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A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 22 Objetivo do estudo Neste módulo, você terá os primeiros contatos com a idéia mais geral do que é a Filosofi a. O objetivo maior é o de começar a estranhar as certezas com que nos pronunciamos sobre todos os assuntos no dia-a-dia. Muito freqüentemente, afi rmamos nossas idéias e brandimos nossos julgamentos sem qualquer hesitação. Se esta postura nunca for contrabalançada por questionamentos, exibimos o que é chamado de “atitude dogmática”. O dogmatismo, como você verá, é a atitude contrária à que se espera do fi lósofo. Este defende seus pontos de vista com argumentos e cede de sua posição diante de argumentos melhores. Nos primeiros tópicos você perceberá a fi losofi a como um exercício de inconformidade diante daquilo que a opinião corrente toma por óbvio. Neste sentido, precisará romper com o hábito de imaginar a fi losofi a como algum tipo de sabedoria fechada e transmitida de forma doutrinal. A fi losofi a se defi ne pela vontade particular de formular questões acerca de assuntos que grande parte dos homens toma por natural – não percebendo estes, assim, sequer a necessidade de perguntar. Ela tem por característica a tentativa séria e sistemática de responder à investigação empreendida. Você, estudante de nível superior, deverá ser capaz de dizer como o pensamento fi losófi co se afasta das tentativas míticas de explicação do mundo. Deverá descobrir por que é tão fácil nos conformarmos com os sentidos e com os valores organizados pelas tradições da nossa cultura. Nos últimos tópicos, o objetivo é procurar responder, de forma fundamentada, se a fi losofi a é mesmo e sempre um saber contemplativo ou se ela pode ser compreendida como uma prática. Espera-se que você possa responder de modo consistente, em que consiste este importante tema tratado nas lições que se seguem. Lembre-se: para se dar bem nesta disciplina, é importante que você leia com atenção cada aula e anote as questões tratadas no texto. Não deixe tudo para a última hora. Você fi cará confuso e não assimilará bem os conteúdos. Bom Estudo! 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 3 A palavra “fi losofi a” é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia, que signifi ca amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria [...]. Filosofi a signifi ca, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber. Assim, fi losofi a indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita (CHAUÍ, 2011, p. 32). Saiba mais Nesta obra de Platão, o amor fi losófi co é entendido pelo mito de Eros. Na mitologia grega, Eros era fi lho de pai rico e mãe pobre, signifi cando aquele que tudo possui, mas sente que algo lhe falta. O impulso amoroso (eros) do amor à fi losofi a é aquele que orienta o fi lósofo na sua constante busca pelo saber. Saiba mais Aula 1 - A Filosofi a defi nida como a arte da pergunta A forma mais comum de se apresentar uma defi nição introdutória da Filosofi a é mesmo pela análise da própria palavra. Foi usada pela primeira vez na antiguidade pelo fi lósofo e matemático Pitágoras de Samos (Grécia, século V a.C.) para diferenciar o fi lósofo dos comerciantes, artistas e atletas da sua época. A etimologia aponta a grandeza e profundi- dade do seu signifi cado. Marilena Chauí assim nos lembra a origem da palavra fi losofi a: Há um ensinamento inegável nesta defi nição: só podemos buscar aquilo que reconhe- cemos não ter. Esse ensinamento consiste na questão já apresentada pelo fi lósofo grego Platão (427-347 a.C.), na obra O Banquete, um texto exatamente sobre o amor fi losófi co: se já contássemos com o objeto procurado, se já estivéssemos certos de sua presença conosco, por que haveríamos de iniciar uma busca pelo mesmo? Ninguém deseja aquilo que não precisa mais. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 4 Busca-se apenas o que ainda não se possui ou o que não nos está assegurado. Assim, a Filosofi a é a busca por uma sabedoria que reconhecemos não ter. Dito de outra forma: por uma sabedoria cuja ausência em nós precisa ser descoberta. O movimento da refl exão, que constitui essa busca, precisa contar sempre com a consciência desse pre- cioso reconhecimento: não sabemos. E porque não sabemos, perguntamos, colocamo- nos a pensar, procuramos por respostas. Mesmo quando sabemos, devemos partir da consciência de que aquele saber não é tudo. Fonte :http://2.bp.blogspot.com/_2pcl804Skc0/SdKGrWVUnSI/AAAAAAAAAFI/- GrDokO2G1w/s320/Filosofi a%2Bmedicina%2Bda%2Balma.png A certeza de ser sábio é, portanto, um grande perigo, pois é no reconhecimento libertador da própria ignorância que reside a condição de possibilidade do saber. O ponto aqui é o de que, se o fi lósofo for possuído por certezas absolutas, ele nunca procurará pelo conhecimento ou cessará sua procura muito facilmente; irá se satisfazer com alguma resposta que o terá seduzido. É um ingênuo por acreditar naquela resposta e a transformado em verdade única. Terá sido, enfi m, iludido pela vaidade ou pela falsa segurança de algum saber defi nitivo. Sabendo-se ignorante, inicia sua pesquisa e as respostas se desdobram em possibilidades. O reconhecimento da própria ignorância tem uma função essencial para o sujeito que deseja saber. É do reconhecimento intensamente vivido do que lhe falta que surge este desejo. E é nele exatamente que está a diferença entre o fi lósofo e o sujeito doutrinado – qualquer que seja a fonte de doutrinação de tal sujeito. Este indivíduo doutrinado acredita que sabe. A ilusão de um falso saber defi nitivo o domina e o constrange. Ele está possuído de certezas que adormecem sua curiosidade, estagnam seu pensamento e o escravizam ao cacoete das respostas fechadas, alheias a qualquer questionamento. Não se deve jamais imaginar a Filosofi a como algum saber fechado e transmitido de forma doutrinal. Se assim parecer, é um dogma ou opinião com o nome de Filosofi a. Dogma é uma verdade assumida, independente da sua comprovação. Depende de crença. A Opinião não deriva de um esforço de pensamento, mas da imposição de um pensamento sobre os demais. Se há alguma verdade na opinião, ela é fragmentada. Já com a Filosofi a se dá exatamente o oposto: nunca, em seu nome, pode-se pedir por uma atitude de crença cega nas respostas que venha a apresentar. Um fi lósofo jamais sugeriria a outrem a aceitação dogmática de um discurso seu. A Filosofi a se defi ne como uma arte de propor problemas e, em nenhum momento, se pauta pela defesa intransigente de quaisquer que sejam as hipóteses apresentadas para respondê-las. Gabriel Perissé, no seu livro de Introdução à Filosofi a da Educação, diz-nos isso muito melhor: Como Sócrates declarou, o fi lósofo não é aquele que tudo sabe [...]. O fi lósofo sabe que o saber nunca é saber plenamente possuído. O seu saber é sempre esperança de saber melhor, anseio de descobrir e re- descobrir. Não existem proprietários do conhecimento, latifundiários do saber, mas apenas peregrinos, amantes carentes de uma sabedoria que sempre nos escapa (2008, p. 16). O professor italiano Gianfranco Morra parte da defi nição do fi lósofo como amante da sabedoria para explicar: 5 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 5 [...] não signifi ca que o fi lósofo não possui a sabedoria. A fi losofi a não é a sophia. A fi losofi a é, antes, o reconhecimento de que existe uma sabedoria para a qual o fi lósofo tende, mas sem jamais obtê-la plenamente (2008, p. 25). O pensamento fi losófi co deve se valer de argumentos e estar aberto à argumentação contrária. Pode, sem dúvida, procurar convencer-nos, em alguns casos, do valor instrumental de certas ideias, mas terá de apresentar, de forma clara, os motivos para adotarmos asmesmas em detrimento das outras. Neste sentido, ela se opõe tanto ao recurso de argumentos de autoridade ou de revelações subjetivas como ao uso de técnicas oportunistas de persuasão e propaganda e à coerção. O fi lósofo se reconhece sempre no terreno de um discurso humano, “demasiadamente humano”, e deve estar continuamente atento para não se confundir com alguém que se diz possuidor da sabedoria. Dizer-se possuidor da sabedoria é, portanto, trair tanto a busca daquilo que se dizia estar à procura quanto o convívio em torno de uma palavra frágil, parcial, provisória, passível de revisão, porque inescapavelmente humana. A Filosofi a, portanto, é a perda contínua da ingenuidade da crença na posse de algum saber defi nitivo e não passível de ser problematizado ainda uma outra vez. As defi nições mais originais do fi losofar estão nos clássicos gregos Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384 - 322 a.C.). Para Platão, o fi lósofo tem um pathos (palavra grega que signifi ca paixão, afetação). Consiste na sensibilidade para perceber o que acontece à sua volta. Aristóteles usa o verbo grego tò thaumázein (admirar, olhar de frente). O fi losofar é uma atitude defi nida como uma prática de estranhamento diante do que muitos tomam por assentado, estabelecido. É um rompimento com o hábito, com o vício de se afi rmar coisas como: “Isto é óbvio!” ou “A partir daqui, não há o que perguntar, pois já se sabe tudo...”. É, enfi m, uma abertura para a pergunta, para o problema, por onde todo o conhecimento sempre se inicia. Thaumázein [...] é o verbo grego comumente traduzido por ‘admirar-se’. No diálogo Teeteto, Platão associa este admirar-se a um páthos, um estado interior que nos arrebata e humaniza: ‘Só assim’, pensa Platão, ‘o fi lósofo é eminentemente humano; pois o homem é feito de modo a viver no thaumázein, isto é, na fi losofi a; nisto se distingue dos animais e dos deuses’ [...]. O ser humano, ao estranhar-se com o que vê, começa a refl etir (PERISSÉ, 2008, p. 14). Saiba mais Tudo entendido até aqui? Tendo acompanhado as ideias desta introdução, leia, agora, dois belos excertos que têm por objetivo a percepção de como as certezas o podem desviar do caminho da refl exão atenta e cuidadosa e fazê-lo presa de saberes fechados. Indo além A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 6 Lembre-se de que o livre intercâmbio das idéias é a única ambiência onde aquela refl exão pode existir. O pensar fi losófi co, defi nido como uma ética da hesitação e da formulação de perguntas, pode funcionar como um contraveneno à tendência de nos deixarmos levar pela febre das certezas. Chegamos ao fi nal do primeiro tópico de estudo do Módulo 1. É importante anotar, compreender e resumir todos os assuntos ou tópicos aqui abordados, para que possa continuar. O próximo capítulo exigirá esse conhecimento adquirido aqui. Entre em contato com o Orientador Acadêmico através da Sala de Tutoria ou consulte o Quadro de Horários de Atendimento presencial ao aluno, disponível na página da disciplina. Dúvidas Referências: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofi a. São Paulo: Ática, 2011. CIORAN, Emil. MORRA, Gianfranco. Filosofi a para todos. São Paulo: Paulus, 2008. PERISSÉ, Gabriel. Introdução à Filosofi a da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. PLATÃO. O Banquete. SAVATER, Fernando. 7 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a Filosofi a - Texto Complementar 1 Módulo 1 - aula 1 Pergunta Bertrand Russell conta algures a exemplar história daquele sábio hindu que deu em Londres uma charla para neófi tos sobre as suas idéias cosmológicas. “O mundo – informou ao devoto auditório – apóia-se sobre o lombo de um imenso elefante e este apóia as suas patas sobre a carapaça de uma gigantesca tartaruga.” Uma senhora de meia-idade pediu a palavra: “E como se apóia a tartaruga?” “Graças à enorme aranha que lhe serve de pedestal”, foi a amável resposta. Insistiu a dama: “E a aranha?”. O sábio, imperturbável, retorquiu que se mantinha sobre uma rocha ciclópica. A ouvinte não se deu por satisfeita: “E a rocha?” Já impaciente, o guru despachou-a dizendo: “Senhora, asseguro-lhe que há rochas até abaixo.” Se naquela sala de conferências havia alguém que merecesse ser chamado “fi lósofo” não era sem dúvida o palestrante, que talvez fosse antes charlatão, mas sim a sua inquiridora. Porque o papel fi losófi co é composto muito mais por perguntas do que por respostas e exclui, certamente, a possibilidade de assinalar um ponto doutrinal para além do qual já não cabe perguntar nada. Nenhum fi lósofo tem direito a estabelecer de uma vez por todas que “o resto é silêncio” e, se o faz, qualquer senhora ou senhor do seu público terá muita razão em perguntar-lhe: “E depois?” No entanto, todos e cada um dos fi lósofos (ou qualquer de nós, quando fazemos de fi lósofos) decide que tocou a terra em algum momento: que estamos no fundo e que já tudo são rochas “até abaixo”, como diria o guru da fábula. As perguntas asfi xiam, quando se prolongam demasiado falta o ar das certezas provisoriamente inquestionáveis que permite a vida humana: quem pergunta mergulha cada vez mais fundo, contendo a respiração, até que o seu instinto vital lhe diz que deve regressar à superfície para respirar ou rebentarão os pulmões do seu pensamento; então volta a sair fl utuando e proclama que tocou o fundo, mas não é verdade. O certo é que já não podia mais. Falta a alguns esse instinto e sofrem a intoxicação das profundidades, que consiste a continuar a descer, a descer, até se perderem. Ou até que os outros percam o contacto com eles. Talvez tenha sido este o caso de Nietzsche, se queremos fomentar a sua lenda romântica. Mas não deveríamos mitifi car demasiado os que se afundam para sempre nem considerar traidores ou impostores os que voltam para respirar. Afi nal o fundo está sempre fora do nosso alcance porque é a nossa pesquisa que o cria e também afasta, como a linha do horizonte. E do que se trata é pensar para viver, de perguntar para ampliar o saber, de agüentar a respiração para dilatar os pulmões, de fl utuar para depois respirar melhor através da porção de abismo explorada. Afogar-se é um equívoco ou um acidente. (...) A anedota que abre este artigo tem outra moralidade: perguntar fi losofi camente é perguntar para comprometer aquele que crê saber ou aquele que quer que aceitemos que sabe. O que não implica, muito além disso, que nós, os indagadores, saibamos mais do que ele. Esta disposição para perguntar, para nos livrarmos da rede de certezas estabelecidas mas sem pressa de a substituirmos por outras é própria de Sócrates nos primeiros diálogos platônicos; logo, por culpa sua ou de Platão, vai-se tornando cada vez mais assertivo, mais informativo... Às vezes perguntamos para podar a frondosidade carcerária das crenças vigentes, a sua aparentemente inquebrável ditadura. Os dogmas A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 8 não são concludentes mas oclusivos: impedem o livre jogo dos nossos sentidos e a liberdade da nossa razão. Não há dogma quando alguém diz: “Esta é a minha rocha do fundo e já não me farei mais perguntas” (nisso consiste, mais tarde ou mais cedo, a cordura), mas quando se pretende impor publicamente que algo é a rocha do fundo e já não é permitido fazer mais perguntas. Em tal situação, torna-se urgente o risco da pergunta, porque a certeza inquestionável decretada pela autoridade, à qual não chegamos pelo nosso próprio esforço como o nadador exausto à praia, é mais asfi xiante do que a série asfi xiante das dúvidas. Enquanto o guru engrossa a voz para dar por assente que o mundo cavalga sobre um grande elefante, que Deus fez céus e terra em seis dias ou que é nosso dever amar o próximo, o menino impertinente, a senhora exigente e o fi lósofo perguntam em coro: por quê? SAVATER, Fernando. O Meu Dicionário Filosófi co. Lisboa: Dom Quixote,2000, p.281-283. 9 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a Filosofi a - Texto Complementar 2 Módulo 1 - aula 1 Genealogia do Fanatismo Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfi le de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de fi cção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... Patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé – dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fi el e o cismático. No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre... Sob as resoluções fi rmes, ergue-se um punhal; os olhos infl amados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afl igido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na mega- lomania prometéica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres que todas as suas virtudes –, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela, as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas conseqüências: reconstituirá o paraíso. O que é a queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o gosto pela efi cácia, pela profecia e pelo terror –, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... (...) CIORAN, E. M. Breviário de Decomposição. [Tradução de José Thomaz Brum]. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos Bloco de notas e anotações Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada. Importante: Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 22 Aula 2 - O mito e a explicação racional Um grande historiador da Filosofi a, François Châtelet, num livro de entrevistas a Émile Noel, nos fala, a certa altura, do estilo discursivo que particularizaria a atividade fi losófi ca. François Châtelet - Cf. CHÂTELET, François. Uma História da Razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. François Châtelet é também o organizador de uma História da Filosofi a de valor ímpar. Ela foi publicada, entre nós, brasileiros, pela editora Zahar. E há também uma versão portuguesa desta verdadeira obra de referência publicada pelas Edições Dom Quixote, de Lisboa. Trata-se de obra imprescindível, mas de leitura não necessariamente fácil para o leitor iniciante. Para este, além dos livros listados na bibliografi a do curso, recomendamos a História da Filosofi a Ocidental, de Bertrand Russell. Saiba mais Atividade fi losófi ca - Este gênero cultural da Filosofi a, inventado pela civilização grega por volta do VI século a.C., vai acompanhar o apogeu e o declínio desta cultura nos séculos seguintes e irradiar-se como um estilo de pensamento que acompanhará a história do Ocidente, intervindo sobre ela freqüentemente. Sim, a Filosofi a não se propõe como saber contemplativo. Ela não cessou de transformar o mundo (basta, para isso, nos lembrarmos do poder dos escritos de Voltaire e de Rousseau, fi lósofos iluministas do século XVIII, e do imensamente infl uente pensamento de Marx, pensador do século XIX, para citar alguns exemplos) e pode continuar a fazê-lo, mesmo em tempos tão hostis ao cuidado com a palavra e ao tempo qualifi cado para uma refl exão de fôlego. Saiba mais Sem dúvida, o discurso fi losófi co tem especifi cidades. Não é simples conversa: é diálogo; não é fabulação ou devaneio, é busca coerente e sistemática pelo sentido. Segundo este autor, a singularidade do discurso da fi losofi a pode ser entendida pelo recurso à palavra grega logos. Diz-se que a fi losofi a nasce como um logos, como um saber ordenado e signifi cativo. Observe, tendo-se em conta as características listadas por Châtelet para o termo, o quanto esta palavra é mesmo central à defi nição da atitude fi losófi ca, e como na dinâmica desse logos vivo, dessa arte do diálogo argumentado, podemos fl agrar o esforço para os que dele participam chegarem à universalidade: Em uma primeira acepção, logos é uma palavra (...). [Mas logos também assume a signifi cação de] uma palavra qualquer com sentido, por oposição à palavra (...) que não tem sentido. (...). Rapidamente logos evoluiu. Não signifi ca mais simplesmente a palavra dotada de sentido, mas o conjunto, com sentido, de palavras dotadas de sentido. Sendo assim, a terceira signifi cação de logos: aquilo que, em nós, permite-nos ligar diversas frases com sentido para fazer uma demonstração de conjunto com sentido. O trabalho do diálogo fi losófi co parte daquilo 2 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a que cada um considera seguro, desses pretensos fatos, para passá-los pela prova do sentido. Trata-se, pois, a cada momento, de perguntar que signifi cam esses fatos e verifi car a validade da signifi cação que foi estabelecida. O diálogo oferece a possibilidade de operar essa verifi cação (...). Platão, nos seus Diálogos, recorre a alguns interlocutores. Cada um deles (...) representa uma posição: há aquele que crê nos fatos, aquele que venera os deuses etc.. Cada um representa certo papel e, quando uma signifi cação é evocada diante dele, reage em função do ponto de vista que ele representa, para verifi car se, desse ponto de vista, essa signifi cação é aceitável. (...) Posteriormente os fi lósofos construirão uma idéia para explicar esse esforço: a primeira categoria da fi losofi a, o primeiro conceito maior que defi ne a própria fi losofi a. Estou falando do conceito de universalidade. (...) A categoria maior é realmente a universalidade. O fi lósofo é alguém que leva em conta o fato de que o homem é um ser de comunidade. Ora, em uma comunidade, deve-se tentar construir, tanto quanto possível, levando emconta as forças e as fraquezas humanas, um discurso tão bem argumentado, verifi cado, tão meticulosamente pesado que no fi m cada um dos participantes fi ca, de certo modo, obrigado a concordar, a aceitar esse discurso. Deve fi car bem claro que esse é um aspecto de extrema importância (...).CHÂTELET, François. Uma História da Razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 25-27. Observe que a forma com que se constrói conhecimento na fi losofi a, tendo-se em conta a caracterização acima, é em tudo estranha à forma de proceder do pensamento mítico. O mito, apesar de se constituir num esforço de imaginar a realidade, está na contramão do conhecimento construído pelo questionamento contínuo. Danilo Marcondes, em seu livro de Iniciação à História da Filosofi a, marca esta diferença ao assinalar: Por ser parte de uma tradição cultural, o mito confi gura assim a própria visão de mundo dos indivíduos, a sua maneira de vivenciar esta realidade. Nesse sentido, o pensamento mítico pressupõe a adesão, a aceitação dos indivíduos, na medida em que constitui as formas de sua experiência do real. O mito não se justifi ca, não se fundamenta, portanto, nem se presta ao questionamento, à crítica ou à correção. Não há discussão do mito porque ele constitui a própria visão de mundo dos indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade, tendo, portanto, um caráter global que exclui outras perspectivas a partir das quais ele poderia ser discutido. (MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofi a: Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 20.) AAssim, onde o pensamento mítico leva invariavelmente à reprodução de uma narrativa fechada com que se descreve a origem do mundo, dos homens e a excelência de certos valores sobre outros, o pensamento argumentativo da fi losofi a põe em causa como se chegou a essas conclusões e procura encaminhar outras respostas – sempre, é claro, com base antes no raciocínio sistemático do que na simples tradição em torno da qual um povo inteiro se reúne. 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 4 Esta terá sido, para muitos, a grande revolução operada pela fi losofi a desde seu nascimento na região da Jônia, no VI século a.C., com aqueles fi lósofos que estavam interessados em descobrir os princípios com que a Natureza se organizava. Estes pensadores exigiam de si, nessa procura do elemento primordial da physis, elemento chamado de arché, uma explicação objetiva. Para estes pensadores, a realidade passa a ser descrita como coerente, um verdadeiro kósmos, e todas as transformações nela evidenciadas poderiam ser atribuídas a causas naturais. Os deuses, seus sentimentos e humores tão variados, deixam de ser, agora, invocados, por esses pensadores, para explicar os acontecimentos da Natureza. Para nossos interesses neste momento, não importa tanto relacionar os nomes desses fi lósofos jônicos aos diferentes elementos a partir dos quais julgavam que a Natureza era composta, mas perceber o sentido maior da invenção deste tipo de pensamento, sua originalidade em relação à forma tradicional, mítica, de ver o mundo. Num estilo tão preciso quanto precioso e exatamente nesta direção, Fernand-Lucien Mueller nos diz: Parece dever-se a Tales, o primeiro desses grandes homens da Jônia, a noção de physis, no sentido de uma realidade marcada por uma coerência e cujas transformações podem ser concebidas objetiva- mente. Pouco importa assim que Tales tenha assimilado essa arché, o elemento fundamental dessa physis, à água. Talvez o tenha feito após refl etir sobre as enchentes do Nilo. Em Anaximandro, autor de um tratado Da Natureza, do qual resta um fragmento, intervém uma realidade originária, indeterminada e ilimitada, o ápeiron, de que proviria o mundo por meio de uma ruptura, seguida de diferenciações progressivas. Anaximandro teve, até mesmo, o pressentimento de uma evolução das espécies vivas, a partir do limo do mar. Anaxímenes, seu discípulo, por sua vez, crerá que o elemento primordial é o ar, entendido provavelmente num sentido que engloba tanto os ventos, os vapores e as nuvens, quanto o espaço e o ar respirável. Mas o essencial é que se tenha enunciado, pela primeira vez, a exigência de uma realidade natural objetiva – existente independentemente do homem – e tenha aberto, assim, caminho a toda investigação científi ca. As primeiras fi losofi as dos jônicos são de admirar pelo cuidado novo de uma visão racional da realidade, pela reivindicação audaciosa de uma verdadeira explicação desligada dos mitos. (MUELLER, Fernand-Lucien. História da Psicologia. São Paulo: Nacional, 1978, p. 9 [itálico nosso].) Observe, no entanto, que o pensamento mítico encontra-se ainda muito bem partilhado entre nós. Os fi lósofos da Grécia antiga, ao imaginarem a idéia de um cosmo ordenado por princípios objetivos, podem ter, de fato, aberto caminho para certo tipo de pensa- mento objetivo, mas quão poucos são aqueles que, ainda hoje, ousam pôr em xeque as concepções, baseadas em mitos, com que se descreve o mundo e o lugar do homem neste. Dirigir a palavra argumentada, o logos, para domínios das “verdades” com que crescemos e com que nos identifi camos existencialmente sempre exigirá coragem: o pensamento é, sobretudo, uma ousadia. 4 5 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a Agora que você já teve contato, ainda que muito breve, com o tema da oposição entre o pensamento racional e o pensamento mítico, pode explorar, mais detidamente, essa questão lendo um interessante texto de Karl Popper, onde este autor elogia o caráter aberto (isto é, de sujeição à revisão crítica) das explicações propostas pelos pré-socráticos em sua busca da arché. Trata-se de “Retorno aos Pré-Socráticos”, o quinto capítulo de sua obra Conjecturas e Refutações. Reproduzimos um excerto do mesmo a seguir: Indo além Entre em contato com o Orientador Acadêmico através da Sala do Orientador na sala de aula virtual, ou consulte o Quadro Horários de Atendimento presencial ao aluno, disponível no Mural da Lara para saber os dias e horários do plantão do Orientador no laboratório de Informática da sua unidade UNISUAM. Dúvidas? Tudo compreendido até aqui? Então, vamos em frente! 5 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 6 Filosofi a - Texto Complementar Módulo 1 aula 2 Retorno aos Pré-Socráticos (...) Eu receio não ter nada para vos oferecer que ande no ar hoje em dia, pois aquilo a que pretendo regressar é à racionalidade simples e límpida dos Pré-Socráticos. E em que é que consiste essa tão discutida racionalidade dos Pré-Socráticos? A simplicidade e a ousadia das suas questões são parte integrante dela, mas a minha tese é de que seu ponto decisivo é a atitude crítica que, como tentarei demonstrar, se desenvolveu pela primeira vez na Escola Jônica. (...) A história dos primórdios da fi losofi a grega, especialmente, a que vai de Tales a Platão, é uma história magnífi ca. É quase demasiado boa para ser verdadeira. Em cada geração, encontramos pelo menos uma nova fi losofi a, uma nova cosmologia surpreendentemente original e profunda. Como foi isto possível? É evidente que não se pode explicar a originalidade e o gênio. Mas podemos tentar lançar alguma luz sobre eles. Qual era o segredo dos antigos? Sugiro que era uma tradição – a tradição da discussão crítica. Vou tentar pôr o problema em termos mais esclarecedores. Em todas ou quase todas as civilizações encontramos algo como um ensino religioso e cosmológico, e em muitas sociedades encontramos escolas. Ora, as escolas, e sobretudo as primitivas, têm todas, segundo parece, uma estrutura e função características. Longe de serem centros de discussão crítica, assumem como tarefa transmitir uma doutrina defi nida e preservá-la pura e inalterada. É missão da escola fazer passar a tradição, a doutrina do seu fundador, doseu primeiro mestre, para a geração seguinte e, em ordem a esse objetivo, o mais importante é conservar a doutrina inviolada. Uma escola deste gênero não admite nunca uma idéia nova. As idéias novas são heresias e conduzem a cismas. Se um membro da escola tenta modifi car a doutrina, é expulso como herético. Mas o erético alega, regra geral, que a sua é que é a verdadeira doutrina do fundador. Desse modo, nem o próprio inventor admite que introduziu uma invenção; crê antes estar a regressar à verdadeira ortodoxia, que terá sido, de alguma forma, adulterada. Desta forma, todas as mudanças numa doutrina – a existirem – serão mudanças sub- reptícias. Serão todas apresentadas como reformulações dos verdadeiros ensinamentos do mestre, das suas próprias palavras, do seu verdadeiro signifi cado, das suas verdadeiras intenções. É claro que, numa escola desta natureza, não podemos esperar encontrar uma história das idéias, nem sequer uma o material para uma tal história. As novas idéias não são, na verdade, admitidas como novas. Tudo é atribuído ao mestre. O máximo que se pode reconstituir é uma história de cismas e, talvez, uma história da defesa de certas doutrinas contra os hereges. Numa escola assim não pode, obviamente, haver qualquer discussão racional. Podem esgrimir-se argumentos contra dissidentes e heréticos, ou contra algumas escolas rivais. Mas, de um modo geral, muito mais do que pela discussão argumentativa, é com afi rmações peremptórias, dogmas e condenações que a doutrina é defendida. 6 7 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a Entre as escolas fi losófi cas gregas, o grande exemplo do modelo que acabo de descrever é a Escola Itálica, fundada por Pitágoras. Comparada com a Escola Jônica ou com a de Eléia, tinha o caráter de uma ordem religiosa, dotada de um modo de vida caracte- rístico e de uma doutrina secreta. A história de que um dos seus membros, Hípaso de Metaponto, teria sido lançado ao mar por haver revelado o segredo da irracionalidade de certas raízes quadradas é característica da atmosfera que envolvia a Escola Pitagórica, independentemente da veracidade dos fatos relatados. Mas, entre as escolas fi losófi cas gregas, os antigos pitagóricos constituíam uma exceção. Deixando-os de lado, poderíamos dizer que o caráter da fi losofi a grega e das suas escolas é notavelmente diferente do tipo dogmático de escola aqui descrito. Demonstrei isto mediante um exemplo: a história do problema da mudança que vos contei é a história de um debate crítico, de uma discussão racional. Novas idéias são propostas enquanto tais, e surgem em conseqüência da liberdade de crítica. Verifi cam-se poucas, se é que algumas, mudanças sub-reptícias. Em vez do anonimato, encontramos uma história das idéias e dos seus originadores. Estamos perante um fenômeno único, intimamente ligado à assombrosa liberdade e criatividade da fi losofi a grega. Como é possível explicar este fenômeno? O que temos de explicar é o surgimento de uma tradição. De uma tradição que permite ou incentiva discussões críticas entre diferentes escolas e, mais surpreendentemente ainda, dentro de uma mesma escola. De fato, e a exceção da Escola Pitagórica, em lado algum vemos uma escola consagrada à preservação de uma doutrina. O que em vez disso encontramos são mudanças, novas idéias, modifi cações e críticas frontais ao mestre. (...) Como e onde foi esta tradição crítica instaurada? Este é um problema que merece uma séria refl exão. De uma coisa, porém, podemos estar certos: Xenófanes, que trouxe a tradição jônica para a Eléia, estava (...) consciente de do fato de a sua própria doutrina ser inteiramente conjectural, e de poderem aparecer outros mais sábios do que ele. (...) Se procurarmos os primeiros sinais desta nova atitude crítica, desta nova liberdade de pensamento, seremos conduzidos de volta à crítica de Tales por Anaximandro. Encontra- mos aqui um fato deveras surpreendente: Anaximandro critica o seu mestre e parente, um dos Sete Sábios e o fundador da Escola Jônica. Ele era, segundo a tradição, apenas cerca de catorze anos mais novo do que Tales, e deve ter desenvolvido a sua crítica e as suas novas idéias enquanto o mestre estava ainda vivo. (Terão, segundo parece, morrido com poucos anos de intervalo). Mas não há indício nas fontes de qualquer história de divergência, desavença ou separação. Este fato sugere, penso eu, que foi Tales quem fundou a nova tradição de liberdade – baseada numa nova relação entre mestre e discípulo – e que dessa forma criou um novo tipo de escola, totalmente diferente da Pitagórica. Tales parece ter sido capaz de tolerar a crítica. Gosto, contudo, de pensar que ele fez ainda mais do que isso. É-me difícil imaginar uma relação entre mestre e discípulo em que o primeiro se limite a tolerar à crítica sem a encorajar ativamente. Não me parece possível que um aluno formado no molde da atitude dogmática se atrevesse alguma vez a criticar o dogma (muito menos o de um famoso sábio) e a proclamar essa crítica. E parece-me ser uma explicação mais fácil e mais simples supor que o mestre tenha incentivado uma atitude crítica – possivelmente não 7 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 8 desde o início, mas apenas após ter sido atingido pela pertinência de algumas questões colocadas, talvez pelos alunos, sem qualquer intenção crítica. Fosse como fosse, a conjectura de que Tales terá encorado ativamente a crítica dos seus alunos explicaria o fato de a atitude crítica para com a doutrina do mestre se haver tornado parte da tradição da Escola Jônica. Gosto de pensar que Tales foi o primeiro professor que disse aos seus alunos: “É este o modo como vejo as coisas – como acredito que elas são. Tentem progredir a partir do que vos ensinei.” (Aqueles que crêem que é “anti-histórico” atribuir a Tales esta atitude antidogmática podem ser de novo recordados do fato de que, apenas duas gerações mais tarde, encontramos uma atitude similar clara e conscientemente formulada nos fragmentos de Xenófanes.) Permanece, em todo caso, o fato histórico de que a Escola Jônica foi a primeira em que os discípulos criticaram os mestres ao longo de sucessivas gerações. Não pode haver grandes dúvidas de que a tradição crítica da fi losofi a grega teve a sua principal fonte na Jônia. Esta foi uma inovação marcante. Signifi cou um corte com a tradição dogmática que permitia apenas uma doutrina de escola, e a sua substituição por uma tradição que admite uma pluralidade de doutrinas que tentam, todas elas, aproximar-se da verdade por meio da discussão crítica. A tradição crítica conduz assim, quase necessariamente, à percepção de que as nossas tentativas de ver e encontrar a verdade não são defi nitivas, mas aberta a melhoramentos; que o nosso conhecimento, as nossas doutrinas, têm caráter conjectural, consistindo em suposições, em hipóteses, e não em verdades certas e defi nitivas; e que a crítica e a discussão que por ela é animada são os nossos únicos meios de aproximação à verdade. Conduz, por conseguinte, à tradição das conjecturas arrojadas e da liberdade de crítica, a tradição que deu origem à atitude racional ou científi ca e, com ela, à nossa civilização ocidental – que é a única civilização baseada na Ciência (embora, como é óbvio, não unicamente nela). Nesta tradição racionalista, não são proibidas as mudanças audaciosas de doutrina. Pelo contrário, a inovação é encorajada e encarada como um sucesso ou um aperfeiçoamento, caso se baseie no resultado de uma discussão crítica dos seus predecessores. A própria audácia de uma inovação é admirada, pois é possível verifi cá-la pelo rigor do seu exame crítico. É por isso que as mudanças de doutrina, longe de serem feitas sub-repticiamente, são tradicionalmente transmitidas em conjunto com as doutrinas mais antigas e os nomes dos seus inovadores. E o material para uma históriadas idéias torna-se parte da tradição da escola. Que eu saiba, a tradição crítica ou racionalista foi inventada uma vez apenas. Perdeu-se dois ou três séculos depois, devido, talvez, à ascensão da doutrina aristotélica da episteme, do conhecimento certo e demonstrável (...). E foi redescoberta e conscientemente revivida no Renascimento, em especial por Galileu Galilei. POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. [Tradução de Benedita Bettencourt]. Coimbra: Almedina, 2003, p. 189 e 205-208. 8 Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos Bloco de notas e anotações Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada. Importante: Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 2 Aula 3 - A atitude crítica da Filosofi a e a naturalização dos discursos de senso comum Para a mentalidade fi losófi ca, nada é evidente, nada deve ser vivido como dado e espontâneo. A Filosofi a é livre para interpelar sobre o sentido de várias palavras que usamos no dia-a-dia – palavras que tomam parte em nossas conversações sem que nos preocupemos muito com a forma como as empregamos. Marilena Chauí formula a mesma observação de maneira ainda mais elegante nesta passagem: Imaginemos [...] alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhando” ou “fi cou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão? Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afi rmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não fi car resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo” ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo? Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê? Se, em vez de falar na subje- tividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos? Se, em lugar de discorrer tranquilamente sobre “maior” ou “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade? E se, em vez de afi rmar que gosta de alguém porque possui as mesmas ideias, os mesmos gestos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade? Alguém que tomasse essa decisão, [...] teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. [...] Estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude fi losófi ca (CHAUÍ, 2011, p. 20-21). A Filosofi a possui essa característica: a não conformidade com o que está estabelecido como verdadeiro ou como óbvio ou evidente. As ideias são sempre discursos que se impõem. O posicionamento sobre esses discursos é o que o defi ne. Uma vez defi nido, é sempre questionável. Por consequência, a fi losofi a passa se debruçar sobre todos os campos do conhecimento. Propõe problemas para estes campos, mesmo que seu conhecimento pareça encerrado por uma determinada arrumação histórico-social de seu quadro conceitual ou das suas rotinas de inquérito. Um bom exemplo está nos questionamentos sobre os sentidos dos discursos que orientam a prática da disciplina que você estuda. Há Filosofi as do Direito, da Economia, das Ciências Matemáticas, da Biologia, da Psicologia etc. Gabriel Perissé nos diz a respeito deste ponto: 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a O fi lósofo é aquele que mete o nariz em tudo. Daí a proliferação de ‘fi losofi as de...’ – fi losofi a da ciência, fi losofi a da história, fi losofi a da cultura, fi losofi a da comunicação, fi losofi a da religião, fi losofi a da linguagem, fi losofi a da arte, fi losofi a do direito e... fi losofi a da educação (PERISSÉ, 2008, p. 10). Refl etir, por exemplo, sobre o lugar da tecnologia e da crescente administração da vida hoje, sobre o lugar quase divino do mercado em nossa cultura e sobre o impacto das descobertas e dos conceitos científi cos na imagem do sujeito contemporâneo são questões que deveriam interessar a todos. É assim que, para a Filosofi a, importa, mais particularmente, que renovemos “o espanto” sobre o sentido das práticas em que estamos engajados e que procuremos, novamente, imaginá-las e transformá-las à luz de ideais os mais interessantes. É assim que nossas ideias recebidas da tradição sobre como o trabalho se organiza, sobre a justiça dessa organização ou sobre como avaliar conhecimentos mais confi áveis e como podemos diferençá-los de falsos conhecimentos etc. são objetos do pensar fi losófi co. O que se ganha com isso? Você já deve imaginar a resposta. Aquele que se debruça sobre o conhecimento da Filosofi a passa a interpelar o que a consciência mais ingênua apenas reproduz. Torna-se, portanto, mais refl exivo – e isto implica em maior autonomia, maior capacidade de resistir à doutrinação. Ora, se isto é verdadeiro, note que a Filosofi a não pode ser tomada como um pensamento meramente contemplativo: ela é um pensamento que toma por objeto temas que são caros ao nosso cotidiano e pretende nos posicionar, no plano da ação, com relação aos mesmos. A consciência “ingênua” exibe uma mansidão surpreendente diante das amarras da imaginação. Ela sequer percebe esse tolhimento em que se encontra. O processo de construção do repertório de crenças e opiniões, a “aculturação”, ocorre de uma maneira tal que não nos damos conta normalmente de que a ele estamos submetidos. Trata-se de uma forma tácita, sutil de conhecimento que, uma vez internalizado, nos permite estar em perfeita sintonia com a tradição dentro da qual fomos feitos sujeitos. Chamamos a esse conhecimento de “senso comum”. Via de regra, não reconhecemos a ação do senso comum, porque uma das suas carac- terísticas inerentes é justamente a de não se entender como circunstancial, como uma construção contingente. O senso comum não se apresenta como uma construção, mas como opinião. Para o usuário do senso comum, as opiniões por ele emitidas parecem ser retiradas diretamente da “ordem natural das coisas”. Tudo parece “ser óbvio”, tudo parece “ser evidente”. É importante que se perceba este ponto: o que foi produzido em um momento histórico, o que é resultado de uma tradição particular, aparece à mentalidade de senso comum como dado. Assim, o senso comum sempre apoiará muito mais o conformismo do que a curiosidade. O senso comum se apresenta com tal superabundância de “evidências”, com um aspecto tão imperioso de natureza e de universalidade, que o sujeito crítico começa a estranhar os automatismos com que a vida se encontra organizada e a interrogar sobre a necessidade de nós prosseguirmos reforçando-os cegamente. Este sentimento de estranhamento é A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 4 raro, por mais que o banalizemos, supondo-o sob o nosso domínio. “Estranhar” aqui signifi ca “deixar de ver como necessário”. Ora, isso supõe uma inter- rogação sobre os saberes que organizaram nossas crenças e experiências como se elas fossem necessárias. Somos submetidos a uma tradição cultural e por isso a transmissão e a ratifi cação do senso comum é sempre efi ciente: é um saber que não se apresenta como um saber construído. Clifford Geertz diz que procura analisaro senso comum como um sistema cultural, “como uma estrutura para o pensamento, ou uma espécie de pensamento, o bom senso é tão autoritário quanto qualquer outro: nenhuma religião é mais dogmática, nenhuma ciência mais ambiciosa, nenhuma fi losofi a mais abrangente”. Diante disto, reiteramos, então, a questão apresentada: Como nos descobrirmos ignorantes, se, a todo o momento, o senso comum nos reafi rma como sábios? Posto de outro modo: Já que dissemos que a fi losofi a poderia ser um antídoto ao dog- matismo, de que servirá um remédio cujo uso só é necessário justamente para aquele que não deixa, um só instante, de estar convencido de sua saúde? Matriz cultural que nos comunga, visão de mundo que nos faz compartilhar uma dada “sabedoria”, o senso comum consegue nos cegar para aquilo que mais fundamentalmente ele é: sentido humanamente produzido e enraizado numa tradição que se crê “a Verdade”. Este fechamento para o qual o senso comum concorre é o contrário da atitude de abertura intelectual, de estranhamento e curiosidade que o fi lósofo procura produzir. O senso comum não se abre para o conhecimento. Sua ingenuidade (alimentada pela vontade de tudo julgar saber e pela crença em uma efi cácia pretensamente nunca des- mentida) veta a atitude fi losófi ca, porque interdita o espanto e a pergunta que o formula. É próprio do senso comum, uma atitude mitológica diante da verdade e dos saberes. O pensador francês Roland Barthes (1915-1980) observa que a transmissão efi ciente das narrativas fechadas, daquilo que ele chama de “mitos”, cega-nos para a ideia de um mundo móvel e passível de ser transformado, “produzindo a imagem invertida de uma humanidade imutável, defi nida por uma identidade infi nitamente recomeçada”. Segundo Barthes: [...] a função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência em eternidade. [...] O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, defi nido, por mais longe que se recue no tempo, pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural deste real. [...] O mito é constituído pela eliminação da qualidade histórica das coisas: nele, as coisas perdem a lembrança da sua produção. O mundo penetra na linguagem como uma relação dialética de atividades, de atos humanos: sai do mito como um quadro harmonioso de essências. Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano, de modo a fazê-las signifi car uma insignifi cância humana. A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, se se prefere, uma evaporação; em suma, uma ausência sensível. [...] O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifi ca-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e eternidade, 5 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação: [...] fi co tranquilo. Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem signifi car sozinhas, por elas próprias (BARTHES, Roland. 1999, p. 163-164). Nesse sentido, senso comum se transmite com a força de um mito. Considere também a seguinte possibilidade quanto às vidas concretas que vivemos: se a liberdade puder ser utilmente defi nida como a capacidade de os sujeitos humanos reinventarem as formas de vida que levam, seríamos, de fato, livres hoje? Seríamos livres em um mundo onde a propaganda defi ne o estilo de vida ideal, e o norte do consumo máximo estabelece a própria condição da conquista da felicidade? Tudo entendido até aqui? Vamos em frente! É próprio do senso comum, o discurso sobre a felicidade. Ao se defi nir como um ideal a ser perseguido, ao transformá-la em um imperativo, não estaríamos reduzindo o ideal de felicidade a uma única possibilidade, aquela que nos foi apresentada? Perseguir esse ideal a todo custo e sempre, não geraria um imenso mal-estar (o contrário mesmo da felicidade)? A partir disso, podemos questionar: um mundo regido pela propaganda é um mundo crítico? Podemos defi nir o homem como “um ser que pergunta”; contudo, encontramos esse homem em toda e qualquer sociedade? Na sociedade de hoje, caracterizada por um sujeito que cultua uma interminável busca por novas sensações, onde está a intervenção crítica sobre tantas obviedades? De onde viria esse desejo insaciável de fruição eterna do novo? A propaganda já não parece fazer parte natural da cidade? Os produtos e o estilo de vida calcados no valor de consumo máximo já não se constituiriam, para além do enredo que se desenrola nas telas, no principal motivo de alguns fi lmes (pense nos carros velozes, no glamour das roupas e em toda a parafernália de objetos tecnológicos continuamente exibidos durante um longa-metragem de sucesso)? E, se isto for assim, o cinema, bem como outros produtos da chamada “indústria cultural”, assimilados de forma torrencial e irrefl etida, não poderiam nos alienar de nossa capacidade de imaginação, à medida que apenas contribuiriam para recrudescer e naturalizar um certo sentido de “realidade”? As questões aqui apresentadas são pontos de partida para o entendimento sobre o estranhamento causado pela intervenção fi losófi ca sobre as coisas óbvias do nosso quotidiano, as quais são vivenciadas pelo senso comum. Em suma,expusemos o debate entre uma atitude crítica frente a uma atitude ingênua ou mitológica. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 6 Podemos explorar possibilidades de refl exão sobre estes últimos pontos, aqui levantados, através da leitura atenta do texto de Zygmunt Bauman, “Ser Consumidor numa Sociedade Consumista”. Indo além Referencias CHAUÍ,Marilena. Convite à Filosofi a. São Paulo: Ática, 2011. GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 127. BARTHES, Roland. Mitologias. 10ª. ed.. São Paulo: Difel, 1999, p. 162. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As Consequências da Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. PERISSÉ, Gabriel. Introdução à Filosofi a da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Sugestão: Assista ao fi lme: “O Show de Truman” (The Truman Show, 1998), com roteiro de Andrew Niccol e direção de Peter Weir. Preste muita atenção na razão apresentada pela persona- gem Christof sobre por que Truman vivera, até então, sem nunca ter desconfi ado de que o mundo que tomava por “real” era, na verdade, “construído”. O cinema pode funcionar como um importante instrumental de pensamento. Este fi lme, por exemplo, pode nos ajudar em muito a refl etir sobre o que, hoje, nós próprios aprendemos a tomar por “real”. Entre em contato com o Orientador Acadêmico através da Sala do Orientador na sala de aula virtual ou envie sua pergunta para o professor no link “fale com o professor”. Dúvidas Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos Bloco de notas e anotações Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada. Importante: Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 2 Aula 4 - A Filosofi a como prática de vida Existem duas linhas que orientaram a fi losofi a ao longo de sua história: a fi losofi a como esforço sistemático de teorização e a fi losofi a como prática de vida. Não podemos afi rmar qual das duas tem mais aceitação ou validade. Essa distinção apenas ajuda a organizar as disciplinas fi losófi cas. A fi gura de Sócrates (469-399 a.C.) aparece historicamentecomo o primeiro modelo de oposição ao modo de fi losofar do seu tempo, dedicando-se a uma preocupação maior com a ética ou seja, com o agir. Eis uma das primeiras dualidades apresentadas no surgir da Filosofi a. Assim como no tempo de Sócrates, a fi losofi a como prática se impõe ainda hoje com maior urgência para nós. Sócrates fi cou conhecido pela sua coerência e sensatez. Não deixou nada escrito. Seus pensamentos foram perpetuados pela história através das obras de Platão ((429-327 a.C.), seu maior discípulo. Nos diálogos platônicos, Sócrates sempre está presente e em muitos deles seu pensamento está apresentado sob a ótica platônica. Seu método de evidenciação da verdade tornou-se conhecido como maiêutica, assimilando-se à arte da parteira, a qual nada cria; apenas revela o que já existe no ventre da parturiente. Sua forma de provocar a verdade através do questionamento imortalizou-o, assim como o processo que sofreu por contrariar a verdade do seu tempo. Sua famosa frase: “só sei que nada sei” é um mote da sabedoria enquanto virtude do sábio, mas também uma provocação para aqueles que achavam que sabiam tudo. Esse modo de provocar a verdade passou a ser conhecido como ironia metodológica. Pensar a fi losofi a como prática de vida signifi ca perguntar de início: a que sentido de “prática” estamos, aqui, nos referindo? No que ela difere do recei- tuário do “viver bem” difundido, hoje, pelos livros de autoajuda? Trata-se de uma prática refl etida? Em caso, afi rmativo, o que signifi ca uma prática refl etida da vida, das ações cotidianas? No caso de Sócrates, “que fi losofava com suas ações”, isso implicava um exercício de refl exão que se voltava para si mesmo? Ou o “cuidado” a que aspirava tomava, também e de modo particularmente importante, a forma de um cuidado com a cidade (com a “polis”)? Qual o lugar da polis no coração e nas mentes do típico cidadão ateniense do V século a.C., quando Sócrates viveu? Já podemos adiantar que a fi losofi a socrática está, sim, intimamente ligada ao cuidado com as virtudes de um cidadão. Contudo, o que terão a vida e a morte de Sócrates, de uma maneira mais precisa, a ver com esta prática fi losófi ca tão sintonizada sempre aos destinos da polis? De que forma Sócrates imaginou a fi losofi a e conduziu-se por ela como se esta fosse “a mestra da arte da vida em si”? O que signifi ca dizer que ele transmitiu seu ensino pela conduta de sua vida exemplar? prática se impõe ainda hoje com maior urgência para nós. Sócrates fi cou conhecido pela sua coerência e sensatez. Não deixou nada escrito. Seus pensamentos foram perpetuados pela história através das obras de Platão ((429-327 a.C.), seu maior discípulo. Nos diálogos platônicos, Sócrates sempre está presente e em muitos deles seu pensamento está apresentado sob a ótica platônica. Seu método de evidenciação da verdade tornou-se conhecido como maiêutica, assimilando-se à arte da parteira, a qual nada cria; apenas revela o que já existe no ventre da parturiente. Sua forma de provocar a verdade através do questionamento imortalizou-o, assim como o processo que sofreu por contrariar a verdade do seu tempo. Sua famosa frase: “só sei que nada sei” é um mote da sabedoria enquanto virtude do sábio, mas também uma provocação para aqueles que achavam que sabiam tudo. Esse modo de provocar a verdade passou a ser conhecido como ironia metodológica. Pensar a fi losofi a como prática de vida signifi ca perguntar de início: a que sentido de “prática” estamos, aqui, nos referindo? No que ela difere do recei- tuário do “viver bem” difundido, hoje, pelos livros de autoajuda? Trata-se de uma prática refl etida? Em caso, afi rmativo, o que signifi ca uma prática refl etida da vida, das ações cotidianas? No caso de Sócrates, “que fi losofava com suas ações”, isso implicava um exercício de refl exão que se voltava para si mesmo? Ou o “cuidado” a que aspirava tomava, também e de modo particularmente importante, a forma de um cuidado com a cidade (com a “polis”)? Qual o lugar da polis no coração e nas mentes do típico cidadão ateniense do V século a.C., quando Sócrates viveu? Já podemos adiantar que a fi losofi a socrática está, sim, intimamente ligada ao cuidado com as virtudes de um cidadão. Contudo, o que terão a vida e a morte de Sócrates, de uma maneira mais precisa, a ver com esta prática fi losófi ca tão sintonizada sempre aos destinos da polis? De que forma Sócrates imaginou a fi losofi a e conduziu-se por ela como se esta fosse “a mestra da arte da vida em si”? O que signifi ca dizer que ele transmitiu seu ensino pela conduta de sua vida exemplar? 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a Sabemos que Sócrates não está preocupado com as questões de que se ocuparam os fi lósofos anteriores. Ele não está interessado, portanto, em saber sobre a natureza do mundo, sobre o tecido da realidade, sobre os elementos primordiais de uma realidade complexa. Suas indagações são de outra ordem: Sócrates se ocupa em saber como viver a vida valorosamente; como conquistar, através de um contínuo exame, a vida virtuosa. A Filosofi a socrática procurar conhecer a “virtude” (em grego: areté) e em vista desta procura guiar a sua vida e chamar a atenção de seus cidadãos para essa necessidade – objetivo que ele tomava como verdadeiramente divino. É claro que o signifi cado do termo grego “virtude” (areté) é aqui muito distanciado de seu signifi cado difundido pela tradição ocidental. A vida virtuosa de que aqui se fala não é a vida do manso, do benevolente, do dadivoso, do humilde. Não é na bonomia que repousa a virtude no mundo grego. A virtude de que nos fala Sócrates é o exercício da excelência da alma à luz da razão. É a este exercício que ele se consagra e por ele perde a vida. Este será o tema do próximo tópico. O texto abaixo ajudará a compreender o desligamento deste fi lósofo em relação às pes- quisas que dominavam a imaginação dos fi lósofos anteriores (chamados “pré-socráticos”, apesar de alguns deles lhe serem contemporâneos). Leitura de texto Trata-se de uma passagem da Apologia de Sócrates, texto escrito por Platão. Em tais circunstâncias, pergunto: que diziam exatamente os meus caluniadores? Importa ler a declaração que esses prestaram, sob juramento, na qualidade de acusadores: “Sócrates é culpado de investigar, em excesso, os fenômenos subterrâneos e celestes [...]” Mas a verdade, atenienses, é que eu não conheço nada dessas matérias. Sua preocupação, no entanto, era outra. Ei-la revelada em palavras contundentes durante sua defesa: [...] e, enquanto tiver um sopro de vida, enquanto me restar um pouco de energia, não deixarei de fi losofar e de vos advertir e aconselhar, a qualquer de vós que eu encontre. Dir-vos-ei, segundo o meu costume: “Meu caro amigo, és ateniense, natural de uma cidade que é a maior e a mais afamada pela sabedoria e pelo poder, e não te envergonhas de só cuidares de riquezas e dos meios de a aumentares o mais que puderes, de só pensares em glórias e honras, sem a mínima preocupação com o que há em ti de racional, com a verdade e com a maneira de tornar a tua alma o melhor possível?” E, se algum de vós me replicar que com tudo isso se preocupa, não o largarei imediatamente, não irei logo embora, mas interrogá-lo-ei, analisarei e refutarei as suas opiniões e, se chegar à conclusão de que não possui a virtude, embora o afi rme, censurá-lo-ei de ter em tão pouca conta as coisas mais preciosas e prezar tanto as mais desprezíveis. Assim farei com todos os que encontrar, novos ou velhos, estrangeiros ou cidadãos, mas ainda mais convosco, cidadãos, que estais mais perto de mim pelo sangue (PLATÃO, 1997 p. 26). Neste texto, Sócrates, que será acusado de “impiedade” (em grego: asebeia) e “corrupção de jovens”, defende-se, usando o mesmo discurso que caracterizou sua vida, o da interpelação e doquestionamento daqueles que julgam saber algo sobre o que falam. Em A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 4 nenhum momento Sócrates vale-se ou mesmo deseja se valer da persuasão dos juízes que o estão a ouvir. Fazer a mera persuasão elevar-se sobre a necessidade de clarifi car os atenienses que o julgam seria agir em proveito próprio, e Sócrates não atentaria com o cuidado com que se conduziu a vida inteira, apenas porque corria o risco de ser condenado. Quer apenas que seus concidadãos refl itam sobre a justiça de suas palavras. Atentemos para o ponto mais específi co da prática da fi losofi a em Sócrates: durante, o julgamento, ele dissera não se preocupar com questões do mundo físico, embora não desejasse dissuadir ninguém de as estudar: Foi no valor da ação moral que Sócrates construiu sua trajetória fi losófi ca, a qual não reside em livros, mas no exemplo vivo de um cuidado de si que é também cuidado dos outros. Pierre Hadot, lembra uma frase de Merleau Ponty: Sócrates “pensava que não se pode ser justo sozinho, do mesmo modo que o ser sozinho cessa de ser”. Em continuidade, Hadot fala assim sobre esse “cuidado de si” socrático que é, também e ao mesmo tempo, cuidado com a cidade: O cuidado de si é, portanto, indissoluvelmente cuidado da cidade e cuidado dos outros, como se vê pelo exemplo do próprio Sócrates, cuja razão de viver é ocupar-se com os outros. Há em Sócrates um aspecto ao mesmo tempo “missionário” e “popular”, que se reencontrará posterior- mente em certos fi lósofos da época helenística: “Eu estou à disposição tanto do pobre como do rico, sem distinção. [...] Podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por esta refl exão: não é conforme à natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus interesses [...] para me ocupar do que diz respeito a vós [...], para persuadir cada um a tornar-se melhor.(HADOT, 1999, p. 67) A fi losofi a socrática é uma prática cotidiana e cidadã. 5 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a Entre em contato com o Orientador Acadêmico ou ainda com o Professor através da Sala do Orientador na sala de aula virtual, ou consulte o Quadro Horários de Atendimento presencial ao aluno para saber os dias e horários do plantão do Orientador no laboratório de Informática da sua unidade UNISUAM. Dúvidas Referencias PLATÃO. Apologia de Sócrates. Brasília: UnB, 1997, p. 22. Cf. 24a. HADOT, Pierre. O Que é Filosofi a Antiga. São Paulo: Loyola, 1999. Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos Bloco de notas e anotações Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada. Importante: Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 2 Aula 5 - A virada da fi losofi a operada por Sócrates em relação à busca inaugurada pelos pré-socráticos Os fi lósofos anteriores a Sócrates (Tales, Anaximandro, Anaxímenes e tantos outros) se preocupavam com os elementos primordiais (em grego: arché) com a qual a Natureza (a physis) se compunha Por exemplo: terra, ar,fogo e água compõem a natureza). A preocupação de Sócrates não era a arché ou a physis, mas a ética. Mas como entender, mais positivamente, esta virada da fi losofi a em relação aos investigadores anteriores? Em que consiste o objetivo fi losófi co de Sócrates? A esta altura, você já sabe responder a esta questão. O objetivo fi losófi co passa a se defi nir, agora, pela procura de uma excelência da conduta à luz de um questionamento sistematicamente conduzido. A partir de Sócrates, a fi losofi a tem seu centro deslocado de questões de ordem física para questões de ordem ética. Sócrates procura pela sabedoria sem nunca dizer possuí-la. Diz não ensinar qualquer conhecimento acerca da realidade (tarefa dos fi lósofos naturalistas) nem se engajar no mero convencimento dos outros através do poder encan- tatório das palavras (ocupação dos sofi stas). Defi ne-se como um “professor de ignorância”, isto é, como alguém que, comumente, leva os outros a perceberem que a sabedoria só existe quando reconhecida a ignorância provocada pelo questionamento. Ele não transmite conteúdos fechados. Através de um procedimento sistemático de perguntas, ironiza a condição do interlocutor que se acha sábio. De agora em diante, reconhecendo que nada sabe do que julgava saber, se põe em busca de um conhecimento mais consistente. O conhecimento a que Sócrates se dedica é o da virtude. Nesta fi losofi a concebida como prática de vida, é a excelência da alma que está em jogo. A esta excelência da alma dá-se o nome de virtude (areté). A vida virtuosa é a vida justa. A grande maioria dos homens se contenta com a opinião consagrada ou com a voz de alguma autoridade. Nenhuma destas duas muletas satisfaz a Sócrates. Ele deseja, mesmo tendo a opinião do vulgo contra si, mesmo sofrendo a pressão contrária (e, muitas vezes, tirânica) da opinião, só continuar a crer em algo se tiver boas razões para o fazer. Sócrates foi um anticonformista por excelência. A prática de fazer ceder às respostas prontas torna fundamental o exercício da ironia. O termo “ironia”, no contexto da fi losofi a socrática, fi lósofos naturalistas http://www.mundodosfi losofos.com.br/presocratico.htm Saiba mais em relação aos investigadores anteriores? Em que consiste o objetivo fi losófi co de Sócrates? A esta altura, você já sabe responder a esta questão. O objetivo fi losófi co passa a se defi nir, agora, pela procura de uma excelência da conduta à luz de um qualquer conhecimento acerca da realidade (tarefa dos fi lósofos naturalistas) nem se engajar no mero convencimento dos outros através do poder encan- tatório das palavras (ocupação dos sofi stas). Defi ne-se como um “professor de ignorância”, isto é, como alguém que, comumente, leva os outros a perceberem que a sabedoria só existe quando reconhecida a ignorância provocada pelo questionamento. Ele não transmite conteúdos fechados. Através de um procedimento sistemático de perguntas, ironiza a condição do interlocutor que se acha sábio. De agora em 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a Tendo lido o tópico acima, você deverá, agora, se deter sobre dois pequenos textos. Ambos estão centrados nos temas aqui tratados. Tratarão, por exemplo, do desinteresse de Sócrates pelas questões ligadas à Natureza (investigadas pelos fi lósofos anteriores) e de seu desdém pelo convencimento obtido através da mera persuasão, isto é, sem argumentos (acusação que se fará sempre aos sofi stas). Eles também irão abordar a ironia socrática e o verdadeiro efeito de libertação para o qual concorre tal ironia. A propósito, à luz de tudo o quanto foi exposto até aqui, pense em que consiste exatamente essa “libertação”. Indo além tem um signifi cado bastante diferenciado daquele de uso comum. Não se trata, com este tipo de ironia, de “ser sarcástico” ou de “zombar” do outro companheiro de interlocução, mas de expor, através de um inquérito sistematicamente conduzido, os vários problemas com as posições que, normalmente, adotamos como parte de uma tradição particular e que só mantemos por força de um hábito nunca problematizado. Sócrates expõe as falhas de raciocínio daqueles que com ele conversam e espera que façam o mesmo com ele, quando acharem falhas semelhantes. É mais importante reconhecer que não se sabe do que se julgar sábio, não o sendo. Sócrates dizia nada saber. Sabendo que nada sabia, a propósito, é que ele se diferenciava dos outros, como já afi rmara o oráculo de Delfos, certa vez, consultado por seu amigo Querefonte (Cf. PLATÃO, 1997, p. 19). Pense bem: se Sócrates reconhece, autenticamente, que nada sabe, nosso fi lósofo sabe mais do que os que, não percebendo sua ignorância, julgam, ingenuamente, saber algo. O reconhecimentode sua ignorância faz o fi lósofo se tornar mais sábio do que os outros homens, que não percebem, normalmente, este ponto. A sacerdotisa do oráculo de Delfos estava certa quando revelou a Querefonte a identidade do mais sábio dos atenienses. Leia os textos e deixe suas considerações no Fórum de Discussão - Sobre a fi losofi a socrática -Sobre a Ironia Socrática Entre em contato com o Orientador Acadêmico através da Sala do Orientador na sala de aula virtual ou consulte o Quadro Horários de Atendimento presencial ao aluno para saber os dias e horários do plantão do Orientador no laboratório de Informática da sua unidade UNISUAM. Dúvidas Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos Bloco de notas e anotações Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada. Importante: Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 2 Aula 6 - Sócrates: o “cuidado de si” Chegamos ao último tópico de estudo do Módulo 1, sobre “a fi losofi a como atitude”. Sócrates aponta para a necessidade de um “cuidado de si” (que em grego se diz epimeleia heautou). Esta expressão não deve ser entendida como uma preocupação de natureza psicológica ou subjetiva. Os gregos não possuíam nossas complexas noções de vida interior. A eles interessava o cidadão na sua relação com os destinos da polis. O “cuidado de si” deve ser entendido como a vida solidária em relação às leis justas da polis. O “cuidado de si” é viver conforme a justiça – justiça cuja defi nição essencial é o objetivo primordial de toda a fi losofi a socrática. Sócrates procura por conceitos universais; ele não se contenta com o relativismo com que as diferentes tradições ou a sempre fl utuante e oportunista opinião a defi ne. Em todos os diálogos platônicos (lembramos, uma vez mais, que Sócrates nada escreveu!), o fi lósofo procurará saber o que é a justiça, a coragem, a piedade etc. de um ponto de vista universal. Este é o fi m de sua pesquisa: encontrar as defi nições universais dessas virtudes. A vida virtuosa é uma vida que se defi ne em relação à polis e a seu destino – destino, aliás, sempre ameaçado, segundo Sócrates, pela inércia mental de uma população desinteressada no tópico da “vida justa” e pela inépcia e arrogância de tiranos, a quem interessam mais os desejos pessoais que a racionalidade na condução da vida pública. O fi lósofo é, assim, segundo o testemunho de Sócrates na obra platônica (Apologia de Sócrates), um sujeito que, embora não se ocupe dos negócios da cidade, defi ne-se por uma função inescapavelmente política: a sobrevivência da polis depende do cuidado pelo qual o fi lósofo vive e em nome do qual irá morrer. ( PLATÃO, 1997, p. 35.) Você já deve ter percebido que, se Sócrates indagava aqueles homens que se punham, pretensamente, como sábios, isso o colocará em sérios problemas. Este destino não é raro para quem ousa problematizar os cenários do poder (PLATÃO, 1997, p. 19). Ao mesmo tempo, este questionamento se constitui em um verdadeiro teste para as democracias. Afi nal, sociedades abertas devem conviver com as críticas, acolhê-las e transformarem-se em função dessas. As democracias devem ser expe- rimentos sociais onde fl oresça a liberdade de pensamento. Sócrates foi acusado por Ánito, Meleto e Lícon de não crer em quaisquer deuses e de corromper, com suas ideias a juventude de Atenas. (PLATÃO, 1997, p. 25). Como dissemos, é um cenário complexo aquele em que o fi lósofo se encontra. Sócrates, por exemplo, tem de se haver contra o fundo de acusações como a de sofi sta ganancioso – isto quando Sócrates nunca pedira remuneração, dirigindo-se, diferentemente dos sofi stas, tanto a pobres quanto a ricos. O texto da Apologia de Sócrates conseguiu mostrar que seus acusadores nada sabiam daquilo de que o acusavam. Na verdade, ele demonstrou que eles sequer se dispuseram, por muito tempo em suas vidas, a refl etir sobre o tema da educação cívica. Nunca procuraram responder a questão sobre quem, entre os homens, estaria qualifi cado heautou). Esta expressão não deve ser entendida como uma preocupação de natureza psicológica ou subjetiva. Os gregos não possuíam nossas complexas noções de vida interior. A eles interessava o cidadão na sua relação com os destinos da polis. O “cuidado de si” deve ser entendido como a vida solidária em relação às leis justas da polis. O “cuidado de si” é viver conforme a justiça – justiça cuja defi nição essencial é o objetivo primordial de toda a fi losofi a socrática. Sócrates procura por conceitos universais; ele não se contenta com o relativismo com que as diferentes tradições ou a sempre fl utuante e oportunista opinião a defi ne. Em todos os diálogos platônicos (lembramos, uma vez mais, que Sócrates nada escreveu!), o fi lósofo procurará saber o que é a justiça, a coragem, a piedade etc. de um ponto de vista universal. Este é o fi m de sua pesquisa: encontrar as defi nições universais dessas virtudes. A vida virtuosa é uma vida que se defi ne em relação à polis e a seu destino – destino, aliás, sempre ameaçado, segundo Sócrates, pela inércia mental de uma população desinteressada no tópico da “vida justa” e pela inépcia e arrogância de tiranos, a quem interessam mais os desejos pessoais que a racionalidade na condução da vida pública. O fi lósofo é, assim, segundo o testemunho de Sócrates na obra platônica (Apologia de Sócrates), um sujeito que, embora não se ocupe dos negócios da cidade, defi ne-se por uma função inescapavelmente política: a sobrevivência da polis depende do cuidado pelo qual o fi lósofo vive e em nome do qual irá morrer. ( PLATÃO, 1997, p. 35.) Você já deve ter percebido que, se Sócrates indagava aqueles homens que se punham, pretensamente, como sábios, isso o colocará em sérios problemas. Este destino não é raro para quem ousa problematizar os cenários do poder (PLATÃO, 1997, p. 19). Ao mesmo tempo, este questionamento se constitui em um verdadeiro teste para as democracias. Afi nal, sociedades abertas devem conviver com as críticas, acolhê-las e transformarem-se em função dessas. As democracias devem ser expe- rimentos sociais onde fl oresça a liberdade de pensamento. Sócrates foi acusado por Ánito, Meleto e Lícon de não crer em quaisquer deuses e de corromper, com suas ideias a juventude de Atenas. (PLATÃO, 1997, p. 25). Como dissemos, é um cenário complexo aquele em que o fi lósofo se encontra. Sócrates, por exemplo, tem de se haver contra o fundo de acusações como a de sofi sta ganancioso – isto quando Sócrates nunca pedira remuneração, dirigindo-se, diferentemente dos sofi stas, tanto a pobres quanto a ricos. O texto da Apologia de Sócrates conseguiu mostrar que seus acusadores nada sabiam daquilo de que o acusavam. Na verdade, ele demonstrou que eles sequer se dispuseram, por muito tempo em suas vidas, a refl etir sobre o tema da educação cívica. Nunca procuraram responder a questão sobre quem, entre os homens, estaria qualifi cado 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a para promover esta pedagogia nem se ocuparam também em pensar detidamente sobre as próprias acusações da suposta irreligiosidade de Sócrates. Levando-lhes facilmente à contradição, Sócrates expõe a falsa sabedoria daqueles que julgam saber quem ele é. Sócrates deixa seus acusadores com a percepção de que eles nada sabiam do que julgavam saber. O fi lósofo nega-se a pagar uma pesada multa ou a aceitar o exílio até a morte em alguma outra cidade como desfecho possível daquela chamada ao Tribunal. Está convencido de que não fez mal a ninguém, e deseja prosseguir em seu ofício de interpelação, dizendo ser este um dever confi ado pelo próprio deus. Como não é ímpio, continuará. Longe de aceitar a condição de acusado, Sócrates assume o papel de acusador. Chega
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