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sistemáticas violações de direitos humanos que afetam a nossa humanidade comum2?” Em resposta a esse apelo, o governo do Canadá instituiu a Comissão Internacional sobre Soberania e Intervenção Estatal (ICISS, na sigla em inglês), composta de personalidades dos meios diplomático e acadêmico. Em seu relatório final, divulgado em setembro de 2001 e intitulado Responsabilidade de proteger, a Comissão defendeu a ideia de que os Estados têm a responsabilidade de proteger seus cidadãos de catástrofes evitáveis, como assassinatos em massa e fome. Nas situações em que o Estado não é capaz, ou não deseja fazê-lo, essa responsabilidade 2 ANNAN, Kofi. We the peoples: the role of the United Nations in the 21st Century. New York: United Nations, 2000. p. 48. 17 introdução recai sobre a comunidade internacional. A responsabilidade de proteger propunha novo paradigma, que alterava a percepção da soberania. Enquanto o dever ou direito de ingerência e as intervenções humanitárias salientavam o papel dos países interventores, a responsabilidade de proteger ressaltava a posição dos beneficiários das intervenções. A mudança de enfoque buscou alcançar o consenso e dirimir as resistências, sobretudo entre os países em desenvolvimento. A responsabilidade de proteger não entraria em choque com a soberania, mas seria baseada na própria soberania, agora vista como a responsabilidade do Estado em relação à sua própria população. Conforme o atual SGNU, Ban Ki-Moon, em palestra proferida em Berlim, em julho de 2008, a responsabilidade de proteger não constitui um novo código para intervenções humanitárias. Pelo contrário, fundamenta-se em um conceito mais positivo, de soberania como responsabilidade. A responsabilidade de proteger seria, também, diferente do novo conceito de segurança humana, cujos limites são mais amplos. Trata-se de elaboração astuta, que justifica as intervenções militares com o propósito da proteção humana com base no Direito Natural, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Carta das Nações Unidas, nos tratados internacionais de Direitos Humanos e de DIH, na Convenção das Nações Unidas para Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio (1949) e no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (1998). Em outras palavras, as intervenções armadas com propósitos humanitários já estariam justificadas pelo próprio Direito Internacional. Não seria preciso, portanto, segundo os propositores do conceito, uma nova ordem normativa internacional para que a responsabilidade de proteger fosse adotada na prática. O conceito de responsabilidade de proteger foi incorporado ao Documento Final da Cúpula das Nações Unidas de 2005 (Documento A/RES/60/1). A definição do termo aceita por consenso na ONU reconhece a responsabilidade primária dos Estados na proteção de seus nacionais e delimita a aplicação da responsabilidade de proteger em seus aspectos material (em casos de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade), temporal (apenas após a falha manifesta do Estado em proteger seus nacionais e o esgotamento dos recursos pacíficos) e formal (por autorização do CSNU, conforme os Capítulos VI e VII da Carta das Nações Unidas). ana maria bierrenbach 18 A versão inicial do projeto do Documento Final mencionava que a responsabilidade de proteger seria aplicável a casos de graves violações de direitos humanos. A versão adotada, contudo, limita a aplicação a casos de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. A delegação do Brasil adotou, ao longo das negociações, postura cautelosa em relação ao princípio da responsabilidade de proteger. Embora apoiasse a criação de mecanismos de prevenção de crimes graves como genocídio, assassinatos em massa e limpeza étnica, a delegação defendia que não poderiam ser ignorados os princípios que regem tradicionalmente a sociedade internacional, como a soberania e a não ingerência. Nesse sentido, a posição era a de que deveriam ser vistas com cautela iniciativas unilaterais ou de grupos restritos voltadas ao estabelecimento de instrumentos de ação preventiva, que poderiam ensejar abusos de poder por Estados que apresentam maiores recursos econômicos e militares. Deveriam, ainda, ser recebidas com cuidado as propostas destinadas a reinterpretar normas vigentes acerca do papel do CSNU na manutenção da paz e segurança internacionais. É importante lembrar que entre a publicação do relatório da ICISS, em 2001, e a Cúpula Mundial, em 2005, ocorreram os atentados de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas e ao Pentágono. O que poderiam ser iniciativas voltadas à maior cooperação internacional, no âmbito da ONU, com um Conselho de Segurança liberado das amarras da Guerra Fria, tornou-se um debate excessivamente focalizado em questões de segurança e combate ao terrorismo. A chamada “doutrina Bush” de autodefesa antecipatória (preemptive war) certamente teve efeitos nas discussões do princípio da responsabilidade de proteger e chegou a ser alegada, pelo Primeiro-Ministro inglês, Tony Blair, em relação à intervenção no Iraque. Havia, naquele momento, entre grande parte das delegações na ONU, o fundado temor de que os membros permanentes do CSNU fizessem uso do órgão apenas como base de legitimação para a execução de planos adotados em outros foros. A ONU serviria, além de “selo” legitimador, como meio de partilha internacional dos custos decorrentes das ações militares. Como se recorda, no caso da primeira Guerra do Golfo (1990-1991), a intervenção teve o respaldo da ONU, pois a anexação de um Estado (Kuaite) por outro (Iraque) justificava o uso do Capítulo VII da Carta. Já na segunda Guerra do Golfo (iniciada em 2003), alegações norte-americanas não 19 introdução confirmadas resultaram em intervenção realizada à margem do Direito Internacional. Não obstante, o conceito de responsabilidade de proteger foi formalmente incorporado pela comunidade internacional em Resolução adotada pela AGNU, no contexto da Cúpula de 2005, limitada a situações de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Com a exceção da limpeza étnica, categoria mais recente, trata-se de delitos tipificados pelo Estatuto de Roma, de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI). O SGNU, Ban Ki-Moon, elencou a responsabilidade de proteger entre os temas que buscará fazer avançar em 2010. Este trabalho busca oferecer os antecedentes e os elementos teóricos, jurídicos e políticos, com o objetivo de subsidiar a participação brasileira nas discussões que virão. O primeiro Capítulo conterá considerações teóricas sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade. São conceitos fundamentais da Ciência Política, que se aplicam também às Relações Internacionais. A soberania estatal tem como corolários os princípios da não intervenção e da autodeterminação, pedras fundamentais da Carta das Nações Unidas e do sistema internacional construído no pós-Segunda Guerra. Entendida como poder supremo, no sentido de que o Estado não reconhece nenhum poder que lhe seja superior, a soberania tem sido cada vez mais questionada, em favor de uma nova ordem, centrada nos seres humanos, agora reconhecidos como sujeitos do Direito Internacional. O princípio da responsabilidade de proteger e a jurisdição supranacional, representada pelo TPI, fariam parte desse novo paradigma. A responsabilidade de proteger apresenta-se como conceito “com vocação” para tornar-se norma. Para abordar esses conceitos, o trabalho se servirá do pensamento de autores como Hedley Bull, Michael Walzer, Norberto Bobbio, Max Weber, Jürgen Habermas e Gelson Fonseca Júnior, entre outros. A obra de Fonseca Júnior é particularmente relevante, uma vez que o autor se preocupa especificamente com a transposição do conceito