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reforçar a soberania dos Estados, embora o foco passe da soberania como controle à soberania como responsabilidade. O autor salienta, contudo, que “for 27 ANNAN, Kofi. Two Concepts of Sovereignty. The Economist. 18 set. 1999. Disponível em http://www.un.org/News/ossg/sg/stories/articleFull.asp?TID=33&Type=Article. Acesso em: 16 fev. 2007. ana maria bierrenbach 34 political reasons in the short run, such attachment to the concept of sovereignty is probably sensible. Otherwise, no consensus would be possible and reports from independent commissions would be stillborn”28. 1.3 A questão da legitimidade A intervenção nos assuntos internos de um Estado é proibida pela atual ordem internacional, embasada na Carta das Nações Unidas. Conforme Michael Walzer, sociólogo norte-americano e teórico das Relações Internacionais, “the word [intervention] is not defined as a criminal activity and though the practice of intervening often threatens the territorial integrity and political independence of invaded states, it can be sometimes justified”29. As intervenções precisam, portanto, ser justificadas ou, mais precisamente, legitimadas. A legitimidade, contudo, é questão das mais complexas na teoria política, por incorporar um conjunto de elementos subjetivos: confiança, crença, cultura, sentimentos e valores, que fundamentariam a submissão voluntária à autoridade. A legitimidade estaria, assim, alicerçada na confiança ou naquele “algo” identificado com a soma das subjetividades individuais, constituindo as bases psicológicas do consenso, conforme o Embaixador Gelson Fonseca Junior30. O verbete “legitimidade” do Dicionário de Política, editado por Norberto Bobbio, menciona dois significados que o termo tem na linguagem comum. No significado genérico, a legitimidade tem o sentido aproximado de justiça ou de racionalidade. O significado específico surge na linguagem política e refere-se à presença, em parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência, sem a necessidade do recurso ao uso da força31. A legitimação apresenta-se como uma necessidade, seja qual for o tipo de Estado. A crença na legitimidade é, portanto, o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado. É interessante reconhecer aqui o critério do uso 28 KEOHANE, R.; HOLZGREFE. J. L. Humanitarian Intervention: Ethical, Legal and Political Dilemmas. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 276. 29 WALZER, Michael. Arguing about War. New Haven: Yale University Press, 2004. p. 86. 30 FONSECA JR., Gelson. A Legitimidade o outras questões internacionais. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 138. 31 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. p. 675. v. 2. 35 considerações sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade da força, uma vez que este trabalho busca justamente analisar as bases supostamente legítimas da intervenção com o uso da força. Conclui-se, a partir da definição mencionada, que, se o uso da força é necessário, é porque não há legitimidade ou não há consenso. Essa análise, contudo, parece precipitada. A aparente contradição pode revelar apenas que é necessário ter cuidados ao transpor o conceito de legitimidade do plano interno para o internacional. O verbete prossegue com a referência aos três tipos de dominação legítima identificados por Max Weber, referência obrigatória quando se analisa o tema. Weber estabelece a distinção entre a dominação legal, a dominação tradicional e a dominação pessoal ou carismática. A dominação legal está baseada em um Estatuto e correponde à dominação burocrática. A dominação tradicional reflete a crença nas ordenações e nos poderes senhoriais. Seu tipo mais puro é o patriarcado. Nesse caso, o conteúdo das normas é fixado pela tradição. A dominação pessoal decorre da devoção afetiva à pessoa do senhor, com base em qualidades carismáticas que podem incluir faculdades mágicas, heroísmo, poder intelectual ou capacidade oratória32. Segundo Gelson Fonseca Jr., para a análise da questão da legitimidade nas relações internacionais interessa apenas a dominação legal: “A legitimidade do primeiro tipo de poder tem seu fundamento na crença de que são legais as normas do regime, estabelecidas propositadamente e de maneira racional, e que legal também é o direito de comando dos que detêm o poder com base nas mesmas normas33.” O Dicionário de Política acrescenta, ainda, que a legitimidade designa, ao mesmo tempo, uma situação e um valor de convivência social. A situação a que o termo se refere é a aceitação do Estado por um segmento relevante da população; o valor é o consenso livremente manifestado por uma comunidade de homens autônomos e conscientes. É interessante notar que o sentido da palavra legitimidade, porém, não é estático, mas dinâmico: É uma unidade aberta, cuja concretização é considerada possível num futuro indefinido (...) em cada manifestação histórica da legitimidade 32 WEBER, M. Die drei reinen typen der legitimen Herrschaft. Apud COHN, Gabriel (org.). Max Weber: Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1986. pp. 128-141. 33 BOBBIO. Op. cit., 1992, p. 676. ana maria bierrenbach 36 vislumbra-se a promessa, até agora sempre incompleta na sua manifestação, de uma sociedade justa, onde o consenso, que dela é a essência, possa se manifestar livremente sem a interferência do poder ou da manipulação e sem manifestações ideológicas34. Visão semelhante da legitimidade está presente na obra de Jürgen Habermas. Sem pretender, no âmbito deste trabalho, buscar apresentar a complexidade do pensamento de Habermas sobre a questão, vale notar que sua filosofia do direito baseada na teoria do “agir comunicativo” busca fundamentar a validade das normas jurídicas a partir das condições do “acordo de legalidade”. O autor recusa, nesse sentido, tanto a perspectiva metafísica (segundo a qual o fundamento do direito é a moral) quanto a perspectiva da racionalidade, em moldes weberianos. Habermas observa que a validade do direito está simultaneamente relacionada “à sua validade social ou fática (Geltung) e à sua validade ou legitimidade (Gültigkeit)”. Ainda segundo Habermas: A legimidade de uma regra independe do fato dela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social quanto a obediência fática, variam de acordo com a fé dos membros da comunidade na legitimidade, e esta fé, por sua vez, apoia-se na suposição de legitimidade, isto é, na fundamentabilidade das respectivas normas35. Habermas discorda de Weber. Considera que este obtém sua legitimação a partir das “premissas do exercício da dominação política conforme ao direito – a saber, da estrutura abstrata das regras e leis, da autonomia da jurisdição, bem como da vinculação jurídica e da construção ‘racional’ da administração”. Em Habermas, a legitimidade é obtida “da forma democrática da formação política da vontade”36. Habermas analisa as fontes de legitimidade em um contexto marcado pelo “desempoderamento” do Estado, no qual os vínculos de solidariedade cívica nacionais estão enfraquecidos. Nesse caso, os novos ordenamentos são construídos em bases não necessariamente nacionais. Habermas 34 Idem. 35 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 50. t. 1. 36 Idem. 37 considerações sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade considera que os direitos humanos são suficientemente universais para servirem, nesse cenário, como fontes de legitimidade, pois têm dupla natureza: moral e legal. Como normas morais, aplicam-se a todos os seres humanos. Como normas legais, protegem os indivíduos nos termos das legislações nacionais.