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Ancelmo Pereira de Oliveira Ardinete Rover Cláudio Luiz Orço Evandro Ricardo Guindani Idovino Baldissera Rejane Ramborger Joaçaba 2º semestre de 2012 © 2010 Unoesc Virtual Direitos desta edição reservados à Unoesc Virtual Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida desde que citada a fonte. O material apostilado desta disciplina é para uso exclusivamente didático, sem intenção comercial. E84 Ética e sociedade : educação a distância / (coord.) Ardinete Rover. – Joaçaba : UNOESC, 2009. 80 p. : il. ; 23 cm. – (Material didático) Modo de acesso: Portal de ensino. Também disponível para reprografia. Inclui bibliografia 1. Ética. I. Unoesc Virtual II. Rover, Ardinete, (coord.) CDD 170 Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) Reitor Aristides Cimadon Vice-reitor Acadêmico Luiz Carlos Lückmann Vice-reitores de Campus Campus de São Miguel do Oeste Vitor Carlos D‟ Agostini Campus de Videira Antonio Carlos de Souza Campus de Xanxerê Genesio Téo Coordenação geral da Unoesc Virtual Ardinete Rover Coordenações locais da Unoesc Virtual Roseli Rocha Moterle – Joaçaba Aníbal Lopes Guedes – São Miguel do Oeste Rosa Maria Pascoali – Videira Cristiane Sbruzzi Berté – Xanxerê Professores conteudistas da disciplina Ancelmo Pereira de Oliveira Ardinete Rover Cláudio Luiz Orço Evandro Ricardo Guindani Idovino Baldissera Rejane Ramborger Elaboração e produção gráfica: Roseli Rocha Moterle Copidesque: Marisa Vargas Revisão eletrônica: Carolina Nodari Capa: Elediana Fátima de Quadros SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ........................................................................................................ 7 PROGRAMA DE APRENDIZAGEM .......................................................................... 9 Unidade 1 A importância da ética na sociedade.................................................. 11 SEÇÃO 1 A importância do outro .............................................................................. 12 SEÇÃO 2 A ética e a vida social ................................................................................ 16 SEÇÃO 3 Ética e sociedade na universidade ............................................................. 18 Unidade 2 Ética, moral e cultura ............................................................................ 21 SEÇÃO 1 Ética e moral.............................................................................................. 22 SEÇÃO 2 A cultura, a moral e a violência.................................................................. 25 SEÇÃO 3 Preconceito e discriminação: violência contra o outro diferente ................. 30 SEÇÃO 4 Os valores morais e a liberdade de consciência.......................................... 32 Unidade 3 O pensamento filosófico e a ética ....................................................... 35 SEÇÃO 1 A filosofia e a ética ..................................................................................... 36 SEÇÃO 2 O surgimento da ética na filosofia .............................................................. 39 SEÇÃO 3 O pensamento de Aristóteles e Marx .......................................................... 43 SEÇÃO 4 Reflexão sobre a construção da moral ....................................................... 44 Unidade 4 A globalização e a ética ........................................................................ 51 SEÇÃO 1 “Querer é poder”: as conseqüências éticas desse modelo de sociedade ..... 52 SEÇÃO 2 O fenômeno da globalização ..................................................................... 53 SEÇÃO 3 O fundamentalismo da globalização econômica ........................................ 55 SEÇÃO 4 O avanço tecnológico e a ética .................................................................. 57 Unidade 5 Os conflitos éticos da sociedade atual............................................... 63 SEÇÃO 1 Grandes questões éticas da contemporaneidade........................................ 64 SEÇÃO 2 A construção de valores morais na sociedade brasileira ............................. 69 SEÇÃO 3 Características da sociedade brasileira capitalista ....................................... 71 SEÇÃO 4 A legitimação da concentração de renda e da corrupção no Brasil ............ 72 SEÇÃO 5 Esperança ética.......................................................................................... 75 Referências ................................................................................................................. 79 Gabarito ...................................................................................................................... 81 APRESENTAÇÃO Apresentamos a você, aluno da Unoesc na modalidade a distância, o material didático da disciplina Ética e Sociedade. Ele foi elaborado visando a uma aprendizagem autônoma; os conteúdos foram cuidadosamente selecionados e a linguagem utilizada facilitará seus estudos a distância. A disciplina Ética e Sociedade tem fundamental importância para a reflexão acerca do significado de nossa ação no mundo. Na perspectiva de construir nosso “ser ético”, precisamos refletir teoricamente sobre os valores que norteiam nossas ações. Nessa disciplina, procuramos lançar um olhar acadêmico sobre o tema da ética, revelando sua real importância para o desenvolvimento das atividades cotidianas em sociedade e, também, no desempenho das atividades profissionais. Com isso, buscamos reconhecer, nas contradições sociais, a carência de uma discussão sobre a ética em suas instâncias normativas e prescritivas do agir humano. Desejamos que você tenha muito sucesso nessa disciplina e em todo o curso. Bons estudos! Equipe Unoesc Virtual. Ementário PROGRAMA DE APRENDIZAGEM Conceituação (ética x moral). Fundamentos históricos e filosóficos. Os conflitos éticos da sociedade atual (doutrinas éticas). A ética e o processo de globalização. Arquegenealogia da ética brasileira. Desafios éticos do cotidiano. Objetivo geral Compreender e analisar a ética dentro do contexto sócio-histórico, considerando suas diferentes concepções. Objetivos específicos Perceber as implicações da reflexão ética no conjunto das ações sociais do homem. Conhecer o processo de construção histórico-social da moral. Compreender a complexidade das questões éticas na sociedade. Carga horária A duração da disciplina seguirá um cronograma de atividades para orientar o seu estudo, conforme a carga horária proposta na matriz curricular. Formas e momento de avaliação As atividades avaliativas, descritas no Guia do Aluno, serão realizadas a distância; compreendem a avaliação G1, com peso 4. A avaliação final, que compreende a avaliação G2, é presencial; consiste em uma prova sobre todo o conteúdo, com peso 6. Cronograma de estudo Utilize o cronograma a seguir para organizar seus estudos de acordo com as datas de realização das atividades. É obrigatório obedecer ao cronograma previsto para a entrega das atividades avaliativas. ATIVIDADES DATAS Primeira aula presencial Apresentação e orientações sobre o funcionamento dadisciplina; oficina de utilização do Portal de Ensino Unoesc / A ti v id a d e s a d is tâ n c ia – G 1 Primeira temática: Homem, meio ambiente e sociedade Leitura das unidades: 1 A importância da ética na sociedade 2 Ética, moral e cultura Fórum de discussão / a / Leitura das unidades: 1 A importância da ética na sociedade 2 Ética, moral e cultura 3 O pensamento filosófico e a ética Avaliação on-line / a / Segunda temática: Mídia e ética Leitura das unidades: 4 A globalização e a ética 5 Os conflitos éticos na sociedade atual Fórum de discussão / a / / Encontros presenciais Datas agendadas conforme orientação da Coordenação do Curso / / Avaliação G2 / Avaliação G2 fora de prazo / Avaliação G3 / U n id a d e 1 Unidade 1 A importância da ética na sociedade Objetivos de aprendizagem Ao final desta unidade, você terá condições de: compreender a importância da ética na sociedade; identificar os elementos que unificam as categorias ética, o outro e a sociedade; refletir sobre as implicações éticas na vida cotidiana. Roteiro de estudo Seção 1: A importância do outro Seção 2: A ética e a vida social Seção 3: Ética e sociedade na universidade Ética e Sociedade 12 PARA INÍCIO DE ESTUDOS Uma das capacidades mais requeridas pela sociedade atual é a de conviver com as diferenças, sejam elas de idéias, comportamento, atitudes, raça, cultura. A vida em sociedade exige que reconheçamos a importância do outro, sejamos compreensivos, tolerantes e sensíveis aos desafios que nos rodeiam! Como nossa cultura ainda é muito individualista, precisamos de um longo caminho para nos tornar mais éticos. É esse caminho que o convidamos a trilhar na disciplina de Ética e Sociedade . Então, vamos iniciar nossos estudos de Ética e Sociedade? Para isso, precisamos entender por que se estuda a ética e em que momento surge a preocupação ética na sociedade. Inicialmente, vamos falar daquilo que é o eixo central da ética: o reconhecimento do outro. SEÇÃO 1 A importância do outro Com a correria do dia-a-dia, somos levados a nos preocupar bastante com nós mesmos. Nesta seção, vamos pensar sobre o papel que o outro ocupa na nossa vida? Quais os motivos de sua alegria ou tristeza? Procure fazer uma retrospectiva em sua memória emocional e destaque seus principais motivos de alegria e tristeza, no dia- a-dia. Reflita sobre sua família, amigos, universidade. O que, em sua família, afeta os seus sentimentos? Se as condições financeiras são as melhores possíveis, você já se sente plenamente feliz? Vivemos grande parte da vida em função de nossas necessidades e desejos, mas por que será que existe o ditado popular de que “dinheiro não traz felicidade”? Vamos auxiliar essas reflexões com uma dinâmica? Escolha, para cada item, o que for solicitado. Um bem material muito importante para você: Um sonho que almeja: Um local para onde gostaria de viajar: Uma pessoa ou grupo de pessoas muito importantes na sua vida: A importância da ética na sociedade 13 Se você precisar se desfazer de uma dessas coisas, qual será? Elimine uma de suas escolhas. E se você precisar abrir mão de mais duas coisas? Elimine outras duas respostas. Enfim, o que restou? Essa dinâmica nos ajuda a perceber o papel que o outro ocupa na nossa vida. Praticamente, ninguém se desfaz das pessoas, nesse exercício. Geralmente, os grandes responsáveis pelos nossos sentimentos de alegria ou tristeza provêm das relações que temos com as pessoas. Quantas vezes perdemos o sono ou não acordamos bem porque temos algum problema de relacionamento interpessoal? Você já se sentiu assim? Você imaginaria a sua vida isolada dos outros? Enfim, o outro é a causa de nossa alegria e de nossa tristeza, contribui e prejudica em nossa busca pelo sentido da vida. É importante percebermos que nossa condição humana é marcada pela incompletude e inacabamento; a todo momento buscamos o outro, ou para partilhar, ou para nos completar como indivíduos. Quantas vezes você está desanimado, chateado e ao conversar com outra pessoa parece ficar mais leve e tranqüilo? Isso tudo nos ajuda a entender que o outro nos completa em nossos pensamentos e ações. Mas, quem é o outro? O outro pode ser a pessoa que está à sua frente, um familiar, um amigo, ou qualquer ser humano de qualquer raça e cultura, uma criança, um trabalhador, um portador de HIV. Podemos, também, compreender o outro como os animais e a natureza; as idéias de outras culturas, de outras religiões, de outros partidos políticos; o mundo exterior que se apresenta a nós a todo momento. O outro também pode ser a nossa própria capacidade de reflexão, quando se volta sobre si mesma, analisa a consciência, capta os apelos que nela se manifestam (ódio, compaixão, solidariedade, vontade de dominação ou de cooperação, sentido de responsabilidade), percebe os seus atos e as conseqüências que deles derivam; quando analisamos nossas próprias idéias (BOFF, 2003a). Com relação ao reconhecimento do “outro”, Boff (2003a) também se refere ao meio ambiente, ao planeta Terra, a tudo o que sai da nossa esfera individual. Reconhecer o outro-animal, o outro-natureza, na sua dignidade, é reorganizar toda uma forma de ver o mundo, é, como sugere o autor, produzir uma nova ótica: “A tese de base desta ótica afirma que a lei suprema do universo é a da inter-dependência de todos com todos. Tudo está relacionado com tudo em todos os pontos e em todos momentos. Ninguém vive fora da relação.” (BOFF, 2003a). Percebemos, assim, que o outro faz parte de nossa vida. cliente Realce cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade 14 A necessidade que temos de nos comunicar também evidencia a importância do outro. Observe, atualmente, os sites de relacionamento e os programas de comunicação instantânea. Por que as pessoas buscam, de forma obsessiva, outros colegas, outras comunidades? Será que isso não revela uma constante busca pelo outro, às vezes ofuscada pela ideologia do individualismo competitivo da nossa sociedade? Por que precisamos tanto falar da importância do outro para falarmos de ética? A base de toda a construção ética fundamenta-se nesta pressuposição: a ética surge quando o outro emerge diante de nós. Boff (2003a) leva-nos a perceber que sempre temos uma postura diante do outro: ou nos distanciamos, ou nos aproximamos, ou ignoramos. É nessa relação que somos considerados éticos ou não. A ética surge a partir do modo como se estabelece a relação com esses diferentes tipos de outro. Pode fechar-se ou abrir-se ao outro, pode querer dominar o outro, pode entrar numa aliança com ele, pode negar o outro como alteridade, não respeitando-o, mas incorporando-o, submetendo-o ou, simplesmente, destruindo-o. (BOFF, 2003a). A todo momento, estamos em relação com o outro, e isso nos caracteriza como seres morais – moralmente bons ou ruins; não há como negar essa condiçãohumana, temos nossa dimensão moral. O que é essa dimensão moral? É nossa dimensão relacional, o nosso ser social. Somos seres morais à medida que vivemos em sociedade, que buscamos adaptar nossas ações ao meio em que vivemos, aos outros que nos circundam. Cada cultura, cada código moral vai determinando um tipo de relação com o outro. Na antiga Palestina, os leprosos eram considerados impuros, por isso as pessoas deveriam ignorá-los e romper relações com eles. Isso fazia parte de uma regra moral aceita por todos. Na caça às bruxas, durante a Idade Média, as mulheres eram consideradas demoníacas, portanto podiam ser destruídas, mortas. As tribos maias, incas e astecas, na América, também foram praticamente extinguidas pelos espanhóis porque eram consideradas pagãs e inferiores. No início da colonização brasileira, negros e índios podiam ser escravizados, eram considerados inferiores aos brancos. A relação do branco (proprietário) com o negro e o índio era de dominação e submissão. cliente Realce cliente Realce cliente Realce A importância da ética na sociedade 15 Observe como a cultura e a moral de cada tempo determinam a forma como nos relacionamos com os outros. Como é a sua relação com o outro? Com o outro diferente de você, com o outro de outras raças, culturas, classes sociais? Como a sua cultura familiar o educou a se relacionar com o outro? Boff (2003a) nos alerta: “O outro é determinante. Sem passar pelo outro (que posso ser eu mesmo), toda ética é antiética.” As considerações de Boff (2003a) nos levam a perceber que não podemos falar de ética sem, antes, resgatar o reconhecimento do outro em nossa vida pessoal. Hoje, isso se torna muito necessário; nossa sociedade está marcada por um modelo de relações predatórias, no qual o outro é importante até o momento em que tem utilidade. Boff (2003a) afirma que nossa sociedade “[...] magnifica o indivíduo que constrói sozinho sua vida.” O que isso quer dizer? Que se costuma admirar, magnificar as pessoas que têm sucesso individualmente, por intermédio da fama e da riqueza, mesmo que, para isso, acreditem que não precisam ser éticas, que há sempre um jeito para tudo, que podem usar a sua influência para conseguir o que querem, que devem ser egoístas! Se você quiser aprofundar suas percepções sobre a importância do outro na vida de cada um, assista ao filme Shyrlei Valentine. O filme narra a história de uma mulher que durante, praticamente, toda sua vida cuidou da casa e dos filhos, passa o dia só e tem uma relação muito diferente e peculiar com as paredes de sua casa. Antes de tentar entender o que seja a ética, devemos estar conscientes de que ela surge no momento em que aparece o outro, no momento em que reconhecemos nossa dimensão de vida social. É o que veremos na próxima seção. Precisamos discutir a ética num âmbito social; do contrário, acreditaríamos que cada um deve ter sua ética e não haveria sociedade, mas um conjunto de indivíduos lutando por interesses particulares. cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade 16 SEÇÃO 2 A ética e a vida social Consigo compreender que minha vida pessoal está vinculada à sociedade? Tenho consciência de que minhas ações individuais têm conseqüências sobre o meio que habito? Por que nossa disciplina se chama Ética e Sociedade, e não apenas Ética? Precisamos discutir a ética dentro da sociedade em que vivemos, na qual buscamos concretizar nossas aspirações individuais. Sociedade e indivíduo formam um todo inseparável. Não há como negarmos essa relação entre ações individuais e sociedade. Esta possui uma lógica de funcionamento que acaba determinando grande parte de nossas ações individuais. Mas, o que isso tem a ver com a ética? Basicamente, a relação que a sociedade tem com a ética é que o meio social (econômico, político, cultural, educacional) determina e condiciona em grande parte o comportamento das pessoas. Para analisarmos eticamente o comportamento dos indivíduos, precisamos, antes de tudo, analisar a relação entre as atitudes individuais e o meio onde estão inseridos. Como isso se percebe concretamente? Procure analisar a nossa sociedade capitalista: as idéias presentes no mundo publicitário, no cinema, na televisão estão centradas na busca pelo sucesso. Você se lembra do desenho do Pica-pau? Que idéias esse personagem transmite? Que devemos obter sucesso a qualquer custo. E o Tio Patinhas? Para ele, ganhar dinheiro é o mais importante. Fonte: Um Mundo Mágico (2005). A lógica da sociedade capitalista assenta-se sobre a busca ilimitada pelo dinheiro e pelo sucesso. Se você tem uma casa, vai querer melhorá-la, ampliá-la; depois vai querer comprar mais uma. Você acha que em nossa sociedade alguém diria que já cliente Realce cliente Realce cliente Realce A importância da ética na sociedade 17 tem dinheiro suficiente para viver? Dificilmente. As pessoas sempre se consideram insatisfeitas e canalizam seus desejos para acumular e consumir, independentemente de a sociedade estar com altos índices de miséria e de pobreza. A sociedade constrói modelos de relações entre as pessoas, estabelece normas de convivência. Nas grandes capitais, não se vê nada de anormal em tropeçar em alguém dormindo nas calçadas, faz parte do cotidiano da cidade haver crianças pedindo dinheiro nas ruas; essa indiferença começa a fazer parte do costume, da vida cotidiana. Fonte: Rulli (2005). Por esses e outros motivos, não podemos discutir ética sem antes entender a lógica de funcionamento da sociedade em que vivemos. Estudamos ética e sociedade, justamente, porque a sociedade determina valores, princípios, normas e regras de sobrevivência e convivência. Uma reflexão ética precisa entender as concepções de homem e de sociedade; em cada período histórico, há uma ideologia vigente que norteia o comportamento dos indivíduos, por isso a ética fundamenta-se em uma análise filosófica e sociológica. Na sociedade medieval, o comportamento das pessoas estava pautado em bases religiosas. O medo e a concepção de pecado eram fundamentados na idéia de que Deus estava sempre vigiando as atitudes humanas. As pessoas temiam ir além dos limites impostos pelas regras sociais. O bem e o mal, Deus e o demônio estavam sempre presentes no imaginário das pessoas. Outra importante característica da sociedade medieval era a ligação entre poder terreno e divino. As pessoas acreditavam que o Rei ou Imperador possuíam ligação direta com Deus, por isso o respeito e a obediência aos governantes eram algo incontestável. Você percebeu que o limite e a obediência foram fatores que marcaram a sociedade medieval? Isso acabava determinando comportamentos e atitudes das pessoas. E a sociedade moderna, que tipo de transformação ela traz? cliente Realce cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade 18 A primeira grande transformação é que a religião perde espaço e o homem passa, lentamente, a assumir o lugar de Deus. No período medieval, as pessoas acreditavam que o Paraíso, a plenitude da felicidade, viria após a morte e que nesta vida deveriam suportar as privações e o sacrifício. O advento da modernidade faz com que a razãohumana passe a ocupar o lugar da fé e da crença em Deus. Outra grande transformação da sociedade moderna é a perda do limite e a busca pelo infinito, tanto do conhecimento quanto do lucro. A Igreja, que no período medieval atuava como inibidora de atitudes, vai perdendo espaço na sociedade moderna. Enfim, como percebemos, a sociedade está em constante transformação, alterando seus valores, crenças, concepções de certo e errado e, conseqüentemente, a moral e a ética. A universidade busca formar pessoas e está inserida em uma sociedade, por isso surge o desafio: que modelos de ser humano e de profissional estão presentes em nossa sociedade? Quais os valores morais e éticos de nossa sociedade? Quais atitudes são fundamentais em um profissional que atua na sociedade do século XXI? Essa é a razão (e, como você percebeu, são muitas) de estudarmos ética e sociedade na universidade. SEÇÃO 3 Ética e sociedade na universidade Na seção anterior, procuramos esclarecer que não é possível estudar a ética desvinculada da sociedade. Por que estudar ética e sociedade na universidade? O que isso tem a ver com minha profissão? Muitos cientistas do século XIX acreditavam que a ciência deveria aprimorar seus inventos e descobertas, apenas debruçar-se sobre seu campo específico do saber para evoluir a partir de suas próprias pesquisas. Sabe qual foi o resultado disso? O lançamento da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, a morte de milhares de judeus em campos de concentração, a dizimação de tribos africanas e indígenas, a degradação ambiental quase irreversível, a desigualdade de renda, a exclusão social. O conhecimento científico que não traz a ética para dentro de sua área específica corre o risco de desenvolver sérios prejuízos à sociedade e a todo o planeta Terra. Os acontecimentos citados tiveram como causa principal a crença de que a ciência possui poderes absolutos e é sempre fonte de verdade e certeza. cliente Realce A importância da ética na sociedade 19 A produção do conhecimento, em qualquer área, precisa discutir e refletir sobre a relação do conhecimento com a realidade, com a sociedade. O profissional, professor ou aluno, deve sempre levantar questões sobre a sua área de conhecimento: para quem se destina esse conhecimento? Qual a sua finalidade? Quem pode ser beneficiado ou prejudicado com a sua aplicação? Por que estamos realizando pesquisas e descobertas nessa área? Essas questões são necessárias, pois discutem a finalidade do conhecimento e sua relação com a sociedade, com as pessoas, com o presente e o futuro da sociedade. O conhecimento pode ser utilizado tanto para o benefício quanto para o malefício da sociedade. De acordo com a forma com que empregarmos o conhecimento aprendido na universidade, poderemos ser ótimos ou péssimos profissionais. O que nos conferirá excelência profissional na nossa área, além dos conhecimentos técnicos, é o modo como utilizaremos esses conhecimentos. A universidade precisa buscar respostas para os desafios do século XXI, tão complexos que um campo do conhecimento não pode alcançá-los sozinho, por isso da necessidade de abertura e diálogo, de rever posturas profissionais e acadêmicas que no século XX eram tidas como verdadeiras. Mas quais são os desafios? A fome, a miséria, novas doenças... Esses desafios globais que afetam nossa realidade local não podem ser enfrentados e resolvidos por uma única ciência, possuem grande dimensão socioeconômica, ambiental, política; portanto o profissional do século XXI precisa dialogar com outras áreas do conhecimento. Precisa, assim, reconhecer a importância do outro, do outro-profissional, do outro-ciência. Os desafios do terceiro milênio possuem alto grau de complexidade, de inter- relações e interdependências. O profissional da Economia não consegue, sozinho, resolver o problema da fome; o profissional da Educação não consegue educar sozinho; o profissional da Saúde não consegue, sozinho, garantir saúde a todos; o profissional do Direito não consegue, somente por meio da lei, criar uma sociedade justa e organizada; o profissional de Engenharia precisa discutir as finalidades de sua técnica numa perspectiva humana e social. Nenhum desses profissionais consegue, sozinho, resolver todos esses problemas. Em razão de um período acentuado de especialização, a ciência acabou se fechando no seu objeto de conhecimento e perdendo um pouco a relação com a sociedade e com outras áreas do saber. É muito comum encontrarmos algumas ciências considerando-se superiores a outras, ou profissionais que se fecham ao diálogo com outros profissionais por considerá-los inferiores ou pouco relevantes. cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade 20 Assim, a ética nos convida a reconhecer a importância do diálogo e da consciência do inacabamento, porque nunca estamos prontos, sempre precisamos aprender com o outro diferente. Auto-avaliação 1 1 Qual a importância da ética no meio em que você vive? Como a ética pode contribuir para a melhoria desse lugar, desse ambiente? 2 A ética surge no momento em que aparece o outro. Por que o outro é o centro da ética? Assinale V para as alternativas corretas e F para as incorretas: ( ) Porque o outro é aquele que nos julga se agimos corretamente ou não. ( ) Porque é somente quando estamos diante do outro que podemos ser ou não considerados éticos. ( ) Porque o outro sempre é nossa referência de certo ou errado. ( ) Porque diante do outro sempre precisamos tomar uma atitude, podemos nos fechar a ele, abrir-nos ou negá-lo, ou seja, essa relação é que será ou não ética. RESUMINDO Nesta unidade, refletimos sobre a dimensão social de nossa vida. Em uma sociedade marcada pelo individualismo, antes de definir o que é ética e moral, precisamos reconhecer a importância e a presença do outro na nossa vida, precisamos reconhecer nossa interdependência. Nessa interdependência, vamos construindo e definindo nosso ser moral, nossa forma de nos relacionar com o outro. De acordo com nossas preferências, vamos incluindo e excluindo pessoas de nosso convívio. Definimos nosso círculo de amigos e pessoas indesejáveis a partir de nossos critérios do que seja uma pessoa boa e ruim, assim determinamos nossos valores morais. Cada sociedade define e determina alguns valores e crenças, e isso influencia muito a forma como as pessoas vivem em sociedade. Na universidade, precisamos incluir a ética na produção e construção do conhecimento. Um conhecimento sem ética pode tornar-se prejudicial à sociedade, assim como um profissional sem ética pode não ser considerado bom, por mais conhecimento técnico que possua. A próxima unidade nos ajudará a compreender melhor a relação entre a ética e a sociedade e como ocorre a construção dos valores morais. cliente Realce U n id a d e 2 Unidade 2 Ética, moral e cultura Objetivos de aprendizagem Ao final desta unidade, você terá condições de: compreender o que é ética e o que é moral; diferenciar ética e moral; identificar os elementos que unificam as categorias ética, moral e cultura. Roteiro de estudo Seção 1: Ética e moral Seção 2: A cultura, a moral e a violência Seção 3: Preconceito e discriminação:violência contra o outro diferente Seção 4: Os valores morais e a liberdade de consciência Ética e Sociedade 22 PARA INÍCIO DE ESTUDOS Nesta unidade, você vai saber como a nossa educação cultural contribui ou não para sermos mais éticos, como somos educados na relação com o outro, principalmente com o outro de cultura diferente. Para compreender a importância do outro e o modo como a cultura determina essa relação, vamos fazer uma reflexão sobre a moral, a forma de os indivíduos conceberem o certo e o errado numa determinada cultura e num determinado tempo, e sobre a filosofia, que é o berço da ética. Vamos lá?! SEÇÃO 1 Ética e moral Quando nos deparamos com as palavras ética e moral, o que nos vem à mente são questões relativas ao comportamento humano: é certo ou errado fazer isso? Dizemos que uma pessoa é ética porque ela agiu com respeito ao outro ou a algo além de si mesma. Se uma pessoa faz uma boa refeição e sente-se satisfeita, você não dirá que foi ou não ética, mas se comeu de forma abusiva, deixando quem estava ao seu lado com fome, então poderíamos dizer que ela não foi ética. Por isso, iniciamos nossa apostila sobre ética falando da presença do outro em nossa vida, assim vamos compreendendo o que estuda a ética e qual sua importância para a nossa vida e a nossa comunidade. Os seres humanos não nascem geneticamente pré-programados; diferentes de outros animais, os seres humanos são inacabados e não-determinados pela natureza, tampouco delimitados pelo destino ou por Deus(es). Se fosse assim, agiriam por instinto e não refletiriam sobre suas ações. Por isso, cada um, ou cada grupo social, cria respostas e soluções diferentes para perguntas e problemas semelhantes. O ser humano deve, portanto, construir ou conquistar o seu ser; ele não nasce pronto, ele se faz ser humano, torna-se pessoa. Mas, por que devemos compreender a ética na relação com a moral e a cultura? Porque, geralmente, o que direciona as ações e comportamentos individuais, ou seja, o que condiciona as decisões do indivíduo provém da cultura e da moral. Há uma forte influência da cultura nas nossas escolhas e decisões. cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce Ética, moral e cultura 23 Quando nós, brasileiros, estamos com fome, podemos pensar na possibilidade de matar um boi e fazer um bife suculento. Já os indianos (hindus) jamais pensarão nessa possibilidade para saciar a sua fome, pois, em sua grande maioria, são vegetarianos. Esse exemplo nos ajuda a entender que as nossas escolhas e decisões são determinadas pela cultura em que vivemos, que estabelece normas, regras e valores morais. A ética é o estudo e a reflexão sobre os valores morais, que se modificam em cada cultura e em cada época. As noções de certo e errado, o que devemos ou não fazer, são construídas na cultura em que nascemos. Você pode perceber que as questões culturais influenciam o modo como as pessoas organizam sua vida, e a cultura é o ponto de partida para o estudo da ética. Mas, afinal, o que é ética? Podemos considerar a ética como a ciência do comportamento moral dos homens na sociedade; ainda que o objeto da ética é a moral, e a moral é um dos aspectos do comportamento humano. No nosso dia-a-dia, não fazemos distinção entre ética e moral, usamos as duas palavras como sinônimos, mas, ao contrário do que pensa o senso comum, ética e moral não são a mesma coisa; é o que veremos agora. A ética busca analisar o conjunto de práticas morais ligadas ao costume e à cultura, em um determinado tempo e espaço. De acordo com Leonardo Boff (2003b), a ética é parte da filosofia; estuda as concepções de mundo, os princípios e valores que orientam pessoas e sociedades. A moral é definida como o conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes, valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social. A moral é normativa (relativo a normas); é parte da vida concreta, da prática real das pessoas, que se expressam por costumes, hábitos e valores aceitos. Uma pessoa é moral quando age em conformidade com os costumes e valores estabelecidos, que podem ser, eventualmente, questionados pela ética. Uma pessoa pode ser moral, mas não ser ética? Segundo Boff (2003b), a moral refere-se aos costumes, à educação que recebemos da família, aos valores da religião, da tradição. Esses valores forma o caráter e molda a dimensão ética do indivíduo, que passa a acreditar que são valores universais (éticos) os valores que ele aprendeu em casa, que está acostumado a praticar (morais). Se um filho é tratado em casa como o centro da família, nunca recebe um “não”, nunca é repreendido, os pais fazem tudo o que ele quer, compram o que pede, ele vai formando seu caráter e seus valores de acordo com essa relação. Como a família é o primeiro espaço de socialização, o filho vai aprender a se relacionar com os outros da escola como se comportava em casa. Ele vai acreditar que tudo o que cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade 24 quer tem direito a receber, que onde estiver deve ser tratado como o mais importante; provavelmente terá dificuldade de aceitar uma idéia contrária à sua. Para Boff (2003b), as pessoas serão éticas se tiverem adquirido uma boa moral, ou seja, terão um caráter ético se no seu ambiente cultural, familiar mais próximo, tiverem aprendido valores universais, de respeito ao outro, de diálogo. De acordo com o exemplo, o filho aprendeu que pode impor sua vontade aos outros, pode pedir, fazer o que quiser, e isso não será errado. Assim, ele terá um caráter ético próprio que não estará de acordo com uma ética universal. Na sociedade atual, as pessoas estão acostumadas com a desigualdade, com a pobreza e com a miséria, mas isso é ético? A palavra ethos, da qual se originou a palavra ética, precisa ser entendida como o lugar onde vivemos, que é o planeta Terra, e não apenas nossa casa, nossos amigos, nosso trabalho, nossos ideais. Pensar eticamente nos coloca além de nossa realidade particular, que tem sua moral, seus costumes, por isso a ética exige uma atitude reflexiva, profunda, investigativa e interligada. Segundo Boff (2003b), a ética e a moral vigente hoje é a capitalista, cuja ética diz: bom é o que permite acumular mais com menos investimento e em menos tempo possível; e cuja moral concreta reza: empregar menos gente possível, pagar menos salários e impostos e explorar melhor a natureza. Eis a razão da grave crise atual. A moral é particularista, identificada e vinculada com grupos religiosos, nacionalistas, políticos, classistas; com normas e sanções que mudam de acordo com as transformações da sociedade. A ética tem conteúdo universal, parte do princípio da igualdade dos seres humanos e de seus direitos à paz, ao bem- estar, à felicidade individual e coletiva; relaciona-se com os valores reais da existência humana. Salientamos essa diferença com a citação de Rodrigues e Souza (1994, p. 13): "A ética é muito mais ampla, geral e universal do que a moral. A ética tem a ver com princípios mais abrangentes, enquanto a moral se refere mais a determinados campos da conduta humana." Entre moral e ética há uma tensão permanente: a ação moral busca justificar seus valores em fundamentos ligados à naturezahumana, à ciência e à religião, enquanto a ética exerce vigilância crítica sobre os fundamentos da moral para transformar a vida cotidiana. Você já consegue entender a relação entre ética e moral? Na próxima seção, vamos compreender como os costumes, os valores, as tradições e o cotidiano podem legitimar ações antiéticas. cliente Realce cliente Realce cliente Realce Ética, moral e cultura 25 SEÇÃO 2 A cultura, a moral e a violência Você deve estar se perguntando: por que a cultura seria o ponto de partida para estudar ética? Há duas razões fundamentais para essa argumentação: a cultura é um produto da história coletiva dos diferentes grupos sociais; a cultura contém componentes simbólicos que contemplam formas de agir, pensar, sentir e reagir em um determinado espaço, onde cada um desses elementos traz em si um apelo especial pela realidade ética. A cultura é o espaço em que se formam nossas concepções de certo e errado, ou seja, nossos valores morais. Se observarmos a história da humanidade, desde que o homem de vivia em conjunto com outros homens, as normas de comportamento moral têm sido necessárias para o bem-estar do grupo. Percebemos que cultura e moral são inseparáveis. Um dos objetivos de falarmos sobre cultura é porque ela conserva e legitima padrões de comportamento que são questionados e estudados pela ética. Será que determinadas culturas e costumes não contribuem para que os seres humanos sejam violentados? Por que algumas pessoas aceitam ser inferiorizadas, exploradas e outras acreditam que isso é normal? Que reflexões éticas podemos fazer sobre a aceitação da violência? Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. Então nos perguntamos: que relação existe entre cultura e violência? Costumes e violência? O termo violência nos remete a algo que foge à normalidade, ao eventual, a um acidente, enfim, a algo que não estamos acostumados a ver. Esta seção convida você a perceber com mais atenção o cotidiano. Como a palavra moral também significa costume, muitas vezes estamos tão acostumados com essa realidade que nem mais percebemos se há algo de errado com ela. Você já deve ter ouvido a cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade 26 expressão “águas calmas não representam ausência de perigo.” Com o cotidiano é a mesma coisa; superficialmente, tudo parece estar dentro da normalidade, mas se analisamos com mais profundidade, percebemos que existem turbulências profundas. A ética surge na história com a preocupação de conter a violência entre as pessoas; cabe a nós, ao falarmos em ética, aprofundar o conceito de violência e percebê-la no cotidiano dos nossos costumes e da nossa cultura. Há situações nas quais não existe violência física, mas outro tipo de violência, de natureza psicológica. Quando, mesmo sem usar o chicote ou a palmatória, o pai ou o professor exigem o comportamento desejado, doutrinando as crianças, impondo valores e dobrando-as para a obediência cega e aceitação passiva da autoridade, existe violência simbólica, já que a força que exercem é de natureza psicológica e atua sobre a consciência, exigindo a adesão irrefletida que só aparentemente é voluntária (ARANHA, 1992, p. 171-172). Como seres sociais, vivenciamos e buscamos a felicidade em grupo. Para atingir determinados objetivos, agrupamo-nos em instituições. Para sobreviver e buscar proteção, vivemos em um grupo, a família. Preparando-nos para a vida adulta, entramos na escola, participamos de um grupo religioso, uma Igreja. Como vivemos em uma sociedade organizada com um Estado de direito, pagamos impostos para usufruir de serviços públicos, de saúde, por exemplo. Quem de nós nunca precisou ou precisará de um hospital? Quando nos profissionalizamos, entramos no mundo do trabalho, que também ocorre, na maior parte das vezes, de forma institucionalizada. A empresa, uma organização, as leis trabalhistas, a relação patrão- empregado-economia constituem o cotidiano do trabalho. Como essas diferentes organizações que compõem nosso cotidiano se tornam antiéticas? Como as diferentes instituições transformam o ser humano de sujeito em objeto? Que tipo de violação pode acontecer contra o ser humano nessas instituições? A ética faz parte do nosso cotidiano, nossa vida familiar, educacional, profissional, etc. Vamos refletir sobre a presença da violência na nossa sociedade em alguns espaços do nosso cotidiano: família, educação, trabalho, saúde pública. FAMÍLIA Se você já precisou sair de casa, está estudando fora ou morando distante da família, deve sentir muita saudade e falta de um aconchego; a família é vista como um lugar e espaço do bem, mas você sabe que não precisamos ir muito longe para nos defrontar com problemas de violência familiar: pais que espancam filhos e, ainda mais grave, cometem abusos sexuais contra eles, problemas de alcoolismo, cliente Realce cliente Realce Ética, moral e cultura 27 drogas, desemprego, todos esses fatores desencadeiam processos de violência. A reflexão sobre a violência traz consigo a necessidade de discutirmos as relações de poder. Há abuso de poder quando uma pessoa reduz a outra à condição de objeto – assim se concretiza a violência. Além dessas formas de violência explícita, procure refletir sobre a violência velada, como as relações de poder entre os membros da família que, aparentemente consideramos dentro da normalidade, próprias do cotidiano, entretanto são formas de violência. Uma mulher, dona-de-casa, acorda cedo, limpa a casa, leva os filhos à escola, lava a roupa de todos (filhos, marido), prepara o almoço. À tarde, costura, lava e passa. À noite, o esposo chega em casa, tira o sapato, deita no sofá, solicita o jantar e ainda reclama do atraso e do barulho. Os filhos chegam da rua, jogam a roupa e os calçados pelo chão, sujam a cozinha. A mulher prepara o jantar, lava a louça, ajuda o filho a fazer a lição de casa, leva roupa e toalha de banho ao marido que, depois, descansado, prepara-se para deitar. Quando ele deita, a mulher ainda prepara os alimentos para o almoço do outro dia, sem ter sentado um minuto sequer. Contudo, se perguntassem aos filhos e ao marido se ela trabalha, eles certamente poderiam dizer que não, entendendo que o trabalho de casa não pode ser considerado como tal. Quais questionamentos éticos poderíamos fazer sobre essa família? Quem é tratado como objeto? Quem exerce poder sobre o outro? Como a violência faz parte do cotidiano, da normalidade e do costume? Você lembra que iniciamos nossos estudos falando sobre a reflexão ética? Pois bem, ela surge para questionarmos a moral, os costumes, mas estes estão no nosso dia-a- dia, e o que é considerado normal pela tradição e pela cultura pode ser fonte de violência contra as pessoas, ações antiéticas presentes na moral familiar. A família, no mundo ocidental, é essencialmente patriarcal e, por conseguinte, essa estrutura tem grande possibilidade de se tornar machista. Os papéis sociais, definidos desde cedo, contribuem para que algumas pessoas se tornem submissas às outras na estrutura familiar, como acontece com a menina que faz os serviçosdomésticos em relação ao menino que tem mais liberdade para buscar uma profissão; assim, as relações de poder têm continuidade. Vamos, agora, a outro cotidiano no qual passamos grande parte de nossa vida: a escola, a universidade. Na cultura ocidental patriarcal, o pai é o chefe de família. cliente Realce Ética e Sociedade 28 EDUCAÇÃO No Brasil, no início do século XX, era considerado normal professores baterem em alunos, aplicarem castigos, enfim, a violência na escola era explícita; uma ação que também refletia a moral familiar da época. Para as provas, o aluno precisava decorar todo o conteúdo e responder de forma idêntica ao professor. Essa metodologia expressava que o mais importante era o conteúdo. Se o aluno interpretasse, traduzisse o conteúdo com suas palavras, a resposta era considerada errada. O aluno não podia fazer perguntas, era um meio de passagem entre a lousa e a folha da prova, era um objeto. Precisamos, portanto, entender as formas de violência na transmissão do conhecimento. Quantas vezes o conhecimento científico e a figura do professor são colocados pela escola como algo superior ao aluno? Outra forma de violência existente na escola é a reprodução da exclusão. Filhos de famílias ricas têm maiores chances de prosperar na vida acadêmica do que os de classe menos favorecida. Muitas crianças, para ajudar a sustentar a casa, acabam deixando a escola, enquanto muitas outras, além de freqüentar a escola regular, têm condições de fazer cursos paralelos. Essa forma de violência, sofrida no âmbito educacional, muitas vezes é obscurecida pelo simples argumento de que alguns aproveitaram as oportunidades e outros não; uma lógica de pensamento que busca naturalizar o processo de exclusão social. Para enriquecer essa discussão, assista ao filme Sociedade dos Poetas Mortos. O filme aborda o conflito entre a postura do professor e a escola. Um carismático professor de literatura chega a um colégio muito conservador, onde revoluciona os métodos de ensino ao propor que seus alunos aprendam a pensar por si mesmos. Fique atento, estamos construindo nossas reflexões dentro de uma relação entre a violência e o cotidiano. Outro espaço de convivência é o local onde exercemos nossa profissão, em que as relações interpessoais se tornam mais intensas e competitivas. cliente Realce Ética, moral e cultura 29 TRABALHO Vamos analisar como as relações de poder se transformam em relações de violência no trabalho. É necessário situar o trabalho dentro de uma sociedade e de um determinado tempo, por isso nos deteremos à sociedade capitalista do século XX. Já que estamos falando do cotidiano, vamos partir de expressões do senso comum que expressam de que maneira o ser humano é tratado como objeto no mundo do trabalho. Já ouvimos que “algumas pessoas nasceram para mandar e outras, para obedecer.” Essa afirmação é muito reproduzida; foi feita, inicialmente, pelo filósofo Aristóteles. Segundo ele, “[...] uns homens são livres e outros, escravos por natureza, e que esta distinção é justa por natureza.” (VASQUEZ, 1990, p. 31). Na época de Aristóteles, ninguém julgava antiético uma pessoa escravizar a outra; hoje, esse pensamento não é diferente. Se uma pessoa precisa se submeter a horas de trabalho sem um salário digno, muitos poderiam afirmar que foi predestinada e que é uma realidade social à qual precisa se submeter. Outra realidade do mundo do trabalho é a “ditadura do desemprego”; muitas vezes, quando um colaborador procura por melhorias salariais, tem como resposta que precisa aceitar essa realidade, pois há uma fila de pessoas esperando por sua vaga. À medida que vamos considerando isso algo normal, aceitamos uma forma de violência contra o ser humano. Muitos direitos trabalhistas são cortados em função de uma realidade maior e global, que se impõe sobre as pessoas. Outra forma de violação à liberdade do ser humano é a escolha da profissão: muitos submetem o seu desejo, sua empatia por alguma área à realidade do mercado de trabalho e, assim, tornam-se objetos de um sistema maior. Também é muito comum o conflito entre colegas de trabalho na busca pela promoção profissional, no qual os interesses particulares se chocam com o outro. É impossível responsabilizar uma única pessoa por essa realidade, nosso objetivo é evidenciar as formas de violência, muitas vezes tidas como algo normal do cotidiano. Vamos, agora, a outro cotidiano, a instituição que cuida de nossa saúde. SAÚDE PÚBLICA Quem já esteve doente sabe que é um momento em que nos sentimos fragilizados e carentes de atenção e cuidado. Por outro lado, é uma situação em que, com muita freqüência, somos tratados como objetos. A falência do sistema público, aliada às relações de poder, provoca um descaso contra o ser humano. As pessoas se cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade 30 acostumam a essa realidade e não percebem mais como são violentadas nessas instituições. Há algum tempo, uma reportagem comprovou o fato de que as pessoas não percebem mais determinadas ações como uma forma de violência: após permanecer das 4h às 9h da manhã em uma fila para ser atendido em um hospital, um indivíduo, não tendo conseguido a sua vaga, declarou que estava acostumado com isso e que voltaria no dia seguinte. Esses fatos vão se cristalizando como uma cultura do descaso público, tornam-se costume e não são mais questionados. Aqui reside o papel da ética: identificar e perceber a violência velada nos costumes e na moral das instituições, nesse caso, a saúde pública. Todas as instituições exercem, de uma forma ou de outra, violência contra o indivíduo; cabe a você considerar e perceber a importância dessas reflexões em qualquer projeto profissional. Você percebeu que estamos trabalhando com vários conceitos? Se você não conseguiu compreender a relação entre ética, moral e cultura, retome seus estudos nas seções anteriores ou procure seu professor tutor. SEÇÃO 3 Preconceito e discriminação: violência contra o outro diferente Nossa formação cultural acontece a partir de modelos, de princípios certos e errados, comportamentos morais e imorais. Vamos nos deter, especificamente, ao fato de considerarmos o outro errado, imoral, por ser diferente, por fugir aos nossos padrões culturais. Isso está relacionado à ética por dois motivos: primeiro, por não considerarmos o outro diferente em sua especificidade; segundo, como conseqüência, por não refletirmos sobre o que pensamos a respeito do outro. A ética é uma reflexão crítica sobre nossas formas de perceber o outro e agir sobre ele. Assim, fechamo-nos à ética quando nos fechamos à autocrítica sobre o que e como pensamos a respeito do outro. 31 Ética, moral e cultura Para Aranha (1992, p. 181), preconceito (pré-conceito) significa conceito (ou opinião) formado antecipadamente, sem adequado conhecimento dos fatos. O perigo do preconceito está na recusa em reexaminarmos as convicções quando se tornam dogmáticas. Nesse ponto, o preconceito é fonte de intolerância e, portanto, de violência. O preconceito leva à discriminação, quando o diferente é considerado inferior, excluído dos privilégios de que os melhores desfrutam. Os antropólogos nos alertam que,ao analisarmos os costumes de outros povos, convém não os avaliar a partir de nossos valores culturais, o que significaria uma atitude etnocêntrica. Quando isso acontece, corremos o risco de procurar neles o que lhes falta e esquecer de ver com clareza o que são de fato. Da mesma forma, dentro de cada cultura, há preconceitos que levam à discriminação dos pobres, negros, homossexuais, mulheres, idosos e tantos outros. Um exemplo de preconceito cultural é o dos colonizadores europeus, que consideravam os povos tribais inferiores não como uma cultura diferente, mas sim de menor importância. Aqui, surge a legitimidade de muitos atos violentos contra povos indefesos. Sabemos que a população indígena brasileira foi praticamente exterminada pelos brancos. Conforme Aranha (1992, p. 182), a origem da discriminação, de raça ou de sexo, geralmente é conseqüência da desigualdade social. Desde a antiguidade grega, em toda a história do mundo ocidental, o poder é branco, masculino e adulto. O Brasil tem uma longa tradição histórica de rígidas hierarquias sociais – uma sociedade marcada pelo poder de elites (senhores de engenho, barões do café, coronéis-fazendeiros). Apesar de a sociedade brasileira apresentar grandes desigualdades sociais, há uma camuflagem do preconceito por meio do mito da democracia racial; uma idéia de que todos são iguais e que no Brasil as pessoas sabem conviver entre negros e brancos e entre ricos e pobres. Quando aprofundamos o assunto, percebemos que isso não é verdade, que existe preconceito e discriminação, principalmente com negros, índios e migrantes. O ÍNDIO, O NEGRO E O MIGRANTE Quando os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil, o processo de cristianização dos índios por eles empreendido facilitou a política de dominação de Portugal. Mesmo não sendo essa a intenção dos religiosos, imbuídos de ardor religioso, eles estavam convencidos da superioridade de sua cultura e religião. Ao docilizarem os índios, adequando-os a padrões estranhos, deram início à desintegração da cultura indígena. Dogmática: que se apresenta com caráter de certeza absoluta. Etnocêntrica: que tem a tendência de considerar a cultura de seu próprio povo a medida para todas as demais. cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce 32 Ética e Sociedade Assim como a inferiorização do índio, a origem do preconceito contra o negro encontra-se na tradição da escravidão. Os senhores acalmaram a consciência com a convicção de que o negro era semi-animal, bruto e rebelde, e exigia pulso forte por parte do dominador. Por resistir ao trabalho escravo, o negro passa a ser avaliado por meio de estereótipos: é indolente, malandro, cachaceiro. A dominação é justificada por considerar o negro inferior. Estereótipos: que são vistos todos de um mesmo modo de ser. Sabemos que o racismo é muito presente em nossa cultura. A reflexão ética nos convida a analisar como o racismo está fundamentado na ignorância e na falta de racionalidade crítica. O preconceito e a discriminação não atingem apenas o índio e o negro, vítimas do estigma da escravidão. Em um país como o Brasil, com irregular desenvolvimento nas diversas regiões, o Sul e o Sudeste constituem o espaço do progresso e da riqueza, onde se instalam as indústrias. Por motivos histórico-sociais, amplas regiões permanecem empobrecidas, além de serem assoladas pela seca. Essa situação obriga as pessoas a migrarem; com a esperança de dias melhores, vêm para os grandes centros, ocupam funções subalternas, enfrentam o desemprego e outras dificuldades, sofrendo preconceitos. As regiões mais ricas acabam aproveitando a mão-de-obra barata e discriminando essas pessoas. Ainda é vigente no Brasil a mentalidade de que existem estados e culturas mais importantes do que outras. Esse pensamento é mais uma forma de exercer violência sobre o outro; confunde o diferente com o errado ou inferior. Na próxima seção, vamos compreender como a cultura e a moral nos impedem de ser éticos. SEÇÃO 4 Os valores morais e a liberdade de consciência Estamos falando de cultura; sabemos que os valores morais são construídos e legitimados nela, na relação que temos com a nossa família e com a comunidade desde que nascemos. Por que falarmos em liberdade? Porque a liberdade de consciência é elemento fundamental para o agir ético; somente quando tomamos consciência de nossas ações é que podemos refletir sobre elas. cliente Realce cliente Realce cliente Realce 33 Ética, moral e cultura Ainda podemos nos perguntar: o que têm a ver os valores morais com a liberdade? Acreditamos que os valores (concepções de certo e errado) que aprendemos em casa são as melhores coisas que trazemos conosco, são os pilares de nossa conduta e de nossas ações. Chauí (2003, p. 311) afirma que nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educam para respeitar e reproduzir os valores propostos por ela como bons e, portanto, com obrigações e deveres. Desse modo, valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e atemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos. Sócrates, filósofo grego de Atenas, levava os jovens a questionar aquilo em que acreditavam e que repetiam, a questionar os próprios valores. Foi um dos primeiros filósofos a estimular o questionamento ético, porque provocava uma reflexão profunda sobre os valores. A grande contribuição do pensamento e da ação socrática foi no sentido de demonstrar que o que entendemos como valores (certo, errado, bonito, feio) é construído dentro de um contexto cultural, geográfico e num determinado tempo. Sócrates fazia as pessoas indagarem sobre a origem e a essência das virtudes (valores e obrigações) que julgavam praticar ao seguir os seus costumes. Portanto, não podemos afirmar que nossos valores sejam válidos para todos. Quando você não consegue perceber a particularidade dos seus valores, não conseguirá pensar além da sua cultura e da sua moral. Assim, seus valores morais limitam a sua liberdade de pensamento e reflexão. Muitas vezes, ouvimos a expressão: “a minha opinião é esta e não abro mão porque é a verdade!”; uma afirmação como essa demonstra que o sujeito não consegue refletir além de seus princípios morais, tirando-lhe a liberdade de reflexão. É o chamado fundamentalismo ou fanatismo: o indivíduo fica preso aos seus referenciais culturais de mundo. Em nossa vida, quando seguimos o que é dito como correto pela cultura da sociedade em que vivemos, achamos que estamos no caminho certo. Sócrates nos perguntaria: Você está seguindo esses valores conscientemente ou apenas para atender a um costume, para não sair da moda? Por que e como a moral, os costumes podem exercer algum tipo de violência contra o ser humano? cliente Realce Ética e Sociedade 34 Como vimos, a moral e os costumes exercem algum tipo de violência quando surge oracismo e o preconceito, mas também quando impedem e dificultam o indivíduo de refletir racionalmente, ou seja, ser de fato livre nos seus pensamentos. De acordo com Aranha (1992, p. 113), desde que nascemos enfrentamos o problema do determinismo cultural: ao nascer, o homem já se encontra em um mundo constituído, recebe como herança a moral, a religião, a organização social e política, a língua, enfim, os costumes, que não escolheu e que, de certa forma, determinam sua maneira de sentir e pensar. Quando não conseguimos perceber que muitos de nossos valores são válidos somente para nossa cultura e para nossa profissão, não estamos fazendo uso adequado de nossa liberdade. Auto-avaliação 2 1 A partir de seu cotidiano cultural e social, cite outros exemplos de práticas silenciosas de violência praticadas e obscurecidas pelo costume e pela tradição. 2 Como a cultura pode dificultar o processo de liberdade de pensamento, ou seja, como ela pode permitir o surgimento de um pensamento fundamentalista? RESUMINDO Nesta unidade, percebemos a importância da cultura para o estudo da ética, como nossos valores e visões de mundo são construídos no ambiente familiar e como o costume e a tradição podem abrigar formas de violência contra o indivíduo. A reflexão ética exige um constante processo de autocrítica, de revisão de concepções e dos valores morais. Essa reflexão torna-se fundamental para o crescimento ético; do contrário, caímos no fundamentalismo, escravizamos nossa capacidade de pensar livremente, nossas idéias ficam enquadradas em sistemas de pensamento construídos em uma cultura. Para a ética, é essencial de um olhar crítico sobre a realidade, por isso, na próxima unidade, buscaremos compreender a relação entre a filosofia e a ética, já que a filosofia tem como princípio a dúvida e a reflexão. cliente Realce cliente Realce cliente Realce U n id a d e 3 Unidade 3 O pensamento filosófico e a ética Objetivos de aprendizagem Ao concluir a leitura desta unidade, você terá condições de: identificar os principais fundamentos teóricos da ética; compreender a ética como um ramo da filosofia; perceber a ética inserida na história da sociedade e do conhecimento. Roteiro de estudo Seção 1: A filosofia e a ética Seção 2: O surgimento da ética na filosofia Seção 3: O pensamento de Aristóteles e Marx Seção 4: Reflexão sobre a construção da moral Ética e Sociedade 36 PARA INÍCIO DE ESTUDOS Nas unidades anteriores, percebemos a necessidade de refletir sobre nossas ações, pois nascemos em uma sociedade, estamos no mundo com outras pessoas, nossas ações ou omissões interferem no contexto social em que vivemos. Sempre que falamos: “estive refletindo sobre...”, “pensei muito sobre...”, “freqüentemente me pergunto se é correto...”, as pessoas ao nosso redor nos dizem: “já está filosofando...”. Precisamos, então, quando falamos em ética, andar pelo caminho da filosofia ou da reflexão do homem sobre seus atos, seu contexto, seu mundo e seus iguais. É por isso que, nesta unidade, falaremos da importância de compreender a ética a partir da filosofia. SEÇÃO 1 A filosofia e a ética O que vem à sua mente quando você ouve a palavra filosofia? Por que falarmos de filosofia? Muitas vezes, o professor de filosofia é aquela pessoa que sempre faz reflexões profundas sobre um tema aparentemente simples. Por essa razão, numa sociedade marcada pelo utilitarismo e pela praticidade, a primeira acusação sobre a filosofia é de que ela é inútil. Entretanto, veremos adiante que, para compreendermos a ética, é fundamental refletirmos sobre a filosofia. Mas, por quê? A filosofia nasce na história trazendo a dúvida para o centro das discussões sobre a vida. A ética nada mais é do que a sistematização de grandes questionamentos sobre o agir humano e a relação entre os indivíduos. É correto fazer isso? Por que devo agir assim? Que lugar o outro ocupa nas minhas escolhas e decisões? Existe uma consciência ética que nasce conosco? Sabemos agir de forma ética naturalmente ou precisamos aprender? As questões éticas são, acima de tudo, questões filosóficas. Daí que, para construirmos uma reflexão ética, precisamos, antes de tudo, resgatar o papel e o conceito de filosofia. Chauí (2003, p. 23) discute a idéia de filosofia como a “[...] fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas.” Com isso, percebemos que a filosofia busca problematizar as práticas e os conhecimentos já estabelecidos. Em nossa educação, o conhecimento é transmitido cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce O pensamento filosófico e a ética 37 por intermédio dos costumes e, por isso, não buscamos levantar dúvidas sobre ele, até porque todo mundo pensa igual, então acabamos nos acostumando com certas idéias e práticas. Para progredirmos eticamente, contudo, precisamos colocar em dúvida e em questão os nossos próprios costumes . Tendo como premissa a idéia da filosofia como base racional de análise do real, a definição de Chauí (2003) leva-nos a um caminho parecido com o que sugeriu Marx, ao afirmar que a filosofia ficou muito tempo refletindo e que deveria agir. Portanto, ela deve nos conduzir a uma ação que tenha reflexos imediatos na sociedade, interferindo diretamente nas ações dos seres humanos e nas suas relações com o mundo, com os outros e consigo mesmos. Assim, precisamos compreender que o conhecimento filosófico deve proporcionar uma reflexão sobre a vida concreta que nos leve a transformá-la para melhor. Essa foi a busca de muitos filósofos. Marx pode ser exemplo desse papel da filosofia na história. Ele questionava filosoficamente a desigualdade de classes, a dominação de umas pessoas por outras: é natural que existam ricos e pobres? Como superar o abismo existente entre patrões e empregados? Perceba, aqui, que a filosofia surge como um pensamento que provoca questionamento e problematização para uma transformação social. Dessa maneira, a importância do conhecimento filosófico é evidente para comprovar que a filosofia não é somente abstrata, como afirmam algumas teorias, mas possui interferência prática. Alguns teóricos ajudam a reforçar a idéia de que o conhecimento filosófico não é mera abstração. Platão concebia a filosofia como um saber a ser usado em benefício do homem; Descartes via na filosofia a possibilidade de se conhecer, conservar e inovar, quer nas artes, quer no mundo das técnicas. Platão. Para saber mais sobre o assunto, leia A República, de A filosofia assume, na história, uma função investigativa, crítica e problematizadora. Mas, o que isso tem a ver com a ética? Como já vimos, nem sempre costumamos refletir e buscar os porquês de nossas escolhas, comportamentos, valores; agimos por força do hábito, dos costumes e da tradição, tendendo a naturalizar nossa realidade social, política, econômica e cultural. É muito comum ouvirmos as expressões: “as coisas não mudam, sempre foi assim e sempre será”; “eu sou assim mesmo, é de minha natureza agir dessa forma.” Essas cliente Realce cliente Realce cliente Realce cliente Realce Ética e Sociedade38 expressões refletem a naturalização da realidade humana e social, que acarreta uma considerável perda da capacidade de auto-reflexão e de problematização da sociedade e de nossos próprios pensamentos; perdemos nossa capacidade crítica diante da realidade. Você percebe como isso é muito grave? Em outras palavras, não costumamos fazer ética porque não fazemos crítica, nem buscamos compreender e problematizar a nossa realidade moral. Com isso, podemos compreender a íntima relação entre o descaso pela filosofia e, como conseqüência, o abandono da ética. Não é possível ser ético sem, antes de tudo, ser reflexivo e crítico. Temos uma experiência ética quando conseguimos perceber a diferença entre aquilo que é e o que poderia ser melhor. Quando percebemos que as coisas podem mudar, estamos vivendo uma experiência ética. Essa capacidade de questionar é a característica principal do pensamento filosófico. A filosofia, historicamente, fez forte oposição ao pensamento mítico e ao senso comum. Mas, em que se baseia o pensamento mítico? Nas crenças, na aceitação da realidade como algo definitivo e acabado. O senso comum também se caracteriza por essa adaptação do pensamento à realidade e a uma idéia comum. Podemos perceber que a vida em grupo e em comunidade influencia as ações, as atitudes e o pensamento das pessoas; a maioria dos indivíduos pensa e age de forma semelhante e até mecânica. Nesse agir e pensar é que se manifesta o senso comum, dificultando o pensamento crítico e investigativo. Em nossa cultura, de forte descendência européia, o racismo é muito comum, presente no cotidiano das pessoas, nas piadas, brincadeiras, de forma tão mecânica e consensuada (em que todos concordam) que dificilmente abre espaço para um “por quê?”. O que você pensa a respeito desse assunto? Você questiona sobre por que, para que e como tem determinadas atitudes, falas ou pensamentos? Quando conseguimos fazer isso, estamos refletindo sobre nossas ações e, conseqüentemente, preparando-nos para mudar nosso modo de agir. cliente Realce cliente Realce cliente Realce O pensamento filosófico e a ética 39 Dessa forma, percebemos que, para fazer uma reflexão ética, precisamos exercitar o pensamento filosófico, que nada mais é do que o pensamento crítico diante das idéias e costumes aceitos em nossa cultura. Na próxima seção, vamos compreender como acontece a relação entre ética e filosofia. SEÇÃO 2 O surgimento da ética na filosofia Vários foram os filósofos que se preocuparam em entender e analisar as questões éticas. Sócrates foi um deles, conforme já mencionamos; foi um dos primeiros a fazer uma reflexão ética sobre os valores e as crenças das pessoas. Propôs a busca dos valores universais pela razão e a idéia de que já nascemos com o conhecimento dentro de nós. Quando sugeria: “conhece-te a ti mesmo”, Sócrates convidava os seus concidadãos a voltarem-se para dentro de si, ignorar os mitos e as determinações das verdades impostas pelas autoridades; ao afirmar “só sei que nada sei”, convocava os seus companheiros à reflexão constante sobre os acontecimentos do mundo à sua volta – é preciso educar-se para não se deixar manipular pelos outros; para isso, a educação deve cuidar da alma, ou seja, cultivar a razão. Perceba como é relevante o pensamento de Sócrates para a ética e, em especial, para a nossa atualidade. Sócrates acreditava que o conhecimento deveria, automaticamente, provocar o auto-conhecimento, ou seja, deveria levar o indivíduo a refletir e questionar suas certezas e idéias. Seu pensamento é uma defesa do diálogo e da compreensão ao outro e ao novo. [...] ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates realiza na verdade duas interrogações. Por um lado, interroga a sociedade para saber se o que ela costuma considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à virtude e ao bem; e, por outro lado, interroga os indivíduos para saber se, ao agir, possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter ou sua índole são realmente virtuosos e bons. A indagação ética socrática dirige-se, portanto, à sociedade e ao indivíduo. (CHAUI, 2003, p. 311). Vemos, aqui, a manifestação de um vínculo indissociável entre reflexão filosófica e ética. Observe que Sócrates levava as pessoas a questionarem suas próprias compreensões e idéias sobre o bem, o mal, o certo e o errado. A questão da ética assume uma primeira sistematização, um pensamento mais elaborado teoricamente com Aristóteles. Teria sido ele o primeiro filósofo a pesquisar os princípios da ação humana por meio de uma reflexão acerca da diferença entre conhecimento teórico e prático, pela constatação de que o saber relacionado às coisas humanas não poderia ser demonstrado teoricamente, como na física ou na matemática. cliente Realce Ética e Sociedade 40 Aristóteles percebeu que seria necessário pensar em uma nova ciência que se aprofundasse sobre as ações e intenções do homem. O comportamento humano é, muitas vezes, inexplicável pela ciência e não podemos subordiná-lo ao conhecimento científico. O ser humano é um ser com muitas dimensões, imaginação, sonhos, ilusões, que fogem à exatidão da ciência. Sabemos que em cada ambiente cultural e social e em distintos momentos da história humana podemos perceber uma gama de valores voltados a discutir os procedimentos do homem sob o ponto de vista do certo e do errado, do justo e do injusto. A especificidade da reflexão filosófica sobre a ética está no fato de que os princípios éticos não podem partir de princípios exatos, como em outras áreas do conhecimento. As ações do homem podem ser consideradas boas em um momento e ruins em outro; em cada período historico, elabora-se uma determinada reflexão sobre a ética. Essas reflexões vão construindo o campo específico da ética e nos ajudando a entender que a ética não pode se preocupar em definir de forma exata e definitiva os modelos de ações e comportamentos humanos; precisa se fundamentar numa análise sociológica e antropológica, identificando as características de cada período histórico e de cada modelo de sociedade. Na Idade Média, por exemplo, a sociedade organizava-se em torno da Igreja, a grande detentora do poder político, social e religioso. Os princípios éticos da época, alicerçados na ótica cristã, enfatizavam a revelação dos Livros Sagrados; o Pai, o Filho e o Espírito Santo determinavam as normas de conduta. Jesus torna-se o grande mensageiro de uma nova ética, a ética do amor ao próximo, porém essa ética foi conspurcada pelos juízos de valores de seus representantes, que distorceram a pureza do cristianismo primitivo: o amor ao próximo presente nos discursos de Cristo foi sufocado pela ganância, pelo poder que a manipulação da fé proporcionava aos ocupantes dos altos cargos religiosos. O século XVI sofre a pressão do protestantismo, em que alguns católicos reagem às determinações da Igreja de Roma. Foram chamados de “protestantes” por questionarem alguns procedimentos, decisões e determinações da Igreja Romana. Para os protestantes, a ética é baseada nos valores éticos; a base para o agir ético está nas relações com o mundo e com as pessoas que nele estão, e não na relação com o divino ou o sagrado. Conspurcada:
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