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está en contradicción con las mismas razones por las que se hace (Umberto Eco, Cinco Escritos Morales)1. A intervenção amparada na rationale humanitária está entre as questões mais controvertidas das relações internacionais. A Carta das Nações Unidas, adotada em 26 de junho de 1946, menciona a não intervenção como um dos seus princípios norteadores. O uso da força é autorizado pela Carta apenas para situações de legítima defesa ou de ameaça à paz e à segurança internacionais. Ao longo das últimas décadas, surgiram várias tentativas de relativizar o alcance desses princípios, de modo a permitir a intervenção estrangeira nos territórios dos Estados, especialmente em situações de emergência humanitária. Os novos conceitos buscam conciliar o que seria aparentemente inconciliável: a soberania, de um lado, e a proteção dos indivíduos, de outro. O conflito tem sido abordado de duas maneiras: pela evolução do conceito de soberania – da soberania como autoridade para a soberania 1 ECO, Umberto. Cinco Escritos Morales. Barcelona: Bompiani, 2007. p. 18. Introdução ana maria bierrenbach 14 como responsabilidade – e pela expansão da definição do que constitui ameaça à paz e à segurança internacionais, no marco do Capítulo VII da Carta. Como resultado da primeira fórmula, violações maciças de direitos humanos dentro das jurisdições nacionais passam a ser objeto de responsabilidade internacional. Como resultado da segunda, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), passam a autorizar ações militares quando as ameaças derivam de crises humanitárias. Entre as inovações conceituais mais significativas encontram-se o direito ou dever de ingerência, o conceito de segurança humana e a responsabilidade de proteger, objeto desta tese. O objetivo deste trabalho é analisar a mudança de paradigma que visa legalizar e legitimar as chamadas intervenções humanitárias. O princípio da responsabilidade de proteger constitui a nova moldura jurídica e política dessas intervenções. O trabalho buscará reconstituir a trajetória de construção do novo conceito, desde a sua formulação, em 2001, até a sua incorporação em resolução da Assembleia-Geral das Nações Unidas (AGNU), em 2005. Apresentará as forças políticas que atuaram nos debates, os quais tradicionalmente se caracterizavam por posicionar em lados opostos os países desenvolvidos, defensores do conceito, e os países em desenvolvimento, que resistiam a ele. O trabalho pretende, igualmente, explorar as possibilidades de enquadramento do conceito no Direito Internacional Público. A tese verificará a relação entre a responsabilidade de proteger e o Direito Internacional Humanitário (DIH), também conhecido como Direito da Guerra ou Direito Internacional dos Conflitos Armados. Serão exploradas, também, as relações entre o DIH e o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), ramo mais abrangente do Direito Internacional Público, cuja aplicação não se restringe a determinadas circunstâncias, como o DIH. O fim da Guerra Fria ampliou as possibilidades de atuação do CSNU, até então paralisado pela lógica da confrontação bipolar, que operava com base no poder de veto das grandes potências. As disputas ideológicas, por sua vez, cederam lugar a conflitos armados no interior dos Estados, motivados por diferenças étnicas e raciais, além de interesses econômicos. Esses conflitos resultaram no aumento do número de vítimas entre a população civil. Conforme estudos das Nações Unidas, cerca 15 introdução de 90% das mortes ocorridas em conflitos armados na década de 1990 eram civis, sobretudo mulheres e crianças No entanto, o chamado “efeito CNN” aumentou a pressão da opinião pública internacional em favor da intervenção, a partir de imperativos de ordem moral. O conceito de manutenção da paz, as razões que justificavam as operações de paz e os mandatos dessas missões, também mudaram nas últimas décadas. Inicialmente, as operações visavam à manutenção ou ao restabelecimento da paz em situações de conflitos interestatais. Após a Guerra Fria, as Nações Unidas passaram a atuar progressivamente em conflitos domésticos, colocando-se entre grupos armados rivais, de modo a evitar consequências que pudessem representar ameaças à paz e à segurança regionais. No princípio, o maior objetivo dessas missões era garantir acordos de paz e evitar a retomada de conflitos entre grupos armados (manutenção da paz). Posteriormente, as operações passaram a compreender responsabilidades cada vez mais amplas, que iam desde a interferência nos conflitos (imposição da paz) à reconstrução de instituições sociais e políticas no pós-conflito (construção da paz), com vistas a propiciar condições de sustentabilidade para a paz. As missões passaram a ser multidimensionais, com base em três elementos: segurança, reconciliação política e desenvolvimento social e econômico. Permanecia, contudo, o princípio norteador de que as missões se realizavam em países soberanos, com o objetivo principal de apoiar os governos locais em seus esforços de pacificação e reconstrução. Nesse sentido, o consentimento dos governos era fator fundamental para a sua realização. O direito ou dever de ingerência surgiu como demanda proposta pela organização não governamental (ONG) Médicos Sem Fronteiras, ao final da década de 1980. Criada por Bernard Kouchner, como dissidência do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que pauta sua atuação pela adesão estrita à neutralidade e ao consentimento das partes, a ONG argumentava no sentido de que o DIH e o DIDH se sobrepunham aos princípios da soberania, da não intervenção e da autodeterminação dos povos, consagrados na Carta das Nações Unidas. O novo conceito obteve número expressivo de apoios e chegou a ser refletido, com linguagem matizada, em resoluções da AGNU que se referiam ao direito à assistência humanitária. Não chegou, contudo, a obter consenso. Na década de 1990, a fórmula genérica das intervenções humanitárias passou a ser utilizada como justificativa para ações militares empreendidas ana maria bierrenbach 16 em regiões de conflito armado, como na Somália, em Ruanda ou na antiga Iugoslávia. Entretanto, como se verá mais adiante, os problemas encontrados no terreno pelas operações de paz e as dificuldades relacionadas à definição dos mandatos das missões fez a expressão “intervenção humanitária” passar a ser vista com grande desconfiança, sobretudo entre os países em desenvolvimento, receosos das “boas intenções” dos interventores. O relativo entusiasmo de alguns países ocidentais pelas intervenções contrastava com a apreensão de outros. Os desníveis de poder, representados na composição do CSNU e no poder de veto, fazem com que a determinação de onde e quando se realizarão as intervenções humanitárias constitua atribuição de grupo reduzido de países. A determinação seria inevitavelmente seletiva e pautar-se-ia por interesses nacionais, mais do que por considerações de natureza moral. A confusão entre as expressões “intervenção humanitária” e “assistência humanitária” e a relação entre elas e o próprio DIH dificultam os debates. Um dos objetivos desta tese é, portanto, esclarecer o sentido dessas expressões e buscar situar a relação entre o novo princípio da responsabilidade de proteger e o DIH. O pressuposto é o de que a maior compreensão do conceito e de sua natureza jurídica contribui para os debates e possibilita maior clareza, tendo em vista o posicionamento a ser adotado pelo Brasil. Em relatório à AGNU apresentado no ano 2000, o Secretário- -Geral das Nações Unidas (SGNU) Kofi Annan lançou um apelo: “Se a intervenção humanitária é, de fato, um assalto inaceitável à soberania, como podemos responder a Ruanda, a Srebrenica – a graves e