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MINNER, Horace. “Body Ritual among the Nacirema”. Tradução para o português de Eduardo Viveiros de Castro. In: American Anthropologist – vol. 58, 1956, pp. 503- 507. Os rituais do corpo entre os Nacirema O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comportamento que diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que ele não consegue surpreender-se mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato, se todas as combinações logicamente possíveis de comportamento ainda não tenham sido encontradas em alguma parte do mundo, o antropólogo tem o direito de suspeitar que elas devem estar presentes em alguma tribo ainda não descrita. Esta observação, de fato, já foi feita por Murdock1, no que diz respeito à organização clânica. Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão inusitados que nos parece apropriado descrevê-los como exemplo dos extremos a que pode chegar o comportamento humano. O professor Linton2 foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o ritual dos Nacirema, vinte anos atrás, mas a cultura desse povo ainda permanece insuficientemente compreendida até os dias atuais. Trata-se de um grupo norte- americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe sobre a sua origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a mitologia dos Nacirema, foi um herói cultural, Notgnihsaw, que deu origem à sua nação; ele é conhecido, também, por outras duas façanhas de força: ter atirado um colar de conchas, usado pelos Nacirema como dinheiro, através do rio Po-To-Mac, e ter derrubado uma cerejeira na qual residia o Espírito da Verdade. A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evoluiu em um rico habitat natural. Embora a maior parte do tempo das pessoas, nessa sociedade, seja destinado às atividades econômicas, uma grande porção do fruto desses trabalhos e uma considerável parte do dia são despendidas em atividades rituais. O foco dessas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante no ethos desse povo. Apesar de que esse interesse não seja, por certo, pouco comum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícita são únicos. A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante, e que sua tendência natural é para a debilidade e a enfermidade. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar essas características através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a esse propósito. Os indivíduos mais poderosos nessa sociedade têm vários santuários em suas casas e, de fato, a alusão à opulência de uma casa, freqüentemente é feita em termos da quantidade de centros rituais que possui. A maioria das casas é construída de madeira, toscamente pintadas, mas os santuários dos mais ricos têm paredes de pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas, aplicando placas de cerâmicas às paredes de seus santuários. Embora cada família possua pelo menos um desses santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, neste caso, somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude, contudo, 1 George Peter Murdock (1897-1985). In: Social Structure. New York: Macmillan Company, 1949, p. 71 2 Ralph Linton (1893-1953). In: The Study of Man. New York: D.Appleton-Century Co., 1936, p. 326. Melhor conhecido por estudos de endoculturação (em que a cultura de uma sociedade é transmitida de uma geração para outra). estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu examinar esses santuários e obter a descrição dos rituais. O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Nesse cofre são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Esses preparados são obtidos de vários profissionais especializados, dentre os quais os mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços devem ser recompensados com presentes substanciais. Contudo, os curandeiros não fornecem as poções curativas para seus clientes; apenas decidem quais devem ser os ingredientes e então os escrevem em uma linguagem antiga e secreta. Essa escrita é entendida somente pelos curandeiros e pelos herbanários, os quais, mediante outro presente, providenciam o encantamento necessário. Os Nacirema não se desfazem do encantamento depois de ter servido ao seu propósito, mas os colocam na caixa-de-encantamentos do santuário doméstico. Como essas substâncias mágicas são específicas para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias desse povo são muitas, a caixa-de- encantamentos está geralmente próxima de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são suas finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham se mostrado muito vagos em relação a essa questão, só podemos concluir que o que os leva a conservar todas as antigas substâncias é a idéia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, diante da qual os rituais do corpo são efetuados, protegerá de alguma forma o devoto. Abaixo da caixa-de-encantamentos existe uma pequena fonte. Todos os dias, cada membro da família, um após o outro, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa-de-encantamentos, mistura diferentes tipos de águas sagradas na fonte e realiza um breve rito de ablução. As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente puro. Na hierarquia dos praticantes da magia, logo abaixo dos curandeiros, em termos de prestígio estão os especialistas cuja designação pode ser melhor traduzida por “sagrados-homens-da-boca”. Os Nacirema têm um horror quase patológico e, ao mesmo tempo, uma fascinação pela boca, cujo estado, acreditam, possui uma influência sobrenatural em todas as relações sociais. Acreditam que se não fosse pelos rituais da boca seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam e seus amados os rejeitariam. Acreditam também na existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca para as crianças que se considera uma forma de aprimorar sua fibra moral. O ritual do corpo, executado diariamente por todos, inclui um rito bucal. Apesar de os Nacirema serem tão escrupulosos no cuidado com a boca, esse rito envolve uma prática que choca o estrangeiro não-iniciado, que só pode considerá-la repugnante. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo em uma série de gestos altamente formalizados. Além do rito bucal privado, as pessoas procuram o sacerdote da boca uma ou duas vezes por ano. Esses profissionais possuem uma impressionante parafernália de instrumentos, que consiste de brocas, furadores, sondas e agulhas. O uso desses objetos no exorcismo dos demônios da boca representa, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável. O sacerdote da boca abre a boca do cliente e, utilizando os instrumentos acima mencionados, alarga todas as cavidades produzidas nos dentes por degeneração. Nessas cavidades são colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpadas para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Do ponto de vistado cliente, o propósito dessas aplicações é impedir a degeneração e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato de os nativos retornarem ao sacerdote da boca ano após ano, apesar de seus dentes continuarem a degenerar. Esperemos que quando for realizado um estudo completo dos Nacirema, seja feita uma pesquisa cuidadosa sobre a estrutura de personalidade desse povo. Basta observar o brilho nos olhos de um sacerdote da boca quando ele enfia um furador em um nervo exposto, para se suspeitar de que esse rito envolve certa dose de sadismo. Se isto puder ser comprovado, teremos um modelo muito interessante, pois a maioria da população demonstra tendências masoquistas bem definidas. Foi a essas tendências que o professor Linton se referiu ao discutir uma parte específica do ritual diário do corpo, que é desempenhado apenas pelos homens. Essa parte do rito consiste em raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos femininos especiais ocorrem apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que lhes falta em freqüência é compensado em barbaridade. Como parte dessa cerimônia, as mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo, que parece ser preponderantemente masoquista, tenha desenvolvido especialistas sádicos. Os curandeiros possuem um templo imponente, ou latipsoh, em cada comunidade de certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas nesse templo. Essas cerimônias envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que se movimentam serenamente pelas câmaras do templo com roupas e penteado específicos. As cerimônias no latipsoh são tão cruéis que é de surpreender o fato de que uma razoável proporção de nativos realmente doentes que entram no templo se recupere. Sabe-se que crianças pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às tentativas de serem levadas ao templo, porque “é lá que se vai para morrer”. Apesar disso, os doentes adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter- se aos prolongados rituais de purificação, quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante ou quão grave seja a emergência, os guardiões de muitos templos não admitem um cliente se ele não puder dar um presente valioso para os encarregados. Mesmo depois de ter conseguido a admissão e sobrevivido às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito se ele não fizer outra doação. O suplicante que entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Nacirema evitam a exposição do seu corpo e de suas funções naturais. O banho e as atividades de excreção são realizados apenas na intimidade do santuário doméstico, onde são ritualizados como parte dos ritos corporais. A súbita perda da privacidade corporal, ao se entrar no latipsoh, costuma causar traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa jamais viu quando ele realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma vestal enquanto executa suas funções naturais em um recipiente sagrado. Esse tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas por um adivinho para diagnosticar o curso e a natureza da enfermidade do cliente. Os clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e picadas dos curandeiros. Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de deitarem em camas duras. As cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote da boca, provocam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais despertam seus miseráveis pacientes a cada madrugada e os rolam em seus leitos de dor enquanto executam abluções, com movimentos formais nos quais essas virgens são altamente treinadas. Em outros momentos, elas inserem bastões mágicos na boca do suplicante ou obrigam-no a engolir substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos o curandeiro vem aos seus clientes e espeta agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que essas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé das pessoas no curandeiro. Ainda resta um outro tipo de profissional, conhecido como “escutador”. Esse feiticeiro tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos. As mães são particularmente suspeitas de colocarem uma maldição nas crianças, enquanto ensinam a elas os ritos secretos do corpo. A contra-magia do feiticeiro “escutador” é singular por sua ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao “escutador” todos os seus problemas e temores, começando pelas dificuldades iniciais que consegue se lembrar. A memória demonstrada pelos Nacirema nessas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum para o paciente deplorar a rejeição que sentiu quando bebê, ao ser desmamado, e alguns indivíduos chegam a localizar a origem de seus problemas nos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento. Para concluirmos, deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo e suas funções. Existem jejuns rituais para tornar magras as pessoas gordas, e banquetes cerimoniais para tornar gordas as pessoas magras. Outros ritos são usados para fazer os seios das mulheres maiores, se eles são pequenos, e menores, se eles são grandes. A insatisfação geral com o tamanho dos seios é simbolizada pelo fato de que a forma ideal está virtualmente além da escala de variação humana. Algumas poucas mulheres, dotadas de um desenvolvimento hipermamário quase inumano, são tão idolatradas que podem levar uma boa vida, simplesmente viajando de aldeia em aldeia, permitindo aos embasbacados nativos admirá-las em troca de uma taxa. Já fizemos referência ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao domínio do secreto. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso sexual é tabu enquanto assunto, e é planejado enquanto ato. São feitos esforços para evitar a gravidez, com o uso de substâncias mágicas, ou pela limitação do intercurso sexual a certas fases da lua. A concepção é, na realidade, pouco freqüente. Quando grávidas, as mulheres vestem-se de forma a esconder seu estado. O parto é realizado em segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus rebentos. Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou que esse povo é dominado pela crença na magia. É difícil compreender como esse povo conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impuseram a si mesmos. Mas até mesmo costumes tão exóticos quanto esses ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski3 quando escreveu: “Olhando de longe e de cima de nossos altos postos de segurança na civilização desenvolvida, é fácil perceber toda a rudeza e irrelevância da magia. Mas sem seu poder e orientação, o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como o fez, nem poderia ter avançado aos estágios mais altos da civilização.” 3 Bronislaw Malinowski (1884-1942). In: Magic, Science and Religion and Other Essays. Glencoe: Free Press, 1948, p. 70. Famoso antropologo cultural, melhor conhecido por seu argumento de que os povos, em toda parte, compartilham de necessidades biológicas e psicológicas comuns, e que a função de toda instituição cultural é cumprir tais necessidades; a naturezada instituição é determinada por sua função.
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