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27 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Inclusão e Diversidade R e s u m o S y n o p s i s R e s u m e n Tolerância e inclusão das pessoas com deficiência Tolerance and inclusion of handicapped people Elizabete Cristina Costa-Renders Assessora pedagógica para a inclusão da pessoa com deficiência na Universidade Metodista de São Paulo. Mestre em Ciências da Religião, com pesquisa em educação e religião e doutoranda em Educação. O presente artigo indaga pelo exercício da tolerância na sociedade contemporânea, tendo como foco o necessário respeito pelas maneiras de as pessoas com deficiência (física, sensorial ou cognitiva) exprimirem sua qualidade de seres humanos. Entende-se que os conceitos propostos pelo paradigma da inclusão (incapacidade compartilhada e acessibilidade), bem como o entendimento da vulnerabilidade como condição antropológica absoluta, serão eixos relevantes na educação na e para a tolerância. Unitermos:Unitermos:Unitermos:Unitermos:Unitermos: tolerância; pessoas com deficiência; educação; acessibilidade; vulnerabilidade. The present article questions the practice of tolerance in contemporary society, focusing on the necessary respect for the ways handicapped people (physically, sensorially or cognitively) express their quality as human beings. It is understood that the concepts proposed by the paradigm of inclusion (shared incapacity and accessibility), as well as the understanding of vulnerability as an absolute anthropological condition, will be relevant axes when educating in and for tolerance. TTTTTerms:erms:erms:erms:erms: tolerance; handicapped people; education; accessibility; vulnerability. El presente articulo indaga por el ejercicio de la tolerancia en la sociedad contemporánea, teniendo como foco el necesario respeto por los modo de las personas con deficiencia (física, sensorial o cognitiva) exprimieren su cualidad de seres humanos. Entiende-se que los conceptos propuestos por el paradigma de la inclusión (incapacidad compartida y accesibilidad), bien como el entendimiento de la vulnerabilidad como condición antropológica absoluta, serán los ejes relevantes en la educación en la y para la tolerancia. Términos:Términos:Términos:Términos:Términos: tolerancia; personas con deficiencia; educación; accesibilidad; vulnerabilidad. 28 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 ○ ○ ○ A ignorância, o preconceito, aestigmatização e a objetiva- ção ainda dominam grande parte das respostas da sociedade às deficiências. Parece que a socie- dade tem problemas em lidar com a diversidade, sendo que esta diferença (deficiência) aca- bou diluída ou estigmatizada pe- jorativamente. Somos todos dife- rentes, contudo, quando se trata de deficiências físicas, sensoriais ou cognitivas, o extremamente diferente nos assusta e inibe. Tal- vez porque a transversalidade da deficiência toque diretamente em nossa comum vulnerabilidade ou porque nos acostumamos a ver a vida a partir de categorias cartesianas – em que apenas va- lem certezas e classificações. Se entendermos que a tole- rância “é respeito, aceitação e o apreço da riqueza e da diversi- dade das culturas de nosso mun- do, de nossos modos de expres- são e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de se- res humanos” (ONU, 1995), po- demos dizer que a intolerância em relação às pessoas com defi- ciência ainda é fato em pleno sé- culo XXI. As maneiras pelas quais as pessoas com deficiência (física, sensorial ou cognitiva) exprimem sua qualidade de se- res humanos, na maioria das ve- zes, não estão sendo reconheci- das e respeitadas. Círculos de Intolerância Começaria a trabalhar na área de meu interesse e com um emprego garantido. Os primei- ros seis meses foram um hor- ror. Eu já desconfiava que as pessoas estranhariam alguma coisa, mas não pensei que fos- sem tão elitizadas, egoístas e preconceituosas em relação às pessoas que portam algum tipo de deficiência física. É incrível como existem “humanos” que não aceitam que as pessoas aparentemente desiguais, com defeitos físicos, ocupem o mes- mo espaço que eles. (Anailda, estudante com hidrocefalia) As pessoas com deficiência, conforme o depoimento de Anailda, sofrem a intolerância expressa nos impedimentos soci- ais que lhes são impostos por uma sociedade que se considera sã e que reage, diante das defici- ências, pelo medo, pela agressão, pelo desrespeito e pelo isolamen- to. Enfim, as objetivações e estigmatizações acabam alimen- tando círculos de intolerância bastante presentes na história so- cial das pessoas com deficiência. Percebe-se que a sociedade, na maioria das vezes, trabalha com a lógica da classificação que produz dicotomias e hierarquias, desrespeitando e, muitas vezes, rejeitando as diferenças huma- nas. Isto se evidencia nas antro- pologias subjacentes aos modelos que marcaram (e ainda marcam) o processo de segregação ou ex- clusão das pessoas com deficiên- cia, tais como: o modelo místico (ser sub-humano, deficiência como castigo), modelo clínico (ser Somos todos dife- rentes, contudo, quando se trata de deficiências fí- sicas, sensoriais ou cognitivas, o extremamente di- ferente nos assus- ta e inibe As objetivações e estigmatizações acabam alimentan- do círculos de in- tolerância bastante presentes na histó- ria social das pes- soas com deficiência 29 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 anormal, deficiência como inca- pacidade), modelo assistencialista (ser especial, deficiência como motivo de dependência). Nestes círculos marcados pela intolerância, o “poder da lógica da classe é abstrair diferenças” (Macedo, 2005, p. 18). Entende- mos que abstrair diferenças é abrir mão da convivência, promo- vendo a segregação e a conse- qüente exclusão social. Isto nos remete ao círculo vicioso. Trata-se do círculo de medo e intolerância alimentado pelo desconhecimento, […] quanto mais se marginaliza os “impedidos” da vida pública, menos os conhecemos. E quanto menos se sabe de sua vida, mai- or será o medo que a mesma ins- pira. É precisamente este medo que impede o encontro e a vida em comum com os “impedidos” (Moltmann, 1987, p. 74). Localizamos, portanto, o co- nhecimento como um dos cami- nhos para a superação do medo e do rechaço que sentimos em rela- ção às pessoas que são diferentes de nós, especialmente quando esta diferença coloca em cheque a invulnerabilidade da condição humana. Nestes termos, Lígia Amaral entende o estigma como um dos mecanismos psicológicos de defesa diante da deficiência e propõe o rompimento com os discursos valorativos quando se fala de pessoas com deficiência: A ausência intrínseca de adjetivação valorativa da diferen- ça (nem boa ou ruim, nem bené- fica ou maléfica…) pode levar, em conseqüência, a relações des- pidas de hierarquia entre aqueles que são diferentes/deficientes e os que não o são (nem menos ou piores, nem mais ou melhores, nem falha ou plenitude…). (Amaral, 1995, p. 150) Além de indicar a necessária construção de relações sociais des- pidas de hierarquia, a autora nos ajuda a perceber que não se resol- ve o problema da hierarquização social simplesmente afirmando a deficiência como diferença, pois as diferenças também podem ser hierarquizadas. A naturalização das diferenças pode produzir hie- rarquias dicotômicas, tais como:igual/desigual, capaz/incapaz, normal/anormal, são/deficiente, melhor/pior etc. A mentalidade cartesiana, com sua ênfase na distinção e no particular (neste caso, na defici- ência), impede-nos de ver a reali- dade como um todo, de ver as redes de relações, enfim, de ver a complexidade da vida humana em suas mais diferentes faces (potencialidades e limitações). Diante de problemas sociais sistêmicos, como a exclusão so- cial, essa visão analítica, que vê a realidade por partes, não é su- ficientemente esclarecedora e não sensibiliza as pessoas para o exercício da tolerância, e, por conseguinte, para ações solidá- rias e inclusivas. No caso das pessoas com defi- ciência, elas acabaram assumindo, Abstrair diferen- ças” (Macedo, 2005, p. 18). En- tendemos que abstrair diferenças é abrir mão da convivência, pro- movendo a segre- gação e a conse- qüente exclusão social A mentalidade cartesiana, com sua ênfase na distinção e no particular (neste caso, na deficiên- cia), impede-nos de ver a realida- de como um todo 30 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 pela classificação, formas des- qualificadas de ser e viver que lhes foram impostas pela sociedade. Podemos, sob inspiração da socio- logia das ausências (Santos, 2006, p. 24), citar algumas destas formas: • o ignorante: quando se focam as limitações corporais e intelectuais (como impedimento do viver e do aprender) e perpe- tua-se a ignorância (pela des- consideração das formas diferen- ciadas de viver e aprender); • o residual: quando a segre- gação (em instituições espe- cializadas ou na própria casa) torna-se uma forma de esconderi- jo para o ser humano que não cabe nos moldes socialmente es- tabelecidos como “normais”; • o inferior: quando a diferen- ça naturaliza dicotomias hierárqui- cas (normal/anormal, eficiente/ deficiente, capaz/incapaz, inferi- or/superior etc.) e classifica as pes- soas entre melhores e piores; • o local: quando a acessibili- dade (física, comunicacional, atitudinal) não é um bem comum e o mundo apresenta-se em pa- drões preestabelecidos como viá- veis – seja nos espaços físicos, na linguagem ou na cultura; • o improdutivo: quando os padrões de produtividade estabe- lecem a desqualificação das pes- soas que não apresentam deter- minadas habilidades para o mercado de trabalho e, conse- qüentemente, legitimam o siste- ma assistencialista-caritativo e a impossibilidade de as pessoas com deficiência assumirem o protagonismo de suas vidas. Se as objetivações alimentam o círculo vicioso da ameaça e rechaço, imprimindo às pessoas com deficiência formas desquali- ficadas de ser e viver (ignorante, anormal, incapaz, dependente etc.), como, então, superar esta intolerância? A pista fundamental já nos foi indicada por Lígia Amaral – trata- se da construção de relações despi- das de hierarquia, em que prevale- ce o conhecimento mútuo. O preconceito se vence com conheci- mento. E, no caso das pessoas com deficiência, entendemos que se tra- ta, especialmente, do conhecimen- to construído no ato de encontrar (pessoas com e sem deficiência) nos diversos espaços sociais. As- sim, a necessária efetivação dos encontros entre todas as pessoas remete-nos ao paradigma da inclu- são (Mantoan, 2003) e ao modelo social de deficiência (Sassaki, 2003), no qual se destacam concei- tos como incapacidade comparti- lhada e acessibilidade. Educação na e para a tolerância A educação para a tolerância deve visar contrariar as in- fluências que levam ao medo e à exclusão do outro e deve aju- dar os jovens a desenvolver sua capacidade de exercer um juízo autônomo, de realizar uma reflexão crítica e de raciocinar em termos éticos. (Declaração de Princípios so- bre a Tolerância, ONU, 1995) A necessária efetivação dos encontros entre todas as pessoas remete-nos ao paradigma da inclusão e ao modelo social de deficiência 31 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 O paradigma da inclusão considera a construção da socie- dade para todos, na qual se reco- nhece a potencialidade de todas as pessoas, independentemente da singularidade de cada um. A educação inclusiva contraria “as influências que levam ao medo e exclusão do outro” quando nos remete aos pressupostos episte- mológicos da diversidade e da complexidade humanas. Esta nova epistemologia apresenta- nos novos conceitos, tais como incapacidade compartilhada e acessibilidade, que podem nos ajudar a educar para a tolerância. Trata-se de considerar os proces- sos pedagógicos inerentes à cons- trução de espaços acessíveis e, portanto, abertos à diversidade e vulnerabilidade humanas. a) Incapacidade compartilhada O Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência (ONU, 1982) inseriu um novo con- ceito de incapacidade na discussão sobre as formas de inserção das pessoas com deficiência. Trata-se da “incapacidade como uma resul- tante da relação entre as pessoas (com e sem deficiência) e o meio ambiente. Incapacidade passava a ser, então, um problema de todos” (Werneck, 2000, p. 43). A incapacidade também tem a ver com impedimentos ou bar- reiras socialmente construídos ¯ quando o mundo e seus espaços são pensados em padrões gene- ralizantes (os normais). Portanto, a tolerância, nos termos da inca- pacidade compartilhada, remete- nos ao necessário rompimento de barreiras desnecessárias impostas às pessoas com deficiência, tais como: um espaço padronizado (no viés do “normal”), uma só for- ma de comunicação (a fala), uma só forma de leitura (a visão) etc. O que acontece é que, ao construir- mos nossas vidas a partir destes padrões, isolamo-nos e desconside- ramos as possíveis diferentes for- mas de ser, conviver e aprender. Educar para a tolerância é, antes de qualquer coisa, buscar compreender a condição humana vislumbrando a possibilidade de convivência entre todas as pesso- as, com ou sem deficiência. É re- conhecer a cultura humana em sua complexidade e respeitá-la, é olhar para as pessoas com defici- ência como pessoas que com- põem o universo social e que têm um modo diferente e digno de viver e aprender. Trata-se de admitir que existem “saberes dife- rentemente sábios” e de criar cír- culos nos quais prevaleça o “re- conhecimento recíproco” tal qual nos indica a sociologia das emer- gências (Santos, 2005, p. 25-30). b) Acessibilidade Os encontros, seja indo ou vindo, somente acontecem quando há condições de acesso uns aos outros. Afinal, para nos encontrar- mos, todos precisamos ter condi- ções de fazer o percurso até o en- contro. Assim, podemos dizer que as condições concretas para o exercício da tolerância em relação às pessoas com deficiência reme- tem-nos ao tema da acessibilidade. Trata-se de consi- derar os proces- sos pedagógicos inerentes à cons- trução de espa- ços acessíveis e, portanto, abertos à diversidade e vulnerabilidade humanas 32 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 Acessibilidade tem a ver com a construção de espaços sociais que fujam de um padrão dito nor- mal e que garantam a “condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamen- tos urbanos, dos serviços de trans- porte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e infor- mação” (Brasil, 2004). Entendemos que a acessibilidade se coloca comoum tema pertinente à edu- cação para a tolerância porque não queremos mais as pessoas com deficiência presas em casa sem poder “ser pessoa” nas ruas – como todas as demais. O exercício da tolerância, to- davia, deve passar da resignação e do silêncio para a ressignificação da dignidade humana como valor inegociável (Assmann, 1991, p. 18) e para a mobilização social no sentido da construção das condi- ções de acesso e permanências das pessoas com deficiência nos diver- sos espaços sociais (sejam eles físi- cos ou representativos). Nas palavras de Moltmann, a “superação das barreiras primá- rias do rechaço e da desconfiança, do preconceito e da dependência, partirá daqueles grupos nos quais os impedidos e os não-im- pedidos vivem juntos uma vida autenticamente humana” (1987, p. 61). Para vivermos juntos, no entanto, precisamos construir ca- minhos por onde todos possam passar e chegar. As experiências de inclusão nos diversos espaços sociais (edu- cação, trabalho, lazer etc.) real- mente têm demonstrado que o medo do encontro somente desa- parece no ato de encontrar. Quando passamos a conviver com as pessoas com deficiência, nós descobrimos quem realmente são estas pessoas. Nosso olhar converte-se da deficiência para a nossa absoluta condição humana – a diferença. c) Vulnerabilidade: condição an- tropológica absoluta Retomando o tema da estigma- tização e da objetivação das pesso- as com deficiência, entendemos que, além da acessibilidade física e comunicacional, é necessário cons- truir a acessibilidade atitudinal. Trata-se da necessária construção das relações de tolerância e respei- to entre todas as pessoas. O entendimento da vulnera- bilidade como “condição antro- pológica absoluta” (Stalsett, 2002) e como mais um sinal da interdependência humana e cós- mica leva-nos à percepção de que não somos auto-suficientes e de que não temos o destino em nos- sas mãos. Ou que a classificação das pessoas com e sem deficiên- cia em dicotomias hierárquicas subjuga o ser humano em ques- tão, torna ausente uma pessoa capaz de viver dignamente. En- tendemos que no reconhecimento da dignidade de todas as pessoas está a chave para a construção de relações sociais mais solidárias. A categoria vulnerabilidade permite-nos entender a deficiência não só como diferença, mas tam- bém como semelhança. Se conside- Classificação das pessoas com e sem deficiência em dicotomias hierár- quicas subjuga o ser humano em questão 33 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 rarmos a costumeira estigmatiza- ção das pessoas com deficiência, o reconhecimento da vulnerabilida- de como “condição humana” seria um dos caminhos para a constru- ção de relações sociais mais tole- rantes e menos excludentes. Se a deficiência do outro nos amedronta e instiga ao rechaço do diferente (seja pela segregação ou pela exclusão), ela também nos desafia ao reconhecimento de nossa própria vulnerabilidade ¯ no sentido da superação da an- gústia humana diante de sua vulnerabilidade. Neste sentido, torna-se fundamental o entendi- mento de que a dignidade huma- na é inviolável e que esta é, justa- mente, a força intrínseca que garante a vida digna em meio às situações de vulnerabilidade da existência – sejam elas temporá- rias ou permanentes. O reconhecimento da vulnera- bilidade humana transforma a fra- queza em força, a incapacidade em capacidade, as deficiências em diferenças (ou, nos termos da con- dição humana, em semelhanças) formas de ser, viver e conhecer. Isto nos remete à sociologia das emergências (Santos, 2005, p. 30), no sentido de considerarmos a latência própria à existência hu- mana. Ou seja, o desabrochar de saberes diferentemente sábios, de escalas diferentemente solidárias e de reconhecimentos recíprocos nos espaços sociais. Nestes ter- mos, entendemos que a afirmação da dignidade própria das pessoas com deficiência leva a demandas político-sociais fundamentais, a começar pela humanização das relações sociais. Como diz Stalsett (2004), Em minha opinião, vulnera- bilidade, dignidade e justiça são valores éticos indispensáveis na tarefa de construir um mundo mais humano. A vulnerabi- lidade, por ser […] fator antro- pológico e ético constituinte. A dignidade, por ser a força que surge da vulnerabilidade e que desafia qualquer sistema político, econômico e social que não res- peite, proteja e promova a pessoa humana tal como ela é. A justiça […] requer uma inclusão radical e uma defesa incansável da vida humana – vida em plenitude, vida para todos e todas. Percebam que inversão inte- ressante: a vulnerabilidade pode não ser mais lugar de exclusiva debilidade, mas sim da força de uma nova vida – da vida huma- na. É esta força que surge da vul- nerabilidade compartilhada (a vida em sua fragilidade e pleni- tude) que também nos remete ao necessário reconhecimento da interdependência humana. Sem a percepção da vulnerabilidade humana, ninguém reconhece o desafio ético no sentido do exer- cício da tolerância. No momento em que puder- mos respeitar e considerar a con- dição humana das pessoas com deficiência em sua complexidade, poderemos incluir no “ser” huma- no novas categorias, tais como: ser cego, ser surdo, ser surdo-cego, Dignidade huma- na é inviolável e que esta é, justa- mente, a força intrínseca que garante a vida digna em meio às situações de vulnerabilidade da existência 34 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ R e v i s t a d e E d u c a ç ã o d o C o g e i m e ○ ○ ○ ○ ○ ○ A n o 16 - n . 30 – junho / 2007 ser paraplégico, ser tetraplégico, ser autista etc. E mais que isto, poderemos dar visibilidade à vulnerabilidade humana com to- dos os seus desafios postos, onde fraqueza, dor, medo, erro, instabi- lidade, incapacidade… etc. pode- rão também ser categorias que nos ensinam, no exercício da tole- rância, a viver e aprender. Referências bibliográficas AMARAL. Lígia Assumpção. 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