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OS NEURÔNIOS-ESPELHO EXPLICAM CAPACIDADES MENTAIS Espalhados por partes fundamentais do cérebro, o córtex pré-motor e os centros para linguagem, empatia e dor, esses neurônios disparam não apenas quando realizamos uma determinada ação, mas também no momento em que observamos alguém realizar essa ação. O papel dos neurônios-espelho no movimento e em outras funções foi objeto de pesquisa no passado. Agora, no entanto, o foco dos pesquisadores está naquilo que parece ser uma função adicional dessas células — a maneira como disparam em resposta a algo observado. A descoberta desse mecanismo, feita há cerca de uma década, sugere que nos também fazemos mentalmente tudo a que assistimos alguém fazer. Ela explica como aprendemos a sorrir, conversar, caminhar, dançar ou jogar tênis. Na sua forma mais básica, isso significa que ensaiamos ou imitamos mentalmente toda ação observada, quer seja um salto mortal, quer seja um sorriso sutil. Em nível mais profundo, a revelação sugere uma dinâmica biológica para nosso entendimento dos outros, a complexa troca de idéias a que chamamos cultura, e patologias psicossociais que vão da falta de empatia ao autismo. Compreender os neurônios-espelho nos ajuda a entender tudo, desde o que nos leva a bocejar quando vemos alguém abrir a boca às razões para compartilharmos da dor de Hamlet ao assistirmos Lawrence Olivier cair de joelhos. Para alguns, esse poder explicativo faz dos neurônios-espelho a maior descoberta neurocientífica nos tempos recentes. “Isso muda completamente a forma como acreditamos que o cérebro trabalha”, diz Marco lacoboni, pesquisador de neurônios-espelho na Universidade da Califórnia de Los Angeles. O neurocientista cognitivo Vilayanur 5. Ramachandran, da Universidade da Califórnia de San Diego, até ousa dizer que os neurônios-espelho irão fazer pela psicologia o que o DNA fez pela biologia: apresentar um sistema de referência unificador e ajudar a explicar uma série de capacidades mentais que até agora permanecem misteriosas e inacessíveis a experimentos”. Na visão de Ramachandran, os neurônios-espelho podem esclarecer não apenas como aprendemos coisas e entendemos os outros, mas como os seres humanos deram um “grande salto à frente” cerca de 50 mil anos atrás, quando adquiriram novas habilidades em organização social, uso de ferramentas e linguagem e tornaram possível a cultura humana. www.psicopedagogavaleria.com.br O INCIDENTE DAS UVAS PASSAS No entanto, para constatar a maravilha dos neurônios-espelho não é preciso fazer uma especulação de grande alcance. Até o básico já impressiona. Os neurocienti stas que descobriram as células as encontraram por acaso. Giacomo Rizzolatti, Vittorio Gallese e Leonardo Fogassi, da Universidade de Parma, Itália, ligaram eletrodos a neurônios individuais no córtex pré-motor de um macaco, para estudar a atividade neural conforme o animal estendia a mão para pegar objetos diferentes. O momento eureca veio quando Fogassi entrou no laboratório e pegou uma uva passa. Foi quando os neurônios prémotores do macaco dispararam como se o próprio animal estivesse pegando a fruta. Os pesquisadores mal podiam acreditar no que haviam testemunhado. Depois de replicar esse e outros experimentos semelhantes diversas vezes perceberam que tinham descoberto algo novo, e, num a série de trabalhos de 1996, deram aos “neurônios-espelho” seu nome. Desde então, a equipe de Parma, trabalhando com freqüência com Iacoboni, Michael A. Arbib, da Universidade do Sul da Califórnia , e Christian Keysers, da Universidade de Groningen, Holanda, expandiram essas descobertas de forma significati¬va. Constataram, por exemplo, que os neurônios-espelho não disparam apenas quando um animal está observando outra pessoa realizar uma ação, mas também se ouvem o som de alguém fazendo algo que ele próprio vivenciou — rasgar um pedaço de papel, digamos. E conforme começaram a estudar seres humanos (usando imagens de ressonân¬cia magnética em vez de eletrodos), os cientistas identificaram grupos de neurônios-espelho em números mais altos e em mais regiões que em macacos. Os neurônios-espelho foram encontrados nas áreas do córtex pré-motor e parietal inferior, associadas a movimento e percepção, bem como no lobo parietal posterior, no sulco temporal superior e na ínsula, regiões que correspondem a nossa capacidade de compreender o sentimento de outra pessoa, entender a intenção e usar a linguagem. www.psicopedagogavaleria.com.br DA AÇÃO AO ENTENDIMENTO Ao contrário dos macacos, seres humanos usam neurônios-espelho também para imitar diretamente as ações e entender seus significados. Ao que tudo indica, utilizamos essas células para aprender de tudo, desde os primeiros sorrisos e passos a expressões mais suaves e movimentos de dança mais graciosos. Nós também os empregamos para apreciar essas coisas, sentir o significado por trás de um sorriso ou desfrutar — de certa forma por fazer tudo isso num nível neural pré-motor — a sensação de acertar uma bola de tênis quando assistimos a um backhand de Pete Sampras. Essas funções se tornaram evidentes na primeira rodada de investigações com neurônios-espelho no final dos anos 90. Desde então, estudos com imageamento mostraram que, em humanos, essas células abrangem muito mais áreas e funções. Em 1998, Rizzolatti e Arbib descobriram que uma das regiões particularmente ricas em neurônios-espelho é a famosa área de Broca, que, por volta dos anos 1850, Paul Broca descobriu serem críticas para o processamento da linguagem. A teoria dos neurônios-espelho começou a se mesclar à teoria de linguagem existente, segundo a qual as ações têm sintaxe semelhante à linguagem falada ou de sinais. Para os neurônios-espelho, “mão agarra bola” é a mesma coisa, quer seja uma ação, quer seja expresso em linguagem de sinais ou em uma frase falada. Portanto, a linguagem surge de um entendimento sintático gerado pelos neurônios-espelho. Essa idéia ganhou crédito em 2005: uma equipe internacional que incluía Gallese e Rizzolatti descobriu que quando pessoas ouviam sentenças que descreviam ações, os mesmos neurônios-espelho disparavam como teriam disparado caso os participantes tivessem realizado eles mesmos as ações ou tivessem observado sua execução. De maneira notável, as células responderam a uma representação de um processo que parecia ser bastante visual ou visceral. Outra importante descoberta refere-se a nosso entendimento das intenções e emoções de outras pessoas. Vários estudos demonstraram as dinâmicas da empatia, dois com especial elegância. Um, descrito por Lacoboni em 2005, mostra que os neurônios-espelho funcionam em grupos elaborados. Temos um conjunto básico dessas células correspondentes à forma mais essencial de uma ação — estender a mão, por exemplo — que é suplementado por outras séries de neurônios-espelho que disparam seletivamente de acordo com o propósito perce1ado da ação. Lacoboni exibiu a voluntários filmes de pessoas estendendo a mão para pegar vários objetos dentro de um cenário de “chá das cinco” — bule, xícara, jarro de leite, prato de doces, guardanapos — em contextos diferentes. Em cada situação, um conjunto básico de neurônios-espelho de “estender a mão disparou. Mas diferentes neurônios-espelho adicionais também disparavam de acordo com a ação esperada sugerida pelos vários detalhes na cena. Se o espectador via uma mesa bem arrumada e esperava que a mão pegasse uma xícara, uma série disparava, se via a mesa bagunçada e esperava que a mão pegasse uma xícara para limpá-la, o outro grupo disparava. Dessa forma, neurônios-espelho representam papel fundamental quando percebemos intenções — o primeiro passo para entender os outros e também para construir relacionamentossociais e sentir empatia. Vários experimentos, entretanto, mostraram que os neurônios-espelho nos ajudam a compartilhar as experiências de outras pessoas conforme o reflexo delas em suas expressões, proporcionando uma base biológica para a empatia e para o conhecido contágio de bocejos, risadas e de bom ou mau — humor. Uma das observações mais convincentes(e certamente com um dos títulos mais memoráveis)apareceu num trabalho de 2003, “Both of us disgusted in my insula: the common neural basis of seeing and feeling disgust(“Nós dois enojados na minha ínsula: a base neural comum para ver e sentir nojo” em português), publicado por Bruno Wicker, da Universidade do Mediterrâneo, em Marselha, França. Usando imagens de ressonância magnética funcional (fMRI), a equipe de Wicker descobriu que sentir nojo e ver um olhar de repulsa no rosto de alguém fizeram com que o mesmo conjunto de neurônios-espelho disparasse na ínsula, uma parte do córtex ativa na sintetização de informação convergente. www.psicopedagogavaleria.com.br QUANDO O ESPELHO EMBAÇA Dado que os neurônios-espelho são tão fundamentais para a compreensão, faz sentido que falhas entre eles possam criar problemas profundos. De fato, parece que déficits podem ajudar a explicar dificuldades que vão de reserva excessiva a autismo. A possível falha dos neurônios-espelho no autismo é particularmente intrigante. A causa e até a natureza desse estranho distúrbio escapou dos pesquisadores por décadas, deixando os afetados, assim como suas famílias e responsáveis, com poucas explicações sobre determinados comportamentos e modos de tratá-los. Pesquisas recentes sugerem que um sistema de neurônios- espelho inativos possa explicar as dificuldades profundas com linguagem, aprendizado e empatia, que tanto contribuem para isolar o autista. As descobertas indicam anomalias tanto na atividade básica quanto na complexa dos neurônios-espelho. Pesquisa da Escola de Medicina de Harvard, por exemplo, constatou que os neurônios-espelho que disparavam quando pessoas não- autistas observavam alguém fazer movimentos de dedo sem sentido disparavam muito menos em crianças com o transtorno. Essa falta de resposta podia refletir uma falha da função mais básica dos neurônios-espelho, que é a de reconhecer ações dos outros. Em outro estudo, pesquisadores mostram fotos de pessoas com expressões faciais diferenciadas para adolescentes autistas e não-autistas. Ambos os grupos de participantes podiam imitar as expressões e dizer que emoções elas expressavam. Mas enquanto os não-autistas mostravam uma atividade robusta de neurônios-espelho correspondentes às emoções expressadas, tal atividade não ocorria nos adolescentes autistas. Eles entendiam as expressões de maneira cognitiva, mas não sentiam nenhuma empatia. Como essas descobertas podem levar a tratamentos ainda não está claro. Contudo, identificar esse déficit aparente, se os achados se sustentarem, pode ser um grande avanço para especificar as raízes neurais do autismo. www.psicopedagogavaleria.com.br REFLEXOS PROFUNDOS E SOMBRIOS O papel dos neurônios-espelho em entender os outros reside no cerne de afirmações mais profundas sobre essas células. Para alguns pesquisadores, entre os quais Ramachandran, os neurônios-espelho foram cruciais no desenvolvimento de habilidades sociais elaboradas, redes sociais e infra-estrutura de conhecimento que chamamos de cultura do uso de ferramentas ao deleite com Shakespeare, da caça colaborativa ao hip-hop. O registro arqueológico sugere que esse ‘grande salto à frente, o início da cultura humana, começou cerca de 50 mil anos atrás. Mas o cérebro humano não passou por nenhuma explosão de crescimento desde então, na verdade, ele teve aproximadamente o mesmo tamanho por cerca de 200 mil anos. Então, o que mudou? Ramachandran e outros especulam que a mudança foi uma adaptação genética que deu a neurônios-chave a capacidade de espelhamento que eles têm agora, abrindo o caminho para avanços acelerados na compreensão, comunicação e aprendizado. Pela primeira vez, a informação podia ser espalhada, ampliada e modificada para criar a dinâmica intelectual e social da cultura. Os neurônios-espelho nem sempre agem sobre nós de maneira gentil, é claro. Por exemplo, eles podem estar implicados na influência dos jogos de videogame violentos. Estudos iniciais de Iacoboni sugerem que tais jogos reforçam, em nível neuronal básico, uma associação de prazer e realização com infligir danos — ímpeto que a sociedade não quer encorajar. Iacoboni especula que a força dos neurônios-espelho pode ser tal que a violência imitativa, se reforçada, venha a ser mais difícil de resistir do que pensamos. A força dos sistemas de neurônios- espelho, diz Iacoboni, “sugere que a violência imitativa pode nem sempre ser um processo mediado conscientemente’ — isto é, não tão fácil de submeter ao nosso controle. As investigações com neurônios-espelho aumentaram bastante nos últimos 5 anos, e parece certo que irá crescer ainda mais. Resta saber se o avanço revolucionário alcançado em 1996 por Rizzolatti, Fogassi e Gallese irá se tomar tão grande como a descoberta do DNA, em 1953, por James D. Watson e Francis Crick. Mesmo assim, neurônios-espelho já constituem uma das áreas mais ricas da neurociência, tanto intelectual quanto experimentalmente. Se seu enorme poder explicativo for apoiado por resultados mais robustos, eles realmente poderão ser tratados como o DNA da neurociência. www.psicopedagogavaleria.com.br
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