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estabilidade com a necessidade de mudança”21. No campo dos direitos humanos, a submissão dos Estados a mecanismos de supervisão e monitoramento referentes ao cumprimento de tratados é parte do processo de abdicação de parcela da soberania. Nesse sentido, o Estado obriga-se a submeter informes, perante os treaty bodies (comitês estabelecidos pelos tratados: o Comitê de Direitos Civis e Políticos, relativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos; o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, relativo ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; o Comitê sobre os Direitos da Criança, relativo à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, relativo à Convenção 19 AMARAL JR. Op.cit. p. 75. 20 Idem. p. 76. 21 AMARAL JR. Op. cit. p. 79. 31 considerações sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade para a Eliminação da Discriminação Racial, entre outros), sobre o cumprimento dos dispositivos convencionais. Para o Embaixador José Augusto Lindgren Alves, a interpretação corrente é de que ao subscrever uma convenção internacional sobre direitos humanos, ao participar de organizações regionais dedicadas ao tema ou mesmo pelo simples fato de integrar-se à ONU – para a qual Declaração Universal dos Direitos Humanos tem a força de jus cogens, como direito costumeiro – os Estados “abdicam de uma parcela da soberania, em seu sentido tradicional, obrigando-se a reconhecer o direito da comunidade internacional de observar e, consequentemente, opinar sobre sua atuação interna, sem contrapartida de vantagens concretas”22. Conforme recorda Lindgren, além dos pactos e das convenções, aos quais os Estados aderem volitiva e soberanamente, a ONU vem construindo mecanismos para monitorar as violações de direitos humanos dentro das jurisdições nacionais, entre os quais os relatores temáticos (mecanismo inicialmente instituído sob a antiga Comissão de Direitos Humanos, agora Conselho de Direitos Humanos), que realizam visitas de observação e publicam relatórios sobre desaparecimentos forçados, execuções sumárias, tortura, racismo e liberdade de expressão, entre outros temas. Há também relatores designados para países específicos. A decisão quanto à visita do relator depende do poder discricionário dos governos, que também decidem se vão responder às indagações, cooperar com os relatores e acolher as feitas ao final. Segundo Lindgren, “a sanção é de conteúdo ético: restringe-se a expressões de exortação ou crítica, cuja importância maior consiste no peso que adicionam aos clamores já veiculados na opinião pública”23. A sanção, porém, é de diferente natureza nos casos em que os Estados se submetem a uma jurisdição supranacional: é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, estabelecida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (também chamada Pacto de São José, de 1969, que entrou em vigor em 1978), cujas sentenças são obrigatórias para os Estados que tenham reconhecido sua competência contenciosa24. Os sistemas europeu e africano de direitos humanos 22 LINDGREN ALVES, José A. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 5. 23 Idem. Soberania e Direitos Humanos. In: Os Direitos Humanos como tema global, 2003. p. 38. 24 O Brasil reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 3 de dezembro de 1998. ana maria bierrenbach 32 também contam com cortes, cujas sentenças são compulsórias para os Estados que se submetem a essas jurisdições. Cabe mencionar, ainda, o estabelecimento do TPI, estabelecido em 1998, pelo Estatuto de Roma, primeira corte criminal internacional de caráter permanente com jurisdição sobre genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e agressão. A criação do TPI só foi possível no contexto do desenvolvimento do Direito Internacional e da superação da alegação do “domínio reservado do Estado”, com base no princípio da soberania. O Estatuto de Roma consagrou o princípio da complementaridade como fundamento do relacionamento entre as jurisdições interna e externa. A jurisdição do TPI só é exercida nos casos em que se verifica a falta de capacidade ou de disposição por parte do Estado para julgar os responsáveis pelos crimes citados25. O tema será tratado com maiores detalhes no Capítulo 5. Pode-se afirmar, porém, que o estabelecimento de um tribunal supranacional representou passo extremamente importante do ponto de vista do questionamento da doutrina clássica da soberania. Em ensaio sobre a soberania no mundo contemporâneo, Luigi Ferrajoli afirma: Caíram todos os pressupostos e todas as características da soberania, seja interna, seja externa. A soberania, que já se havia esvaziado até o ponto de dissolver-se na sua dimensão interna com o desenvolvimento do Estado Constitucional de Direito, se esvaece também em sua dimensão externa, na presença de um sistema de normas constitucionais caracterizáveis como jus cogens, ou seja, como direito imediatamente vinculador dos Estados membros26. Há quem diga, atualmente, que o conceito de soberania teria sido submetido a tal erosão, fragilização ou descaracterização (já que seria muito difícil falar em relativização sem entrar em contradição), que já não seria possível aplicá-lo. Outros sustentam que a cooperação e a intervenção internacionais (principais elementos responsáveis pela corrosão) constituem o próprio exercício da soberania, que permite a um 25 O Brasil retificou o Estatuto do TPI em 7 de fevereiro de 2000. 26 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p 39. 33 considerações sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade Estado se vincular a um regime internacional, ou a outros Estados, em questões que lhe interessam, ou para fazer frente a situações em que há um claro interesse comum, como no caso das intervenções com propósitos humanitários. É possível também afirmar que, no que se refere ao campo específico dos direitos humanos, o reconhecimento de que o Estado não pode fazer o que quiser com seus cidadãos representa efetivamente uma recaracterização da soberania, com o reconhecimento de que é legítima a interferência da comunidade internacional em situações nas quais o Estado seja responsável por grandes violações, ou seu cúmplice. Pode-se dizer também que se a soberania já havia sofrido transformações em sua dimensão interna – da soberania do soberano à soberania popular –; agora, ela passa por transformações em sua dimensão externa – da independência absoluta à ideia de interdependência e cooperação, com ênfase no bem-estar das sociedades e na proteção dos direitos humanos. De certo modo, é possível dizer que na “nova soberania” as duas dimensões se (re)encontram em uma perspectiva menos “estadocêntrica” e mais antropocêntrica. O Estado não é um fim em si mesmo e a soberania é vista como conceito fluido, historicamente designado, cujo significado dominante tem sido cada vez mais questionado. Em artigo publicado na revista The Economist, em 18 de setembro de 1999, o ex-SGNU Kofi Annan ofereceu sua contribuição aos debates ao expor “os dois conceitos de soberania”: “State sovereignty, in its most basic sense, is being redefined – not least by the forces of globalisation and international co-operation. States are now widely understood to be instruments at the service of their peoples, and not vice versa”27. Estavam, assim, lançadas as bases para o trabalho da ICISS, que viria a propor o conceito de responsabilidade de proteger, fundamentado na ideia da soberania como responsabilidade, conforme se verá no Capítulo 4 desta tese. De acordo com Robert Keohane, a doutrina da responsabilidade de proteger afirma explicitamente que um de seus objetivos é