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Dossie sobre BOURDIEU da Revista CULT

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-----------
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU
 
Avaliar 0 impacto que a sociologia de Pierre Bourdieu (1930-2002) provocou no pensamento do seculo 20 certamente envolve urna especie de constrangimen­to. Em primeiro lugar, porque Bourdieu construiu 
urn enorme corpo te6rico, incluindo estudos em quase todos 
campos de interacao social; seja na economia, na religiao, na 
arte, na politica, na comunicacao ou na educacao, suas analises 
buscaram compreender os fenomenos sociais tanto sob uma 
perspeetiva estrutural, na interposicao entre agentes dominan­
tes e dominados em urn campo social determinado, quanto sob 
a perspeetiva "concreta" dessesmesmos fenomenos, a exemplo 
das analises empiricas sobre alta-costura, sobre as visitas aos 
museus na Europa, sobre 0 mercado imobiliario, sobre 0 agen­
da setting no jornalismo, ou ate sobre os jogos olimpicos. Ao 
tentar resumir a multiplicidade de sua producao, em urn dossie 
de poucas paginas, corre-se 0 risco portanto das distorcoes que 
todo grande pensador pode eventualmente sofrer. 
Mas a tarefa se torna ainda rnais problematica quando sa­
bemos que Bourdieu e urn dos autores mais lidos nas ciencias 
humanas. De fato, alguns dos conceitos operacionais criados 
pelo soci6logo, como "capital cultural", habitus, "campo" 
rver quadro nestedossieJ, hoje sao colocados em circulacao 
no meio academico como instrumentos indispensaveis para 
44 
-
TE DE COMBATE
 
as diversas praticas sociol6gicas que nao se limitam ao diag­ Durkheim e Weber, alem de internalizar os aportes te6ricos 
n6stico das assimetrias economicas de classes. Valem para que 0 estruturalismo oferecia acompreensao das diferentes 
o conhecimento transversal que perpassa desde a medicina dinamicas culturais, nem por isso imunizou as criticas ao aos 
social ate 0 jornalismo. Alem disso, seu engajamento, suas rigidos estamentos universitarios; fato que the rendeu severa 
intervencoes como figura marcante no debate publico fran- antipatia entre alguns de seus pares. 
ces enos movimentos globais contra 0 neoliberalismo (basta Assim, apesar das dificuldades de dar conta em poucas 
recordar sua participacao na greve de 1995 que paralisou 0 paginas de urna obra tao polemica e multifacetada como a de 
sistema de transportes na Franca], concederam-lhe uma po­ Bourdieu, 0 dossie desta edicao privilegiou aqueles aspectos 
pularidade controversa e bastante rara entre os intelectuais, que pelo menos asseguram urn panorama consistente de suas 
sobretudo a partir da decada de 70. Na melhor tradicao de ideias principais e de seu ativismo politico. Como introducao, 
Zola, Bourdieu acreditava que 0 intelectual deveria servir aos Maria das Cracas Setton fala sobre a formacao do "gosto", 
interesses de uma verdadeira praxis de transforrnacao social, sob a 6tica de Bourdieu; Jose Sergio Leite Lopes, sobre sua 
apontando os mecanismos de reproducao de toda dominacao trajet6ria e participacao politica; Cl6vis de Barros Filho, so­
simb6lica. 0 papel da sociologia, subsidiaria de uma ampla bre sua sociologia da comunicacao; Ilana Goldstein, sobre 
teoria reflexiva, seria 0 de fornecer entao as armas te6ricas a sociologia da cultura; Ana Paula Hey e Afranio Catani, 
necessarias para esse desvelamento da realidade e para sua sobre sua decisiva contribuicao para a educacao. Em entre­
conseqiiente transformacao. Enesse sentido que "a sociologia vista, Bourdieu afirmou que "atualmente estamos engajados 
e urn esporte de combate", boutade que virou titulo de urn num combate, em defesa de urna civilizacao, e 0 Brasil, que 
documentario sobre 0 cotidiano do sociologo. sofreu a politica neoliberal (...) mas que tern grandes recursos 
A originalidade de metodologia de Bourdieu e sua rela­ culturais, hist6ricos, pode ser urn dos lugares de resistencia". 
<;:ao com os saberes instituidos, por outro lado, nao deixa­ Compreender Bourdieu significaria, portanto, compreender 
ram de ser alvo de ataques passionais. Afinal, se num primei­ tambem nosso imperativo de resistencia. 
ro momenta soube assimilar 0 canone formado por Marx, (Eduardo Socha) 
45 
1 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU
 
Pequeno glossario da teoria de Bourdieu
 
i.
 
j 
:1
 
Os conceitos de 
Bourdieu, aqui ex­
postos de maneira 
esquemdtica, devem 
ser compreendidos 
em sua interdepen­
dencia, ou seja, na 
reladio de um ao 
outro. Como adverte 
o proprio autor, em 
Reponses: "nocoes 
como habitus, campo 
e capital podem ser 
definidos, mas somen­
te no interior do sis­
tema teorico que eles 
constituem, nunca 
isoladamente. » 
campo: nocao que caracteriza a autonomia de 
certo dominic de concorrencia e disputa interna. 
Serve de instrumento ao metoda relacional de 
analise das dominacoes e praticas especificas 
de urn determinado espaco social. Cada espa­
QO corresponde, assim, a urn campo especifico 
- cultural, econorruco, educacional, cientffico, 
jornallstico etc -, no qual sao determinados a 
posicao social dos agentes e onde se revelam, 
por exemplo, as figuras de "autoridade", deten­
toras de maior volume de capital. 
capital: ampliando a concepcao rnarxlsta, 
Bourdieu entende por esse termo nao apenas 
o acurnulo de bens e riquezas econorrucas, mas 
todo recurso ou poder que se manifesta em uma 
atividade social. Assim, alern do capital econo­
mica (renda, salaries, im6veis), e decisive para 
o socioloco a compreensao de capital cultural 
(saberes e conhecimentos reconhecidos par 
diplomas e tftulos), capital social (relacoes so­
cials que podem set- convertidas em recursos 
de dornmacac). Em resumo, refere-se a urn ca­
pital simb6/ico (aquilo que chamamos prestfgio 
ou honra e que permite identificar os agentes 
no espaco social). Ou seja, desigualdades so­
ciais nao decorreriam somente de desigualdades 
econornicas, mas tambern dos entraves causa­
dos, por exemplo, pelo deficit de capital cultural 
no acesso a bens simb6licos. 
estrateqla: em Coises Dites, Bourdieu afirma 
que "a nocao de estrateqia e 0 instrumento 
de uma ruptura com 0 ponto de vista objeti ­
vista e com a acao sem agente, suposta pe­
10 estruturalismo (que recorre por exemplo a 
nocao de inconsciente) [...J Ela e produto do 
sentido pratico." 
habitus:sistema aberto de disposlcoes, acoes 
e percepcoes que os individuos adquirem com 
o tempo em suas experiencias sociais (tanto na 
dirnensao material, corp6rea, quanto simb6lica, 
46 
cultural, entre outras). 0 habitus val, no entanto, 
alern do indivfduo, diz respeito as estruturas re­
lacionais nas quais asta inserido, possibilitando 
a compreensactanto de sua poslcao num cam­
po quanta seu conjunto de capitais. Bourdieu 
pretende, assim, superar a antinomia entre ob­
jetivismo (no caso, preponderancia da estruturas 
sociais sobre as acoes do sujeito) e subjetivismo 
(primazia da acao do sujeito em relacao as de­
terrnlnacoes sociais) nas ciencias humanas (ver 
estrateqla).Segundo Maria Drosila Vasconcelos, 
trata-se de "uma rnatriz, determinada pela posi­
cao social do indivfduo que Ihe permite pensar, 
ver e agir nas mais variadas situacoes, 0 habitus 
traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos 
politicos, morais, esteticos. Ele e tambern urn 
meio de acao que permite criar ou desenvolver 
estrateqias individuais ou coletivas." 
papel da sociologia: para Bourdieu, "a sociolo­
gia nao mereceria talvez nenhuma hora de aten­
cao se tivesse como objetivo apenas descobrir 
os fios que movem os individuos que ela obser­
va, se ela esquecesse que tern compromisso 
com os homens, justamente quando estes, a 
maneira das marionetes, participam de urn jogo 
cujas regras ignoram, enfim, se ela nao tivesse 
como tarefa restituir 0 sentido dos pr6prios atos 
destes homens" (Le bal des ce/iba{aires, inedito 
no Brasil) 
sentido pratico: origem das pratlcas rituais que 
estabelecem a coerencia parcial em urn deter­
minado campo. 
vioh~ncia simb6lica:termo que explicaria a 
adesao dos dominados em urn campo: trata­
se da dorninacao consentida, pela aceitacac das 
regras e crencas partilhadas como se fossem 
"naturals", e da incapacidade critica de reconhe­
cer 0 carater arbitrarlo de tais regras impostas 
pelas autoridades dominantes de urn campo. 
(Eduardo Socha) 
Uma introducao 
a Pierre Bourdieu 
Pela discussao do gosto, Bourdieu denunciou as distorcoes na 
producao da cultura e na sua difusao educacional 
Maria da Graca Jacintho Setton 
Considerado urn dos maiores soci­ologos de lingua francesa das ul­timas decadas, Pierre Bourdieu e urn dos mais importantes pensa­
dores do seculo 20. Sua producao inte1ectual, 
desde a decada de 1960, estende-se por uma 
extensa variedade de objetos e temas de es­
tudo. Embora contemporaneo, e tao respei­
tado quanta urn classico. Critico mordaz dos 
mecanismos de reproducao das desigua1dades 
sociais, Bourdieu construiu urn importante re­
ferencial no campo das ciencias humanas. 
No entanto, mesmo sendo reconhecida pe­
1a origina1idade, a obra de Bourdieu e objeto 
de grande controversia, A maior parte de seus 
criticos, numa 1eitura parcial de seus traba­
1hos, c1assifica-o como urn teorico da repro­
ducao das desigua1dades sociais. Nao obstan­
te, a reflexao de Bourdieu se destaca por uma 
singu1aridade. Para e1e, os condicionamentos materiais e simbolicos 
agem sobre nos (sociedade e individuos) numa comp1exa relacao de 
interdependencia, Ou seja, a posicao social ou 0 poder que detemos 
na sociedade nao dependem apenas do volume de dinheiro que acu­
mu1amos ou de uma situacao de prestigio que desfrutamos por pos­
suir esco1aridade ou qua1quer outra particu1aridade de destaque, mas 
esta na articulacao de sentidos que esses aspectos podem assumir em 
cada momento historico, 
Para 0 autor, a sociologia deve aproveitar sua vasta heranca aca­
dernica, apoiar-se nas teorias sociais desenvo1vidas pelos grandes pen­
sadores das ciencias humanas, fazer uso de tecnicas estatisticas e et­
nograficas e utilizar procedimentos metodologicos serios e vigilantes 
para se forta1ecer como ciencia, Bourdieu fez de sua vida academics e 
inte1ectua1 uma arma politica e de sua sociologia urna sociologia enga­
jada, profundamente comprometida com a demincia dos mecanismos 
de dominacao em uma sociedade injusta. De acordo com sua perspec­
tiva, a sociedade ocidenta1 capita1ista euma sociedade hierarquizada, 
47 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU 
o 
organizada segundo uma divisao de poderes ~ 
extremamente desigual. Mas como se organi­ j­
zaria essa distribuicao desigual de poderes? 
Como as formacoes sociais capitalistas conse­
guem manter os grupos sociais e os individuos 
hierarquizados? Em outras palavras, como se 
perpetua uma situacao de dominacao entre os 
grupos sociais? 
Concep~ao relacional da sociedade 
Epossivel afirmar que Bourdieu tern uma 
concepcao relacional e sisternica do social. A 
estrutura social evista como urn sistema hie­
rarquizado de poder e privilegio, determinado 
tanto pelas relacoes materiais elou economi­
cas (salario, renda) como pelas relacoes sim­
bolicas (status) elou culturais (escolarizacao) 
entre os individuos, Segundo esse ponto de 
vista, a diferente localizacao dos grupos nessa 
estrutura social deriva da desigual distribuicao 
de recursos e poderes de cada urn de nos. Por 
recursos ou poderes, Bourdieu entende mais 
especificarnente 0 capital economico (renda, 
salarios, imoveis), 0 capital cultural (saberes 
"I'! I 
e conhecimentos reconhecidos por diplomas 
e titulos), 0 capital social (relacoes sociais que 
podem ser revertidas em capital, relacoes que 
6 
Cartaz do documentarlo "A 
Sociologiaeum Esporte de 
Combate"(2001),de PierreCarles, 
podem ser capitalizadas) e por fim, mas nao sobre0 cotidiano de Bourdieu 
por ordem de importancia, 0 capital simb6­
lico (0 que vulgarmente chamamos prestigio 
elou honra). Assim, a posicao de privilegio Aproducao do gosto 
ou nao-privilegio ocupada por urn grupo ou Posto isso, a sociologia de Bourdieu emais 
individuo edefinida de acordo com 0 volume que uma sociologia da reproducao das dife­
e a composicdo de urn ou rnais capitals ad­ rencas, materiais ou economicas; euma so­
quiridos e ou incorporados ao longo de suas ciologia interpretativa do jogo de poder das 
trajetorias sociais. 0 conjunto desses capitais distincoes economicas e culturais de uma so­
seria compreendido a partir de urn sistema de ciedade hierarquizada. Aqui chamo atencao 
disposicoes de cultura (nas suas dimens6es para urn aspecto de sua obra relativa a in­
material, simbolica e cultural, entre outras), terpretacao da producao do gosto cultural. 
denominado por ele habitus. Bourdieu considera que 0 gosto e as praticas 
A sociologia, para Bourdieu, euma cien­ de cultura de cada urn de nos sao resultados 
cia que incomoda, pois tende a interpretar os de urn feixe de condicoes especificas de socia­
fenomenos sociais de maneira critica, Para os lizacao. Ena historia das experiencias de vi­
interesses desta introducao, vejamos apenas da dos grupos e dos individuos que podemos 
uma de suas muitas contribuicoes no campo apreender a composicao de gosto e compre­
da Sociologia da Cultura; mais especificamen­ ender as vantagens e desvantagens materiais 
te, a maneira pela qual Bourdieu interpreta e simbolicas que assumem. 
a formacao do gosto cultural de cada urn de Nas decadas de 60 e 70 do seculo passado, 
nos, pondo em xeque urn dos consensos mais Bourdieu se envolve em uma serie de pesqui­
difundidos de nossa historia cultural, 0 de que sas de carater qualitativo e quantitativo sobre 
gosto nao se discute. a vida cultural, sobre as praticas de lazer e de 
48 
consumo de cultura entre os europeus, sobre­
tudo, entre os franceses. 
Dessas experiencias de investigacao 
Bourdieu publica, em 1976, uma grande pes­
quisa intitulada Anatomia do gosto. Mais tar­
de, essa mesma pesquisa passa a ser objeto de 
publicacao de sua obra prima, lancada em 
1979: 0 livro intitulado A distincao - criti­
ca social do [ulgamento. Nessas duas obras, 
Bourdieu e uma equipe de pesquisadores ten­
tam explicar e discutir a variacao do gosto en­
tre os segmentos sociais. Isto e, analisando a 
variedade das praticas culturais entre os gru­
pos, Bourdieu acaba por afirmar que 0 gosto 
cultural e os estilos de vida da burguesia, das 
camadas medias e do operariado, ou seja, as 
maneiras de se relacionar com as praticas da 
cultura desses sujeitos, estao profundamente 
marcadas pelas trajetorias sociais vividas por 
cada urn deles. 
Mais especificamente Bourdieu afirma 
que as praticas culturais sao determinadas, 
em grande parte, pelas trajetorias educativas 
e socializadoras dos agentes. Dito com outras 
palavras, Bourdieu afirma, causando urn gran­
de mal-estar na epoca, que 0 gosto cultural e 
produto e fruto de urn processo educativo, am­
bientado na familia e na escola e nao fruto de 
uma sensibilidade inata dos agentes sociais. 
"Capital cultural incorporado" 
Nesse sentido, Bourdieu poe em discussao, 
desafiando varias autoridades, urn consenso 
muito em Yoga, relativo a crenca de que gos­
to e os estilos de vida seriam uma questao de 
foro intimo. Para 0 autor, 0 gosto seria, ao 
contrario, 0 resultado de imbricadas relacoes 
de forca poderosamente alicercadas nas insti­
tuicoes transmissoras de cultura da sociedade 
capitalista. 
Para fundamentar essa afirrnacao, 
Bourdieu argumenta que essas instituicoes se­
riam a familia e a escola; seriam elas respon­
saveis pelas nossas cornpetencias culturais ou 
gostos culturais. De urn lado, chamou a aten­
~ao para 0 aprendizado precoce e insensivel, 
efetuado desde a primeira infancia, no seio 
da familia, e prolongado por urn aprendizado 
escolar que 0 pressupoe e 0 completa (apren­
dizado mais comum entre as elites). De outro, 
destacou os aprendizadostardio, metodico e 
acelerado, adquiridos nas instituicoes de en­
sino, fora do ambiente familiar, em tese urn 
conhecimento aberto para todos. 
Assim, a distincao entre esses dois tipos de 
aprendizado, 0 familiar e 0 escolar, refere-se 
a duas maneiras de adquirir bens da cultura 
e com eles se habituar. Ou seja, os aprendi­
zados efetuados nos ambientes familiares se­
riam caracterizados pelo seu desprendimento 
e invisibilidade, garantindo a seu portador 
urn certo desernbaraco na apreensao e apre­
ciacao cultural; por sua vez, 0 aprendizado 
escolar sistematico seria caracterizado por ser 
voluntario e consciente, garantindo a seu por­
tador uma familiaridade tardia com a produ­
~ao cultural. 
Essas duas formas de aprendizado, segun­
do Bourdieu, seriam responsaveis pela forma­
cao do gosto cultural dos individuos. Seria, 
especificamente, 0 que se chamariamos de 
"capital cultural incorporado", uma dimen­
sao do habitus de cada urn; uma predispo­
sicao a gostar de determinados produtos da 
cultura, por exemplo, filmes, livros ou mu­
sica, consagrados ou nao pela cultura culta; 
uma tendencia desenvolvida em cada urn de 
nos, incorporada e que supoe uma interiori­
zacao e identificacao com certas inforrnacoes 
e/ou saberes; urn capital, enfim, em uma ver­
sao sirnb6lica, transvertido em disposicoes de 
cultura, portanto, fruto de urn trabalho de 
assimilacao, conquistado a custa de muito in­
vestimento, tempo, dinheiro e desernbaraco 
no caso dos grupos privilegiados. 
odescompasso educacional 
Seria pertinente perguntar: qual 0 signifi­
cado dessas contribuicoes de Bourdieu para a 
interpretacao das culturas? Qual 0 significado 
da perspectiva crftica sobre a producao do 
gosto cultural nas sociedades capitalistas? 
Para responder a essa questao, valeria fa­
zer uma pequena digressao. Esabido, entre os 
sociologos da educacao, que todas as relacoes 
educativas e socializadoras sao relacoes de 
comunicacao. Isto e, a mensagem cornunica­
tiva, mais propriamente 0 conjunto de regras 
culturais disponibilizadas pela escola, sobre­
tudo aquelas relativas as artes eruditas ou a 
cultura letrada dependem da posse previa de 
c6digos de apreciacao. Em outras palavras, 
49 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU 
a sensibilidade estetica, a capacidade de as­
similar e se identificar com urn objeto artis­
tico dependem fundamentalmente do acesso 
e, sobretudo, de urn aprendizado previa de 
codigos e instrumentos de apropriacao, isto 
e, uma sensibilizacao anterior, normalmente 
conquistada no seio familiar. 
Ora, diria Bourdieu, em uma sociedade 
hierarquizada e injusta como a nossa, nao sao 
todas as farnilias que possuem a bagagem cul­
ta e letrada para se apropriar e se identificar 
com os ensinamentos escolares. Alguns, os de 
origem social superior, terao certamente mais 
facilidade do que outros, pois ja adquiriram 
parte desses ensinamentos em casa. Existiria 
uma aproximacao e uma similaridade entre a 
cultura escolar e a cultura dos grupos sociais 
dominantes, pois estes ha muitas geracoes 
acumulam conhecimentos disponibilizados 
pela escola. Nesse sentido, 0 sistema de ensi­
no que trata a todos igualmente, cobrando de 
todos 0 que so alguns detem (a familiaridade 
com a cultura culta), nao leva em considera­
cao as diferencas de base determinadas pelas 
desigualdades de origem social. Bourdieu de­
tecta entao urn descompasso entre a compe­
tencia cultural exigida e promovida pela es­
cola e a competencia cultural apreendida nas 
familias dos segmentos rna is populares. 
Em sintese, para Bourdieu 0 sistema es­
colar, em vez de oferecer acesso democratico 
de uma competencia cultural especifica para 
todos, tende a reforcar as distincoes de capital 
cultural de seu publico. Agindo dessa forma, 
o sistema escolar limitaria 0 acesso e 0 pleno 
aproveitamento dos individuos pertencentes 
as familias menos escolarizadas, pois cobra­
ria deles os que eles nao tern, ou seja, urn co­
nhecimento cultural anterior, aquele necessa­
rio para se realizar a contento 0 processo de 
transmissao de uma cultura culta. Essa co­
branca escolar foi denominada por ele como 
uma uiolencia simbolica, pois imporia 0 re­
conhecimento e a legitimidade de uma unica 
forma de cultura, desconsiderando e inferiori­
zando a cultura dos segmentos populares. 
Assim, convertendo as desigualdades so­
ciais, ou seja, as diferencas de aprendizado 
anterior, em desigualdades de acesso a cultura 
culta, 0 sistema de ensino tende a perpetuar a 
estrutura da distribuicao do capital cultural, 
contribuindo para reproduzir e legitimar as 
diferencas de gosto entre os grupos sociais. 
Posto isso, as disposicoes exigidas pela esco­
la, como por exemplo, as sensibilidades pelas 
letras ou pela estetica visual ou musical, en­
fim, uma estetica artistica, privilegio de alguns 
poucos, tendem a intensificar as vantagens 
daqueles rna is bern aquinhoados, material e 
culturalmente. 
Distincoes do gosto 
Com esse argumento Bourdieu poe em dis­
cussao urn dos maiores consensos do seculo, 
qual seja, gosto nao se discute. Ao contrario, 
para ele 0 gosto nao e uma propriedade inata 
dos individuos. 0 gosto e produzido e e re­
sultado de urn feixe de condicoes materiais e 
simbolicas acumuladas no percurso de nossa 
trajetoria educativa. Para ele, 0 gosto cultu­
ral se adquire; mais do que isso, e resultado 
de diferencas de origem e de oportunidades 
sociais e, portanto, deve ser denunciado en­
quanto tal. 
Nesse sentido, as disrincoes do gosto cul­
tural revelam, sobretudo, uma ordem social 
injusta, em que as diferencas de cultura de 
origem podem ser transubstanciadas em dife­
rencas entre 0 born e a mau gosto numa per­
manente estrategia de classificar hierarquica­
mente a cultura dos segmentos sociais, 
Para finalizar, seria interessante fazer al­
gumas ressalvas a esse pensamento. Pierre 
Bourdieu e ainda hoje respeitado como urn 
dos fundadores do paradigma teorico acerca 
das praticas de cultura. Nao obstante, uma 
serie de trabalhos vern tentando atualizar su­
as contribuicoes, admitindo a existencia de 
outros espacos transmissores e legitimado­
res de urn gosto cultural. Entre eles podemos 
destacar 0 poder das midias ou, no caso es­
pecifico dos jovens, seus grupos de pares. Nas 
sociedades modernas, portanto, uma gama 
complexa de referencias de cultura partilharia 
com a escola e a familia a formacao do gosto 
de todos os segmentos sociais. 8 
Maria da Grace Jacintho Setton Eo professora de Sociologia na 
Faculdadede Educacao da USp' autora de Rotary Club: habitus, 
estila de vida e saciabilidade (Ed. Annablume) e organizadora 
dos artigos de Bourdieu reunidosem A produc;aa da crencs: uma 
contribuic;aa para uma tearia das bens simb61icos (Ed. Zauk). 
50 
Articula~oes inovadoras
 
entre ciencia e politica
 
A posicao polftica de Bourdieu esta diretamente associada aos instrumentos de 
iibertacao fornecidos pela pesquisa cientffica 
Jose Sergio Leite Lopes 
A ViSibilidade dos posicionamentos publicos de Pierre Bourdieu se deu amplamente com sua defesa dos di­reitos dos ferroviarios e dos traba­
lhadores e funcionarios que fizeram uma greve 
em dezembro de 1995 paralisando a Franca. 
Nessa ocasiao ele fora uma voz isolada a de­
fender os trabalhadores dentre a maioria dos 
intelectuais de renome, que se conformava 
com uma modernizacao inelutavel diante do 
que era visto como urn movimento grevista 
desesperado em defesa do passado. Mas tal 
visibilidade se deu por ser ele urn sociologo 
de grande notoriedade cientifica, produtor de 
uma obra enorme e inovadora e que havia gal­
gado os postos mais prestigiosos de professor 
e pesquisador na Escola de Altos Estudos em 
Ciencias Sociais e no College de France. Dali 
ate a sua morte, no inicio de 2002, ocupou a 
posicao de intelectual contestatario com gran­
de presenca navida publica. 
Dois anos antes da greve de 1995, Bourdieu 
havia sido condecorado com a medalha de ou­
ro do Conselho Nacional de Pesquisa Cientifica 
da Franca (CNRS) pelo conjunto de sua obra 
- mas 1993 e tambem 0 ana da publicacao do 
livro A miseria do mundo, obra coletiva por 
ele organizada. Esse livro - de mais de 600 
paginas, com uma tiragem enorme, em varias 
reimpressoes, inusitada para urn livro de cien­
cias sociais - chama atencao para 0 sofrimento 
social causado pelas bruscas transformacoes 
capitalistas por que passava a Franca (como 
em diversas partes do mundo). 
No livro e destacado 0 fenomeno da miseria de posidio ressentida 
por grupos sociais e individuos que perdem a antiga sociabilidade e 0 
sentido da vida no trabalho, na vizinhanca ou na familia e tern 0 senti­
mento de piora com a diminuicao do que ele chama de mao esquerda 
Greve em dezembro de 2005.na Franc;a: a partldpcao ativa de Bourdieunos 
movimentoscontra 0 neoliberalismoconcedeu grandepopularidadeao sodoloqo 
51 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU 
do Estado, 0 Estado social de que nos fala 
dois anos depois Robert Castel (em seu livro 
Metamorfoses da questdo social). Eentao que, 
perto da aposentadoria compulsoria aos 70 
anos no ana 2000, Bourdieu torna-se urn in­
telectual de projecao nos movimentos sociais 
i ,' e na resistencia aintensificacao da entrada do 
I'	 
capitalismo em todas as esferas da vida, fazen­
do aumentar as distancias entre classes e gru­
pos sociais, e, como salientado por ele, amea­
cando processos historicos de autonomizacao 
do campo cultural em relacao ao poder eco­
nomico, revertendo 0 que foi sendo construido 
desde seculos anteriores. 
Estudo das formas de dominacao 
Essa posicao de intelectual de grande visi­
bilidade politica dos anos 1990 surpreendeu a 
imagem que tinham de sua trajetoria anterior 
colegas mais distantes ou rivais e, portanto, 
certo senso comum na universidade francesa. 
De fato, Bourdieu distinguia-se por escolher 
novas formas inusitadas de dominacao para 
analisar, atraves de modos reflexivos de analise 
- inclusive a analise critica da escola, da arte, 
da ciencia e dos intelectuais - ameacando de 
certa maneira 0 conformismo escolar e univer­
sitario, Ap6s sua experiencia no mundo rural 
em transformacao, tanto argelino como fran­
ces - onde estuda 0 drama do celibato campo­
nes em seu proprio povoado de origem (sem 
dize-lo), reconciliando-se, atraves do que viu 
do mundo rural argelino, com seu mundo de 
origem, do qual se distanciara por sua forma­
~ao universitaria - Bourdieu tern as condicoes 
materiais (como diretor de pesquisa da Escola 
de Altos Estudos em Ciencias Sociais de Paris 
aos 34 anos de idade) de estudar sistematica­
mente as formas especificas de dorninacao que 
se manifestam na educacao e na cultura. 
Cria assim a nocao de campo que da des­
taque a autonomia de certo dominio de con­
correncia e disputa interna, nocao que e urn 
instrumento na constituicao de urn metodo re­
lacional de analise das dominacoes e praticas 
especificas a urn determinado mundo social. 
Dotado de urn impulso e uma libido volta­
dos para a analise critica do mundo artistico 
e intelectual, possivelmente advindos de suas 
experiencias de origem social confrontadas as 
hierarquias e dos internatos escolares por que 
52 
passou, mas pleno tambern dos instrumentos 
intelectuais e cientificos para faze-lo, Bourdieu 
torna-se urn colega maldito por muitos de seus 
pares concorrentes, que 0 veem'como urn soci­
610go rigoroso, pouco politico no sentido tra­
dicional do intelectual total, mas incomodo 
na critica reflexiva ao mundo intelectual. A 
relutancia de Bourdieu de participar nas for­
mas tradicionais de assinatura de manifestos 
e peticoes acaba tambem ocultando 0 sentido 
politico de sua pratica de pesquisador. Essa 
pratica e uma contribuicao politica de longo 
prazo, investida nos resultados e na maneira 
de fazer pesquisa. 
Desde 0 desvendamento da transrnissao 
da heranca familiar que traz 0 aluno diante 
da escola publica republicana, reproduzindo 
as desigualdades na escola, 0 chamado ca­
pital cultural (ver a coletanea Escritos sobre 
educa~ao,organizada por A. Catani e Maria 
Alice Nogueira, Ed. Vozes), ate as formas de 
poder criadas pelas grandes escolas do siste­
ma universitario bi-partido frances que se cris­
talizam nurna nova nobreza de Estado, pas­
sando pela analise do campo politico e pelo 
campo economico, Bourdieu orienta-se para 
a dissecacao critica do campo do poder na 
sociedade moderna. No entanto, aquilo que 
aprendeu nas sociedades tradicionais e cam­
ponesas enos fenomenos de proletarizacao e 
sub-proletarizacao do inicio de sua carreira, e 
que e trabalhado de forma te6rica em seus li­
vros Esboco de uma teoria da prdtica (1972) 
e 0 senso prdtico (1979), estara sempre pre­
sente em sua nocdo de habitus, construida na 
primeira socializacao familiar e tambem na 
acao de inculcacao escolar ou profissional. Sua 
insistencia no entendimento da pratica e das 
condicoes de possibilidade da acao humana 
faz par com sua aversao ao saber escolastico 
do mundo academico e intelectual, visto co­
mo uma forma de dominacao, E e na virada 
dos anos 1990 que Bourdieu volta de forma 
analitica a empatia que tern pelos dominados 
(e que se manifestara na sua producao sobre 
o campesinato argelino e frances), acionando 
sua rede de pesquisadores para os apresentar 
de forma sensivel, atraves de entrevistas apro­
fundadas, como em A miseria do mundo e em 
capitulos importantes de seu livro de maturi­
dade Medita~8es pascalianas. 
Origens e caracteristicas datrajet6ria 
Mas essa forma diferente de construir urn 
outro ponto de vista sobre a politica vinha sen­
do feita desde 0 inicio de sua trajet6ria profis­
sional, embora somente reconhecida por urn 
circulo mais proximo de colaboradores e leito­
res, incluindo urna rede internacional de pes­
quisadores que teve a estrategia de longo pra­
zo de estimular. Esse estilo de tomar posicao 
atraves da pratica cientffica, desvendando os 
mecanismos mais sutis de dominacao e vendo 
tal conhecimento servindo como instrumentos 
de libertacao, pode explicar-se por algumas 
caracteristicas de sua trajet6ria. 
Urna dessas caracteristicas e 0 fato de ter 
incorporado ao longo de sua obra urn trabalho 
reflexivo permanente e sutil sobre os efeitos de 
sua origem, incorporados asua trajet6ria esco­
lar e profissional, assim como asua percepcao 
dos processos sociais. Embora anteriormente 
asua obra p6stuma de auto-analise os leito­
res familia res e atentos asua obra pudessem 
perceber atraves de seus textos algo dos refe­
ridos efeitos de forma implicita, somente apos 
a publicacao de Esboco de auto-analise (ver 
tambern 0 prefacio de Sergio Miceli na edicao 
brasileira) que essa caracteristica fica mais evi­
denciada para urn publico leitor mais arnplo. 
Como se sabe, Bourdieu teve urna infmcia pas­
sada num povoado rural dos Pirineus france­
ses, neto de camponeses e filho de funcionario 
local dos correios, origem esta muito impro­
vavel de compatibilizar-se com 0 seu otirno 
percurso escolar que 0 levou pelo sistema me­
ritocratico do ensino publico frances a suces­
sivos internatos, primeiramente no ginasio da 
cidade maior da regiao, depois no renomado 
liceu Louis Ie Grand de Paris e finalmente no 
setor de filosofia da Escola Normal Superior de 
Paris. No seu esboco de auto-analise Bourdieu 
da destaque asua vivencia das agruras entre 
os alunos internos da provincia e de origem 
popular, dos quais ele fazia parte, e os alunos 
externos parisienses de alta origem, como que 
lhe proporcionando uma visao precoce e inter­
nalizada das desigualdades sociais no acesso a 
educacao e acultura. 
Urna segunda caracteristica na formacao de 
Bourdieu se da atraves do seu treinamento na 
area de filosofiae historia da ciencia, que lhe 
propiciou instrumentos de base epistemol6gica 
que compoern sua marca distintiva no campo das ciencias sociais de 
seu tempo. Esses instrumentos poderao ser ilustrados pela leitura do 
seu livro publicado em 1968 com seus colegas de entao J. C. Passeron 
e J. C. Chamboredon, A profissZio do socialogo. Essa opcao na filosofia 
contribuiu para faze-lo aproximar-se das ciencias sociais e the deu uma 
solida base para apropriar-se da etnologia, da sociologia e das tecnicas 
estatisticas de forma nao-escolar e de forma autodidata. Alem disso, 
deu-lhe condicoes de valorizar todos os procedimentos do trabalho 
cientifico, mesmo as consideradas mais modestas, usualmente delega­
das a alunos e auxiliares. 
Periodo na Argelia 
A sua conversao para a etnologia e depois para a sociologia se deu 
no impacto de sua estadia na Argelia, Logo ap6s completar seus estudos 
na Ecole Normale, passar pelo concurso da agregation que 0 habilita 
ao ensino secundario e universitario no sistema publico de educacao 
nacional (e que 0 dispensou posteriormente de fazer 0 doutorado), 
Bourdieu econvocado aos 25 anos para 0 service militar na Argelia. 
Serviu nurna guarnicao que protegia urn enorrne estoque de rnunicdo no 
interior da entao colonia e depois passou para 0 service burocratico do 
governo geral frances em Argel. Paralelamente a suas tarefas de escri­
turario e redator no gabinete militar, fazia para si mesmo anotacoes de 
suas observacoes sobre 0 pais que culminaram em seu primeiro livro, 
Sociologie de l'Algerie, publicado em 1958 na colecao "Que Sais-je?" 
("Saber Atual"), onde sua empatia pelo povo argelino dominado pela 
Franca se vestia do conhecimento da complexidade da tradicao cultural 
de suas diferentes etnias, no momenta mesmo em que tal tradicao ene­
gada na metr6pole colonial e mal conhecida pelos pr6prios intelectuais 
franceses engajados contra 0 colonialismo. 
Ao termino do service militar, deu cursos de filosofia e sociologia na 
Faculdade de Argel, onde pode reunir um grupo de estudantes para fa­
zer pesquisas de campo, complementares aos cursos, e depois pesquisas 
etnograficas e estatisticas, desenvolvidas por uma associacao que reuniu 
jovens estatisticos do INSEE (0 IBGE frances) e sua pr6pria equipe de 
estudantes, onde se destacava seu futuro colega e amigo de toda a vida 
Abdelmalek Sayad. Foi assim que na Argelia, fascinado pela tradicao 
cabila que se perdia e pela rransforrnacao brusca do campesinato pela 
modernizacao capitalista e pela politica colonial, Bourdieu desenvolve 
de forma autodidata a pesquisa etnografica e 0 aprendizado das tecnicas 
estatisticas. Edo tesouro de aprendizados e de licoes humanas vividos 
na Argelia, a que e levado de inicio ao acaso e compulsoriamente, que 
Bourdieu tirara materiais analiticos pelo resto de sua vida, alimentan­
do sua obra futura - e isso, mesmo quando ela se volta para realidades 
ernpiricas distintas. 
Tarnbem e do periodo argelino 0 inicio da elaboracao de suas po­
sicoes politicas relacionadas ao conhecimento cientifico.: Nesse caso, 
sua posicao era a de fazer a pesquisa etnologica, mesmo enfrentando 
os perigos da situacao extrema de guerra colonial contra a insurreicao 
nacionalista argelina, e revelar ao publico a analise de processos sociais 
desconhecidos das autoridades coloniais, bern como dos intelectuais 
criticos franceses, assim como de boa parte da rede de militancia e de 
53 
DOSSIE 
! 
Foto tiradaporBourdieu,l>
 
naArgelia, onde realizou,
 
entre 1958e 1961,sua
 
pesquisa etnogratica sobre
 
a desagregal;.lO dos modos
 
devidados camponeses 
apoio dos revoltosos. Isso eargumentado no verdadeiro manifesto que que podem ser fornecidos pela pesquisa cienti­
e 0 pr6logo que inicia a segunda parte do livro Trabalho e trabalba­ fica naquela situacao, Alem disso, no prefacio 
dares na Argelia, de 1963 (versao resumida em portugues, 0 desen­ do livro, sobre 0 que denomina de "fetichismo 
cantamento do mundo), onde se coloca contra as posicoes de principio da estatistica", inicia urna linha de critica aos 
destituidas do minimo de conhecimento empirico dos processos sociais artefatos estatisticos utilizados para justificar 
em questao da parte de intelectuais franceses criticos a guerra colonial efeitos de dorninacao social, analise que pros­
(tendo como mote 0 artigo de urn etn6logo declarando ser impossivel seguira posteriormente com relacao as sonda­
fazer-se pesquisa naquelas condicoes). A posicao politica implicita de gens de opiniao publica que regem cada vez 
Bourdieu se da atraves da valorizacao dos instrumentos de libertacao mais a politica eleitoral. 
54 
) PIERRE BOURDIEU 
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Legado 
De fato, em sua trajetoria ascendente ful­
minante no mundo universitario, Bourdieu 
contara com 0 acaso e 0 senso de oportunida­
de de oferecer analises decisivas a fenomenos 
e processos sociais que estiveram no centro 
da atualidade politica e social. Assim foi com 
suas analises das sociedades argelina e cabilia 
quando a guerra da Argelia era a questao de­
cisiva para a Franca no inicio dos anos 1960; 
assim foi tam bern com suas analises, junto com 
J.e. Passeron, sobre 0 sistema escolar fran­
ces e sobre a centralidade ocupada pela escola 
nas sociedades conternporaneas, antecipando 
a crise de 1968 e dando instrumentos para a 
sua compreensao (0 livro Les heritiers, ainda 
nao traduzido, e de 1964). Tambem esse senso 
de estar tocando, pelos resultados de pesqui­
sa, em problemas cruciais da atualidade, sem 
estar procurando para isso satisfazer a midia 
(antes pelo contrario, analisando seus efeitos 
nefastos), se produz tambem como vimos nos 
anos 1990, quando da publicacao de A mise­
ria do mundo. 
Bourdieu da importancia aos impondera­
veis da vida real, que acabam fazendo da ne­
cessidade virtude, baseado em sua propria tra­
[etoria pessoal. Assim foi com 0 fato de fazer 
dos prolongamentos de seu service militar a 
ocasiao de seus primeiros trabalhos cientifi­
cos de peso, de fazer de sua falta de capital 
cultural herdado urn estimulo a analise critica 
dos intelectuais e dos artistas apos urn enor­
me esforco de aquisicao dos instrumentos de 
conhecimento necessaries; assim foi tambern 
transformar suas posicoes de desvantagem so­
cial vividas no impulso de desvendamento das 
dominacoes e na sensibilidade que tern com os 
dominados. Mesmo 0 fato de trabalhar forte­
mente em equipe no inicio de suas pesquisas, 
formando uma extensa rede de colaboradores 
na Franca e internacionalmente, deu-se pela 
sua necessidade (e ansiedade) de afrontar-se 
aos seus colegas estabelecidos, afeitos as pra­
ticas de catedra, nas instituicoes prestigiosas 
a que foi galgado. Nao somente suas proprias 
obras, como a revista inovadora Actes de la 
congregando uma rede de intelectuais euro­
peus criticos e colecoes de livros a baixo custo 
numa linha militante como Raisons d/agir -, 
tomaram-lhe parte importante de seu ritmo 
impressionante de atividades. 
Seu legado e constituido pela profusao de 
instrurnentos de pesquisa, por ele formulados, 
para serem desenvolvidos em varias areas das 
ciencias humanas. Embora ainda visto frequen­
temente com antipatia no pequeno mundo dos 
colegas concorrentes, de alguns jornalistas e in­
telectuais midiaticos, e da profusao de escolas 
de pensamento rivais na Franca, seu renome 
cientifico internacional e cada vez maior. No 
Brasil sua recepcao foi precoce, comparado 
particularmente aos campos academicos norte­
americano e ingles, Enquanto estes descobri­
ram Bourdieu no final dos anos 1980 e durante 
os anos 1990, traduzindo ja suas obras mais 
famosas e maduras, no Brasil ele e ensina do 
em algumas pos-graduacoes de antropologia e 
sociologia (a partir de alguns poucos ex-alunos 
brasileiros) desde 0 iniciodos anos de 1970, 
atraves de artigos em revistas e seus primeiros 
livros. Tambem desde 1974, com a publicacao 
da coletanea A economia das trocas simboli­
cas, organizada por Sergio Miceli, seus artigos 
iniciais esclarecedores, dificeis de serem encon­
trados hoje em frances, ficaram accessiveis pa­
ra 0 publico universitario brasileiro. 
Alem disso, suas reflex6es inovadoras e sua 
propria pratica, articulando atividade cientifica 
e intervencoes politicas, chegando a resulta­
dos rnais gerais a partir de objetos de analise 
singulares inusitados, assim como trabalhan­
do sobre objetos tradicionais - entre os quais 
aqueles banalizados pelas atualidades da midia 
- sob novos pontos de vista, constituem sua 
contribuicao a perdurar, conservando seu po­
der inovador e sua atualidade no futuro. r!I 
Recherche em Sciences Sociales, fundada em 
1975, e as colecoes que dirigiu, introduzindo 
em lingua francesa autores de outras tradi­
Jose Sergio Leite Lopes e professor do Museu Nacional/UFRJ (Antropoloqia 
Social), aurar de 0 vapor do diabo: 0 trabalho dosopererios do ac;ucar (1976) e 
arganizador de A ambientalizac;ao dos conflitossociais: Participac;ao e controle 
coes nacionais - e depois revistas como Liber, publico da poluic;ao industrial (2004). 
55 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU
 
A dinamica dos meios de
 
• #ItI# 
comumcacao 
A sociologia de Bourdieu desmascara os interesses na producao da notfcia, mas 
tarnbern suas crfticas acadernicas mais inqenuas 
Clovis de Barros Filho 
56 
I nfelizmente 0 sociologo Pierre Bourdieu legou poucos estudos e reflex6es sobre os meios de co­municacao. Apesar de uma pro­
ducao abrangente que discute desde 
problemas relativos a estrutura do 
ensino (A reprodudioi, passando por 
complicadas questoes sobre 0 gosto, 
a arte (A distindio, As regras da arte), 
e ate mesmo tratando questoes liga­
das ao mercado imobiliario (As estru­
turas sociais da economia), Bourdieu 
pesquisou muito pouco sobre a co­
municacao. Seu principal texto so­
bre 0 assunto foi publicado no Brasil, 
em livro, intitulado Sobre a teleuisdo, 
Texto este muito aquern de seus ou­
tros trabalhos. Tanto no mimero de 
paginas, quanto no rigor de pesquisa 
e na profundidade do assunto. Coube 
entao aos seus discipulos, engajados 
no campo da cornunicacao, usar as 
ferramentas oferecidas por ele para 
o estudo da rnfdia. 
Partindo dos referenciais teoricos 
de Bourdieu, podemos afirmar que 0 
gosto, determinante de nossas inclina­
~6es aos atos de consumo rnidiatico, 
tern uma origem social. Assim como 
a propria producao desta. E, por es­
sa razao, ambas devem ser objetos de 
investigacao sociol6gica. Sociologia 
do consumo midiatico, Sociologia de 
sua producao, Problemas intrinsecos 
para quem faz uso dessa maneira de 
ver 0 mundo. 
Com base em A distincdo (1975), 
de Bourdieu, podemos constatar que 
tanto a producao como 0 consumo 
de produtos ligados aos meios de co­
rnunicacao de massa nao apenas pos­
sui uma origem social. Ela tambern 
discrimina e hierarquiza seus agentes. 
Classifica socialmente. Diferencia 0 
leitor da revista CULT da leitora da 
eda~ao dojornal ingles The Oaily Telegraph: 
produ~ao danoticia nao decorre deurn 
donismo naif, como acreditam alguns 
nsadores p6s-modernos 
revista Contigo, e exclui provaveis 
consumidores de revistas pornogra­
ficas que utilizam papel couche fosco, 
o consumo de midia e, portanto, ob­
jeto de distincao social. Assim como 
tambern discrimina os agentes sociais 
que trabalham nesses meios, bern co­
mo seus textos. 
Teoria sobre dominacao 
A definicao do que e urn meio de 
cornunicacao legitimo e, assim, uma 
questao de primeira importancia pa­
ra todos os agentes do grupo social. 
Afinal, alguns meios dominantes, co­
mo a Rede Globo e a Editora Abril, 
por exemplo, pretendem conservar 0 
status quo midiatico, enquanto ou­
tros, como a Rede Record e SBT,edi­
toras perifericas e portais de internet 
apostam na subversao da ordem es­
tabelecida, isto e, da relacao de forcas 
que estrutura 0 espaco da comunica­
~ao. Por isso, essa relacao de forcas 
acaba se objetivando numa relacao 
de valores. Afinal, toda a vida orga­
nizada em sociedade, a menos que se 
recorra aviolencia fisica, deve ser re­
conhecida e aceita como legitima. 
Por isso, a sociologia que estuda 
os meios de comunicacao, como pro­
posta por Bourdieu, e indissociavel 
de sua teoria sobre a dominacao. E 
pela demanda de seus produtos (vul­
go Ibope) e pelas rnanifestacoes dos 
telespeetadores que os dominantes as­
seguram suas posicoes, Abre-se, aqui, 
todo urn campo de analise dos confli­
tos e da violencia simb6lica em jogo 
pelos meios, na qual os dominados 
participarn da construcao de legiti­
midade imposta, aceitando suas posi­
coes e ratificando urn tipo dominante 
de se fazer produtos midiaticos, 
Mas se a midia e urn objeto 
57 
sociol6gico que recentemente se im­
poe, constitui-se num objeto de inves­
tigacao particularmente dramatico pa­
ra 0 sociologo, 0 consumo midiatico 
que, de certa forma, 0 traduz fenome­
nicamente, e urn imenso deposito de 
pre-construcoes naturalizadas, portan­
to ignoradas enquanto tais no cotidia­
no, que funcionam como instrumen­
tos habituais de construcao. Todas as 
categorias comumente empregadas na 
identificacao de suas tendencias, ida­
de - jovens e velhos -, sexo - homens 
e mulheres -, renda - ricos e pobres 
-, sao contrabandeadas do senso co­
mum, pelo discurso cientffico, sem 
muita reflexao, Alem disso, 0 padrao 
de quem avalia urn produto televisivo, 
por exemplo, e 0 padrao enraizado 
pela trajetoria social desse avaliador 
nas suas experiencias com os diversos 
programas de televisao com que teve 
contato desde a infancia, 
Essas categorias de analise do pro­
duto midiatico fazem parte de todo 
urn trabalho social de construcao de 
grupo e de uma representacao desse 
grupo infiltrada na ciencia do mundo 
social. Eo que explica tanta facilida­
de de adaptacao. Facilidade exagera­
da, talvez, Aceitas as categorias, listas 
e mais listas de dados estao adisposi­
~ao do pesquisador para confirmacao 
ou refutacao parcial. 
A investigacao sobre as inclina­
~6es de audiencia deste ou daquele ni­
cho - respeitados os criterios estatis­
ticos de amostragem - ganham aura 
de constatacao cientifica. A indiscuti­
bilidade desse tipo de resultado legiti­
rna procedimentos e suas premissas. 
Encobre seu carater arbitrario. Isso 
porque as escolhas tecnicas, as mais 
aparentemente ernpiricas, sao insepa­
raveis das escolhas de construcao de 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU
 
objeto, as mais teoricas, Logo, expli­
car a producao dos meios de comuni­
cacao atraves de dados de audiencia, 
tiragem, assinantes, cliques, e quanti­
dade de amincios recai num equivoco 
grave que so e justificado pelo imagi­
nario do senso comum. 
"Urn jornalista escreve para 
outro jornalista" 
o campo de producao de conte­
iidos midiaticos tern regras proprias 
que se encontram em seus proprios 
agentes e nas suas relacoes com os 
demais. No meu livro a 'habitus' na 
comunicacdo, mostro como a produ­
cao jornalistica e fruto de urn habi­
tus jornalistico, utilizando 0 jargao 
de Bourdieu, onde os criterios de fato 
jornalistico e de pauta nao sao meras 
,I	 estrategias burguesas de dominacao, 
como diria urn marxista, mas sim fru­
tos de uma interiorizacao da aprendi­
zagem jornalistica. Interiorizacao esta 
que aprende aver 0 mundo segundo 
uma determinada importancia, classi­
"I:H ficada em certas editorias jornalisticas 
(primeira pagina, cidade, esporte, in­I 
ternacional etc.), pensa numa quan­
tidade "x" de caracteres, e avalia a 
materia segundo as observacoes de 
seus pares. Como nossos pesquisados 
confessam, "urn jornalista escreve pa­
ra outro jornalista". Assim como em 
nossas pesquisas sobre0 campo pu­
blicitario, feitas na Escola Superior de 
Propaganda e Marketing, escutamos 
constantemente entre os dominantes 
a mesma observacao: "Minha pro­
paganda se impoe contra meu con­
corrente... Apesar de existirem as 
exigencias do briefing imposto pelo 
contratante, nossa equipe esta pouco 
preocupada com a recepcao do publi­
co final. So nos interessa 0 que nossos 
colegas vao dizer". 
o forte apego apesquisa de cam­
po, exigencia central feita pela socio­
logia de Bourdieu, desmascara nao 
so 0 discurso interessado dos agen­
tes da comunicacao mas tarnbem 0 
senso comum academico que avalia a 
rnidia segundo "achismos". Ao cons­
tatar que 0 discurso de urn jornalista, 
ou de urn relacoes piiblicas, nao e em 
nenhum momento pautado pelos cri­
terios "idealistas" de transparencia, 
objetividade, neutralidade e democra­
tizacao do conhecimento, constata­
mos que tais producoes sao frutos de 
urn jogo de desejos. As materias sao 
selecionadas e escritas visando atin­
gir interesses os mais divers os, deter­
minados pela posicao do agente no 
campo. Sem altruismos e sem pensar 
no "bern comurn", apesar de seus dis­
cursos identitarios, 
Jogo da comunicacao 
Nem mesmo os publicitarios, ti­
dos como manipuladores, estao inte­
ressados no bern de seus clientes ou 
dos consumidores. No que se refere 
aos discursos academicos dominan­
tes sobre a comunicacao, a sociologia 
de Bourdieu, atraves de uma pesqui­
sa de campo rigorosa, expoe as in­
genuidades e os erros que perspecti­
vas marxistas e pos-rnodernas fazem 
da producao midiatica, Ha, sim, in­
teresses envolvidos na fabricacao de 
urna noticia, como ambos denunciam. 
Mesmo nesta materia que eu escrevo, 
denunciando os interesses. Porem, 0 
comunicador nao e movido por uma 
ideologia burguesa para a domina­
~ao de massa. A reuniao de pauta 
das grandes midias nao e, em nenhum 
momento, uma reuniao de porcos as­
querosos que visam camuflar a explo­
racao capitalista e combater a arneaca 
comunista ate seu total exterrninio, 
posicao esta compartilhada por rnui­
tos academicos da "velha guarda" e 
por jovens, cheios de horrnonios, que 
habitam os centros academicos. 
A producao da noticia, ou da pro­
paganda, tambem nao e fruto de dese­
jos individuais que querem se expres­
sar em toda sua "forca" visando sua 
satisfacao e fluidez, caracterfstico das 
ditas "sociedades pos-modernas" de 
consumo. Nao e 0 hedonismo naif 0 
"combustivel" que move oscomunica­
dores de diversas areas, como querem 
acreditar os pensadores pos-moder­
nos. Sao desejos complexos de aceita­
~ao no campo, disputa e dominacao 
que estao em jogo. Sao os trofeus dos 
campos e suas posicoes de destaque e 
dominancia 0 fim ultimo da producao 
de noticia. A "preocupacao" com 0 
leitor, telespectador, ou consumidor e 
somente uma desculpa para justificar 
seus acertos ou fracassos. Respeitar 
o "bern" da empresa que contrata 0 
comunicador e somente uma mera 
desculpa para se manter empregado e 
continuar jogando 0 jogo da comuni­
cacao. Jogo esse com regras bern cla­
ras, mas quase nunca expressas. 
Por essas duas razoes, a sociolo­
gia de Pierre Bourdieu encontra difi­
culdades em se estabelecer no mundo 
academico e rnercadologico. Os rneto­
dos de investigacao, e seus resultados, 
desmancham os mecanismos de defesa 
de ambos os campos. Desmascara os 
agentes da comunicacao e os interes­
ses acadernicos mais sordidos. Ao en­
carar tanto a producao da noticia ou 
publicidade e sua critica voraz como 
produtos de consumo recheados de in­
teresses, essa sociologia cria inumeros 
inimigos. Nesse sentido, imita seu pro­
prio criador. Odiado em vida por mui­
tos e admirado por muito poucos. Ii 
C16vis de Barros Filho Eo professor livre-docente da ECA/USP, 
professor e organizador de curso na ESPM. Eautor de Etica na 
comuniceceo (Summus, 2006) e 0 'habitus' na «omuniceceo 
(Ed. Paulus, 2003) 
58 
Hierarquias da cultura
 
A sociologia da arte de Bourdieu procurou evidenciar a estreita liga<;;ao 
entre polftica e preferencias esteticas 
Ilana Goldstein 
B
ourdieu construiu pilares fundamen­
tais para 0 estudo sociol6gico da cul­tura e da arte, a partir da aplicacao dos conceitos de "campo" e de "ha­
bitus" a diversas esferas de criacao simb6lica, 
como a alta-costura, a fotografia, as artes phis­
ticas e a literatura. No p610 da criacao artistica, 
Bourdieu questionou a crenca no "genio", ou 
seja, a ideia de que urn artista possa produzir 
de maneira isolada, guiado apenas por sua ins­
piracao individual. Propos que, para se com­
preender a genese de uma obra, sejam levadas 
em conta as relacoes do artista no campo de 
producao simbolica a que pertence, bern como 
os constrangimentos sociais e materiais a que 
esta subrnetido.ja no p610 da recepcao, pos em 
xeque a ideia de que as diferencas nas atitudes e 
escolhas do publico se devam a faculdades sen­
soriais e predisposicoes naturais - 0 "born ou­
vide", 0 feeling e assim por diante. Por meio de 
pesquisas ernpiricas, 0 autor demonstrou que as 
preferencias esteticas estao relacionadas, antes, 
aorigem familiar, ao grau de instrucao e apo­
si<;:ao socioeconomica dos individuos. 
Urn sociologo de inspiracao bourdieusiana 
interessado em compreender 0 papel e a po­
etica de determinado criador ira reconstituir 
o percurso biografico, intelectual e profissio­
nal de seu objeto de estudo, mapeando suas 
relacoes com outros agentes do "campo" e 
seus investimentos ao longo da vida. Bourdieu 
chamou esse procedimento metodol6gico de 
"estudo de trajet6ria" e, em Razbes prdticas, 
detiniu-o da seguinte maneira: "diferentemen­
te das biografias comuns, descreve a serie de 
posicoes sucessivamente ocupadas pelo mes­
mo escritor em estados sucessivos do campo". 
Urn exemplo concreto de "esrudo de trajet6ria" 
encontra-se em As regras da arte, livro em que 
o sociologo frances se debruca sobre 0 escri­
tor Gustave Flaubert e no qual afirma que "as 
59 
obras guardam traces de determinismos sociais 
que se exercem por meio do habitus do produ­
tor (familia, escola, contatos profissionais) e 
das demandas e constrangimentos sociais ins­
critos na posicao ocupada por esse artista no 
campo de criacao (...). Flaubert, enquanto de­
fensor da arte pela arte, ocupava urna posicao 
neutra no campo, opondo-se ao mesmo tempo 
aarte social e aarte burguesa". 
De acordo com Bourdieu, a maior parte 
das estrategias artisticas sao simultaneamen­
te esteticas e politicas, 0 processo pelo qual 
determinadas obras se irnpoem sobre outras 
e produto das lutas entre aqueles que ocupam 
momentaneamente a posicao dominante den­
tro do "campo", em virtude de seu "capital" 
especifico - e que tendem aconservacao e a 
rotinizacao da ordem simb6lica estabelecida 
- e aqueles que sao inclinados a"ruptura he­
retica", acritica das formas estabelecidas e a 
subversao dos modelos em vigor. Nessa pers­
pectiva, urn dos grandes desafios do cientista 
social e desvendar as disputas envolvidas na 
definicao das categorias e classificacoes inter­
nas aos campos - como "belo", "legitime" ou 
"moderno" -, explicitando a posicao de onde 
fala cada agente. Faz-se necessario, portanto, 
reconstituir 0 processo de construcao do cano­
ne, a hierarquizacao que preside os sistemas de 
classificacao em generos, escolas, estilos e pres­
tigio - frutos de disputas que acabam sendo na­
turalizadas. A micro-hist6ria pr6pria do "cam­
po" eo pre-requisite para a sua interpretacao. 
Epor isso que uma das principais criticas que 
Bourdieu faz as analises marxistas das obras 
culturais, como as de Lukacs e Goldmann, e 0 
fato de elas colocarem entre parenteses a 16gica 
e a hist6ria especificas de cada "campo", rela­
cionando a obra diretamente a "classe" para 
a qual ela e destinada e fazendo do artista 0 
porta-voz dos interesses gerais de uma classe. 
DOSSIE) PIERRE BOURDIEU 
oconceito de "capital cultural" 
Trata-se, portanto, de uma sociologia da 
cultura que analisa 0 encontro entre a pulsao 
expressiva dos criadores e 0 espaco dos "possi­
veis" em que se movem. Como resume 0 pro­
prio autor, em 0 poder simb6lico: "Se existe 
uma historia propriamente artistica, e porque os 
artistas e seus produtos se acham objetivamente 
situados, pela sua pertenca ao campo artistico, 
em relacao a outros artistas e aos seus produtos 
e porque as rupturas mais propriamente esteti­
cas com uma tradicao artistica tern sempre que 
ver com a posicao relativa, naquele campo, dos 
que defendem esta tradicao e dos que se esfor­
earn por quebra-la". 
Urn segundo conjunto de questoes e desafios 
lancados pela sociologia da cultura de Pierre 
Bourdieu diz respeito aelucidacao da logica que 
rege 0 consumo e as praticas culturais. Uma 
nocao-chave, aqui, e a de "capital cultural" ­
esbocada em 0 amor pela arte e explicitada em 
A distincdo. Trata-se de uma riqueza simbolica 
desigualmente distribuida dentro de cada cam­
po, que e acumulada e transmitida de geracao 
em geracao, traz poder a seus detentores e susci­
ta 0 desejo - consciente ou nao - de se distinguir 
dos demais por meio de atitudes "tipicas" de 
urn conhecedor. Segundo Bourdieu, 0 "capital 
cultural" pode aparecer sob tres formas diferen­
tes: como habitus cultural, quando e fruto da 
socializacao prolongada, que garante a alguem 
saber falar bern em publico ou se sentir avon­
tade em uma opera, por exemplo; como forma 
objetivada, presente em bens culturais como li­
vros, quadros, discos etc.; sob forma institucio­
nalizada, contida nos titulos escolares e vincu­
lada ao mercado de trabalho. Vale destacar que 
nao necessariamente 0 "capital cultural" esta 
associado ao capital econornico; muitas vezes, 
grupos menos privilegiados do ponto de vista 
financeiro sao os maiores detentores do "capital 
cultural". De qualquer maneira, 0 montante e 
a natureza do "capital cultural" possuido pelos 
diferentes agentes tern relacao direta com suas 
preferencias esteticas e aquisicoes culturais. 
Essa hipotese surgiu primeiramente em Un 
art moyen. Essai sur les usages sociaux de la 
photographie (1965), escrito em conjunto com 
Luc Boltanski e Robert Castell. Com base em 
metodologias quantitativas, 0 objetivo do estu­
do era desvendar os diversos usos da fotografia 
! 
:1 
de acordo com a posicao socioeconomica dos entrevistados, da apropria­
~ao mais instrumental amais estetizante, do mero reconhecimento dos 
objetos retratados a alusoes complexas aqualidade formal das imagens. 
Entre as camadas populares, os pesquisadores encontraram urn uso pre­
dominantemente funcional da fotografia (albuns de familia), ao passo 
que as camadas medias valorizaram enfaticamente 0 aspecto "artistico" 
das imagens, ao contrario das camadas superiores, menos entusiasmadas 
com essa "arte mediana". 
Uso estrateqico do gosto 
A publicacao de L'amour de l'art, em co-autoria com Alain Darbel, 
em 1969, viria confirmar que 0 "amor pela arte" e fruto de aprendiza­
gem e socializacao, A pesquisa revelou, por exemplo, que a diferenca na 
taxa de visitacao anual de muse us entre urn agricultor e urn professor 
europeu era da ordem de 300 vezes. A partir dai, 0 que hoje parece evi­
dente, foi urn passo decisivo na epoca: denunciar a ideologia do gosto 
natural. Quinze anos mais tarde, em La distinction (1979), Bourdieu se 
lancou aexplicacao das diferencas de posicionamento politico, de com­
portamento e de apreciacao dos produtos culturais presentes nos dife­
rentes estratos da sociedade, por meio de urn novo conceito: "habitus". 
60 
Vernissage em Melke, Austria: 0 usa estrateqico do gosto permite a
 
demarcacao social e 0 reconhecimento de maior capital simb6lico
 
o autor argumentava que os atores sociais fazem um uso estrategico do 
gosto, manejando sua destreza lingiiistica e estetica como maneira de se 
demarcar socialmente de grupos com menor "capital cultural" e de obter 
reconhecimento simb6lico e prestigio. Nessa logica, 0 consumo cultural 
e 0 deleite estetico sao acionados como forma de distincao, ou seja, a fa­
miliaridade com bens simb6licos traz, consigo, associacoes como "com­
petencia", "educacao", "nobreza de espirito" e "desinteresse material". 
Eo cruel eque a divisao da sociedade entre "barbaros" - incapazes de 
se deleitar com uma bela sinfonia ou uma pintura expressionista - e "ci­
vilizados" - eruditos e dotados de "born gosto" - acaba tendo consequ­
encias politicas: justifica 0 monop6lio dos instrumentos de apropriacao 
dos bens culturais por parte desses ultimos. 
Politicas culturais na Franca e no Brasil 
As analises de Pierre Bourdieu sobre arte e cultura repercutiram muito 
alern da Academia. As instituicoes culturais e os arte-educadores passaram 
a nao mais falar de um publico no singular, abstrato, mas de publicos no 
plural, com cornpetencias e repert6rios diferenciados. 0 livro 0 amor 
pelaarte levou os muse us franceses, inclusive, a repensarem suas estrate­
gias de comunicacao, dando origem a um dos principais instrumentos da 
61 
politica cultural francesa. Desde 1974, 0 gover­
no encomenda levantamentos estatisticos peri6­
dicos sobre a vida cultural das regioes, para um 
relat6rio intitulado Les pratiques culturelles des 
[rancais. Sao estimados, para cada faixa etaria 
e categoria socioprofissional, 0 mimero medio 
de idas a museus, de frequencia ao cinema e ao 
teatro, de visitas a monumentos hist6ricos, a 
pratica amadora de modalidades artisticas, en­
tre outros indicadores. A partir dai, delineiam­
se as estrategias e prioridades do Ministerio da 
Cultura para os an os seguintes. 
Einteressante notar que, tarnbem no Brasil, 
uma das preocupacoes da atual gestae do 
Ministerio da Cultura ecriar indicadores cul­
turais que possam nortear seu planejamento. 
Para suprir a lacuna de informacoes nesse se­
tor, 0 IBGE, 0 MinC, 0 Instituto de Pesquisas 
Econornicas Aplicadas - IPEA e a Casa de Rui 
Barbosa assinaram uma parceria, ha quatro 
anos, criando uma base de dados culturais. 
Inicialmente, estao apenas sendo aproveitadas 
informacoes ja coletadas pelo IBGE em pesqui­
sas gerais, que permitem aferir conclusoes so­
bre a oferta e a demanda de bens e services 
culturais, os gastos das familias e os gastos pii­
blicos com cultura, alern do perfil da mao-de­
obra ocupada em atividades culturais. Mas a 
ideia erealizar sondagens, mais adiante, espe­
cificamente sobre praticas e demandas culturais 
dos diversos segmentos da populacao. Curiosa 
coincidencia: as traducoes de 0 amor pelaarte 
e A distindio s6 foram publicadas, no Brasil, a 
partir de 2004, mesmo ana em que se selou a 
parceria entre 0 MinC, 0 IBGE e 0 !PEA para a 
construcao do Sistema de Indicadores Culturais. 
Talvez se trate apenas de uma coincidencia de 
datas; ou talvez estejamos diante de uma sauda­
vel retroalimentacao entre as politicas ptiblicas, 
a divulgacao cientifica e a reflexao academics, 
como agradaria a Pierre Bourdieu. [!J 
t1ana Goldstein e professora da FGV-SP e da 
Escola de Belas Artes do Parana, e doutoranda em 
Antropologia Social.Eautora de Responsabi/idade 
Social: dasgrandes corpotecoes ao terceiro setor 
(Atica, 2008). 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU
 
Bourdieu e a educacao 
Pelo sistema de ensino, as diferencas iniciais de c1asse sao transformadas em 
desigualdades de destino escolar e em forma especffica de dominacao 
Ana Paula Hey e Afranlo Mendes Catani 
A Partir dos anos 1960, e du­rante quase 45 anos, Pierre Bourdieu produziu um con­junto de analises no ambito 
da sociologia da educacao e da cultura 
que influenciou decisivamente algumas 
geracoes de intelectuais, obtendo 0 re­
conhecimento de pesquisadores, estu­
dantes e ativistas que atuam em varias 
outras esferas da sociedade. Em "Uma 
sociologia daproducao do mundo cul­
tural e escolar", introducao a Escritos 
de educacdo (1998), que reline 12 
textos do soci6logo frances, Maria A. 
Nogueira e Afranio Catani escrevem 
o seguinte: "Ao mesmo tempo em que 
colocava novos questionamentos, sua 
obra fornecia respostas originais, re­
novando 0 pensamento socio16gico 
sobre as funcoes e 0 funcionamento 
social dos sistemas de ensino nas so­
ciedades conternporaneas, e sobre as 
relacoes que mantem os diferentes gru­
pos sociais com a escola e com 0 saber. 
Conceitos e categorias analiticas par 
ele construidos constituem hoje moeda 
corrente da pesquisa educacional, im­
pregnando boa parte das analises bra­
sileiras sobre as condicoes de producao 
e de distribuicao dos bens culturais e 
simb6licos, entre os quais se incluem 
os produtos escolares". 
Bourdieu, em seus escritos, procu­
rou questionar, nas sociedades de clas­
ses, tematica que persegue muitos in­
telectuais: a compreensao de como e 
por que pequenos grupos de individu­
os conseguem se apoderar dos meios 
de dominacao, perrnitindo nomear e 
representar a realidade, construindo 
categorias, classificacoes e vis6es de 
mundo as quais todos os outros sao 
obrigados a se referir, Compreender 0 
mundo, para ele, converte-se em pode­
roso instrumento de libertacao - e esse 
procedimento que ele realiza, dentre 
outros domini os, no educacional. 
A cultura vema ser urn sistema de 
significacoes hierarquizadas, tornan­
do-se urn m6vel de lutas entre grupos 
sociais cuja finalidade e a de manter 
distanciamentos distintivos entre clas­
ses sociais. A dominacao cultural se 
expressa na f6rmula segundo a qual a 
cada posicao na hierarquia social cor­
responde uma cultura especifica (eli­
tista, media, de massa), caracterizadas 
respectivamente pela distincao, pela 
62 
pretensao e pela privacao. Definida 
por gostos e formas de apreciacao 
estetica, a cultura e central no pro­
cesso de dominacao; e a imposicao 
da cultura dominante como sendo 
"a cultura" que faz com que as clas­
ses dominadas atribuam sua situacao 
subalterna a sua suposta deficiencia 
cultural, e nao a imposicao pura e 
simples. 0 sistema de ensino desem­
penha papel de realce na reproducao 
dessa relacao de dorninacao cultural, 
funcionando ainda, para Bento Prado 
Jr., "como chancela de diferencas cul­
turais e Iingiiisticas ja dadas, antes da 
escolarizacao, no quadro da socializa­
c;ao primeira, que e necessariamente 
diferencial, segundo a inscricao das 
familias nas diferentes classes sociais. 
(... ) 0 c6digo Iingiiistico da burgue­
sia (com seus cacoetes, idiotismos, sua 
particularidade) sera encontrado, pe­
los futuros notaveis, nas salas de aula, 
como a linguagem da razao, da cultu­
ra, numa palavra, como elemento ou 
harizonte da Verdade. 0 particular e 
arbitrariamente erigido em universal e 
o 'capital cultural' adquirido na esfera 
domestica, pelos filhos da burguesia, 
, 
"'­
"Tratando todos os educandos como iguais emdireitose deveres, 0 sistemaescolar e levadoa dar sua san~ao as desigualdades iniciais de cultura" 
lhes assegura urn privilegio considera­
vel no destino escolar e profissional. 
No Destino, enfim" ("A Educacao de­
pois de 1968", em as Descaminhos 
da Educadio, ed. Brasiliense). 
A escola como reprodutora da 
dominacao 
A funcao do sistema de ensino eser­
vir de instrumento de legitimacao das 
desigualdades sociais. Longe de ser li­
bertadora, a escola econservadora e 
mantern a dominacao dos dominantes 
sobre as classespopulares, sendo repre­
sentada como urn instrumento de refer­
co das desigualdades e como reprodu­
tora cultural, pois ha 0 acesso desigual 
a cultura segundo a origem de classe. 
o fil6sofo idealista Alain (Emile 
Chartier, 1868-1951) foi professor 
durante decadas na Kbiigne (classes 
preparat6rias as Escolas Normais 
nas areas de letras e filosofia, on­
de sao recrutados os intelectuais de 
maior prestigio no campo intelectu­
al frances) do Lycee Henri IV (Paris) 
tendo, dentre centenas de outros alu­
nos, Raymond Aron, Simone Weill e 
Georges Canguilhem. Em 1932, Alain 
escrevia em Propos sur leducation ­
Pedagogic enfantine, de maneira apo­
logetica, que "se pode perfeitamente 
dizer que nao ha pensamento a nao 
ser na escola", 
Bourdieu construira sua trajeto­
ria analitica no dorninio da sociolo­
gia da educacao procurando opor-se 
a urn idealismo como 0 preconizado 
por Alain, em que a reflexao edes­
tituida de qualquer fundamento his­
t6rico, como na velha tradicao fran­
cesa. Em artigo de 1966, "A escola 
conservadora: as desigualdades frente 
a escola e a cultura" , rompe com as 
explicacoes fundadas em aptidoes na­
turais e individuais e critica 0 rnito do 
"dorn", desvendando as condicoes so­
ciais e culturais que permitiriam 0 de­
senvolvimento desse mito. Desmonta, 
tarnbem, os mecanismos atraves dos 
quais 0 sistema de ensino transforma 
as diferencas iniciais - resultado da 
transmissao familiar da heranca cul­
tural- em desigualdades de destino es­
colar. Explora a relacao com 0 saber, 
em detrimento do saber em si mesmo, 
mostrando como os estudantes pro­
venientes de familias desprovidas de 
capital cultural apresentarao uma re­
lacao com as obras da cultura veicu­
ladas pela escola que tende a ser inte­
ressada, laboriosa, tensa, esforcada, 
enquanto para os alunos originarios 
de meios culturalmente privilegiados 
essa relacao esta marcada pelo dile­
tantismo, desenvoltura, elegancia, fa­
cilidade verbal "natural". Ao avaliar 0 
desempenho dos alunos, a escola leva 
em conta, conscientemente ou nao, es­
se modo de aquisicao e uso do saber. 
Segundo Bourdieu, "para que se­
jam desfavorecidos os mais favoreci­
dos, enecessario e suficiente que a es­
cola ignore, no ambito dos conteudos 
do ensino que transmite, dos rnetodos 
e tecnicas de transrnissao e dos crite­
rios de avaliacao, as desigualdades cul­
turais entre as criancas das diferentes 
classes sociais. Tratando todos os edu­
candos, por mais desiguais que sejam 
eles de fato, como iguais em direitos e 
deveres, 0 sistema escolar elevado a 
dar sua sancao as desigualdades ini­
ciais diante da cultura" . 
Bourdieu constr6i seu esquema 
analitico relativo ao sistema esco­
lar e as relacoes nao explicitas que 0 
63 
DOSSIE ) PIERRE BOURDIEU
 
ancoram em uma longa trajetoria que 
envolve analises empiricas objetivas, 
centradas em estatisticas da situacao 
escofar francesa. Ja em 1964, em Les 
etudiants et leurs etudes (as estudan­
tes e seus estudos) e Les beritiers. Les 
etudiants et la culture (as herdeiros. 
as estudantes e a cultural, escritos 
com Jean-Claude Passeron, examina 
como os estudantes se relacionam com 
a estrutura do sistema escolar e co­
mo sao nele representados, e constata 
a desigual representacao das diferen­
tes classes sociais no sistema superior. 
Investiga a cultura "legitima", aquela 
das classes privilegiadas que evalidada 
nos exames escolares e nos diplomas 
outorgados, e 0 ensino, aquele que au­
tentica urn corpo de conhecimentos, 
de saber-fazer e, sobretudo, de saber 
dizer, que constitui 0 patrimonio das 
classes cultivadas. 
o fato de desvendar as desigual­
dades do ensino frances, tanto como 
sistema como em seu interior, signifi­
ca uma grande mudanca no pressu­
posto ja canonizado - principalmente 
com Durkheim, que personifica 0 ide­
al da Tcrceira Republica (1870-1940), 
conhecida como "A Republica dos 
Professores" -, em que a escola de­
veria fornecer a educacao para todos 
os individuos, proporcionando-lhes 
instrumentos que pudessem garantir 
sua liberdade, mas, tarnbern, sua as­
censa0 social. 
Ao afirmar que 0 sistema esco­
lar institui fronteiras sociais analo­
gas aquelas que separavam a grande 
nobreza da pequena nobreza, e esta 
dos simples plebeus, ao instaurar uma 
ruptura entre os alunos dasgrandes 
escolas e os das faculdades (ao anali­
sar 0 campo universitario frances e 0 
papel das Grandes Ecolesi, Bourdieu 
desvela a crueza da desigualdade so­
cial e, ao mesmo tempo, como ela e 
simulada no sistema escolar e entra­
nhada nas estruturas cognitivas dos 
participantes desse universo - profes­
sores, alunos, dirigentes. 
Conhecimento e poder 
Assim, a instituicao escolar e vis­
ta como desempenhando uma grande 
funcao de producao de diferencas cog­
nitivas, uma vez que ajuda a produzir 
esquemas de apreciacao, percepcao e 
acao do mundo social por via da inter­
nalizacao dos sistemas classificatorios 
dominantes no mundo social global. 
Suas analises da educacao, entao, 
passam a pertencer ao campo da so­
ciologia do conhecimento e da socio­
logia do poder, pois como ele mesmo 
afirma, longe de ser urna ciencia apli­
cada e adequada somente aos peda­
gogos, ela se situa na base de uma 
antropologia geral do poder e da le­
gitimidade, porquanto se detern "nos 
mecanismos responsaveis pela repro­
ducao das estruturas socia is e pela re­
producao das estruturas mentais", 
Para Loic Wacquant, Bourdieu ofe­
rece uma anatomia da producao do 
novo capital [0 cultural] e uma ana­
lise dos efeitos socia is de sua circula­
<;ao nos varies campos envolvidos no 
trabalho de dominacao. Em La no­
blesse d'Etat (A nobreza do Estado) 
comprova e reforca suas teses iniciais 
sobre 0 sistema de ensino e a "rela­
cao de colisao e colusao, de autono­
mia e cumplicidade, de distancia e de 
dependencia entre poder material e 
poder sirnbolico". Sua sociologia da 
educacao e, antes de tudo, uma "antro­
pologia generativa dos poderes focada 
na contribuicao especial que as formas 
simb6licas dao arespectiva operacao, 
conversao e naturalizacao, (...) 0 inte­
resse de Bourdieu pela escola deriva do 
papel que ele the atribui como garan­
tidor da ordem social conternporanea 
via magia do Estado que consagra as 
divisoes sociais, inscrevendo-as simul­
taneamente na objetividade das distri­
buicoes materiais e na subjetividade 
das classificacoes cognitivas". 
A apropriacao do autor no campo 
educacional brasileiro ocorre de for­
ma mais incisiva no uso de suas no­
coes mais evidentes e, nao raramente, 
desvinculadas de sua epistemologia. 
Epor isso que podemos encontrar os 
"teoricos" de Bourdieu, os "ativistas" 
e, de forma menos usual, aqueles que 
se apropriam de sua "pratica episte­
mologica". Constata-se a necessida­
de de re-conhecer 0 autor, buscando 
o entendimenro da teoria sociologies 
que embasa suas nocoes rnais conhe­
cidas e tambern rnais banalizadas, as­
sim como 0 sentido da percepcao do 
mundo social que tal teoria informa. 
Bourdieu nos ensina que toda pratica 
humana encontra-se imersa em uma 
ordem social, sobretudo essa catego­
ria especifica de praticas inerentes ao 
mundo academico. Fazer uma socio­
logia da educacao bourdieusiana, ana­
lisando 0 papel do sistema de ensino 
na consagracao das divisoes sociais e 
consolidando urn novo modo de do­
rninacao, torna-se urn desafio ate para 
os acadernicos mais ousados. 8 
Ana Paula Hey e professora no Programa de Pos-Graduacao em 
Educa~ao da UMESP e autora do livro Esbor;o de uma sociologia do 
campo academico. A educar;ao superior no Brasil (EDUFSCar/FAPESP) 
Afranlo Mendes Catani eprofessor na Faculdade de Educa~ao da 
USP e pesquisador do CNPq. Organizou, comMariaAlice Nogueira, 
Escritos de educac;ao (Vozes), reunindo ensaios de Pierre Bourdieu. 
64 
Bibliografia selecionada disponivel no Brasil 
Coletaneas de artigos LiVIo de grande repercussao social 
1--- A economia das trocas simbolices .~.. . A Miseria do Mundo 
Sao Paulo : Perspectiva, 1974 
. Petropolls: Vozes, 2003 I ­
I--- Coisas ditas Livros com materiais da Argelia J Sao Paulo: Brasiliense, 1990 
--- A Dominaqao Masculina 
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999 
___ 0 poder simb6lico 
Lisboa / Rio de Janeiro: DIFEU 
Bertrand Brasil, 1989 Revista Socio/ogia e Po/itica 
n. 26, junho de 2006
 
(disponfvel em http. z/www.scielo.br)
 
~ ,::," 1--- Escritos Sobre Educeceo 
.nlulJl;lI - - - - a Desencantamento do Mundo'~~ B Petropolis: Va,,"s, 1999 Sao Paulo: Perspectiva, 1979 
Plt ARE: 
SO URO, EU 
--- Razaes Praticas 
RAl 6 f:S 
~~_T.I .S~~ Sao Paulo: Paplrus, 1996 Livro sobre classificacoes sociais, cultura e poder 
A Distim;ao; Critica Social do 
Ju lgamento 
--- A Socio/ogia de Pierre Bourdieu -~ Porto Aleqre/Sao Paulo:
 
"....= Sao Paulo: Olho d'aqua, 2005 .-. ZoukiEDUSP, 2007 (1979)
 
-e 
Livros sobre arte 
o Amor Pe/a Arte: museus de arteLivro postumo 
--- na europa e seu publico 
Porto Alegre: Editora Zouk, 2003 
- - - Esboc;o de auto-analise 
Sao Paulo: Cia. das Letras, 2005 As Regras da Arte; genese do 
campo titersrio 
Sao Paulo: Cia. das Letras , 1996 
Sintese e balance de sua obra Textos de intervencao politica 
---- Meditaqaes Pascalianas 
--- Sabre a TelevisiioRio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2001 
Rio de Janeiro: Zahar, 1997 
Livro epistemol6gico Contrafogos 
A Profissao do Sociotago Rio de Janeiro : Zahar, 1998 
(escrito com J-C Passeron e J-C Camboredon) 
Petr6polis: Vozes, 1999 
65

Outros materiais