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HISTÓRIA DO DIREITO Renasce a Líbia Antiga: A história é estratégica para a população, tanto no individual quanto coletivo. Por que se rompe com a história anterior de um país? Para ter controle das pessoas. Ou formamos a nossa identidade conhecendo ou reconhecendo em nós a nossa história ou perdemos a nossa identidade. Kadafi queria que os líbios se identificassem com uma única etnia e religião. Agora os líbios estão retomando a historia deles. Verdade e Verossímil: verossímil parece ser a verdade de acordo com o método. A história é de extrema importância para formar a identidade. A história como narrativa única e verdade não nos ajuda formar uma identidade autônoma e livre, porque quando há manipulação ela tem que ser hegemônica, como aquilo que é verdade. História Tradicional: líder, indivíduo, uma versão de quem manda, do vencedor. Nova historia: coletiva, do povo, do homem comum, ampliar as fontes, mais versões sobre o que aconteceu. Ubi Societas Ibi Ius? Onde há sociedade ha direito? Porque as pessoas precisam estabelecer regras para conviver? Os conflitos surgem e não podem se eternar. Se ficar muito no tempo, tudo em volta é ameaçado. Homogeneidade era a prova da convivência. I- Ha direito na pré-história? Fenômeno normativo, jurisdição. Conhecimento jurídico: a tradição para as sociedades pré-modernas. II- Direito Romano: uma introdução 1) Por que direito romano? Um recorte para traçar as origens da família dos sistemas romano-germânicos (ou continentais, em oposição dos anglo-americanos). 2) Um "mapa" histórico do direito romano: - Das origens, pouco precisas, até a transição política da monarquia para a república: uma história encoberta por mitos. - O direito republicano: ascensão, diversificação e expansão; - O direito imperial: apogeu e queda, paralelos ao apogeu e queda do Império do Ocidente. - Breve período de sínteses (legislações romano-barbaras no ocidente, "Corpus Juris Civilies" no Oriente). - Período de quase completo desaparecimento do direito romano no ocidente. - Século IX e séculos XI - XII: dois momentos marcam o ressurgimento do direito romano no ocidente. - Estudo, comentário e apropriação progressiva do direito romano na Baixa Idade Meia e na Modernidade: a formação dos sistemas romano-germânicos. O Direito Romano nos Primeiros anos da Republica 1) Fontes: Inicialmente, só o costume é fonte de direito. Em 451 a.c., surge a 2a fonte: a lei (LEX). As pessoas sabiam o que era correto ou não pelo costume, disciplina da vida social. 2) Processo: o modelo é o das Legis Actiones. Legis Actiones (ações da lei): 1o Estagio ou Fase: Estatal (presidida pelo cônsul). Extremamente solene. Juízo de admissibilidade. Pode haver consulta ao colégio dos pontífices. 2o Estagio ou Fase: Privada (conduzida pelo IUDEX). Menos formal. Julgamento acerca da veracidade dos fatos. Não ha recurso. A decisão não e executada pelo estado. A vingança era visto como um atributo da vitima ou sua família se vingar de quem a tivesse ferido. O autor poderia buscar satisfação a sua pretensão através do processo, se dirigindo ao cônsul em alguns dias do ano e aquele que pretendia ter satisfação do estado, o autor da ação, deveria conduzir o réu a presença do cônsul. Diante do Cônsul o autor pronunciava palavras correspondentes ao tipo de ação contra o outro. Isso é um resquício da fase anterior. O direito não era escrito e tinha que pronunciar diversas palavras para se pretender uma jurisprudência. O Cônsul ira dizer "Sim, reconheço o direito da ação" ou "Não, não ha direito de ação". O Colégio dos pontífices poderia ser consultado. Eram pessoas mais velhas que tinham funções religiosas na sociedade. IUDEX: não era funcionário do estado romano. Havia lista de pessoas que podiam ser IUDEX. O IUDEX conduzia o procedimento ate que a natureza do fato fosse considerada falsa ou verdadeira. Todo o modelo de ação é um conjunto de providencias, como vai descobrir a verdade é ouvindo testemunhas, verificando documento apresentado ou o lugar que aconteceu o que se alega. O IUDEX procura a verdade e toma mais iniciativas do que o nosso juiz toma, inclusive se cercar com outras pessoas que o ajudem a descobrir a verdade. Ele é um representante do estado, naquele ato. O cônsul prevê que pode se prever uma serie de providencias tais como aprisionar a pessoa, leva-la para um espaço publico, pois é uma maneira de forçar a família a realizar esse desembolso. Eles (plebeu) não exigem que se crie um direito melhor para eles, eles querem só saber o conteúdo do direito e ter onde verificar. Mesmo direito escrito demanda Interpretação. A possibilidade de distorcer o direito quando esta escrito é menor do que o oral. A Comissão é incumbida de redigir aquilo que mais frequentemente é objeto de duvida e o que não esta tão claro no costume. O Romano chama o direito de IUS CIVILE = direito do cidadão. O estrangeiro não podia invocar os direitos romanos em seu favor. A lei das 12 Tábuas: é variada em seu conteúdo. Registra um sentimento de que a vingança não pode ultrapassar o quanto da inflação cometida. Prevê serie de regras sobre o processo: acredita que os primeiros e últimos artigos dizem respeito ao processo. O conteúdo dela foi modificado pela interpretação os romanos não gostavam de admitir que foi alterada. Legis Actiones são afetadas pela lei de 12 tábuas. Antes não ha possibilidade de saber quais palavras são pronunciadas. Depois a lei informa quais palavras devem ser pronunciadas e restringe os limites da vingança e da busca da autotutela. O recurso ao estado para buscar resolver o problema fica maior. A família é um ditado sagrado para o romano. Em briga de família a própria família deve resolver a questão. A função que antes era do cônsul passa a ser do Pretor, no inicio do século 4 a.c é nomeado o pretor que deve realizar o julgamento preliminar. O pretor é quem se dedica a isso, fica durante o ano realizando essa função, permitindo a especialização e elabora melhor sua tarefa. Ele começa a admitir que o autor e réu expliquem o que aconteceu. Isso é uma evolução para o direito romano. Quando o pretor passa a ouvir o caso, o relato dos fatos e ajudar a definir qual o direito esta em jogo ele abre espaço para que novos direitos sejam adquiridos pelas pessoas. Pretor: Cria novo modelo processual. 3a fonte de direito: o IUS Honorarium. O Direito Romano em meados da republica 1) Fontes: Costume. Lei. “Juz hiopponorarium": direito do pretor 2) Processo: Legis Actiones. Após a nomeação do pretor: per formulas. Variacoes das legis actiones (novos modelos: pretor/ index). Novas defesas e Interditos: Com esses 3: cria processo e permite que se reconheçam novos direitos materiais (subjetivos). Ius Civile: direito do cidadão: Ius civile não pode ser disponibilizado. Jurisdição romana não pode usar outro direito. Jurisdição estrangeira não pode atuar. Problema não pode ficar sem solução. Não acredita que direito é algo que se crie. Pretor urbano: que cuida dos casos entre romanos. Pretor peregrino: que cuida dos casos entre estrangeiro romano e estrangeiro estrangeiro. Aristocracia: virtude e poder Jurisprudência: virtude pratica. Tomar a decisão correta naquele momento. Para o romano direito é exercício de prudência. O jurista só comenta o direito em um caso. O "pano de fundo" do período clássico: a crise da República e a Transição para o Império: - Os triunviratos: Pompeu Magno/ Julio Cesar/ Lepido Marco Antonio / Crasso / Otaviano - O inicio sem alardes do Império. A Organização do Direito no período clássico: três sínteses Quintus Mucius Scaevola: - Esquema que abordou os temas de direito privado. - Protagonismo do direito sucessório. Masutius Sabimus: - Baseado na estrutura da obra de Scaevola; - Tratou de vários temas do direito privado, sem dedicar especial atenção a uma área. - Autorda noção de delitos como gênero das espécies dano e furto. Gaio: - Obra: as Institutas. - Obscuro professor de direito, sua obra era bastante didática mas teve repercussão a época. - Dividiu-se em: pessoas (critério da nacionalidade, pátria famílias e liberdade), bens (coisas), ações. - Sao de Gaio as noções, ainda em uso, de bens incorpóreos (intangíveis), de obrigações.- Fontes das obrigações como sendo os delitos e os contratos são de Gaio. Quem era o J.R. Ocidente: Legislações Romano Barbaras: - Edito de Eurico. - Edito de Teodorico. - Ex Romana Burgundionum. - Lex Romana Visigothorum No J.R. do Oriente (inicio do século VI): Corpus Iuris Civiles: - Codex. - Digesto. - Institutas (apos a morte de Justiniano). - Novelas Historia do Direito: - 476: Queda do Império Romano do Ocidente. - 508/9: Lex Romana Visigothorum. - 530-40: CIC. - 774: Ascenção de Carlos Magno. - 800: Carlos Magno eh coroado imperador. - 1080/90: - 1122: Concordata de Woms. Doutrina acerdotium-imperium Geracoes de Mestres de Bolonha 1a Pepo: - Causidico (arbitro). - Conhecia Digesto. - Ensinou CODEX, SNST 2a Irnerius (Clerigo): Lançou as bases metodológicas do ensino do direito. O que se tornou padrão em Bolonha voltavam para vários lugares e outras univerdades copiavam o modelo. - Gramatico: f. linguística. - Adotou a técnica da glosa. - Glosar é escolher um objeto e comenta-lo. - Reposiciona o direito também como ramo da lógica, conferindo maior autonomia linguística ao seu estado. - Direito é linguagem, só pode estuda-la quem domina o trivium (gramatica, retorica, e dialética): direito é curso superior. 3a 4 Doutores: Bulgarus, Martinus, Gosia, Hugo, Jacobus. 4a Johannes Bassianus. 5a Azo. 6a Accursius Os glosadores do direito civil e o direito canônico I. As gerações de professores de Bolonha: 1. Pepo 2. Irnerius 3. Os 4 doutores (Belgarno, Martinus, Hugo e Jacobus) - Canones da interpretação. 4. Johanes Bassianus: - Inicio da literatura jurídica - Exposição em 4 etapas. 5. Azo: summa codicis 5. Accursius: Glossa Ordinaria, II. Direito Romano x Direito canônico - Canonistas pleiteiam catedra autônoma: - Razoes contra (dos civilistas). - Falta de uma síntese. - Direito canônico seria "um ramo"" do direito romano. - Razoes a favor: - É um ordenamento crescente. - Tem sua própria jurisdição. - O monge Graciano publica sua obra ""Concordantia Discordantia Canonum"" aplicada ""Decretum". - 20 anos após a publicação, a cátedra é criada em Bolonha. - Nos próximos 150 anos, as normas de direito canônico se multiplicariam de maneira assombrosa, provocando a atualização do Deretum e a reorganização do material em novas sínteses, até o "Corpus Iusis Canonici". - Tal aumento de volume fez-se a custa da invasão de um número cada vez maior de conditas, antes infrações civis/ penais, pelo direito canônico: o problema do limite entre direito civil e direito canônico torna-se o problema central da discussão jurídica, - A jurisdição canônica expande-se no que conhecemos como Inquisição. I, Processo Romano II. Estudo e Recepção do Direito Romano: do sec. XII ao sec. XIX I. Processo Romano na baixa idade média: - Demanda - "Excerpta Legum": dar uma ideia geral. Eh uma carta - "Ordo Judiciarum": dar uma visao geral. Eh um livro. - Papa Alexandre III: emite uma ordem recomendando o livro nas jurisdições canônicas. - O " Speculum Judiciale", G. Durandus. Em 1271 um provençal escreve essa obra que foi referencia do processo romano. O autor começa a ser chamado pelo nome da obra, devido a sua importância, Speculator. - Processo canônico e processo civil. Todas as jurisdições canônicas estão submetidas ao Papa. Isso não acontece nas jurisdições civis. O processo canônico se antecipou ao civil porque as canônicas são organizadas como um organismo chefiado pelo Papa. O canônico aproveita mais elementos do direito romano antes que o processo civil o faça. II - Estudo e recepção do Direito Romano: Como o Direito Romano moldou o direito Germânico e fez nascerem os sistemas romano- germânicos 1) Recepção: modos - Os egressos de Bolonha (alunos serão diplomatas, juízes, árbitros, advogados, notários e assessores jurídicos - estudaram o direito romano e canonico. Em todas essas atividades o direito romano exercer a sua influência e é fonte subsidiaria/ auxiliar de normas.) e de outras universidades atuam em diversas frentes. - As compilações de costumes. Embora a ação de compilar predomine o sentido de reunir o que ja existe ao invés de criar, predomina o Direito Romano. - A legislação: O legislador lança o olhar crítico sobre o costume e o filtro do olhar é o direito romano. Legislar não é criar, é trazer do direito natural. A compilação e legislação são mecanismos eficazes de entrada do direito romano no germânico. - A adoção do processo (pela via do processo canônico) favorece elementos do direito material de origem romana. 2) O jusracionalismo: ruptura jusfilosofica, novo impulso a adoção do direito romano (máximas de Direito Romanos são as "verdades universais" sobre o direito, a partir das quais se deve criar novos sistemas jurídicos: Codificação. Com o jusracionalista tende-se a criar direito. Estimulo maior a legislação. Defende-se que seja criado novos sistemas jurídicos. Nosso sistema existe os códigos como fonte primaria de direito. 3) O ultimo grande momento do estudo/ recepção do Direito Romano: o pandectismo alemão (e o protagonismo da ciência jurídica alemã, ainda hoje). No sex, XII: surge o novo direito: - Cidade, mercado, comercio, novas ocupações. - Formação e expansão dos reinos/ resistência da Igreja que se reorganizava. Aula inaugural: para que serve a história. O cérebro dele, como o nosso, possuía uma ‘gramática narrativa’ interna que o ajudava a compreender o mundo não como uma série de proposições lógicas, mas como uma série de experiências. Ele se explicava e se relacionava com seus semelhantes através de histórias.” “As histórias são importantes eventos cognitivos, porque elas reúnem, num único pacote compacto, informação, conhecimento, contexto e emoção.” “A imaginação narrativa – a forma conhecida como história – é a ferramenta básica do pensamento. (...) As faculdades racionais dependem dela. (...) A maior parte daquilo que vivemos, do nosso conhecimento acumulado e da nossa atividade mental encontra-se organizada sob a forma de histórias.” Objetivos de HD: Permitir que se apreenda o direito como produto da cultura, localizado no tempo e no espaço, como fenômeno exposto à influência de diversos fatores não jurídicos, simultaneamente objeto e causa de fenômenos sociais; Apreender o direito como fenômeno, portanto, essencialmente dinâmico, residindo, na sua organicidade, sua capacidade de subsistir como instrumento de regulação social; Desenvolver a sensibilidade para perceber a história em movimento, percebendo, na experiência jurídica, elementos que sinalizam para mudanças necessárias em um futuro próximo. História Tradicional: historia individual, personagem líder, linearidade, fontes documentais, fatos isolados ou pouco encadeados vistos sob uma perspectiva, versão única dos vencedores. Noção de que o fato é apresentado objetivamente. Nova história: historia coletiva, personagens: as pessoas comuns, circularidade, evoluções e involuções, ampliação das fontes: vestigios, fatos contextualizados, vistos sob perspectiva interdisciplinar, versões alternatias (vencedor/ vencido), consciência da impossibilidade de se construir uma historia absolutamente objetiva. 1. A LEI DAS XII TÁBUAS: Quando se começa a registrar sua história, Roma era regida por uma monarquia, mas ao final do sexto século antes de Cristo os reis foram depostos e uma república foi instaurada. A essa época, Roma era uma pequena comunidade situada na margem esquerda do Rio Tibre, próxima ao seu estuário.Seu povo acreditava descender de refugiados da cidade de Tróia que deixaram a cidade após o saque promovido pelos gregos. Seu direito se compunha de uma série de costumes não escritos, passados adiante geração após geração e considerados parte integrante de sua tradição como romanos. Tais normas eram aplicáveis apenas àqueles que pudessem sustentar sua condição de cidadãos romanos (cives). Nos casos em que a aplicação de uma norma costumeira a um caso em particular se tornava duvidosa, recorria-se à interpretação do colégio de pontífices – um corpo aristocrático responsável pela manutenção dos cultos religiosos do estado – que se pronunciava de modo decisivo sobre o conteúdo em questão. A população romana dividia-se em dois grupos socialmente distintos, os patrícios e os plebeus, sendo os primeiros proprietários de terras, pouco numerosos, mas de origem nobre, enquanto os segundos eram numericamente superiores mas em desvantagem sob vários aspectos. Somente patrícios tinham acesso à função de pontífices, sendo natural, portanto, que os plebeus desconfiassem da imparcialidade de seus pronunciamentos jurídicos. Os plebeus arguíam que, caso os costumes fossem reduzidos à forma escrita, previamente à ocorrência dos casos sobre os quais incidiriam, isso lhes seria vantajoso, pois conheceriam de antemão o conteúdo do direito aplicável à sua situação e, em muitos casos, sequer seria necessário consultar o colegiado para compreendê- lo. Ademais, estando o poder de interpretação dos pontífices limitado aos textos legais, diminuiria o risco de os plebeus sofrerem arbitrariedades resultantes de interpretações parciais. O resultado desse pleito foi a designação, em 451 AC, de uma comissão de dez cidadãos (os decênviros) para preparar uma compilação escrita do conteúdo normativo dos costumes. Essa compilação foi denominada “A Lei das XII Tábuas” e, formalmente proposta à assembléia popular dos cidadãos, foi aprovada. É importante ressaltar que, ao aprová-la, tal assembléia não considerava estar criando norma nova, mas apenas fixando mais claramente, e em texto, o que sempre fora o direito em Roma e que, desde então, passa a receber a designação de lex (oriundo do verbo legere, ler em voz alta), significando a declaração pública e autorizada do que já era o conteúdo tradicional do direito (jus). A Lei das XII Tábuas marca o início do Direito Romano tal como o conhecemos, e trata de matérias de todos os âmbitos do direito, incluindo normas de direito público e de direito sacro. O texto original não sobreviveu até nossos dias, mas tantas são as referências feitas em escritos posteriores que boa parte de seu conteúdo pode ser reconstruído. A ordem em que esses fragmentos apareciam no texto original não é conhecida, e certamente o caráter sistemático dessa legislação, a ela atribuído por eruditos do séc XIX, é um exagero. O que se sabe ao certo é que se iniciava com a disposição referente à intimação do réu para iniciar a ação e terminava disciplinando a execução do julgamento. As XII Tábuas não esgotavam todo o conteúdo do direito conhecido por todos e sobre o qual não pairassem dúvidas; diversamente, concentrava-se em aspectos que haviam sido objeto de disputas e consultas aos pontífices. Seu conteúdo não era particularmente favorável aos plebeus, mas o fato de que grande parte do direito vigente houvesse sido convertido em texto já representava, em si, maior segurança para este grupo social. Em particular, esta lei expunha os procedimentos que as partes podiam realizar sem socorrer-se de uma corte (autotutela), bem como esclarecia as providências referentes ao acesso à tutela judicial. No início do período republicano havia poucos servidores estatais disponíveis para o trabalho na jurisdição, então era difícil movimentar a máquina estatal para auxiliar a quem houvesse sofrido um dano. Em certos casos, a autotutela era tolerada, uma vez que a comunidade ainda não se tornara forte o suficiente para eliminá-la. A lei, contudo, mostrou-se determinada a institucionalizar tais casos e a mantê-los em estreitos limites. Quando surgia uma disputa que as partes não pudessem resolver por si mesmas, elas deviam comparecer diante de um magistrado. O propósito dessa audiência era decidir se tal disputa envolvia matéria disciplinada pela lei civil e, caso fosse, como deveria ser decidida. Antes do advento da república, os ordálios eram recursos utilizados pelos romanos para decidir tais litígios; contudo, no período republicano, o procedimento habitual era a submissão do caso a um cidadão ou grupo de cidadãos, escolhidos pelas partes e pelo magistrado. Esse cidadão, chamado de iudex, investigaria os fatos (a princípio recorresse, talvez, ao que já soubesse por si mesmo acerca do ocorrido), ouviria as evidências trazidas pelas testemunhas e os argumentos das partes e, então, decidiria pela condenação ou absolvição do acusado. O maior problema para quem fosse iniciar tais procedimentos era o de levar o acusado à presença do magistrado. O acusado podia cooperar, de modo a obter, ele mesmo, uma solução para a disputa; contudo, caso não colaborasse voluntariamente, o pleiteante podia forçá-lo a comparecer em juízo. Os limites precisos desse poder não estavam estabelecidos claramente pela norma consuetudinária, mas a Lei das XII Tábuas os fixou. Caso o acusado se recusasse, diante de testemunhas, a comparecer perante o magistrado, ou tentasse fugir, o pleiteante podia usar de força para compeli-lo a ir. Se o acusado se encontrasse doente ou em idade avançada, o pleiteante não podia forçá-lo a comparecer nesta audiência sem providenciar-lhe transporte adequado. Mas, como já se afirmou acima, havia algumas condutas que o cidadão prejudicado por outro podia adotar sem recorrer ao magistrado. Por exemplo, a Lei das XII Tábuas dispunha que, quando um ladrão fosse flagrado no ato de furtar à noite, ou ainda se isto ocorresse durante o dia e o delinquente oferecesse resistência à prisão, o ocupante do imóvel invadido podia matá-lo. Contudo, na maior parte dos casos, um pronunciamento da justiça era necessário antes de qualquer ação direta do interessado. Nos casos de sério dano físico, as partes eram encorajadas a chegar a um acordo sobre o montante a ser pago a título de indenização à vítima; falhando a possibilidade de acordo, a lei autorizava o talião, ou seja, a vítima podia infligir dano em espécie, mas limitado àquele que lhe fora causado (“olho por olho”). A possibilidade de tal retaliação servia como um estímulo a que as partes se esforçassem por chegar a um acordo, de modo que o talião teria sido exercido somente quando a família do ofensor não pudesse ajudá-lo de modo a oferecer uma compensação apropriada. Para casos de ofensas mais leves, nenhuma retaliação era permitida, e quantias fixas eram prescritas a título de compensação. Até então se falou em disputas entre indivíduos, mas na realidade, uma pessoa na Roma Antiga era mais propriamente considerada como membro de um grupo. A unidade com a qual o direito romano se preocupava, em seus primórdios, era a família; a lei não se ocupava do que acontecia dentro dos limites da família, as relações entre seus membros eram consideradas um assunto privado sobre o qual a comunidade não deveria exercer qualquer controle. No que se refere ao relacionamento com outros que não se encontravam na família, esta era representada pelo pater familias, e toda a propriedade do grupo familiar encontrava-se em suas mãos. Todos os seus descendentes masculinos em linha direta (agnatos) encontravam- se sob seu poder. Um menino não deixava de estar sob o controle de seu pai meramente por atingir uma certa idade; até que seu pai morresse, ele não podia ter qualquer propriedade sua. Consequentemente, todo o patrimônio familiar era mantido íntegro e os recursos da família como um todo eram otimizados e fortalecidos. Na prática,portanto, o pleito de uma vítima de furto ou injúria pessoal cometida por um escravo ou um filho ainda dependente tinha que ser dirigido ao chefe de família, uma vez que este era o único em condições de oferecer a compensação financeira a partir dos fundos do grupo. A Lei das XII Tábuas oferecia a este, contudo, a opção de, ou satisfazer a pretensão indenizatória da vítima, ou entregar o delinquente a esta ou ao chefe da família à qual ela pertencesse. Em casos de homicídio não havia ação no âmbito da lei civil (lei dos cidadãos); diversamente, um magistrado tomava a iniciativa, em nome de toda a comunidade, de processar o ofensor, de modo a evitar vinganças familiares ou derramamento de sangue. Normalmente, contudo, a lei fornecia uma disciplina genérica dentro da qual as partes eram deixadas livres para resolver suas diferenças. No período posterior à edição da Lei das XII Tábuas um pleiteante que não recebesse, no período de 30 dias, a indenização fixada pelo iudex , podia pressionar o réu e até chegar a matá-lo. O pleiteante podia trazê-lo à força diante do magistrado e, se nenhum pagamento ou nenhuma garantia substancial fossem oferecidos, ele poderia ser posto em correntes por até sessenta dias. Durante este período, o réu devia apresentar-se na praça do mercado e anunciar sua dívida, de modo que sua família ou seus amigos tivessem a oportunidade de tomar conhecimento de sua situação e lidar com a dívida. A última ameaça era a possibilidade de sua venda para fora de Roma como escravo, de modo a solver os débitos com os credores. Se assim o preferissem, os credores poderiam cortar o réu em quantas partes fossem necessárias para solver os débitos com cada um, desde que nenhum credor se locupletasse à custa de outro. Com o passar do tempo os romanos reconheceram o caráter primitivo de muitos dispositivos dessa lei, mas ela precisa ser vista no contexto de uma comunidade que possuía poucos recursos, em termos de servidores do estado, que pudessem fornecer uma estrutura institucional consistente para a solução judicial dos conflitos. A legislação oferecia aos cidadãos a estrutura mínima dentro da qual as partes pudessem solucionar seus conflitos por si mesmas. Inevitavelmente, a parte que pudesse invocar a assistência de mais escravos, familiares e amigos se encontrava em melhor posição do que aquela que dispusesse de menos recursos em seu favor. 2. O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO PELA INTERPRETAÇÃO Durante o período republicano, algumas disposições da Lei das XII Tábuas foram modificadas. Os credores de um devedor, assim reconhecido pelo iudex e que não solvesse seu débito espontaneamente, não mais podiam matá-lo, mas deviam deixá-lo quitar a dívida mediante trabalho forçado; posteriormente, outra solução se fixou, com o estabelecimento de um procedimento de venda forçada dos bens do devedor, para entrega aos seus credores do valor apurado. A despeito de tais mudanças, contudo, quinhentos anos após a edição da Lei das XII Tábuas, os romanos ainda costumavam olhar para trás e ver sua legislação como “a fonte de todo o direito público e privado” (Lívio), tendo Cícero afirmado que os estudantes, na escola, deviam conhecê-la com o coração. Os romanos possuíam uma forte impressão sobre seu direito, qual fosse, a de que ele possuía o atributo da longevidade e havia sido, desde a fundação de Roma, parte essencial do tecido cultural que a caracterizava. Ao mesmo tempo, eles tinham a expectativa de que esse mesmo direito lhes permitisse fazer o que quer que quisessem, desde que suas pretensões lhes parecessem razoáveis. Na primeira metade da república, a interpretação do direito, quer fosse da lex (Lei das XII Tábuas), quer fosse do ius (costumes não escritos), ainda estava nas mãos dos pontífices, que podiam interpretá-lo em um sentido extensivo, até mesmo produzindo institutos que haviam sido desconhecidos anteriormente. Um exemplo da extensão das possibilidades interpretativas é a emancipação dos filhos em relação ao poder de seu pai (pátrio poder). O poder do pater familias sobre seus descendentes durava até sua morte (do pai ou do filho). À época da Lei das XII Tábuas não havia meios de antecipar voluntariamente o termo (fim) desta relação. O costume permitia ao pater familias vender o filho como escravo, e a Lei das XII Tábuas continha uma previsão, aparentemente para refrear o uso abusivo desse direito concedido pelo costume, segundo a qual, se o pai vendesse o filho por três vezes como escravo (o que só ocorreria se o “vendido” fosse liberto nas duas primeiras ocasiões, retornando à casa paterna), o filho não voltaria ao domínio do pai ao ser liberto pela terceira vez. Como resultado da interpretação conjunta destes dois dispositivos, a venda por três vezes era utilizada pelo pai para emancipar seu filho. Ele fingia vender o filho por três vezes, para um amigo; após cada venda o amigo libertava o seu “escravo” e, após a terceira, em razão do texto da Lei das XII Tábuas, o filho a quem se queria emancipar estava livre, tanto do pai quanto de seu pretenso comprador. Pode-se perceber aí o uso do texto da lei, bem como do conteúdo do costume, para um propósito totalmente diverso daqueles pretendidos por ambos. E a interpretação veio a avançar ainda mais: a lei se referia apenas a filhos, silenciando sobre filhas e netos; mas a partir do momento em que a regra passou a ser vista como um recurso para a emancipação, entendeu-se não somente se que se estendia a estes outros descendentes, mas ainda o fez considerando uma só venda suficiente para que a emancipação ocorresse. Sem dúvida, muitos cidadãos teriam percebido que o que estava acontecendo era uma adaptação da Lei das XII Tábuas para propósitos nunca imaginados pelos decênviros. Contudo, para aqueles que a admiravam e viam-na como parte da essência cultural romana, era mais confortável entender tais desenvolvimentos de seu conteúdo como a explicitação de um sentido anteriormente implícito, ao invés de aceitar o evento de uma reforma legislativa. 3. O PRETOR E O CONTROLE DOS REMÉDIOS LEGAIS Durante a maior parte do período republicano o direito romano se desenvolveu menos através da legislação e sua interpretação do que pelo controle dos remédios legais, ou ações (e outros instrumentos processuais posteriores). Originalmente, o primeiro estágio de um processo - procedimento legal seguido para a solução de litígios qualificados como jurídicos - era formal e técnico; havia alguns poucos modelos de ação, que se iniciavam mediante a pronúncia oral de palavras previamente fixadas, pelo autor da ação (requerente ou pleiteante) diante do réu e do magistrado. O requerente que não pronunciasse exatamente as palavras previstas podia perder a ação. Estas legis actiones também só podiam ser intentadas em dias específicos. E, uma vez mais, somente os pontífices estavam familiarizados com as frases e as datas para o início de tais ações, até que tais formas verbais e o calendário viessem a ser publicados, o que somente ocorreu por volta de 300 a.C., quando o pontificado se tornou acessível também aos plebeus. Os magistrados, originalmente dois cônsules eleitos anualmente que haviam sucedido ao rei como chefes de Estado, eram responsáveis pelo desempenho de todas as atividades governamentais. A administração da Justiça era apenas uma parte minoritária de seus deveres e o procedimento lhes deixava pouco espaço para inovação. Com a expansão de Roma, um magistrado especial, denominado pretor e também eleito anualmente, foi criado em 367 a.C., para lidar exclusivamente com a administração da Justiça. Ele não tinha nenhum treinamento ou expertise especial, mas esperava-se que supervisionasse o estágio inicial, formal, de cada procedimento legal. O pretor manteve a característica dual (dois estágios) das ações, sendo o primeiro relacionado à classificação do litígio em termoslegais e o segundo, o julgamento propriamente dito, baseado nos fatos ocorridos entre as partes. O segundo estágio sempre havia sido – e continuaria assim – relativamente informal. Este procedimento, como um todo, era bastante econômico em termos de consumo de tempo e trabalho oficiais. O magistrado ocupava-se somente do primeiro estágio, o que era essencial, mas era o segundo estágio aquele que mais consumia tempo e trabalho. Os romanos haviam percebido que em muitas situações os litígios surgiam não devido a discordâncias em torno do direito, para eles suficientemente claro, mas sim acerca dos fatos que teriam ocorrido e originado o litígio; e, portanto, que um cidadão comum, mesmo sem experiência nenhuma em relação à lei, era efetivamente capaz de decidir sobre o que teria acontecido entre as partes litigantes. Na segunda metade do período republicano uma importante modificação no processo foi introduzida. Quando as partes se apresentavam diante do pretor, ao invés de aderirem a formas verbais previamente fixadas (legis actiones) para expressar seus pedidos e defesas, elas passaram a fazê-lo dizendo-os em suas próprias palavras. O pretor, então, tendo identificado qual era o problema legal em questão, expressava-o em termos hipotéticos em um documento denominado formula (de onde o novo procedimento retiraria a designação de per formulas). Esta instruía o iudex (árbitro leigo) a condenar o réu, caso aquele concluísse pela veracidade das alegações feitas – e provadas – pelo requerente, ou a absolvê-lo, caso não se convencesse de tais alegações. A fórmula, uma vez fixada pelo pretor a partir das alegações das partes, era selada, para que o iudex, ao abri-la, pudesse certificar-se de sua autenticidade. O iudex derivava toda a sua autoridade da fórmula e, portanto, tinha que agir estritamente dentro de seus termos. Desde que assim se mantivesse, ele possuía significativa liberdade para conduzir o julgamento e, frequentemente, utilizava-se da consulta a um consilium de amigos para ajudá-lo a chegar a uma decisão. Nos primeiros anos da república as partes haviam representado a si mesmas, mas posteriormente adquiriu-se o hábito de recorrer a oradores profissionais, treinados em retórica, para defender suas posições no caso frente ao iudex. O pretor podia conferir uma fórmula ao requerente toda vez que acreditasse que o direito, em termos axiológicos (com referência aos valores protegidos pela comunidade romana) o justificasse, no sentido de que se considerava que, se um requerente aparentemente pudesse comprovar suas alegações, deveria então dispor de uma ação correspondente, um remédio legal, para garantir o direito arguído. A função do pretor era a de declarar o direito (jus dicere) e de dar efeito a ele através da concessão das fórmulas apropriadas. A maior parte das ações referia-se a litígios já conhecidos, tais como a ocupação resistida da propriedade imóvel do requerente pelo réu, ou a existência de dívida contraída em dinheiro (pecuniária). Contudo, o pretor podia conceder uma fórmula em situações para as quais até então não houvesse precedentes quaisquer. Oficialmente, nestes casos ele não estava criando direito; isto estaria além de seus poderes. Com efeito, o que ele estava fazendo, nestas situações, era afirmar que o pedido do requerente justificava a concessão de um remédio legal, ou seja, de uma ação apropriada para a restituição do direito violado e que, portanto, deveria-se conceder esta ação. A despeito de se pronunciar como se estivesse apenas implementando direito já existente, ele estava, de fato, criando direito novo. Uma vez que as ações novas eram apresentadas como uma expressão do direito antigo, a inovação era escamoteada. Por exemplo, o pretor não podia tratar como proprietário aquele que não o fosse sob a caracterização da lei civil, à qual este estava inexoravelmente submetido, e, portanto não se podia garantir a esse indivíduo a ação do proprietário para recuperar a coisa. Ele podia, contudo, dar ao não-proprietário uma ação alternativa para garantir-lhe o direito de obter o domínio físico da propriedade, e de protegê-lo nesse controle até que este se tornasse efetivamente proprietário, decorrido o tempo necessário para tanto (aquisição originária). Similarmente, ele podia garantir ao herdeiro ação para recuperar a propriedade do falecido desde que aquele fosse efetivamente herdeiro, de acordo com a lei civil; mas também podia conceder ao não-herdeiro uma ação para obter e manter a posse da coisa. Esta pessoa utilizava a coisa como posseiro, não como proprietário. Sem dúvida, para os romanos essa distinção era meramente semântica, mas para aqueles com maior conhecimento sobre o direito ela era significativa. Reconhecida, por um lado, a distinção, mas considerada a proximidade entre as situações no que se refere ao reconhecimento do direito existente também na situação nova, estava habilitado o pretor para conceder a uma parte merecedora um remédio legal, ou ação, quando ele sentisse que o senso popular de justiça o requeria, enquanto, ao mesmo tempo, mantinha incólume a integridade formal da lei civil. Ao início do ano de sua investidura, o pretor publicava um edito, no qual ele dispunha quais seriam as circunstâncias nas quais ele concederia uma fórmula, e eventualmente até indicava as fórmulas apropriadas. Possíveis litigantes consultariam, então, esse documento, podendo extrair dali qualquer fórmula presente no edito, desde que correspondente à situação fática suscitada. Um réu que contestasse as alegações do requerente não seria prejudicado pela concessão da fórmula ao seu oponente, pois ele estaria confiante de que este não lograria convencer o iudex da veracidade daquelas. A fórmula era um instrumento flexível e podia ser modificada para abrigar defesas específicas arguídas pelo réu. Por exemplo, onde a lei civil prescrevia uma forma particular para uma determinada transação, ela concernia, originalmente, apenas à aferição de se a forma havia sido obedecida ou não; nada inquiria para além da forma. Um importante contrato, mencionado na Lei das XII Tábuas e denominado stipulatio, consistia em um pronunciamento oral que podia converter quase qualquer acordo em uma obrigação. Se o pronunciamento, em forma de perguntas e respostas, fosse levado a efeito, o fato de o promitente ter sido induzido a fazer sua promessa por fraude ou ameaças infligidas pela outra parte era irrelevante. Nos últimos anos da república, contudo, o pretor permitiu que a fraude e a coação fossem integradas em uma fórmula através da sua inclusão no rol de defesas oponíveis a um requerente que exigisse a implementação da promessa; e caso o réu-promitente pudesse comprovar suas alegações feitas em sede de defesa, ele seria absolvido. Tal defesa, ou exceptio, era requerida quando o réu admitia a verdade da alegação do requerente (por exemplo, de que teria realmente feito a promessa vinculante), mas acrescentava outros fatos (por exemplo, de que somente teria se comprometido em face de fraude cometida pelo pretenso credor), os quais poderiam anular a pretensão do requerente. Ao permitir defesas em que o réu acrescentava suas próprias alegações, o pretor conferia reconhecimento legal ao princípio de que direitos oriundos de transações realizadas mediante o uso de fraude ou coação eram inexigíveis. Em certas fórmulas, o iudex era instruído a condenar o réu a pagar somente a quantia por ele devida segundo um critério de boa fé (ex fide bona), e em tais casos uma exceptio específica nem era necessária. A única modalidade possível de condenação por um iudex era aquela em danos materiais; isto se explica pelos limites previamente estabelecidos para a sua atuação; uma vez que ele julgasse a causa em favor de uma das partes, sua tarefa estava encerrada e ele deixava de existir como iudex. Sendo assim, ele não podia ordenara uma parte que fizesse ou deixasse de fazer algo uma vez que, quando chegasse o momento de aferir se a ordem houvesse sido obedecida, ele não mais seria iudex. Uma decisão de que o réu deveria pagar uma determinada soma é a conclusão adequada para vários tipos de disputas, mas não é cabível em todos os casos. Dessarte, nos últimos anos da república, quando se requeriam outros remédios legais diferentes das ações regularmente concedidas, o pretor não podia remetê-las a um iudex, tendo que julgá-las ele mesmo. O mais antigo destes remédios ditos “extraordinários” (ou seja, diversos daqueles “ordinários”, consistentes nas fórmulas) é, provavelmente, o interdito, uma ordem do pretor para se fazer ou não se fazer alguma coisa. Muitos interditos destinavam-se a prevenir interferências na posse pacífica de propriedade e a assegurar que reivindicações fossem feitas apropriadamente, através dos instrumentos legais. O pretor não concedia um interdito a partir do mero pedido do interessado, mas concedia-o mediante a presença de razões fáticas suficientes para tanto. Talvez o mais drástico dentre esses remédios seja a restitutio in integrum, que consistia na reversão dos efeitos de uma transação, sendo esta formalmente válida entre as partes, mas tendo gerado efeitos especialmente injustos para uma delas. Uma vez concedido este remédio, as partes podiam dispor de ações pretorianas especiais equivalentes às ações de que disporiam se a transação ofensiva não se houvesse realizado. O pretor devia demostrar cautela na concessão dessa restitutio, pois, se ela fosse concedida com muita freqüência, isto teria minado a confiança do público no direito. Afinal, para que aderir a uma fórmula transacional prescrita pela lei se uma das partes podia conseguir anulá-la, alegando prejuízos advindos de efeitos que ela não teria sido capaz de prever? Por outro lado, a recusa na concessão da restitutio poderia significar a perpetuação de uma injustiça. Por isto, os requisitos em face dos quais o pretor podia concedê-la eram cuidadosamente estabelecidos e incluíam fraude, coação, a ausência de uma parte em razão de serviço público por período durante o qual terceiro pudesse apossar-se sua propriedade de boa fé e apropriar-se dela pela prescrição e, finalmente, o fato de que o requerente, ainda que tecnicamente fosse considerado adulto, fosse muito jovem para compreender o que estava fazendo ou os efeitos jurídicos de seu ato. O exemplo seguinte ilustra a abordagem cautelosa dos romanos em face da reforma da lei e alteração no direito. A lei civil concedia a capacidade a qualquer menino que alcançasse a idade da puberdade, geralmente admitida como sendo aos quatorze anos. Nessa idade, ele poderia casar-se, e, se independente do poder do pater familias, lidar com propriedades por si mesmo. Esta idade era bastante apropriada considerando-se a simplicidade da sociedade romana do início da república, mas um jovem de quatorze anos podia não se mostrar capaz de lidar com um negociante esperto que o persuadisse a fazer o que ele não quisesse, efetivamente. Não há dúvida de que a maneira mais lógica de lidar com tal situação teria sido elevar a idade mínima para a aquisição da plena capacidade civil, mas teria sido uma mudança drástica na lei dispor que capacidade e puberdade não se alcançassem simultaneamente. Os romanos mostravam-se relutantes em promover tal mudança, que poderia ter conseqüências imprevisíveis. Preferiram, pois, deixar para o pretor, no exercício de sua discricionariedade, a tarefa de reverter os efeitos de transações nas quais parecesse ter-se obtido vantagens desproporcionais em razão da inexperiência da parte mais jovem. A conseqüência prática de tal opção é que usualmente as pessoas recusavam-se a negociar com jovens de menos de vinte e cinco anos de idade (a idade-limite estabelecida pelo pretor), a não ser que estes fossem aconselhados ou assistidos. O direito derivado da concessão dos novos remédios legais (ações, interditos e outros), contido nos editos dos pretores, tornou-se conhecido como ius honorarium (dos honores – honras - detidos pelos pretores eleitos). A maior parte dos desenvolvimentos que afetaram o direito civil na segunda metade do período republicano se realizou por meio desta categoria do direito romano. 4. O JUS GENTIUM E O ADVENTO DOS JURISTAS Quanto uma ou ambas as partes envolvidas em um litígio não era um cidadão romano, era inadequado aplicar o direito civil na solução da disputa. Inicialmente, quando os não-cidadãos ainda eram presença rara, os romanos recorriam à ficção de que o estrangeiro era um cidadão, de modo a trazer o caso à jurisdição civil. Após a derrota dos cartagineses nas Guerras Púnicas do século III a.C., contudo, o domínio territorial romano se estendeu por todo o oeste do Mediterrâneo, e o número de não-cidadãos em contato diário com romanos cresceu a um nível que se teve que trazê-los ao âmbito do direito, expressamente, como estrangeiros em território romano (peregrinos). Em 242 a.C. um segundo pretor foi introduzido na administração da Justiça, para lidar especificamente com os casos em que uma ou ambas as partes não possuíam a cidadania romana; em razão disto, este segundo pretor foi denominado pretor peregrino, enquanto o outro designou-se como pretor urbano. O direito civil (dos cives, cidadãos) era uma prerrogativa exclusiva do cidadão romano, motivo de grande orgulho e, portanto, não podia ser estendido indiscriminadamente a estrangeiros. No terceiro século antes de Cristo, a cidadania era vista como um privilégio que distinguia os romanos de outros povos, e deles esperava-se que observassem parâmetros mais rígidos de conduta do que quaisquer outros estrangeiros. A Lei Opiana, de 215 a.C., requeria às matronas romanas que usassem vestimentas mais simples, sem excessos de ornamentos, enquanto as mulheres estrangeiras podiam transitar por Roma vestidas com opulência, em cores vivas e com profusão de adornos em ouro. Mas ainda que o direito fosse especialmente exigente em relação à conduta dos cidadãos, as disputas entre peregrinos, pelo menos, tinham que ser decididas segundo regras inequivocamente estabelecidas, tanto quanto os litígios entre romanos. O problema de estabelecer-se que direito aplicar aos estrangeiros foi resolvido de um modo singularmente pragmático. Os romanos reconheceram no seu direito a existência de dois tipos de instituições jurídicas; um era tipicamente seu e abrangia aquelas peculiarmente romanas, tais como a transferência solene de propriedade. As instituições pertencentes a esta primeira categoria, marcadas que eram por sua especificidade cultural, deveriam ser (e eram), portanto, reservadas somente aos cidadãos. Já quanto às instituições pertencentes ao segundo tipo, tais como muitos dos remédios pretorianos, consideravam os romanos que elas integravam o direito dos povos civilizados. Elas formavam, em conjunto, aquilo a que os romanos denominavam ius gentium (direito das gentes), ou direito das nações, em contraste com o tradicional direito civil. O ius gentium estava disponível tanto para os romanos quanto para os peregrinos. A noção de um direito inerente às “gentes” em geral, incluindo os romanos, permitiu que estes lidassem com um problema posto pela presença cotidiana dos peregrinos vivendo sob governo romano. Mais tarde, quando se especulou acerca das razões pelas quais tais regras de direito eram reconhecidas universalmente (nos termos do que se entendia como povos civilizados), sugeriu-se que o motivo seria o de que elas estariam fundadas não na prática costumeira, mas no bom senso, ou “razão natural”, de que todos os homens compartilhariam como manifestação de sua natureza humana. Por isso, o direito dos povos veio a ser freqüentemente referido como direito natural (ius naturale). Tornou-se aceita a noção de que o direito dos povos eo direito natural fossem similares, exceto pela presença, no primeiro, da instituição da escravidão. Sabia-se que esta se encontrava presente em todas as sociedades antigas e era, pois, parte integrante do direito das nações; mas era igualmente claro que não se tratava de algo ditado pelo senso comum e que, portanto, não poderia integrar o direito natural. Mais tarde, ainda no período republicano, o sistema per formulas e os remédios suplementares disponíveis para os litigantes tornaram-se cada vez mais técnicos, demandando a atuação de experts para dar o necessário aconselhamento. Nem o pretor nem tampouco o iudex, ou ainda os advogados que representavam as partes diante daqueles, possuíam conhecimento aprofundado do direito; portanto precisavam, eventualmente, de ajuda especializada. A partir da segunda metade do século III a.C. tem-se notícia de uma classe de especialistas no direito, os juristas, que não exerciam qualquer papel formal na administração da justiça, mas que estavam, em contrapartida, preparados para explicar o direito para aqueles que tomavam parte no “drama legal”, os operadores do direito. De início, estes especialistas não eram pagos por seus serviços, pois consideravam seu trabalho como forma de prestar um serviço público. Eles assumiram a custódia da lei, papel que anteriormente coubera aos pontífices; mas, ao contrário destes, atuavam abertamente e em público. O trabalho dos juristas romanos, desde o início, relacionou-se a casos concretos. Suas funções eram de sugerir fórmulas ou defesas apropriadas para determinadas situações fáticas, bem como de redigir documentos tais como contratos e testamentos, os quais deveriam provocar apenas os efeitos desejados pelos contratantes, e não outras conseqüências não previstas nem pretendidas. O peso das opiniões desses juristas de fins da república apoiava-se inteiramente em suas respectivas reputações, e aqueles que vieram a se tornar mais respeitados tiveram sua contribuições para o direito recolhidas em “digestos” (compilações de doutrina), servindo como referência para casos similares que viessem a ocorrer no futuro. Os juristas ocupavam-se sobremaneira do direito privado e normalmente não lidavam com questões criminais, religiosas ou de direito público. O direito relativo a estes tópicos era derivado do direito civil, que veio a se tornar, com o tempo, sinônimo de direito privado. Direito e Conhecimento do Direito: origens Direito como símbolo de retidão e equilíbrio. Diké: deusa grega da justiça, ligada ao próprio, a propriedade, ao que é de cada um. Em sociedade primitivas esse poder esta dominado pelo elemento organizador, fundado no principio do parentesco. Dentro da comunidade todos são parentes, o não parente é uma figura esdruxula. O poder de estabelecer o equilíbrio social liga- se ao parentesco. No direito arcaico, so há lugar para uma única ordem: a existente, que é a única possível, a querida pela divindade e por isso sagrada. O direito é a ordem querida e não a criada por Deus. O direito obriga tanto o homem como a divindade que o defende, o impõe, mas não o produz nem o modifica. O direito confunde-se com as maneiras características de agir do povo (folkways), por exemplo, o direito de sentar em cadeira ou no chão, comer com as mãos, uso de roupas. Por exemplo, uma regra que consagra a expectativa geral de que ninguém deve toar o alimento destinado aos deuses é percebida quando alguém o come e é, assim tornado impuro, devendo ser expurgado. O direito continua sendo uma ordem que atravessa todos os setores da vida social (politico, econômico, religioso, cultural) mas que não se confunde com eles. O conhecimento do direito como algo diferenciado dele é uma conquista tardia da cultura humana. A distinção entre direito-objeto e direito ciência exige que o fenômeno jurídico alcance uma abstração maior, desligando de relações como parentesco. O desenvolvimento do saber jurídico não é linear. Nas diferentes culturas ele se faz na forma de progressos e de recuos. 5 O IMPÉRIO E O DIREITO O último século da república romana foi marcado pela confusão e o conflito entre, de um lado, aqueles que queriam manter a constituição original (N.T.: “constituição” no sentido da organização estatal republicana), ainda que constatada a enfraquecida liderança que o governo desta exercia; e, de outro, aqueles que preferiam um governo forte, mesmo que ao custo de se desprezar o direito vigente no tocante aos limites impostos pela forma republicana ao exercício da política. O problema assumiu grandes proporções e veio a se impor no palco político ao longo da carreira de Júlio César, que abertamente desrespeitava a organização republicana e acabou assassinado em 44 a.C.. Os líderes da conspiração contra ele, Brutus e Cassius, eram, respectivamente, o pretor urbano e o pretor peregrino à época. Quando a República foi substituída pelo Império, o primeiro imperador, Augusto, esforçou- se por manter a fachada da constituição republicana, a fim de mitigar a oposição ao novo regime. De início, as assembléias populares continuaram a reunir-se, como no peíordo anterior; contudo, na ausência de mecanismos de representação e requerendo, pois, a presença dos cidadãos interessados em participar, elas consistiam, na prática, em reuniões de multidões que viviam na própria cidade de Roma. Diante disto, os imperadores, silenciosamente, impediam que propostas legislativas sobre temas de maior importância fossem propostas às assembléias, tendo sido afinal o Senado, um corpo político constituído por ex-magistrados, que acabou assumindo a função de aprovar as leis. O edito pretoriano, publicado anualmente por sucessivos pretores, havia alcançado o ponto em que nada de seu conteúdo se alterava ano após ano. Em razão disto, no início do segundo século d.C., o imperador Adriano ordenou ao jurista Juliano que estabelecesse uma versão definitiva desse documento. Seu texto assim fixado começa com o procedimento a ser seguido em uma ação (formula) desde a defesa do réu até o fim da fase diante do pretor, cobrindo os vários remédios legais, cuidando, depois, dos procedimentos tendentes a assegurar a execução das sentenças e terminando, então, com uma seção destinada aos interditos e defesas alternativas. É provável que esta ordem tenha sido modificada em relação à Lei das Doze Tábuas. O imperador assumiu poderes legislativos, passando a emitir documentos denominados constituições imperiais, as quais eram, desde então, reconhecidas como fonte de direito com o status de lex. Ainda que eventualmente os imperadores legislassem através de editos, a maior parte destas constituições eram respostas, dadas em nome do imperador, a questões postas por litigantes ou servidores do Estado romano, tais como governadores de províncias. Estes documentos (denominados reescritos) eram emitidos por juristas a serviço da chancelaria imperial; normalmente, eles se limitavam a declarar a existência de uma lei ou a esclarecer seu conteúdo, sendo raros os casos em que se introduziam mudanças legislativas significativas. No segundo século d.C. o império já se estendia do sul da Bretanha, Gália e Península Ibérica a oeste, ao longo da margem ocidental do Rio Reno e da margem sul do Danúbio, até a Ásia Menor, Síria e Egito ao leste. A cidadania romana houvera se tornado menos exclusiva a esta época do que havia sido durante o período republicano. Ainda no fim da república, a propósito, a cidadania já havia sido estendida à maior parte da população residente na península itálica, na região abaixo do Rio Pó. Mas o governo imperial passou a utilizar-se da cidadania como modo de integrar aqueles que viviam em territórios romanos fora da Itália e, assim, acabou rompendo uma lógica que associava a cidadania romana à origem italiana. Progressivamente, vantagens políticas, sociais e econômicas sobreviriam àquelesnovos cidadãos, mas ao mesmo tempo o império procurou compatibilizar a cidadania com outras formas de manifestação de fidelidades locais, desde que estas não desafiassem o domínio romano. Membros mais ambiciosos das aristocracias locais eram estimulados a tratar Roma como sua terra de origem, quando, de fato, não o era. E efetivamente, nos primeiros anos do império, eram os membros das aristocracias provinciais que se mostravam os defensores mais ferrenhos dos valores romanos tradicionais. O funcionamento do império veio a depender de tais homens, que serviam como oficiais no exército imperial, como agentes tributários nas províncias, ascendiam então ao Senado, ao Consulado e, então, governavam as províncias militares nas fronteiras do território imperial. A política imperial estimulou a existência de municipia, comunidades mais ou menos autônomas de cidadãos ou latinos (grupo que detinha quase todas as prerrogativas dos cidadãos). Um cidadão morador de um municipium provincial possuía um status duplo, pois cada comunidade possuía seu direito municipal, prescrevendo em considerável detalhe de que modo a convivência era organizada localmente, com ênfase especial nos procedimentos legais a serem conduzidos nos casos de conflitos. A despeito de variações existentes em detalhes relativos a tais procedimentos, sabe-se que, ao menos nas províncias ocidentais, havia um direito-standard, um modelo que era utilizado na maior parte dos casos, e que assimilava ao máximo suas instituições e procedimentos àqueles vigentes em Roma, guardadas as devidas proporções. A principal evidência disto é uma inscrição em bronze descoberta em Irni, na Espanha, contendo dois terços da lei municipal desta comunidade. Partes dessa legislação, sabe-se, reproduzem o texto de fragmentos de outras leis municipais da época (primeiro século d.C.); esta identificação demonstra, pois, que as instituições romanas serviram como modelo ao qual as com unidades provinciais deviam aspirar, tanto quanto as circunstâncias locais o permitissem. Nas províncias de cultura grega do leste do império, contudo, as comunidades que se haviam organizado séculos antes como cidades-estado eram menos receptivas ao modelo romano, prendendo-se às suas leis e instituições tradicionais e resistindo à adoção de quaisquer “novidades” trazidas pelo conquistador. Os dois primeiros séculos da Era Cristã marcam o ponto máximo de desenvolvimento alcançado pelo direito romano, no sentido de que o apogeu de seu desenvolvimento técnico se atingiu neste período. Foi esse o momento em que o direito romano se sofisticou e refinou ao máximo, sendo reconhecido como o período clássico do direito romano. Contudo, esses mesmos duzentos anos também testemunharam algumas das mais bárbaras atrocidades cometidas por imperadores brutais, como Nero, Calígula e Domiciano. Há nisto um aparente paradoxo, pois seus governos conviveram com o apogeu do direito, acima mencionado, e do império como um Estado legalmente organizado. A resposta a tal paradoxo se encontra em uma distinção, aceita tacitamente, entre o direito privado e outras áreas sob influência do direito. O direito privado se ocupa das relações entre indivíduos. Os primeiros imperadores aceitaram o fato de que havia pouca vantagem em interferir nos negócios privados e que, portanto, era boa política manter e desenvolver o direito privado sem fazer interferências ou mudanças desnecessárias. 6 OS JURISTAS NO PERÍODO CLÁSSICO O âmbito em que o direito romano mais se desenvolveu durante o período clássico foi o da literatura produzida pelos juristas, tanto por aqueles a serviço do império quanto pelos que ainda conduziam a sua prática autonomamente. Os juristas, como classe, eram favorecidos pelos imperadores; Augusto já havia garantido a certos juristas a autorização imperial, ou seja, o direito de emitir opiniões com a autoridade do imperador, possivelmente a fim de aliviar a pressão criada pela demanda por reescritos da chancelaria imperial, quando, um século mais tarde, Adriano decretou que, caso a opinião de todos os juristas que detinham a autorização imperial fosse unânime, esta teria a força de lei (lex). O que isto significa não é bastante claro, mas provavelmente refere-se a uma prática que vinha se tornando cada vez mais freqüente, qual fosse, a de citar opiniões expressas em pareceres jurídicos precedentes, emitidos sobre casos similares ocorridos no passado. O direito produzido pelos juristas no período clássico marcou-se por certas características que podem ser resumidas como se segue. Em primeiro lugar, há uma contínua sucessão de indivíduos, todos dedicados ao direito e, cada um, familiarizado com os esforços de seus predecessores, cujas opiniões e pareceres eles citam especialmente quando concordam com eles mas, também, quando discordam. Em segundo lugar, de cada um deles pode dizer-se que possuía um conhecimento abrangente do direito privado. O pretor mantinha-se no cargo por apenas um ano, o iudex concentrava-se apenas nos fatos concretos inerentes aos casos particulares de cuja solução se ocupava e, quanto aos advogados, estes se esmeravam mais na construção da argumentação (retórica) do que no conhecimento da lei. De fato, havia uma tendência, exemplificada por Cícero - que era um famoso advogado - de se debochar dos juristas, precisamente porque eles pareciam estar sempre imersos em minúcias legais, tais como o direito de se deixar a água da chuva que escorria em um telhado ser escoada para o telhado do vizinho. Em terceiro lugar, os juristas preocupavam-se com as questões relacionadas à prática cotidiana do direito e podiam, portanto, reconhecer quando modificações pontuais ou maiores reformas na lei eram necessárias. E ainda que freqüentemente aceitassem pupilos, não se pode considerar que esses juristas fossem professores nem acadêmicos “apartados da realidade”; eram, ao contrário, profundamente comprometidos com a solução de problemas práticos do direito, suscitados em casos concretos e inerentes, pois, à realidade da vida. Finalmente, eles gozavam de absoluta liberdade para manifestar opiniões divergentes; a propósito, a discussão jurídica realizada no bojo dos casos é inevitavelmente controvertida, já que há sempre dois lados em cada litígio e cada um deles deseja poder expressar um argumento em seu favor. Com isto não se quer dizer que os juristas distorcessem o conteúdo do direito para satisfazer a um cliente que os consultasse, mas sim que eles estavam prontos a explorar e testar os limites de cada regra de direito, o que era motivado pelos interesses antagônicos dos pólos da relação litigiosa. A direito clássico era, pois, o produto da disputa. As técnicas utilizadas diferiam de acordo com o objeto sobre o qual se debruçava o jurista, ou seja, se era direito escrito ou não. Caso se tratasse de texto de lei (lex) promulgada pela assembléia republicana, ou do edito pretoriano, ou de um contrato ou testamento, os problemas tinham que se resolvidos pela interpretação dada a frases particulares do texto e um número de argumentos era levantado a partir daí. Mas o que deveria prevalecer, a letra do texto ou seu “espírito”? A vontade do autor deveria prevalecer mesmo quando ele se houvesse expressado de modo ambíguo? Neste caso, como sua verdadeira intenção seria compreendida pelo intérprete? Diversamente, quando o direito se encontrava expresso oralmente apenas, ou registrado na opinião de juristas, e não envolvessse a forma de um texto autorizado e fixo (como o da lei e do edito pretoriano o eram), os juristas detinham um escopo mais amplo de possibilidades para reformulá-lo. No curso da transmissão dessa produção realizada por outras fontes – aquelas às quais nós tivemos acesso através da história – muitas das evidências das disputas e desacordos se perderam, já que opiniões minoritárias tendem a desaparecer;mas sabe-se da existência de duas escolas (no sentido de agremiações que se formam em torno de opiniões) entre os juristas no primeiro e segundo séculos do império, conhecidas como a dos Proculianos e dos Sabinianos. Há muito debate acadêmico ainda hoje sobre essas escolas e as idéias que professavam, mas seus respectivos defensores parecem ter divergido mais no que se refere a questões substantivas do direito do que quanto a métodos. Os Sabinianos tendiam a justificar suas opiniões com referências à prática tradicional e à autoridade dos juristas anteriores. Eles estavam mais preocupados em encontrar soluções justas para os casos individuais, ainda que isto significasse colocar em segundo plano a lógica e a racionalidade. Ao interpretar, eles não se incomodavam se as mesmas palavras eram utilizadas para expressar sentidos diferentes em textos distintos. Já os Proculianos favoreciam a interpretação estrita dos textos e insistiam em que às palavras e frases se deveria dar, em todos os casos, um sentido objetivo e consistente. No caso do direito não escrito (ou do direito escrito sem a autoridade de lex), eles assumiam que se tratava de um sistema coerente de regras e procuravam, por trás delas, por princípios que as houvessem inspirado (princípios implícitos). Deste modo, eles podiam estender a aplicação de tais regras, por analogia, a outros casos subjacentes ao mesmo princípio. Qualquer que fosse a afiliação dos juristas, contudo, eles não acreditavam na formulação e uso de princípios muito abrangentes; não porque não fossem capazes de formulá-los, mas porque entendiam que, quanto mais abrangentes sua formulação e seu escopo, maiores seriam as exceções à sua aplicação e, portanto, abrir-se-ia um perigoso espaço para a incerteza e imprevisão no direito. 7 A ORGANIZAÇÃO DO DIREITO A elaboração do direito clássico permaneceu predominantemente centrada nos casos, fossem estes reais ou hipotéticos, elaborados a título de exemplo. Inevitavelmente, um sistema casuístico se torna excessivamente intricado e complexo, e acaba por demandar um trabalho de sistematização. O processo de colocar o direito em alguma ordem começou ao fim da república, sob a influência dos métodos de classificação desenvolvidos pelos gregos. Estes não haviam aplicado tais técnicas ao direito, pois não possuíam uma classe profissional de juristas e tampouco o seu direito, tal como se caracterizava, permitiria o desenvolvimento técnico realizado pelos juristas romanos. Em torno do ano 100 a.C. o jurista Quintus Mucius Scaevola publicou um pequeno tratado sobre o direito civil. Ele se inicia com testamentos, legados e a sucessão não-testamentária, os quais ocupam aproximadamente um quarto de todo o tratado. Problemas emergentes da sucessão à herança de alguém que houvesse falecido produziam mais disputas do que quaisquer outros casos. A ordem social, à época, ainda se baseava na família como unidade e o principal propósito de um testamento era o de designar os herdeiros que, em razão da morte do pater familias, tomariam seu lugar e conduziriam a família até a próxima geração. Além de estabelecer quem seriam seus herdeiros no testamento, o testador podia constituir legados, apontar turores para os menores impúberes e libertar escravos. Uma vez que a propriedade da família se concentrava nas mãos do pater familias, ao invés de se distribuir entre seus membros, não surpreende o fato de que à sucessão por morte se dedicassem tantas disposições legais. Além da sucessão, Mucius incumbiu-se de agrupar os modos de aquisição da propriedade e posse; quanto aos temas remanescentes de direito privado, parecem ter sido ajuntados no restante do seu tratado sem uma ordem reconhecível. Um século mais tarde, outro jurista, Masurius Sabinus, que deu seu nome à escola sabiniana, debruçou-se sobre o esquema de Scaevola e lhe agregou alguns outros temas, dos quais se começava a reconhecer estarem relacionados entre si e com outros já presentes no tratado anterior. Por exemplo, Scaevola houvera tratado o roubo/furto de propriedade e o dano à propriedade separadamente, como temas independentes entre si, mas Sabinus os agrupou, reconhecendo a partir daí a categoria de delito, a qual concedia à vítima uma ação civil para penalizar o perpetrante do ato. Sabinus, contudo, ainda não reconheceu a categoria genérica, do contrato, e lidou separadamente com os diversos modos através dos quais duas partes criavam uma obrigação vinculante. A maior parte dos juristas clássicos viria a apresentar seus repositórios de pareceres e opiniões na forma de um comentário ao tratado de Sabinus ou ao edito do pretor. Somente na metade do segundo século d. C. um grande avanço se faria na ordenação do material de direito privado, tendo, contudo, sido percebido na época apenas nos círculos acadêmicos. O autor era um jurista obscuro, conhecido simplesmente como Gaio (sem os três nomes, portanto, como era uso entre os romanos), cuja atividade era a de professor de direito. Juristas anteriores haviam tido pupilos, mas seu trabalho era relacionado apenas à prática. Gaio, contudo, parece ter-se dedicado exclusivamente à prática docente e, por isto, não alcançou, em sua época, a fama e o reconhecimento dos juristas. O esquema de seu manual dirigido aos estudantes, as Institutas, é baseado em uma classificação do direito em três partes principais. A tricotomia era uma divisão especialmente atraente para os professores, em razão de ser facilmente apreensível por estudantes que dispensassem pouca atenção ao objeto de estudo. As três partes do direito constantes do esquema de Gaio relacionavam-se às pessoas, coisas (bens) e ações. A primeira categoria agrupava os diferentes tipos de status pessoal, considerados a partir de três critérios, quais fossem, liberdade (o indivíduo em questão é livre ou escravo?), cidadania (o indivíduo em questão é um cidadão ou peregrino?) e posição na família (o indivíduo em questão é um pater familias ou se encontra sujeito ao poder de um ancestral?). A segunda categoria, das coisas (ou bens), constituiu-se na parte mais volumosa da classificação. Incluía qualquer coisa a que se pudesse atribuir valor e abrangia tanto as coisas corpóreas como as não corpóreas. Coisas com existência física, móveis ou imóveis, haviam sido reconhecidas desde sempre como coisas. Sob a nova classe de coisas (ou bens) incorpóreas, Gaio primeiramente incluiu as coletividades de coisas, que passam “em bloco” (per universitatem) de uma pessoa a outra, tais como a herança de uma pessoa, que é transmitida em bloco, como um todo, para os seus herdeiros. Tais coletividades podem incluir coisas corpóreas, mas são, em si mesmas, incorpóreas. O outro componente que Gaio incluiu sob a rubrica de coisas incorpóreas foi a noção de obrigações. Tal idéia já havia sido utilizada para descrever os vários modos pelos quais se uma pessoa se obrigava perante outra e havia sido pensada desde o ponto de vista da pessoa obrigada, o devedor. Assim, uma pessoa que fizesse uma promessa formal de pagar a outra uma soma em dinheiro se tornava obrigada diante desta; quem recebesse uma coisa de outrem, de modo a garantir o pagamento de um débito existente, tornava-se obrigado perante o outro a devolver a garantia quando o débito fosse quitado. Algumas vezes o pretor tratava as partes como obrigadas reciprocamente, meramente com base na força vinculatória de um acordo realizado entre elas. O exemplo principal disto era o acordo para a venda de bens. Uma vez que as partes houvessem se comprometido entre si a realizar a venda, de modo que o vendedor se comprometia a entregar a coisa vendida e o comprador, por sua vez, a pagar o preço, eles estavam obrigados entre si. Juristas anteriores a Gaio haviam já percebido que a maior parte das obrigações derivava de um acordo realizado previamente entre as partes, ainda que o queas vinculasse pudesse ser alguma coisa além do mero acordo. Portanto, a maior parte das obrigações eram vistas como possuindo uma característica comum, qual seja, a de que, o que quer que lhes houvesse dado força vinculatória, teria havido um acordo entre as partes. A categoria dos contratos, impondo deveres entre as partes, já havia nascido. Gaio então viu uma obrigação de um novo modo; ele a viu não apenas como um fardo sobre o devedor, mas também como um bem nas mãos do credor. Ao tratar o direito do credor de processar o devedor como uma obrigação, Gaio pode expandir a noção de obrigações e incluir na categoria não só os contratos, mas também os delitos como fontes de obrigações. A terceira parte do direito no esquema de Gaio eram as ações. Esta parte se ocupava não tanto dos procedimentos para se ajuizar um processo, mas, sobretudo, dos diferentes tipos de ações, tais como aqueles que podem ser ajuizados contra qualquer pessoa (por exemplo, ações para reclamar a propriedade), em contraste com aqueles que somente podiam ser dirigidos contra alguns indivíduos particulares, tais como ações para garantir ou impor obrigações. Na época de Gaio, o ápice do período clássico, os conteúdos do direito privado já se encontravam mais ou menos fixados, e ele então pode identificar seus componentes. Contudo, seu esquema trouxe algumas novidades. Ele incluiu as ações entre os fenômenos jurídicos a serem classificados, juntamente com as pessoas e os bens; ele reconheceu a existência de bens incorpóreos como algo a ser incluído na categoria geral de bens juntamente com os bens físicos, ou corpóreos; ele classificou heranças e obrigações como bens incorpóreos; e ele reconheceu tanto os contratos como os delitos como fontes de obrigações. O esquema institucional (ou seja, das Institutas) estava destinado a ter enorme influência no direito no futuro, mas na sua época ele teve pouco impacto fora do ambiente acadêmico. Afinal, os juristas profissionais não precisavam, àquela época, de uma ordenação sistemática do direito. 8 O APOGEU DA JURISPRUDÊNCIA CLÁSSICA No início do terceiro século, o imperador Antoninus Caracalla emitiu um importante documento de teor legislativo que teve o efeito de transformar em cidadãos a maior parte dos residentes no império, quer estes o desejassem, que não. A Constitutio Antoniniana de 212 d.C. não foi promulgada com quaisquer intenções liberais, mas provavelmente com motivações fiscais, a fim de fazer incidir, sobre um número maior de pessoas, o imposto de transmissão de bens causa mortis devido em função das propriedades imóveis em mãos de cidadãos. Outro resultado deste ato foi o de que, de muitas pessoas que não se consideravam romanas, que nem mesmo sabiam falar o latim, era esperado que passassem, como cidadãos romanos, a seguir o direito civil. O período clássico atingiria o seu clímax na década posterior à Constitutio Antoniniana, pelo trabalho de três juristas que as gerações posteriores considerariam os mais notáveis dentre todos: Papiniano, Paulo e Ulpiano. Cada um deles ocupou o mais alto cargo na burocracia do Império, qual seja, o de pretor-prefeito, sendo, simultaneamente, o principal servidor da justiça no império e o chefe de gabinete do imperador. Todos os três escreveram prolificamente sobre direito. Papiniano se destacou na análise de casos particulares e suas soluções demonstravam um teor moral inexcedível e o claro esforço de alcançar um resultado justo. Paulo e Ulpiano são conhecidos como excelentes comentadores, que sintetizaram o trabalho dos juristas de gerações anteriores e os expressaram de um modo, ao mesmo tempo, maduro e complexo, transmitindo-o às gerações seguintes. Em um trabalho corriqueiro e cotidiano, Ulpiano fez, pela primeira vez, uma clara distinção entre direito público e direito privado que viria a se tornar célebre. Até então a expressão “direito público” não possuía um significado claro e preciso e freqüentemente era utilizada para indicar aquelas leis, no direito civil, que não podiam ser alteradas por acordo entre as partes. Ulpiano inovou ao aplicar a expressão para designar o direito que dizia respeito, primariamente, ao interesse público, como por exemplo as disposições referentes aos poderes dos magistrados e à religião do Estado, em contraste com aquele que concernia ao interesse de indivíduos, considerados como tais. Seu objetivo ao fazer tal distinção só pode ser objeto de conjecturas, mas o fato de que ela surge em um trabalho imediatamente posterior à promulgação da Constitutio Antoniniana é significativo. Ulpiano provavelmente quis proteger o direito civil tradicional da interferência imperial e garantir aos novos cidadãos, destinatários desse direito para eles novo, que o direito civil era algo bem distinto do direito público. Tal distinção teria conseqüências duradouras, inimagináveis naquela época. Com a morte de Ulpiano, nas mãos de guardas amotinados, ocorrida em 223 d.C. (Papiniano havia sido executado, por ordens de Caracalla, uma década antes), termina o período clássico. O segundo século da Era Cristã havia sido um período raro de paz e estabilidade para o Império Romano. O historiador do sec. XVIII Edward Gibbons chamou-o de “período da história do mundo durante o qual a condição da raça humana foi mais feliz e próspera”. O terceiro século, em contraste, seria um período de considerável desordem social. Apesar dos esforços que se pode notar à leitura dos reescritos imperiais da época, no sentido de manter-se o grau de qualidade técnica alcançado no período anterior, há qualidade insuficiente nos escritos jurídicos para sustentar a vitalidade do direito. Este entrara, afinal, em decadência. 9 A DIVISÃO DO IMPÉRIO O centro de gravidade do império estava agora se deslocando da Itália e de Roma. Já não era mais possível governá-lo como uma unidade. Em 284 d.C. Diocleciano tornou-se imperador e conduziu uma reorganização do governo. Sendo originário da Dalmácia (atual Croácia), ele visitou Roma pela primeira vez quando já governava havia vinte anos. Ele dividiu o império em duas metades, leste e oeste, cada uma chefiada por um Augusto. Em seguida escolheu o leste, o qual ele governou desde a capital Nicomedia, no noroeste da Ásia Menor. As províncias foram divididas em unidades menores e agrupadas em treze dioceses; estas, por seu turno, foram reunidas em quatro grandes prefeituras, sendo os governadores das dioceses (vicarii, ou vigários), representantes dos prefeitos. Essa estrutura administrativa marca o início do processo de divisão do império, com cada parte tendo seu próprio imperador. No início do quarto século Constantino construiu uma nova capital para o leste (Bizâncio, ou Constantinopla), enquanto o governo do oeste se baseava em Milão. Teoricamente, contudo, mesmo que as relações entre os dois lados fossem eventualmente hostis, o império ainda era considerado uma unidade, da qual os imperadores eram governantes em conjunto. Eles lutaram continuamente para manter as fronteiras do império ao longo da linha do Reno-Danúbio, em face de incursões repetidas de tribos germânicas. Estas, por sua vez, encontravam-se pressionadas por um movimento geral em direção a oeste, particularmente, dos temidos hunos. A defesa das fronteiras requeria um exército com em torno de quinhentos mil homens, e então a tribos menos hostis foi admitida, por tratado, a sua instalação dentro das fronteiras do império, como foederati (federadas), baseando-se na idéia de que elas ajudariam a defender a integridade do território. Proprietários de grandes áreas de terras foram obrigados a fornecer soldados dentre os habitantes de suas propriedades ou, alternativamente, a pagar por outros a serem recrutados alhures. Como resultado disto, muitos daqueles chamados de bárbaros foram recrutados para as fileiras do exército romano, alguns deles alcançando até mesmo
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