagem própria em composições de cena, no processo de criação de sentido, na filmagem, na montagem, na direção dos atores, na estética da cena, na exploração intensiva de um destes recursos ou na somatória de todos. “Na poesia o próprio material já tem um caráter dinâmico. Existe apenas a linguagem de uma estrutura determinada como seu coeficiente formacional, que por sua vez é formado, ou deformado, por essa estrutura.” (op.cit: 40/42) “Arca Russa” (“Russian Ark”, Aleksandr Sokúrov, 2002): A câmera “narra” 300 anos da história dos russos através de um passeio num só plano contínuo por 33 salas do Heritage Museum (São Petersburgo) num filme magistral com 3 orquestras e 2.000 atores. O corpo no espaço cinematográfico dialoga consigo próprio, além de fazê-lo com todos os outros elementos do filme, da iluminação ao figurino, do cenário ao áudio. Em sua dança particular, o corpo se expressa em movimentos descontínuos, aparentemente livres mas ordenados, em gestos particulares, pequenas sequências e fluxos intermitentes, impulsos do corpo aberto às pressões de movimentos internos que vêm compor o espaço. A partir do corpo é expresso o conteúdo da obra. Podemos observá-lo e recriá-lo com um olhar poético, com uma visão artística, acrescendo-lhe novos conteúdos e reproduções estéticas. Neste ambiente o lugar torna-se determinante, funcionando para as imagens verdadeiramente como um corpo que fala, mesmo quando está em silêncio. 11 O cinema então organiza suas informações a partir da organização das imagens, que constróem um discurso a partir daquele texto artístico4. Estas imagens são orientadas pelo corpo que, no espaço fílmico, cria campos de comunicação. Pode ser esclarecedor, neste momento, lembrar que não apenas no cinema mas na imagem da dança num corpo, por exemplo, há também a imagem de uma dança interna. É a pesquisadora Helena Katz (1994) quem introduz o entendimento do movimento de dança como um “pensamento do corpo”. Cada vez que o movimento migra, ele muda, trazendo outras questões, condições, contextos, movimentos. A habilidade de dançar se constrói através do sensório-motor do corpo, que como qualquer outro organismo, se transforma pela informação que agrega. A dança seria, portanto, a soma do que o corpo faz (movimento) com aquilo que este fazer produz. Dançar representa o resultado de um conjunto de informações que materializam- se como corpo. (Katz, 2004)5 O movimento no cinema pode ser entendido, por analogia, de modo semelhante. 4 A pluralidade de princípio das leituras possíveis de um texto artísico é a carga significante da arte (inacessível a uma linguagem não artística). O texto artístico nos oferece leituras híbridas, e é “um sentido construído com complexidade: todos os seus elementos são elementos de sentido”. (Iuri Lotman, 1978:41). 5 Observamos esse movimento peculiar nos filmes “Assédio” e “Último tango...”, a partir do movimento criado em cena, pela câmera e pelos atores em “A liberdade é azul” e “Os amantes da Ponte Nova”, a partir da condução de cena pelo personagem. O movimento condutor do sentido, nestes e em outros momentos mais localizados dos outros filmes abordados, nos permitiria ir além da distinção proposta das formas de representação do corpo (pelo ator, pela câmera e pela paisagem): o movimento flui pelos espaços do filme e estabelece a emoção e o sentido da cena, como deve ser. O sentido criado pelo movimento nos permite a compreensão da história a nível da sensação. Este corpo materializado não precisa ser o corpo do ator, mas pode estar representado no espaço cênico composto para os movimentos determinantes do sentido, por sua vez em alguns casos fortemente representados pela câmera. Estaríamos falando de um pensamento da dança na construção cênica e significação através do movimento. 12 Em “O Último tango em Paris” (“The last tango in Paris“, Bernardo Bertolucci, 1972), o aparato fílmico também é cúmplice de um romance tumultuado. A câmera “solta”, perdida, como Jeanne (Maria Schneider), tomada por sentimentos confusos, e como Paul (Marlon Brando), tomado por desejos tardios. Ele recompõe-se de uma perda gerando uma relação amorosa sustentada pelo anonimato. O movimento se organiza a partir da vivência circunstancial da personagem, de acordo com o contexto que a levou até ali – a possibilidade de reiniciar o romance. Ambos bêbados procurando por compassos corporais que organizem seus sentimentos. Só o que um conhece do outro é o gesto do corpo; nenhuma história pessoal, apenas o tempo presente. Se a dança é também a sustentação do caráter de mídia dos movimentos corporais, o gesto como a exibição de uma mediação, ela é o processo de tornar um meio visível como tal, e permite a emergência do que seria estar-numa-mídia sendo um corpo, demandando a compreensão do mesmo em processo, no mundo, na cidade e no cinema, espaço onde se perpetua “eternamente” na linguagem, numa espécie de mediação “corporificada”. Diferente dos atos reflexos, para reconhecer os fenômenos complexos de um corpo em movimento na cena fílmica é interessante partir de uma aliança entre os níveis de atuação neurofisiológicoe fenomenológico. Neste campo de enfrentamentos, Segundo Katz e Greiner (2004:19), “o fluxo é inestancável, a comunicação inevitável, e o pensamento, nada além do que os movimentos internalizados do corpo”, como veremos pontualmente ao longo desta pesquisa. 13 O movimento toma forma a partir de um impulso, desejo, intenção ou pressão interna, e cada qual leva sua carga significativa única, a partir do contexto ou cenário no qual está inserida. A movimentação é particular e derivada portanto, para além do impulso interno, do contexto socio-cultural-psicológico de quem a executa – fato que garante a criação de tipos na narrativa audiovisual, cada qual com suas maneiras peculiares de se movimentar, suas gesticulações e representações espaciais. Cabe aos diretores criar distinções, visualidades possíveis e passear por inúmeras possibilidades de representação proporcionadas pela condição expressiva do corpo exposta pela câmera. Neste caminho de construção de sentido fílmico, através do movimento da câmera, diferentes exemplos podem ser expostos, como veremos a seguir. “Assédio” (“Besieged”, 1998), filme de Bernardo Bertolucci, mostra um romance entre um pianista inglês (Sr.Kinsky) e uma jovem africana (Shandura) que trabalha e vive em sua casa. O espaço doméstico abriga um romance platônico, protagonizado pela câmera, que reproduz tentativas de aproximação e os incômodos dos dois ao serem conquistados um pelo outro. As paredes da casa, os detalhes decorativos, compõem seus sentimentos puros e abafados. A representação do movimento neste filme está centrada nos corpos do casal (representado por David Thewlis e Thandré Newton) nos meandros e espaços por onde eles transitam. A grande escada do hall que divide os dois, tem a forma de um espiral e ocupa o centro da casa. Nela, subindo e descendo, os dois corpos tentam se encontrar, despistando, conquistando em segredo. O movimento da câmera “personifica” seus sentimentos ambivalentes e metaforiza seus desejos, acompanhados por nós num redemoinho de pequenas ações. A linguagem narrativa da câmera em movimento torna supérfulos os diálogos, quase inexistentes. As frases são mínimas e breves por todo o filme, narrado também pela música, elemento de suporte à constância gerada pelos movimentos do aparato cinematográfico. Ele toca piano e por esse “veículo” comunica seu amor, somando ao som dos teclados seus gestos e olhares. Qualquer discurso verbal pode também ser substituído pelos movimentos da câmera, que flagra seus pequenos gestos, respirações e atitudes. 14 As cenas na cidade são sempre tumultuadas e cheias de gente e movimento, contrastando com o sossego da casa do artista. Como se o tempo de fora fosse diverso do tempo da casa, “suspenso no presente”, espaço de ações pessoais. É uma possível metáfora para ela, que não pode entregar-se ao seu desejo, pois há um mundo lá fora onde ela também faz parte (é estudante de medicina) e precisa pensar em sua vida passada e futura. A própria música, tão significante, é outra metáfora à diferença entre eles: “não entendo sua música!” ela diz a certa altura, rendendo-se aos sentimentos tumultuados. O piano, assim como as escadas, parecem aproximá-los e ao mesmo tempo afastá-los, em jogos de movimentos onde servem de acesso comunicativo ou de realce à discrepante diferença sócio-cultural dos dois – ela mora em baixo, ele em cima. Esta câmera atuante passeia pelo corpo dela, exibindo suas curvas e a tensão disfarçada nos leves movimentos. O aparato fílmico parece respirar com ela e exalar calor e sensualidade latente. Os movimentos da câmera parecem realizar com a protagonista seu trabalho de faxina, em detalhes, limpando molduras e esculturas. O olhar, disfarçadamente, procura por ele. Há uma cena em especial, o momento em que ela traz um aspirador de pó para os tapetes, e o aciona enquanto o outro compõe seu tema principal, na qual ele se inspira nos movimentos corporais dela. Ela, neste único momento do filme, deixa-se observar e demonstra prazer, olhando-o diretamente e aprovando sua criação com sorrisos tímidos e breves ensaios de dança. A comunicação corporal desta sequência traduz todo o sentimento dos dois, aqui compactuado e denunciado pela câmera. Mas como o amor é impossível, o ruído do aspirador briga com o piano, a melodia se perde, e tudo termina com um telefone que toca. Este filme de Bertolucci, nos momentos tensos dela, quando está assustada ou receosa da aproximação sutil e galante do inglês, a câmera se aproxima em primeiro plano, e o diretor adiciona o recurso do slow motion. Instantes onde suas ações se organizam, suas emoções se reordenam em novas composições. Por exemplo, quando ele a presenteia com um belo anel: ela se assusta e teme uma aproximação. Vai devolvê- lo, ele se declara – primeiro com a música, depois com os olhos, depois com palavras, e ela por fim se descontrola: nesse instante raro a câmera permanece estática enquanto ela 15 treme e chora, sem disfarçar seu desespero. A narrativa é conduzida pela linguagem do movimento até o fim, quando estáticos, ambos escutam a campainha insistente do marido que retorna, deitados de olhos abertos sem se mover, a câmera também fixa. Por fim ela se levanta, nesse único instante abandonando a câmera, e a cama. O gesto da câmera, assim como o gesto que se organiza no corpo, tem especificidades que nascem da própria ação. A qualidade do movimento pressupõe o gesto em seu projeto singular. Sua experiência se define por “grande modulação perceptiva, pela capacidade de projeções e de ficções que são tanto o fruto do trabalho das sensações, quanto elas são o seu efeito.” A escolha por determinado movimento, seu modo de articulação e sintaxe específica, é uma solução resultante de variações determinantes em dado contexto, como “modalidades de orientação, de espacialização ou de construção do espaço do seu gesto, suas modalidades temporais, respiratórias e rítmicas próprias.” (Isabelle Launay, 2003:115) Assim, os personagens apresentados nesta introdução experimentam sua existência como corpos processos. A câmera acompanha o pensamento do personagem e nos conduz por suas veredas, como vimos no processo da conquista amorosa em “Assédio” e “O último tango em Paris”, ambos de Bertolucci. A memória, ainda que queira ser apagada, está latente em seus gestos e é determinante na condução (por vezes em movimentos contínuos da câmera) das ações dos personagens. O estudo da ação corpórea é o de uma identidade, diante da particularidade expressa em cada corpo, capturada e recriada pelo corpo da câmera. As últimas quatro décadas têm evidenciado que a razão é dependente do que acontece no corpo. Corpo, cérebro e as interações com o ambiente fornecem as bases para a comunicação. Marshall McLuhan propôs em 1964: “nós damos forma às nossas ferramentas, que dão forma a nós”6, abrindo o caminho para as investigações das próximas duas décadas, que vão explorar o conceito de embodiment7. O estudioso nos inspira a tratar a comunicação e o sistema nervoso no mesmo território teórico. (Katz e Greiner, 2004:16) Um bom exemplo desta estratégia no cinema ocorre com os presos do extinto complexo presidiário do Carandiru, em São Paulo, que viabilizaram uma realização 6 “We shape our tools, and therefore our tools shape us.” 7 O conceito de embodiment interessa a esta pesquisa na medida em que mostra como também no corpo do filme o movimento está encarnado e pode ser entendido como um processo permanente e dinâmico de construção-estruturação do desenvolvimento do organismo vivo. Segundo Lela Queiroz (2004:172),“quando se efetua a corporalizaçãode uma ocorrência, a transformação que se dá dentro se expressa fora, num novo padrão de organização, propondo a via dupla no processo, cujo parâmetro é a interação entre os diversos sistemas compondo dentro/foras do organismo.” A partir do conceito de embodied mind a razão abstrata não está separada do sistema sensório-motor, mas emerge com base neste. A mente é um processo que emerge de um corpo vivo: consciência e memória são propriedades que ganham existência na mente em um determinado momento, e não informações estocadas. (Eloísa Domenici, 2004:94) 16 cinematográfica do diretor Paulo Sacramento, em 2003. Suas vidas foram registradas por eles próprios, em posse de câmeras de video cedidas pelo diretor. O filme “O prisioneiro da grade de ferro” esboça a realidade e o cotidiano destes homens reclusos, a partir de seus próprios pontos de vista, ou seja, da singularidade das suas condições corpóreas. O conceito de embodied encontra aqui um sentido muito particular; os presos, atores e autores; personagem e cinegrafista são a mesma pessoa. A idéia do processo permanente de construção e estruturação do organismo vivo, da corporalização de uma ocorrência e exibição de processos dos corpos dos presos, transformados naquele ambiente que induz seus corpos a se adaptarem e a criarem novas imagens e ações corpóreas. Consciência e memória são habilidades cognitivas da mente humana, e se processam em novos movimentos como informações ativas que constróem novos sentidos no espaço e diante da câmera. As imagens capturadas na casa de detenção em 2001 começam pelo aviso do cinegrafista: “Aí rapaziada, o filme começa agora. Esse é o Carandiru de verdade”. As cenas se passam nas celas e imediações dos pavilhões, onde acompanhamos as atividades criadas por eles pra matar o tempo: desenham, esculpem, fazem pipas, bolas de couro, pintam, grafitam; cantam, tocam. Criam imagens e se expressam, construindo um mundo para si de resistência e sobrevivência corpórea. “Aqui podemos enxergar o que as grades nos impedem” São cordiais e lúcidos, sérios, se apresentam para a câmera dizendo o nome completo, seguido pelos números, do prontuário, do código da pena, e do pavilhão, que fazem parte de sua existência interna, como parte de sua identidade. Os corpos são enquadrados nesse sentido também, as sequências de números que passam a fazer parte de sua vida de interno. Falam da vida de fora como “passado” e contam um pouco do que fazem ali em seus “presentes”, tão diversos quanto a história de cada um. O filme é composto por muitos depoimentos e planos fechados nos rostos. A câmera delata pequenos detalhes das celas ilustrando as falas de cada um. São homens realistas e QuickTime™ and a Photo - JPEG decompressor are needed to see this picture. 17 respeitados, e a câmera também os respeita, numa linguagem quase sempre documental, formal também nos planos de conjunto dos ambientes. 8 “Uma palavra mal colocada pode custar a vida. Errou, paga com a vida.” Todos os pavilhões destilam a cachaça. “Pinga na cadeia é caro”, afirma um enquanto exibe o processo artesanal. “O barato é a maior responsa, e droga na cadeia é luxo.”, diz outro, enquanto prepara papelotes de maconha. O corpo que conduz a câmera e registra os outros corpos, todos compactuando uma realidade viva e retratada nos “auto-retratos” (sub-título do filme), são todos vivos sob o sentido literal da sobrevivência pelo movimento. Inventam atividades: a capoeira, os cantos, as cartas; o comércio de roupas, de cigarro, de tatuagem, de crack, de sexo. Criam regras – como a faxina coletiva no dia que antecede a visita – vocabulários – “água de fogo”, “maria louca”, para a cachaça; “a raspa da canela do diabo”, para o crack – e atividades comunitárias, sempre por iniciativa própria: a escola de boxe, a assembléia de Deus, a roda de samba, os “sobreviventes do rap”, a pastoral carcerária, a umbanda, o futebol. As letras de rap são verdadeiros gritos de resistência dos corpos, que cantam e dançam celebrando um movimento essencial, num processo de socialização, promovendo instantes de uma certa alegria, um certo alívio ao preservarem a própria dignidade. Dança, sonho, respeito. Em alguns destes momentos a câmera é mais pessoal e intimista, participando da ação da cena, como acontece num jogo de futebol e com um grupo de rap ao fim do filme. “Nós somos seres humanos, trabalhadores, isso que vocês vêm aqui é a realidade” – diz um, aplaudido por outros. A câmera é a mídia de expressão deles com o mundo. À noite saem no pátio e denunciam a sujeira indignante com os muitos ratos que passeiam ali. À noite “é difícil achar palavras”, diz um detento enquanto captura imagens de sua vista da janela, que dá pro metrô e pra cidade. “Sou um amador, um preso, na luta da conquista”. O cinema absorve todas as formas de arte, associadas aos princípios diversos da expressão. A arte cinematográfica é terreno fértil de experimentação e considerada “a maior das revoluções estéticas.” diz Luiz Nazário ( 2001) É uma linguagem que se apropria de outras -- da dança, do corpo, da câmera, do espaço – para a partir delas criar seus próprios significados, através da presença do movimento em suas mais diversas formas. As possibilidades de manipulação do instante, capazes de revelar a surpresa do 8 Os detentos fizeram uma oficina de video com o diretor do filme e aprenderam a manipular as câmeras naquela linguagem padrão documental, presente em muitas das cenas. Eles porém se sentem à vontade para gravar como bem entendem, apropriando-se do aparato como melhor se identificam com ele. QuickTime™ and a Photo - JPEG decompressor are needed to see this picture. 18 cotidiano, permitem sugerir, provocar, registrar percepções – que dão significado às imagens. Nesta pesquisa de mestrado, além de revolução estética, a arte cinematográfica apresenta-se como tecnologia cognitiva processadora de conhecimento. O cinema apropria-se do elemento rítmico como significante, seja através da movimentação do próprio ator (correndo, fugindo, apressado, lento e receoso, curioso e cuidadoso), seja através do uso da câmera (que também pode correr, pode ser inconstante, subjetiva, denunciadora, ou estática, fixa). Cada movimento de câmera, somado à opção por determinado enquadramento e composição de um quadro, encontra seu sentido. Em “Assédio” ela atua como o próprio sentimento confuso dos dois, enquanto em “O Prisioneiro...” ela está presente como uma ferramenta de denúncia, ganhando o corpo dos detentos para contar suas histórias. O recurso da câmera num filme pode ser tão determinante, portanto, quanto a própria atuação dos personagens, traduzindo suas sensações, emoções, e mesmo suas ações. O lugar do corpo no ator Nossa gramática corporal é organizada por nossa história de sensações corporais, imagens mentais, criações categorizadas, fluxos de pensamentos, memórias e ações, internos e externos. O movimento corporal nasce de situações específicas onde sinestesias operantes em nosso corpo integram também a percepção e nossa capacidade de observação e interação com o meio, captando novas informações que serão processadas e transformadas em outras, garantindo a condição de estar vivo, e em fluxo. O neurologista português António Damasio explica: a cada novo sentido, a cada nova percepção, temos um novo corpo. (1996) A potencialidade corpórea pode, no entanto, estabelecer uma certa independência em relação às condições externas de tempo e espaço. Ela é que faz com que este corpo reaja de determinada forma em articulações, olhares e gestos. Vivemos no mundo e somos subalternos ao seu sistema de organização, enquantointernamente somos livres: pensamos, recriamos, percebemos, elaboramos teorias próprias e conceitos particulares, enfim criamos nossa própria realidade, a partir das realidades de nosso corpo. “Os conceitos de unidade e totalidade”, citando Dietmar Kamper (2000/2002)9, “são categorias de um sonhar superado”. A imaginação pressupõe a criação das imagens internas, e a realidade interna é fruto dos processos do mundo internalizados naquele corpo criador. Tais acontecimentos acontecem no corpo e as formas como este reage e exterioriza seus “pensamentos” é germinadora de novos fluxos de informação: os gestos no mundo são pessoais, são registros reativos, particulares e fragmentários. Este corpo instável, atuante, trabalha infinitas formas dentro de parâmetros possíveis de ação. 9 Os textos de Dietmar Kamper (1928-2001), filósofo, poeta, atleta, dentre outras coisas, foram introduzidos no Brasil pelo prof.Dr. Norval Baitello Junior, através do CISC, Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia, junto à Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Kamper foi professor da Universidade Livre de Berlim, iniciador de dez simpósios internacionais sobre temas da antropologia histórica como corpo, senso, alma, tempo e silêncio. Não há publicações deste autor alemão no Brasil, e trechos de suas obras e artigos são traduzidos e disseminados pelo CISC, do qual foi membro emérito, desde 2000. 19 Jacques Aumont (1997) argumenta que a obra contém um sentido, um sentimento, uma emoção, um potencial de afeto que encontra na realidade o que deveria encontrar nela, remetendo assim a operação expressiva ao destinatário da obra. Sem querer-se conceber a expressão como vontade ou determinismo, ela tem lugar na forma, enquanto que esta ultrapassa a “simples” representação, e atua por sua própria conta. Assim, ela não é e nem sustenta nada, mas é sempre historicamente contextualizada e portanto eminentemente variável. A expressividade se aloja na forma, não em um estilo. Os dois personagens de Leos Carax em “Les amants du Pont- Neuf” (“Os amantes da ponte nova”, 1991) estão presentes em movimento frenético, por vezes descontrolado, em seus corpos por vezes alcoolizados, por vezes apaixonados. Sequências bruscas dos atores em jogos de composições constantemente recriadas aumentam o sentido de fragmentação psicológica. O espaço da ponte é “aberto”, vazio, solitário, e de passagem. A locação dialoga com a situação de seus moradores provisórios. A atriz Juliette Binoche (Michelle) nos leva para os meandros da consciência e do seu pensamento, em suas lutas e dilemas acerca de uma cegueira iminente que ela quer esquecer. A câmera frequentemente instável denuncia seu estado interior, sua dor aguda, seus movimentos eloquentes, seu olhar sensível para a pintura. A atriz representa no corpo a condição de mendiga; absorve novas informações e abstrái-se de outras, reconstruindo-se a cada gesto. Neste contexto, as emoções também têm fortes componentes cognitivos que mesclam sentimentos, desejos, julgamentos e, quando externalizadas ganham forma na ação. A emoção é o mais complexo estado ou processo mental, pois se mistura com todos os outros processos (Edelman, 1992). As emoções representam a base pré motora, pois detêm a maioria de nossas ações, assim como o tônus muscular serve de base para a execução de nossos movimentos. (Llinás, 2002). É com a ajuda destes nossos “processadores naturais” (nossos corpos vivos), que somos capazes de processar os acontecimentos do mundo, ingerí-los por tempo indeterminado e explorá-los também indefinidamente, através de gestos destinados a uma comunicação com o outro ou de gestos solitários, pessoais. O importante é não interromper o fluxo, mas juntar-se a ele, à vida através do movimento constante que não permite que conhecimento, apreensão, dúvida ou desejo se estanquem. Nesse caso teríamos o tempo suspenso, o abandono da ação espontânea, a incompatibilidade com o mundo, que nos tornaria cada vez mais QuickTime™ and a Photo - JPEG decompressor are needed to see this picture. 20 distantes em nossas realidades múltiplas. Para fazer parte deste tempo há que se contar com o “movimento de pensamento, com a ajuda dos corpos animados”. (Kamper, op.cit) “Os cafajestes”, de Ruy Guerra (1962), é tido como o primeiro filme de vanguarda realizado no Brasil, colocando-se de forma radical numa linha moderna de invenção. Dois amigos buscam dinheiro chantageando mulheres, que eles fotografam em situações comprometedoras: nuas ou semi-nuas, em belíssimas tomadas na praia. O filme celebra o corpo do ator, nos homens ativos e perdidos, como elas, em especial Norma Bengell, que expõe seu corpo nu violentamente fotografado, numa mistura de constrangimento e prazer, dor e vigor do corpo feminino, em imagens exuberantes – areia e água são outros corpos que somam-se a estes em uma composição expressiva e natural – onde a luz e sombra parecem também banhar os corpos, e os movimentos da câmera e do carro só acrescentam intensidade. As cenas no carro, durante passeios quase sem destino, também celebram os corpos, rostos em silêncio ou falas desimportantes nas composições banhadas por vento e movimento. “Os cafajestes” é “organicamente vinculado ao problema do comportamento e trabalho com o ator no complexo fenomenológico do estar, em lugar de um ser prédeterminado pelas modulações semânticas da linguagem verbal. Depurada noção de fluência e ritmo, no plano intimista e regido por um tempo interno de adequação psicológica ao que os elementos transmitem. Conflito diacrônico entre os elementos visuais e sonoros, numa “subversão de todos os índices funcionais de ordem”. (Grunewald, apud Ruy Castro, 2001:112/114). No corpo, como no cinema, a construção de imagens tem que vir de um corpo vivo, com propriedades derivadas de seu balanço homeostático precário, de sua necessidade inerente de sobrevivência, e de seu senso que promove a sobrevivência válida. (Damasio, 1996) O corpo está em constante estado de instabilidade e auto-organização, e este estado é sua condição de existência. O ator em cena, o dançarino no palco ou o homem na rua, revela sua “presença” e a emergência de alterações e estados do corpo, enquanto ser vivo, a cada momento, em relação a si mesmo e ao ambiente. “A maneira como nós conceitualizamos o mundo não depende primariamente de proposições e palavras mas, antes de tudo, de maneiras de entendimento e pensamento que estão enraizadas em padrões de nossa atividade corporal: é uma razão encarnada.” (Johnson, apud Domenici 2004:94) Um bom exemplo deste argumento é trabalhado no filme “A liberdade é azul”, onde a personagem Julie (Juliette Binoche) recompõe-se de QuickTime™ and a Photo - JPEG decompressor are needed to see this picture. 21 uma situação traumática a partir de seu corpo desestabilizado. A impressão que temos no filme é que a cada cena seu corpo se atualiza, absorvendo informações do meio, processando-as em novos movimentos e percepções a cada instante renovados – como se, respirando, seu corpo voltasse à vida. Cada indivíduo vivencia sua continuidade temporal, que se relaciona com abstrações experimentadas, completa o neurocientista Gerald Edelman (1992). A criação de significado toma forma com o histórico de sensações corporais e das imagens mentais, de maneira que nosso “sistema de sentido” é carregado de emoção. Nosso pensamento requer também imagens, intenções, sugestões e razão lógica: trata-se de uma mistura de atividades mentais em níveis diferentes. Qualquer que seja a forma do pensamento, ele é detonado por processos metafóricose metonímios. Pensamentos são conduzidos por outros pensamentos, por imagens, por desejos. Em “A liberdade é azul” (“Bleu”, 1993), primeiro filme da trilogia das cores do diretor polonês Krzysztof Kielówski, a cor, como já se poderia imaginar de antemão, é um signo predominante. O azul no filme é a metáfora da perda de um ente querido. Simboliza a dor sublime, a dor que não tem tamanho, a dor que não cabe no corpo, a dor que não vai acabar nunca e que pelo mesmo motivo, por uma questão de vida ou morte, representa a sublimação da perda e a opção pela vida. A vida deste corpo sobrevivente naturalmente carregará consigo as imagens, os sentimentos e as sensações presentes da perda, num passado a cada gesto presente. A cena inicial é um breve passeio de luzes, faróis de carros em movimento, seguida pela sequência azul da batida ao amanhecer. Julie (Juliette Binoche) perde o filho e o marido num acidente de carro. A primeira cena é recheada já de azuis em planos de detalhe representando em parte a memória da personagem e em parte narrando alguns detalhes da tragédia. A protagonista mantém sua força, na voz, no olhar; mas às vezes seus gestos denunciam sua fraqueza. No quarto azul de sua mansão, esvaziado pelos criados à sua ordem, ela puxa com força um pedaço do lustre de pedras azuis. Suas pernas e tronco não se sustentam e ela se deixa sentar pesadamente à porta de uma sala; em seguida, os brilhos das pedras são refletidos em seu rosto. Ela não chora, e mantém apertados na mão os cacos azuis do lustre. O corpo em frangalhos. Sua força se revela tão grande quanto a intensidade da dor. 22 QuickTime™ and a PNG decompressor are needed to see this picture. Ainda na casa, ela toca pela primeira vez o piano, lendo as notas (a câmera concentra seu foco num único ponto no centro da tela, reproduzindo seu ponto de vista, prejudicado pelo acidente), e logo em seguida interrompe, fechando-o brutalmente, e olha para a piscina à sua frente, para virem reflexos azuis novamente bater em seu rosto. Seria o tema da cor sua memória? Em frente à lareira ela esvazia a bolsa e encontra um pirulito azul da criança. Com muito cuidado, em gestos delicados, pega-o, abre cuidadosamente o papel brilhante para em seguida mastigar o pirulito brutalmente, em outra contraposição de intensidades gestuais, talvez numa experiência de uma memória corporificada. Saindo da mansão, descendo a rua a pé, ela arrasta os dedos fechados no muro de pedra, numa dor silenciada. Para manter os gestos firmes e os passos seguros, parece amenizar sua emoção compensando com uma dor física – assim como em momentos anteriores os gestos bruscos formam oposições, como com o pirulito e o lustre. No café, ela escuta um flautista na rua. Um plano de detalhe de uma gota num pedaço da xícara ilustra sua memória – o corpo vazio, o tempo suspenso. Através de silêncios e movimentos ela tenta se recompor. Lapsos de tempo acontecem em quatro instantes no filme, como pausas do pensamento, deixando perguntas no ar em momentos de fade out, a tela negra, a trilha forte, numa representação explícita do tempo de Julie. 23 No processo de recuperação, o corpo se mantém em movimento. Ela mergulha na piscina de um azul intenso, onde nada, relaxa e chora. A trilha-tema e o azul estão sempre em seu pensamento, revelando-se como analogias a diferentes níveis de sua consciência. Por exemplo, quando ela dorme na escada do prédio; quando toma sol num banco de praça; quando tenta sair da piscina e obriga-se a recuar e mergulhar no silêncio. Sua dor nunca é exteriorizada em palavras. Ela não procura amigos com os quais poderia discorrer sobre o assunto. Quando chora na piscina, nem nós percebemos: apenas uma vizinha, com quem ela minimamente se socializa, percebe e adverte: “você está chorando!”, enquanto ela limita-se a exibir seu triste sorriso. Um exercício interno do corpo que permeia toda a narrativa que mais parece representar seu processo pessoal pela vida e felicidade, um caminho pelo azul. Na última cena, nua, ela chora em silêncio, e vive. As conexões criadas vão além da história e memória: cenários fictícios, conexões imaginadas. A informação no corpo se dá em rede: em “A liberdade é azul” acompanhamos explicitamente o processo de recuperação de Julie, enquanto ela se envolve em pequenas ações sucessivas que lhe garantem que seu corpo se mantenha vivo e no mundo, necessariamente em movimento. Cada um à sua maneira, todos os filmes asseguram o corpo como processo, não como produto. Juliette Binoche interpreta em seus personagens nos dois filmes abordados aqui, “A liberdade é azul”, e o brevemente comentado “Os amantes da ponte nova”, uma experiência comum: a memória viva. No primeiro, o passado se faz presente a cada instante em que ela se depara com um objeto azul, que por sua vez a remete à trilha-tema do filme, composição incompleta do marido morto. No segundo filme, ela vai viver numa ponte como uma moribunda a fim de esquecer e fugir de um problema de saúde. Nos dois casos a personagem abandona sua vida anterior e entrega- se a uma nova experiência, num novo lugar – no QuickTime™ and a Photo - JPEG decompressor are needed to see this picture. 24 entanto, é todo o tempo atormentada pelos fatos que se fazem a cada instante presentes em seus pensamentos e ações. Damasio (1996) refere-se às imagens baseadas em qualquer modalidade sensorial – imagens sonoras, imagens do movimento no espaço, imagens olfativas, entre outras – mais do que imagens visuais apenas. As imagens descrevem tanto o mundo externo ao organismo, quanto o interno a ele. Ele argumenta que a capacidade de gerar imagens possivelmente evolui e existe porque as imagens possibilitam aos organismos otimizar respostas. Quer dizer, a perfeccionar repertórios existentes de movimento e planejar outros, ainda mais bem sucedidos. O cérebro trabalha por meio de imagens mentais, construídas com a percepção dos estados do corpo. Quando um objeto interage com o corpo, a percepção desse objeto se dá por meio das alterações no padrão de atividade dos tecidos corporais. “Não existe percepção pura do objeto em um canal sensorial como, por exemplo, a visão. Para perceber um objeto, visualmente ou de algum outro modo, o organismo requer tanto os sinais sensoriais especializados como os sinais provenientes do ajustamento do corpo, que são necessários para a ocorrência da percepção.” (Damasio, 1999:193). O objeto é continuamente re-codificado com dados das reações do próprio organismo ao perceber aquele objeto, em cada momento. Todo evento perceptivo seria então um ato cognitivo. Uma vez que os estados do corpo constituem as emoções, o objeto é categorizado com um valor emocional associado, de acordo com ele. Damasio salienta ainda que a consciência é um mecanismo altamente adaptativo. Associações entre os símbolos definem campos semânticos: ouvir, memorizar ou uma palavra pode ativar efeitos para subsequente lembrança ou identificação de outras palavras/ associações em categorias relacionadas. Uma informação anterior pode sensibilizar o sistema a interpretar uma nova informação de determinada maneira, como nos sistemas baseados em reconhecimento.De certa maneira, nossa história fica registrada na rede neuronal e a maneira como as conexões são formadas nelas emerge da história particular do indivíduo. (Domenici, 2004:98) Tal estratégia cognitiva é facilmente identificada nos filmes que analisamos, uma vez que contam com objetos muito representativos. Por exemplo, o lustre azul em “A liberdade é azul”, representa uma perda; o diário que será apresentado adiante em “O livro de cabeceira” simboliza o desejo da personagem de tornar-se escritora, e assim pordiante. Sobre a relação dos estados emocionais com as ações (e especialmente com a mobilidade), em condições normais é um estado emocional que produz o impulso e o contexto interno para a ação. O comportamento em sua diversidade (detalhes, expressões) é modulado pelos eventos psicológicos não experimentados conscientemente (eventos como possibilidade). Os sistemas cerebrais relacionam as propriedades sensórias10 do mundo externo com motivações e memórias geradas internamente. Dessa forma a consciência seria um modo focal e passageiro, usado pelo contexto do momento e descartado. 10 Sensações são produto da atividade em andamento do sistema nervoso, que encontram seu caminho até o estágio da consciência (Llinás, 2002) 25 Inspirados por este raciocínio, caminhamos para uma nova possibilidade fílmica. O filme de Peter Greenaway “O livro de cabeceira” (“The pillow book”, 1996) parece alimentar-se da idéia da emoção e dos eventos psicológicos que engatam ações momentâneas. A narrativa não é cronológica em “O livro de cabeceira”. Os tempos são suspensos e se entrecruzam: a protagonista (Vivian Wu) lê no presente o diário que mantinha desde os seis anos, quando por sua vez ouvia e se inspirava em histórias e imagens de um diário escrito há quase mil anos. Até o fim do filme, irá escrever inspirando- se em seus acontecimentos presentes e passados, numa recriação poética de suas memórias latentes – seu pai, seus amantes, a vida em Hong Kong e Kyoto. A metáfora da caligrafia japonesa, que através do movimento se fixa nos corpos temporariamente, referenciando ações perdidas no tempo, encontram sentido em seu próprio corpo criador. A poética do corpo surge em imagens temporárias (o texto escrito que se apaga em pouco tempo), conduzidas por um corpo temporário (que, sempre em movimento, refaz seu percurso e sua história, levando cada forma a um novo sentido. As sensações e ações da protagonista são tão móveis quanto suas escrituras, por sua vez reproduzidas numa mídia também dinâmica – o filme, a imagem em movimento. A jovem escritora japonesa Nagiko Kiyohara se propõe a escrever treze livros, cada qual sobre um tema, a serem entregues para um editor a quem odeia e promete vingança por haver explorado seu pai, também escritor, durante o passado. A fim de chamar a atenção do editor para sua escrita e conseguir ser publicada, a jovem passa a escrever em corpos masculinos, alguns de amantes, outros de desconhecidos. O motivo é antigo: desde os quatro anos, em datas de aniversário, seu pai lhe pinta o rosto e a nuca numa tradição oriental do nascimento, e ela então herda a paixão pela escrita nos corpos. Primeiramente se oferece como papel, para que os outros escrevam em seu corpo. Até que conhece um tradutor inglês (Ewan McGregor), cuja terrível caligrafia a faz recusá-lo, e ele então lhe inspira com a frase ícone: “Write me. Treat me like the page of a book”. 26 Começa então seu exercício criativo de escrever sobre os corpos dos outros. Tem início também seu romance com Jerome, o jovem inglês, com quem celebra a arte da caligrafia corporal, mas também usa como acesso ao editor maldito. O corpo de Jerome torna-se o mensageiro do primeiro livro. O filme de Peter Greenaway é uma oferenda aos sentidos, sobretudo à visão. Leituras feitas na infância por sua mãe do livro de cabeceira milenar de Sei Shonagon que nas mãos de Greenaway tornam-se visões: o texto lido é sobreposto a imagens descritas, e com elas a caligrafia japonesa sobrepõe-se às imagens em cena, ao tato, apreciado desde cedo, quando ao ter o rosto e nuca pintados pelo pai ela aprecia o contato com a tinta, e o olfato. Nagiko se encantava com o cheiro de todos os papéis, que a faziam lembrar do cheiro da pele: “O aroma de um papel em branco é como o da pele de um novo amante, que faz uma visita surpresa vindo de um jardim em dia chuvoso”. Os sentidos do corpo explorados no filme, ou brindados pelo diretor em sobreposições de imagens e estímulos visuais, conduzem a história por eixos temporais e cenários diversos. As próprias imagens do filme também nos transportam ao texto escrito, em sobreposições de escrituras por vezes chinesas em imagens dos corpos ou cenários, onde se desenrola a próxima cena. As metáforas do corpo utilizadas nesta narrativa, portanto, passam pelas imagens de textos produzidos pelo corpo da protagonista em outros corpos, recriando sentidos em novas imagens corpóreas. O filme é fortemente representado pela presença do corpo: o corpo produtor de sentido, o corpo condutor da informação, o corpo receptor e leitor que por sua vez reproduzirá os textos do outro em uma nova mídia, a do texto finalmente impresso. Sutilezas, gestos que se transformam em imagens, que se transformam em palavras faladas, que se transformam em palavras escritas, e que se transformam em gestos. Sentidos expostos em imagens, sentimentos expostos em gestos, texto traduzido na pele. “Agora serei a caneta, não só o papel”, ela diz, ao iniciar sua obra inédita. Nagiko estava determinada a cultivar amantes que lembrassem sua paixão pela caligrafia. Poemas de pele, com sentidos apropriados: “a palavra significando chuva deveria cair como uma chuva, a que significasse fumaça deveria flutuar como fumaça”, conforme lhe insina um calígrafo ancião. Os corpos neste filme de Greenaway são transformados em veículos de informação, em fluxo – tanto os corpos, quanto os textos escritos celebram a efemeridade da condição corpórea e a fragilidade do conteúdo artístico. “Corpos mensageiros” são despidos de sua própria história para conduzir outra, da artista, para o editor, que se apressa em copiar o texto de autoria desconhecida – detalhe que confirma a noção de valorar o texto em fluxo. Este filme expõe o sentido da impermanência para os orientais, a noção de valor e de perda, na valorização da posse de objetos queridos. Após a morte de seu precioso amante, Nagiko reflete: “seus livros eram muito ruins para serem queimados”. Sua própria opção de escrita, nos corpos, celebra o acaso e a constante possibilidade da perda, como um de seus “livros”, que se desfaz no corpo molhado de chuva de um mensageiro. 27 A a-forma, o surgimento de algo que se crê acontecimento, nunca está num filme inteiro, mas apenas em momentos particulares, frações de tempo ou de extensão. A cor continua sendo um veículo privilegiado desse cinema experimental, sobretudo a cor em movimento, que parece arrancar-se dos objetos para converter-se em aventura singular. Isto está explícito nos dois filmes analisados como representações do corpo no ator: em “A liberdade é azul” o azul onipresente de sua memória atuante, e em “O livro de cabeceira” as tonalidades japonesas dos vermelhos e dos papéis de seda e cenários orientais, que desde a infância inspiram as ações da protagonista. A gesticulação de um personagem sugere traços de seu perfil psicológico, e pode conduzir a ação na qual transcorre a cena. Tudo permaneceria na condição de esboço, vibrando com uma tensão imanente: os registros transitórios realizados pela câmera cinematográfica, que criam a impressão de que o momento foi capturado em toda sua plenitude; o corpo instável, pensante, que reage de infinitas formas; e o corpo estável, concreto e estruturado, que dá a sensação de que tudo ali está sob controle. Os corpos que habitam o mundo são tão complexos e transitórios quanto ele, cheios de intenções, tensões e possibilidades contínuas. 28 O sistema de informações que é o corpo humano emerge quando se organiza como uma mídia dos processos em curso, expondo a transitoriedade da forma. Olhar o corpo significa olhar o ambiente que constitui sua materialidade– há que dar-se ênfase ao caráter processual dessas operações em fluxo inestancável. Juntamente com os cinco sentidos está o movimento, nesse mesmo conjunto de características do corpo humano. (Ginsburg, 2001) O movimento como pensamento, o pensamento como existência corpórea, a condição corpórea explícita no movimento. Este fluxo está exemplificado em todos os filmes apresentados na introdução desta pesquisa: “Bagdad Café”, “A liberdade é azul”, “Assédio”, “Livro de Cabeceira”, e nos presentes apenas em imagem, como “Os amantes da ponte nova” e “O último tango...” – narrativas apoiadas no movimento, em suas formas e contextos particulares; protagonistas que recriam seus gestos para dar continuidade às suas próprias existências. Compreender o corpo como mídia de comunicação requer uma abordagem interdisciplinar e interteórica mais complexa. Ler o corpo significa sempre reconstrui-lo. À luz da fenomenologia são propostas novas nomenclaturas, como a da corporalidade no lugar de corpo (Bernard, 2001), na tentativa de afirmar a plasticidade do fluxo de informações, e negar a metáfora do organismo como aquilo que é inato e comum a todos. Escritos recentes apresentam o corpo como um resultado sempre transitório dos processos de co-evolução, um contínuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental. (Katz e Greiner, 2004) No compasso destas propostas é que sugerimos aqui uma leitura interteórica do corpo representado nos filmes, com uma imensa variedade de possibilidades de representação do corpo do personagem em cena conduzindo a narrativa. Estas parecem por vezes tão amplas quanto as possibilidades de representação do corpo no mundo, e mais que isso, de um corpo em suas próprias imagens. O lugar do corpo no espaço O corpo humano, na plenitude de seus movimentos, visíveis e não visíveis, interage absolutamente com o ambiente que o cerca, e este ambiente é igualmente determinado por ele, através de suas ações. As ações deste sujeito são também um esboço de sua história de vida, de seus sonhos, medos, em sua sensação própria traduzida ali ao vivo, em cada lugar. Vivemos no presente do mundo com todos os nossos tempos e possibilidades corpóreas. “Vidas Secas” (Nelson Pereira dos Santos, 1963), baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos, traduz a situação de calamidade subumana do nordeste brasileiro, mantendo o estilo seco da obra original, ao constatar o impasse dos personagens devorados pela miséria, fome e êxodo constante. O diretor encontra 29 efeitos análogos aos do romance ao alcançar “uma apropriação feliz e consciente dos denominados “tempos mortos”, criados por Michelangelo Antonioni, em passagens exasperadas pela técnica dos vazios estáticos e plenos de significação.” (Grunewald, apud Ruy Castro, 2001:129) Os protagonistas – o homem, a mulher, os filhos e a cachorra Baleia – permitem que o espaço, e seus corpos neste espaço, da seca, fale mais forte que qualquer palavra, “colaborando nas composições plásticas dos quadros estilizados do sofrimento ou da poesia de um áspero cotidiano”. (op.cit:130) O desenvolvimento da linguagem do cinema é ancorado pelas infinitas possibilidades abertas deste texto essencialmente híbrido (o corpo). Há a tendência de voltar a câmera para os eventos do homem, na tarefa de registrar o movimento que levanta um conjunto de questões, relacionando-se à tarefa de registrar narrativas. O olhar a cidade, a criação de narrativas corporais a partir da comunicação com o espaço e seus conteúdos, variantes e “fontes” de sentido, constitui também uma potente fonte criativa. Como vimos, a relação do corpo com o ambiente é sempre processual. As informações disponíveis no meio nos são apresentadas no âmbito das relações, de maneira que cada corpo cria sua organização no espaço de modo particular, a partir da seleção de informações que lhe são válidas (familiares, instigantes, provocadoras...), e que despertam sensações em relação às suas memórias e imagens mentais. Dessa maneira, o ambiente é provedor de uma variedade de relações entre observador e contexto. A interpretação é também um processo de corporificação. (Terrence Deacon, 1997) Nesse sentido, um bom exemplo é apresentado por F.W. Murnau em “A última gargalhada” (“Der Letzte mann”, 1924). A obra cria altos contrastes de cor e distorções imagéticas para retratar as sensações de seu protagonista, que perde seu posto de status pessoal para rebaixar-se ao trabalho no banheiro de um grande hotel. Os pesadelos que vive, seu sofrimento agudo perante a impotência da velhice e sua suposta inutilidade refletem-se nas imagens da cidade, que é transformada em suas próprias visões internas. Ele antecipa em imagens o desgosto da família e o escárnio de vizinhos, presentes em corpos grotescos de seus cenários domésticos. Num primeiro momento, o personagem exibe toda sua pompa expressa no seu andar, peito estufado, orgulho do trabalho expresso nos olhos e nos cantos dos lábios. Os cenários são ricamente expostos, a decoração luxuosa do hotel, composta pelo mobiliário ostensivo, assim como seus hóspedes, e os funcionários impecáveis em seus uniformes. O personagem acompanha tudo, carregando e descarregando malas incessantemente. Com o mesmo orgulho ostenta seu impecável uniforme diante da grande porta giratória de vidro do hotel, o local de entrada e saída onde ele age com seu corpo e seu coração. O cenário de seu bairro é bem diferente de seu luxuoso local de trabalho, e ali também é respeitado por todos, mantendo a mesma pompa, sua postura orgulhosa do cargo. Entra e sái todos os dias ostentando o impecável uniforme, sempre observado e admirado por todos os vizinhos, que ali vivem como num cortiço, compartilhando atividades e fofocas. Mais tarde, quando é dispensado de sua função, todos ali de suas janelas o observam com escárnio e o cenário simples transforma-se em pesadelo. 30 Quando ele perde o cargo e volta pra casa, há uma festa de casamento. Todos bebem e comemoram felizes; ele esconde sua tragédia com tristes sorrisos. Na sala da casa vazia, ao fim da festa, ele bebe sozinho e realiza seus gestos como se estivesse no trabalho de doorman: faz continências, abre os braços, apita – reproduz as ações do cargo perdido. A mulher mal pode se conter em gargalhadas. Há uma sequência de bêbados no pátio da cortiço, que cantam e dançam. A alegria e relaxamento se contrapõem à sua dor e angústia, seu pesadelo pessoal. A casa gira com sua embriaguez. Ele sonha com a porta giratória do antigo posto, enorme, em movimento. No sonho é mais forte que todos: segue-se a sequência transfigurada de cenas do saguão do hotel, com tudo em movimento contínuo. Sem foco, a câmera dança. Ele vê seu percurso pela cidade transformar-se radicalmente, como se a arquitetura ganhasse vida e quisesse engoli-lo, zombando dele, em seu imaginário aterrorizado. Suas emoções, sua tristeza aguda, o sentimento de humilhação, transformam em paisagem externa suas imagens internas, e tudo à sua volta parece querer expulsá-lo, por vezes sugá-lo, tratando-o como um ser medíocre, inútil e impotente. A conexão entre as sensações corpóreas do personagem e do espectador se dá no corpo do espaço onde ele está. Ele vê as paredes, as ruas, as janelas, moverem-se e tudo transformar-se num circo de horrores. Da porta do hotel ele cria o mundo. Portas de vidro giratória equivalem à celebração da passagem da vida, o fluxo das pessoas. O banheiro é a estagnação: não há vista, paisagem ou movimento. O uniforme lhe foi arrancado do corpo violentamente – ele em estado de choque não se move. Presenciamos sua situação traumática, suas ações internas, o corpo em transformação. Sua
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