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M o b i l i á r i o b a i a n o M o b i l i á r i o b a i a n o M a r i a H e l e n a o c H i F l e x o r M a r ia H e l e n a o c H i F l e x o r A Coleção Obras de Referência do Programa Monumenta/Iphan reedita mais um título para a bibliografia básica do Patrimônio: a pesquisa da professora Maria Helena Flexor a respeito dos móveis e do mobiliário usado em Salvador do início do século XVIII até meados do século XIX. A obra, agora revista e atualizada, apresenta o inventário dos móveis encontrados na primeira capital brasileira durante o período e localiza os exemplares subsistentes. Além disso, trata dos estilos, da mão de obra e dos materiais empregados em sua confecção, oferecendo fartas referências bibliográficas e iconografia. M o b i l i á r i o b a i a n o M a r i a H e l e n a o c H i F l e x o r M o n u M e n t a / i p H a n c r é d i t o s Presidente da rePública do brasil Luiz Inácio Lula da Silva Ministro de estado da cultura João Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira) Presidente do instituto do PatriMônio Histórico e artístico nacional coordenador nacional do PrograMa MonuMenta Luiz Fernando de Almeida coordenador nacional adjunto do PrograMa MonuMenta Robson Antônio de Almeida coordenação editorial Sylvia Maria Nelo Braga edição Caroline Soudant coPidesque Ana Lúcia Lucena revisão e PreParação Denise Costa Felipe, Gilka Lemos design gráfico Cristiane Dias diagraMação Ronald Neri fotos e ilustrações Arquivo da autora, Caio Reisewitz, Nelson Kon, Sylvia Braga, Editora de Arte Espade caPa e guarda Caixão ou arcaz. Século XVIII. Sacristia da Catedral de Salvador. Foto de Caio Reisewitz, 2008. F619m Flexor, Maria Helena Ochi. Mobiliário baiano. Brasília, DF: Iphan / Programa Monumenta, 2009. 176 p.: il.; 26cm. (Referência ; 3) ISBN 978-85-7334-119-5 1. Mobiliário – Bahia. 2. Patrimônio histórico - conservação. 3. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 4. Programa Monumenta. I. Título. II. Coleção. CDD 64z0 www.iphan.gov.br | www.monumenta.gov.br | www.cultura.gov.br a p r e s e n t a ç ã o 0 7 i n t r o d u ç ã o 0 9 1 | p a n o r a M a H i s t ó r i c o 1 2 2 | e s t u d o s c l á s s i c o s 2 2 3 | M e t o d o l o g i a d o p r e s e n t e e s t u d o 3 0 4 | M ã o d e o b r a : o s o F í c i o s M e c â n i c o s 3 6 5 | M a t e r i a i s u t i l i z a d o s 6 4 6 | M ó v e i s e M o b i l i á r i o 7 8 7 | c o n c l u s õ e s 1 3 8 8 | g l o s s á r i o 1 4 4 9 | r e F e r ê n c i a s b i b l i o g r á F i c a s e b i b l i o g r a F i a 1 5 8 s u M á r i o ~6~ ~7~ a p r e s e n t a ç ã o O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional vem publicando, desde a sua fundação em 1937, títulos fundamentais para a promoção do patrimônio histórico e suporte do ensino de arte e arquitetura no país. Um grande acervo foi editado, mas muitas obras relevantes estão esgotadas e, como jamais integraram os catálogos das editoras comerciais, encontram-se hoje inacessíveis para um público carente da bibliografia básica sobre nosso patrimônio. É pensando, portanto, nos estudantes, pesquisadores, professores de arte, história e arquitetura que o Programa Monumenta/Iphan chamou para si a tarefa de reeditar importantes textos de referência, tais como Arquitetura e Arte no Brasil Colonial, de John Bury, e o Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil, de Augusto da Silva Telles. Neste momento, um novo título é lançado, em edição revista e atualizada: o Mobiliário baiano, de Maria Helena Flexor, um minucioso estudo dos móveis e do mobiliário em uso em Salvador, do início do século XVIII até meados do século XIX. Mais que um simples inventário dos móveis encontrados na primeira capital brasileira durante o período, a autora apresenta os estilos, a mão de obra e materiais empregados em sua confecção, além de localizar os exemplares subsistentes e levantar um extenso material bibliográfico, textual e iconográfico, do qual o leitor certamente poderá tirar proveito. Luiz Fernando de Almeida Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Coordenador Nacional do Programa Monumenta Dezembro 2009 Papeleira rococó, século XVIII-XIX. Museu de Arte da Bahia. ~9~ i n t r o d u ç ã o O conteúdo deste livro foi desenvolvido com base em estudo feito nos anos 1970, enriquecido ou reafirmado, posteriormente, ao longo de mais de trinta anos, com vários outros trabalhos, muitos dos quais apresentados em colóquios e congressos ou elaborados para publicação em livros e periódicos, nacionais e internacionais. O estudo centra-se, sobretudo, em Salvador, sede do governo colonial de 1549 a 1763. Como também foi capital, sucedendo Salvador, o Rio de Janeiro (1763-1960) serve de base para algumas comparações. São acrescentados exemplos do estado de Minas Gerais, considerado por alguns autores, a partir dos anos 1930-1940, produtor da mais importante expressão da arte nacional. Citam-se, eventualmente, outras regiões. Focalizou-se nesse estudo os móveis e mobiliário em uso na cidade no período compreendido entre 1700 e meados do século XIX. Escolheu-se como baliza inicial o princípio do século XVIII, por corresponder a um momento em que a sociedade soteropolitana já estava administrativa, social e economicamente estruturada, dotando-se de registros documentais mais regulares. A baliza final, meados do século XIX, corresponde ao momento em que as residências passaram a ser compostas não mais por peças individualizadas de móveis, mas por conjuntos de móveis, ou mobília, com uniformidade formal, estilística e decorativa, de origem ou de influência estrangeira1. A pesquisa dá também a conhecer o tipo de mão de obra que atuou, durante o período considerado, na Cidade do Salvador. Estende-se, portanto, à organização dos oficiais mecânicos, como eram chamados os artesãos ou artífices de diversas especialidades, como marceneiros, carpinteiros, torneadores, correeiros e ferreiros. Para este estudo foram coletados dados na documentação, manuscrita e impressa, do Arquivo Histórico Ultramarino e Biblioteca da Ajuda, de Lisboa, do Arquivo Público do Estado da Bahia, do Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal do Salvador, hoje sob a guarda da Fundação Gregório de Mattos, e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Essa documentação inclui inventários e testamentos, cartas do governo, registros de correspondências entre Brasil e Portugal, livros de cartas de exame, termos de eleições de oficiais mecânicos, livros de posturas, provisões do senado, livro de registro de licenças, cartas do senado e atas da câmara. Jornais também integram a bibliografia. Como complementação, buscou-se obter informações sobre os materiais usados na construção dos móveis e realizou-se um extensivo levantamento bibliográfico, textual e iconográfico, em catálogos ou fotografias de coleções de museus e particulares. De alguns móveis, no entanto, não foi possível localizar nenhum exemplar em Salvador, recorrendo- se a modelos semelhantes de outras regiões do país, de Portugal, França ou Inglaterra, cujas descrições coincidiam com aquelas dos documentos consultados. Conjunto de mobília neoclássica, século XX. Museu Carlos Costa Pinto. M o b i l i á r i o b a i a n o ~10~ Usam-se citações de documentos de época para introduzir no estudo o olhardos personagens daqueles tempos e permitir que se verifiquem as diferenças que marcavam os habitantes de Salvador dos séculos XVIII e XIX. Essas citações terão a ortografia atualizada para facilitar a leitura e compreensão. Também para facilitar a compreensão, é apresentado um glossário, no final do livro. n o t a s 1 – O levantamento envolveu a consulta, no Arquivo Público do Estado, dos inventários e de alguns testamentos referentes à capital. Dos “inventários dos bens” ou “autos de partilha”, extraíram-se dados descritivos, por vezes bastante minuciosos, de 14.800 móveis, num total de 1.843 inventários. Esse levantamento foi complementado por bibliografia e inventários impressos, usados a título de comparação, já que se partia de metodologia completamente diversa de estudos anteriores. Antifonário híbrido (clássico renascentista/ barroco), século XVIII. Detalhe do caixão ou arcaz clássico e bofete barroco, século XVIII. Sacristia da Igreja do Convento do Carmo, Salvador. I n t r o d u ç ã o panoraMa Histór ico 1 ~15~ p a n o r a M a H i s t ó r i c o a c i d a d e e a s o c i e d a d e Em princípios do século XVIII, a Cidade do Salvador já era bastante povoada, segundo Thales de Azevedo1. Não há coincidência entre os números da população total citados pelos autores, mas estes estão concordes em afirmar que a maioria dos habitantes era constituída por pretos e pardos. No mapa das freguesias, de 1775, consta que as “[...] 10 freguesias da cidade contêm 7.080 fogos, com 40.992 almas, a maior parte pretos e pardos cativos, porém os fogos a maior parte são brancos”2. Essa característica não mudaria até o final do século, segundo as informações de José da Silva Lisboa e Luís dos Santos Vilhena. Em carta de 18 de outubro de 1781, dirigida ao doutor Domingos Vandelli, diretor do Jardim Botânico de Lisboa, Silva Lisboa dizia que “a cidade da Bahia tem quase 50.000 (habitantes), de que só a quarta parte será composta de brancos”3. O cronista Vilhena computava menos de 60.000 habitantes, e estimava: “[...] a terça parte de todos estes habitantes incluindo o Recôncavo poderão ser de brancos, e índios, sendo as duas outras partes de negros e mulatos”4. Os pretos, se não moravam com seus senhores, distribuíam-se pelos becos e ladeiras, em casas pobres, como as da ladeira da Misericórdia. Segundo informava um documento, as vítimas do desabamento de terras nesse local, no inverno de 1797, foram notificadas como “sendo quase todos pretos, e pretas, e nenhuma pessoa de consideração”5. As casas nobres “de sobrado e com loja de alugar” distribuíam-se em pontos não muito distantes do primeiro núcleo de povoamento de Salvador, entre a Igreja da Ajuda e o Pelourinho. Segundo Vilhena, os melhores edifícios estavam na Praia, ou Cidade Baixa, bairro “opulento pela assistência, que nele fazem os comerciantes da praça”. Sobre a Cidade Alta, comenta que “os seus grandes edifícios, templos, e casas nobres, são de ordinário pelo gosto e risco antigos, em que se notam algumas irregularidades, à exceção de poucos mais modernos”6. Tudo isso foi confirmado por outro documento, no qual se afirma: “ [...] é certo que os edifícios não são da melhor arquitetura, nem da mais sólida construção, apesar de se encontrarem alguns nobres como sejam templos e também várias casas particulares muito boas, e de gosto mais moderno; as ruas são limpas, mas não regulares, nem calçadas com perfeição.7” O distanciamento socioeconômico que a escravidão criou, especialmente na Bahia, entre brancos, pardos, mulatos e pretos cativos mereceu críticas por parte de Vilhena: Fachada da igreja e detalhe do Convento do Carmo, século XVII-XVIII, Salvador. ~16~ M o b i l i á r i o b a i a n o “os brancos naturais do país hão de ser soldados, negociantes, escrivães, ou escreventes, oficiais em algum dos tribunais, ou Juízo de Justiça, ou Fazenda, e alguma outra ocupação pública, que não possa ser da repartição dos negros, como cirurgiões, boticários, pilotos, mestres, ou capitães de embarcações, caixeiros de trapiches, etc., alguns outros se bem que poucos, ou raros, se empregam em escultores, ourives, pintores, etc.“8 Segundo o mesmo autor, “há outros que entusiasmados sem fundamento, de que são alguma coisa neste mundo, vivendo em sua casa envolvidos na sórdida miséria, quando saem fora se empavesam de tal forma, que até custa reverenciar a Deus”9. Essa observação é confirmada por outro documento: “A maior parte [dos escravos] é bem inútil ao público e só destinada para servir aos caprichos e voluptuosas satisfações de seus senhores. É prova de mendicidade extrema o não ter um escravo: ter-se-ão todos os incômodos domésticos, mas um escravo a toda a lei. É indispensável ter ao menos 2 negros para carregarem uma cadeira ricamente ornada, um criado para acompanhar esse trem. Quem saísse à rua sem esta corte de africanos, está seguro de passar por um homem abjeto e de economia sórdida.”10 Não deixou Silva Lisboa de criticar, também, as senhoras patrícias. Os brancos mostravam o que não eram. A ostentação pública de riqueza, muito embora nem sempre essa riqueza fosse real, era comum entre eles, não fugindo à exceção os religiosos, como observaram os Arcebispos Frei D. Manuel de Santa Inês11 e Frei D. Antônio Correia12, nem os militares. Essa parece ter sido a feição de Salvador do século XVIII, principalmente na sua segunda metade. Mesmo com a mudança da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, o luxo aparente da sociedade não deixou de existir. Dos senhores e proprietários das residências – umas ricas, outras médias, poucas pobres e a grande maioria, de brancos – foram consultados inventários e alguns testamentos. Levantaram-se dados dos pertences daqueles habitantes que residiam nas ruas Direita da Praia, do Pilar, das Laranjeiras, do Maciel, Cruzeiro de São Francisco, Direita das Portas do Carmo, Santo Antônio Além do Carmo, Taboão, Direita de Palácio, São Bento; na Baixa dos Sapateiros; nas ladeiras da Praça e da Preguiça e, à medida que se caminhava para o século XIX, e com a melhoria dos transportes urbanos, São Pedro Velho, Piedade, Mercês, Vitória, Estrada da Graça, Saúde, Ribeira, Itapagipe. Deve-se, no entanto, ressaltar que, até meados dos oitocentos, existiam engenhos na região do Pilar, chácaras em Brotas, Rio Vermelho e Barra. ~17~ Pa n o r a m a h i s t ó r i c o Naquele século, com o processo que Gilberto Freyre13 chamou de “reeuropeização” do Brasil, verificou-se a adoção, pela assimilação, pela imitação, pela coerção, na colônia e depois no império, de “uma série de atitudes morais e de padrões de vida que, espontaneamente, não teriam sido adotados pelos brasileiros.” A feição de Salvador começou, então, a se modificar. A esse tempo, os franceses também tiveram grande influência, impondo as suas modas. Não eram raros os anúncios de jornais acusando a presença de modistas francesas, hospedadas em alguma parte central da cidade, dispostas a receber as senhoras baianas, para vender seus vestidos e acessórios, trazidos diretamente de Paris. E vieram acessórios para casa que guardaram, por muito tempo, sua designação original entre os brasileiros, como, após 1850: retrete, toilette, bidet, console, plateau, étagers, etc. Foi nessa época que algumas modas francesas retornaram, formando agora conjuntos de mobílias. É o caso do modelo denominado “estilo Luís XV” ou “à Luís XVI” que se usou no Brasil até o princípio do século XX, sendo o único estilo assim chamado documentadamente. Reavivou-se então o móvel barroco, confeccionado mecanicamente e em série, de forma estilizada, compondo o estilo eclético. Simultaneamente, registrou-se o aumento emnúmero dos caixeiros viajantes, que eram portadores de produtos importados, bem como dos bazares, nos quais se vendiam “trastes”, tanto novos, quanto usados. Cabe ainda enfatizar que, fora as madeiras e couros, todos os materiais e utensílios vinham de Portugal. No final do século XVIII, não eram raros os produtos que chegavam da Inglaterra, através dos portos de Lisboa ou do Porto. Importavam-se desde pregos, colheres de pedreiros, candeeiros, almofarizes, bacias de estanho ou de arame, panelas de cobre, tigelas de pó de pedra, mangas de vidro, baús, carteiras de mão, bancas de abrir, cadeiras, mesas de abas de jantar, até mesas de chá ou de jogo. Quadros, livros, instrumentos musicais e relógios eram raros. Os espelhos e vidros só foram mais profusos no século XIX. E também eram importados. Os móveis, especificamente, tinham ainda outras origens. Nas últimas décadas do século, viam-se anúncios como estes: Caixão ou arcaz híbrido (clássico/renascentista e barroco), século XVIII. Sacristia da Igreja do Convento de Santa Teresa, Museu de Arte Sacra, Salvador. ~18~ M o b i l i á r i o b a i a n o “Indústria Americana Figuras, bustos, cantos, flores e outros enfeites de talha, preparados com a maior perfeição em madeira e pós de serraduras, próprios para ornar e dar o maior realce as obras de marcenaria, especialmente camas, aparadores, guarda-vestidos, toilletes, etc. recebemos grande porção d’estas formosas peças, por preços baratíssimos, que só os Estados Unidos podem apresentar: há-os desde 100 rs até 5$000. AU PALAIS-ROYAL”14 “Mobílias Americanas Imensa Aceitação Além de mais fortes e elegantes do que as austríacas, custam menos da metade, visto que as outras custam 150$000. Embarcam-se também para fora da província sem mais despesa alguma que a de frete. AU PALAIS-ROYAL grande bazar dos melhores artigos americanos preferidos aos da Europa.”15 M ó v e i s e s o c i e d a d e O luxo aparente dos brancos, quando se apresentavam em público, no século XVIII, parece não ter afetado o interior das residências baianas: “Com efeito ao luxo exterior dos vestidos, em nada cede aos nossos europeus; e a seda é vulgarissima até nos negros forros. Porém tudo é sem proporção: a indigência muitas vezes se esconde debaixo desta exterioridade de pura fanfarronada, entretanto, que o interior da família está em desesperação. Felizmente para nós este luxo não tem penetrado no interior das casas, que é excessivamente modesto e despojado, pelo ordinário, de ornato e rico aparelho de móveis da Europa. A mesa costuma ser abundante, se os víveres são baratos; mas a delicadeza suntuosa e regular se não acha ainda entre gentes, que tem comodidades. A coisa nasce da falta de fundo real de riqueza na maior parte das pessoas.”16 Os inventários deixam concluir que os bens materiais desses baianos dos séculos XVIII e XIX, bem como dos portugueses que se estabeleceram em Salvador, consistiam principalmente de propriedades imobiliárias, dinheiro, jóias – sobretudo de prata, ouro branco ou, eventualmente, ouro – e escravos. Os móveis, em geral restritos ao necessário, ~19~ Pa n o r a m a h i s t ó r i c o representavam uma parcela mínima das posses e, na grande maioria dos casos, contrastavam com a fortuna de seus proprietários. O luxo aumentou um pouco no século XIX, com a introdução de móveis envidraçados, de maior número de peças supérfluas, vidros e espelhos de ornamentação que, por sua natureza, tinham a aparência de objetos luxuosos, ainda mais quando contornados de dourado. Somente a partir de meados desse século a quantidade de móveis aumentou consideravelmente, “entulhando” as residências mais abastadas. As casas dos séculos XVII e XVIII contrastavam radicalmente com as moradias da segunda metade do século XIX, quando a burguesia nascente encheu todos os espaços residenciais com vários conjuntos de mesas e cadeiras, guarda-comidas, bancas, sofás, guarda-roupas, leitos, além de numerosas estampas, importadas da Europa, e mangas de vidro, protegendo ramos de flores metálicas, biscuits e imagens de santos, numa mesma sala, por exemplo. Em uma cidade habitada majoritariamente por pretos, crioulos, pardos e mulatos, não eram muitas as residências que possuíam móveis. Pelos inventários, percebe-se que a casa baiana, e mesmo brasileira, quer de brancos, quer de africanos ou seus descendentes, com raríssimas exceções, foi extremamente pobre até meados do século XVIII, observando- se a ausência de móveis, especialmente os supérfluos. Isso se justifica não apenas pelo fato de a vida do baiano estar voltada para a rua, mas pelas próprias condições do povoamento. Sabe-se que somente a partir de meados dos setecentos consolidou-se a sociedade em alguns núcleos urbanos dispersos pelo Brasil, com a fixação de povoadores nas vilas e cidades, incentivada pela política e ações pombalinas. A consolidação da sociedade tornou possível o atendimento ao conforto interno das casas, observando-se então, não só o aumento do número de móveis, como, sobretudo, a utilização crescente de peças especializadas, como as cômodas, guarda-roupas, sofás e mesas de esbarra ou de jogo, inexistentes nos seiscentos, ou a substituição de móveis menos refinados, vindos do século anterior, como o caixão, por peças aperfeiçoadas. Salvador, apesar de ter perdido a condição de capital do Vice-Reino em 1763, continuou com a feição de maior centro urbano, no parecer do marquês de Lavradio, D. Luís de Almeida Portugal Soares Alarcão Eça Melo Silva e Mascarenhas. Confirmava isso o conjunto da cidade, que apresentava condições de infra-estrutura melhores que as oferecidas à corte quando a sede do Reino foi transferida de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808. Muitas intervenções e construções na cidade foram necessárias, pois ela não dispunha de casas nobres, capazes de abrigar a realeza e a corte administrativa, diferentemente de Salvador, que tinha porte de capital. ~20~ M o b i l i á r i o b a i a n o Em Minas Gerais, alguns núcleos urbanos também se estruturaram somente a partir da segunda metade dos setecentos, enquanto em São Paulo e em quase todo o Sul permaneciam inexpressivos, como muitas partes do Norte e do Nordeste. Nessas regiões, certos núcleos cumpriram trajetórias diversas na história artística brasileira: é o caso de Recife, por ter permanecido nas mãos dos holandeses, São Luís do Maranhão, fundada pelos franceses, ou Belém, que foi capital da região Norte na época pombalina. As companhias de comércio, criadas na segunda metade do século XVIII, ao permitir o acesso direto às modas européias, reforçaram essa diversidade. Nesses diferentes brasis, as casas também eram bem díspares, com poucos sobrados “com loja de alugar”, de pedra e cal, e muitas casas térreas de taipa, algumas vezes tendo apenas a fachada construída com material mais durável. Em geral, situavam- se em terras foreiras a comunidades religiosas. Umas e outras estavam “místicas”, ou misturadas, nos centros urbanos. E é nessas casas térreas, quase sempre de chão de terra batida e iluminadas por candeeiros de latão ou veladores de jacarandá torneados, que se usavam algumas poucas peças de móveis no século XVIII. Seus moradores eram pequenos comerciantes e burocratas, oficiais mecânicos, índios “civilizados”, escravos libertos, artistas, pequenos lavradores, etc. Os sobrados pertenciam aos nobres e oficiais do governo, alguns senhores de engenho e/ou comerciantes, senhores de escravos de aluguel e militares de maior patente. Estavam localizados junto aos edifícios religiosos e administrativos e, os maiores, na zona comercial. Poucas casas de engenhos ou sobrados urbanos, depropriedade de pessoas mais abastadas, contavam, no século XVIII, com um número mais considerável de móveis. Como se viu, a grande maioria da população, se não era escrava, constituía- se de pessoas sem condições econômicas para possuir móveis de elaboração e madeira mais refinados. No entanto, alguns ex-escravos alcançavam o mesmo padrão de vida dos brancos, habitando casas ao lado destes, como se via na rua do Rosário, em São Paulo, onde não só dispunham de móveis, quanto de escravos e de todo o aparato denotativo de certa condição econômica: objetos de prata, incluindo bengala com castão desse metal, chapéus de Braga, louça da Índia ou da China, móveis de jacarandá, etc. Livres, muitos ex-escravos baianos também desfrutavam de condições materiais similares e possuíam escravos. Pa n o r a m a h i s t ó r i c o n o t a s 1 – azevedo, Thales. Povoamento da Cidade do Salvador. 3ed. Bahia: Itapuã, 1969, p. 183. 2 – aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 8750 (1775), p. 289. 3 – Idem. v. 34, doc. 10.907 (1781), p. 505. 4 – vilHena, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Bahia: Itapuã, 1969, v. 1, p. 55. 5 – aHu. Loc. cit., 1914, v. 32, doc. 17.433 (1797), p. 459. 6 – vilHena, L.S. Op. cit., p. 44-45. 7 – cartas do governo a sua Magestade (1797-1798). Arquivo da Prefeitura Municipal do Salvador/ Fundação Gregório de Mattos, carta 600, 21 out. 1799. fl. 207. 8 – vilHena, L.S. Op. cit., p. 138. 9 – Idem, p. 52. 10 – aHu. Loc. cit., 1914, v. 32, doc. 10.907 (1781), p. 505. 11 – Em sua Carta Pastoral, de 1764, frei D. Manuel de Santa Inês criticou severamente as religiosas do Desterro quanto ao cerimonial que obedeciam, por admitirem, dentro do convento, as escravas para os seus serviços (aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 6.556 (1764 anexo ao doc. 6554), p. 68). 12 – Frei D. Antônio Correia, em sua Pastoral sem data, provavelmente de 1784, proibia aos eclesiásticos o uso de vestes e adornos próprios dos civis (aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 11.485 (1784, anexo ao doc. 11.481), p. 554). 13 – freyre, Gilberto. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1968. t. 1, p. 309-310. 14 – diário da baHia, Salvador, 1 mai., 1879, p. 8. 15 – idem. 9 mai., 1879. p. 3. 16 – aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 10.907 (1781), p. 505. ~21~ estudos cláss icos 2 ~25~ Após a proclamação da República, em 1889, intensificou-se o processo de afirmação da nacionalidade brasileira, que se tentava estruturar desde a Independência, em 1822 ou, na Bahia, em 1823. Entre 1889 e 1930, vários fatos importantes marcaram a vida cultural brasileira em busca do espírito nacional. A criação dos símbolos nacionais – hino, bandeira, armas, heróis –, a proximidade das comemorações do centenário da Independência, a recepção da imigração em massa, a introdução dos ideais anarquistas, de um lado, e socialistas, de outro, os primeiros movimentos artístico-literários modernos, entre outros fatos, fizeram os brasileiros sentir a necessidade de conhecer o Brasil. Naquele período, com a chegada em massa de colonos europeus de várias nacionalidades, o português deixou de ser “o grande inimigo” e o foco de insatisfação dos brasileiros deslocou-se para os novos povoadores estrangeiros. Nesse contexto, não foi difícil aos intelectuais brasileiros assumir para si o patrimônio cultural legado pelos lusos nos quase 389 anos em que o Brasil esteve sob sua influência, direta ou indireta. Mário de Andrade1 iniciava, então, uma série de viagens pelo Brasil. Os intelectuais e estudiosos, bem como algumas senhoras e curiosos da burguesia paulistana nascente, começaram a redescobrir o Brasil. E passaram a fazer o que Eduardo Jardim de Moraes chamou o “retrato do Brasil2“. Foi esse movimento que “descobriu” Minas Gerais e Aleijadinho, apontando-os como símbolos da “arte nacional”, em contraposição às regiões litorâneas e suas produções, que haviam recebido mais intensamente as influências da antiga Metrópole. Carlos Ott, nessa mesma época, deixava transparecer bem a visão dos estudiosos: “Conhecidas como agora são as obras feitas no decorrer dos séculos, e conhecidos os seus autores, podemos apreciar o seu valor e investigar as influências que receberam. Por outro lado, interessa saber quais as criações tipicamente baianas ou regionais.”3 Entre os vários estudos, nesse contexto, encontravam-se os de autores que escreveram sobre o mobiliário “brasileiro” usando a metodologia comparativa: resgatavam a memória dessa produção no Brasil e a cotejavam com a de Portugal. Essa foi a metodologia adotada, por exemplo, por Gustavo Barroso, José de Almeida Santos, Clado Ribeiro de Lessa, José Wasth Rodrigues, Mário Barata, Hélcia Dias e José Mariano Filho. A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, como conseqüência de todo o processo de recuperação dos elementos distintivos da brasilidade e sua cultura, em 1937, provocou essa primeira onda de estudos sobre o mobiliário, iniciada nessa mesma década e estendida à seguinte. Isso, associado à disseminação do interesse e s t u d o s c l á s s i c o s Detalhe de anjo tocheiro barroco, século XVIII. Igreja de Santa Teresa ou Museu de Arte Sacra, Salvador. ~26~ M o b i l i á r i o b a i a n o Cofre com três chaves, século XVIII-XIX. Convento de São Francisco, Salvador. ~27~ E s t u d o s c l á s s i c o s pelos estudos regionalistas e da cultura popular, estimulou a pesquisa de objetos e peças de arte e de mobiliário antigos. Os museus, colecionadores e antiquários, a partir da década de 1940, provocaram uma segunda onda de interesse pelos estudos do mobiliário que entrou pelos anos 1960. Foi graças a esses estudos e viagens que se passou a conservar móveis antigos e objetos de arte em geral, salvos da destruição e dos cupins, como diria um desses “viajantes” culturais, o artista plástico Carybé, que, em companhia de Mário Cravo Júnior, percorreu o Nordeste num veículo Skoda enfeitado com um Exu. Dos estudos desses dois períodos nasceram conceitos, tipologias, designações estilísticas, cronologias e nomenclatura do mobiliário que acabaram consagrados. Procurava-se, então, por um lado, distinguir um “estilo brasileiro”, ou “colonial”, e descobrir as qualidades artísticas do mobiliário, e, por outro, estabelecer as características formais dos conjuntos estilísticos. Esses autores, porém, mesmo buscando a singularidade brasileira, adotaram a nomenclatura estilística do mobiliário de Portugal e respectiva cronologia, comparando as semelhanças e diferenças formais. Os estilos eram assim designados com os nomes régios: Manuelino ou Filipino, este último com variações jesuíticas, D. João V, D. José ou Pombalino, D. Maria I ou Império. Certos autores, reconhecendo “criações genuinamente brasileiras”, admitiram os estilos nacionais: D. Maria I brasileiro, Império brasileiro, Colonial brasileiro, Regional mineiro e Beranger, que outro autor crismou de D. Pedro II. Alguns estudiosos, ainda, tomaram a divisão por reinados lusos apenas para permitir uma compreensão associativa – tempo-estilo-forma –, mais inteligível que a puramente cronológica. Em conseqüência, ligaram-se de tal modo as formas dos móveis às figuras dos soberanos, que as designações deixaram de ser simplesmente associativas para se tornar sugestivas de uma interferência direta da pessoa real nos estilos e modas de seu tempo. Na atualidade, essas designações podem, eventualmente, ter validade didática, já que estão consagradas, mas não têm nenhum rigor histórico, pelo menos para o Brasil. Tais estudos morfológicos basearam-se nos móveis “sobreviventes” nos museus e coleções particulares, adotando uma nomenclatura singular, às vezes esdrúxula, paradesignar peças inteiras ou detalhes decorativos dos móveis. Essa nomenclatura4 acabou sendo também consagrada e adotada no vocabulário museológico, dos antiquários e colecionadores, que inclui termos como bolachas, treme-treme ou tremidos, almofadas, pés de bola, pés de garra e bola, pés de pincel, sapata, pés de espátula, pés de cachimbo, pés de voluta, perna de lira, cachaço, tabela, balaústre, avental, arqueta, baú, cadeira de estado, mesa holandesa, mesa de bolachas, mesa de dobrar ou de cancela, mesa de aba ou ~28~ M o b i l i á r i o b a i a n o borboleta, mesa de cavalete, mesa de encostar, mesa de dobrar, cadeira de estado, cadeira abacial, leito de bilros, cadeira de sola, cômoda boulle5, entre outros. Exemplos bem típicos de nova nomenclatura são as designações dadas às caixas e caixões, hoje chamadas arcas, arcazes e/ou cômodas. As mudanças adotadas levaram Carlos Ott6, colaborador do Iphan, a concluir que “quando nos inventários se fala em ornamentos, estes não se especificaram, pois naqueles tempos, ainda não existia nem a terminologia portuguesa e muito menos a internacional hoje em dia usada para designar os diversos estilos artísticos”. O estudo morfológico gerou também detalhamentos gráficos que reuniram desenhos das diferentes peças de móveis, dando origem à falsa idéia de conjuntos de um mesmo estilo, inexistentes no século XVIII. Da mesma maneira, levou à identificação do jacarandá como única madeira utilizada na confecção da maior parte dos móveis, por ser muito resistente e dura, qualidades que justificariam sua “sobrevivência”. Os estudos clássicos contemplam ainda móveis ingleses e franceses. Assim, para o mobiliário de influência estrangeira, adotou-se a designação originária, normalmente derivada do nome de seu criador, ou designer, como Hepplewhite, Chippendale7 e Sheraton, ou das figuras régias, como Rainha Ana (1665-1714), Guilherme e Maria ingleses. Transpor essa cronologia associada para a Bahia e para o Brasil é utilizar conceitos fictícios, tendo em vista que alguns móveis com características do estilo renascentista, o qual tem suas origens na Itália do século XIV, persistiram em uso no Brasil até o século XVIII. Há, entre eles, móveis de oração, como os oratórios, e móveis de guardar, como as caixas, caixões, armários e cômodas8. Algumas dessas peças, como as caixas, foram utilizadas até o fim dos setecentos, convivendo perfeitamente com os móveis torneados ou entalhados barrocos ou rococós, estilos que, na Europa, sucederam ao renascentista. As caixas, chamadas indevidamente arcas nos museus, passaram do século XVI para o XVII e foram usadas na Bahia até os finais dos setecentos, com múltiplas funções. Até as últimas décadas do século XVIII, os serralheiros ainda faziam fechaduras mouriscas para caixas. As arcas, sem almofadas, com o tampo abaulado e gavetas na parte inferior, só apareceram no século XVIII. Serviam para guardar roupa, comida, alfaias, louças e, por vezes, ao lado de uns poucos tamboretes, eram os únicos móveis das casas. E s t u d o s c l á s s i c o s n o t a s 1 – andrade, Mário de. Mário de Andrade: fotógrafo e turista aprendiz. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1993. 2 – Moraes, Eduardo Jardim de. Mário de Andrade: retrato do Brasil. In berriel, Carlos Eduardo (org.). Mário de Andrade/hoje. São Paulo: Ensaio, 1990, p. 67-102. 3 – ott, Carlos. História das artes plásticas na Bahia, 1550-1900. Salvador: Alfa, 1992. v. 2, p. 91. 4 – A maior parte dos termos foi criada pelos colaboradores regionais do Iphan. 5 – Vide por exemplo Krell, Olga. Aprenda a escolher antigüidades. Decoração Cláudia, Rio de Janeiro, ano 8, no 87A. p. 6, 8, 10, 12, 15, 17, 19, 21, 24, 26, 28, 30, 35, dez. 1968. 6 – ott, C. Op. cit., v. 2, p. 68, 91. No presente trabalho, é usada a nomenclatura de época, fazendo-se referência à nomenclatura do Iphan, para a qual Ott também deu sua contribuição. 7 – Hepplewhite e Chippendale já se enquadravam no processo da Revolução Industrial e vendiam suas peças por meio de catálogo, dentro de um novo programa de comercialização de produtos feitos em série. Mesmo os móveis com as designações dos nomes régios eram, em sua grande maioria, produtos industrializados. 8 – Também continuam a aparecer nas portas e janelas, especialmente dos edifícios religiosos. ~29~ Bofetinho barroco, século XVIII. Sala do Capítulo do Convento de São Francisco, Salvador. Metodologia do presente estudo 3 ~33~ Com metodologia diversa, procurou-se reestudar os móveis baianos, considerando, além da morfologia e da cronologia, a sua inserção na sociedade, a mão de obra e os materiais empregados. Tal procedimento foi em parte adotado logo em seguida por Tilde Canti1, englobando exemplares brasileiros. Nas descrições presentes na relação de bens dos inventários, testamentos e autos de partilha, existentes no Arquivo Público do Estado da Bahia, estão bem claros os detalhes, como a designação do móvel, origem, quando se tratava de importado, tamanho aproximado, materiais utilizados, ornamentações, estado de conservação, preço da avaliação. Essas descrições foram sistematizadas e distribuídas cronologicamente, considerando-se que os inventários e testamentos são documentos pós-morte. A cronologia aqui utilizada é, pois, baseada na vulgarização, ou moda, dos modelos dos móveis. As datas são mais reais, pois correspondem ao momento em que houve o grande e geral uso de determinado ou determinados modelos2. A data de introdução de novos modelos é secundária, de um lado, por serem em número reduzidíssimo – às vezes, uma única peça – e, de outro, porque sua vulgarização levava muito tempo. A defasagem cronológica entre a introdução do modelo luso, e/ou inglês ou francês, e a sua vulgarização podia atingir mais de cinqüenta anos, em algumas regiões. A defasagem existia mesmo nos centros mais adiantados, como Salvador e Rio de Janeiro. Antes de mais nada, é preciso considerar que não só a morfologia e a decoração das peças podem indicar a época do uso de determinados modelos de móveis, mas também a especialização dos oficiais mecânicos empregados na sua elaboração e o uso de materiais específicos, que devem ser considerados na sua datação. Pode-se datar os móveis, por exemplo, pelo uso constante de madeiras diversas, tipos de ferragens, puxadores, madeiras folheadas, couro lavrado, sola picada, palhinha, damasco, veludo, verniz, vidro, mármore, pintura branca ou colorida, douramentos etc. É preciso considerar ainda que os móveis tinham uma rotatividade diminuta, não só porque era comum comprá-los usados em bazares de trastes, mas também porque passavam sucessivamente, por herança, aos descendentes. Na realidade, seria impossível estabelecer uma cronologia correta tomando-se os móveis comumente usados nas casas baianas e mesmo brasileiras, pois modelos muito antigos encontravam-se ao lado de outros do estilo subseqüente, junto com móveis da moda, ou à “moderna”, como se dizia. O mais comum, especialmente do século XVIII em diante, era a utilização de peças isoladas de móveis de formas e estilos diferentes e de três tipos – de luxo, ordinários e toscos –, dependendo das posses de seus donos e dos aposentos. Não havia o requinte de uniformização decorativa e nem o conceito de mobília. Os móveis M e t o d o l o g i a d o p r e s e n t e e s t u d o Conversadeira. Século XIX. Museu Carlos Costa Pinto. ~34~ M o b i l i á r i o b a i a n o toscos eram elaborados em madeiras comuns, para o uso popular ou serviço doméstico. Esse tipo não é focalizado, por ser muito simples, com linhas retas, sem características estilísticas específicas. Como indicação didática, adotou-sea designação dos estilos gerais da arte européia ocidental, com os anos de respectivo uso na Bahia, desprezando-se os modelos híbridos, isto é, aqueles que, no século XVIII, misturaram elementos renascentistas e barrocos, por exemplo: a. renascentistas, de linhas retas, com guarnições de almofadas e frontões (1600-1740); b. primeiro barroco, com torneados e retorcidos (1640-1740); c. segundo barroco e rococó, com talhas e linhas curvas (1740-1820); d. neoclássicos com linhas retas, colunas estriadas, etc. (1820-1890); e. ecléticos e estrangeiros (1840-1910)3. Por não haver o conceito de mobília, preferiu-se designar os móveis de acordo com a sua utilidade: a. móveis de guardar – caixas, arcas, cômodas, frasqueiras, cofres, armários, guarda-roupas, guarda-louças; b. móveis de trabalho – contadores, papeleiras; c. móveis de descanso – leitos, camas, catres, preguiceiros, cadeiras, tamboretes, sofás, canapés e outros; d. móveis de refeição e decoração – mesas, bofetes, bancas, tremós; e. móveis de higiene – toucadores, gamelas, tinas ou tigres; f. móveis de oração – oratórios, altares de dizer missa; g. móveis de transporte – (redes)4, serpentinas, cadeirinhas de arruar. Essas designações se adequam perfeitamente tanto aos móveis de uso civil e leigo, quanto, em parte, aos religiosos. Como mencionado, a metodologia adotada considera, além da morfologia e da cronologia dos móveis, a sua inserção na sociedade, a mão de obra e os materiais empregados. Assim, antes de tratar dos móveis propriamente ditos, serão dadas notícias sobre a mão de obra que os elaborou no período abordado – considerando-se seu regime de trabalho e sua importância na vida da sociedade baiana – e sobre os materiais então utilizados. Caixa ou arca com gavetas, clássico renascentista, século XVIII. Sacristia da Igreja de São Francisco, Salvador. ~35~ M e t o d o l o g i a d o p r e s e n t e e s t u d o n o t a s 1 – canti, Tilde. O móvel no Brasil; origens, evolução e características. Rio de Janeiro: Cândido Guinle de Paula Machado, 1980. 337 p. 2 – Para a datação dos móveis, foi calculada a idade média de casamento dos inventariados, considerando-se a idade da maioridade – 25 anos –, em que o matrimônio era permitido, e a idade dos filhos, além da média da expectativa de vida da época. 3 – Quando o Imperador D. Pedro II visitou Salvador, em 1859, vários aposentos do Palácio do Governo foram mobiliados com peças de estilo eclético, de influência francesa. A mobília da “sala vermelha” era de “mogno, estofada de damasco vermelho, ao gosto da época de Luís XV”, por exemplo (MeMórias da viageM de suas Magestades iMPeriais a Provincia da baHia. Rio de Janeiro: Indústria Nacional de Cotrin & Campos, 1867. p. 13). 4 – A rede aparece entre parênteses porque, apesar de ter sido, por longo tempo um meio de transporte eficaz, não pode ser considerada um móvel, como os demais, pois era feita de tecido. Mão de obra: os oF íc ios Mecânicos 4 ~39~ Salvador herdou de Portugal a composição administrativa e a estrutura socioeconômica, incluindo a formação de mão de obra, constituída majoritariamente de artífices. Na prática, os ofícios foram divididos entre os brancos e os negros, sendo exercidos por uns ou por outros – não exclusivamente, mas em grande parte. Do século XVI até a terceira década do século XIX, os artesãos ou artífices e alguns pequenos comerciantes eram designados na Bahia e no Brasil como oficiais mecânicos. Os pintores e escultores, que também usavam as mãos na elaboração de suas obras, não eram classificados como artesãos, pois tinham, teoricamente, a possibilidade de “inventar” e, por isso, ser profissionais liberais1, enquanto aos artífices cabia “copiar” e permanecer administrativamente atrelados às Câmaras. Vários oficiais mecânicos interferiam na confecção dos móveis, como os marceneiros ou carpinteiros de obras brancas e pretas, torneiros, entalhadores, carpinteiros de móveis e samblagem, correeiros lavradores de couro, picadores de sola ou couro, ferreiros ou serralheiros2. A confecção de cadeiras, por exemplo, podia reunir marceneiros e correeiros. O marceneiro podia acumular a função de torneiro, mas não a de entalhador. O profissional dessa especialidade intervinha no móvel separadamente. Os entalhadores não tinham obrigação de cumprir os preceitos da Câmara, por estarem classificados na categoria dos escultores. Segundo afirma a historiografia clássica tanto em relação ao urbanismo quanto em relação aos ofícios mecânicos, apenas na América castelhana teria havido organização. No Brasil, por causa da presença do regime escravista, teria reinado a desordem, a desobediência profissional. Isso é bem válido para a vila de São Paulo, que, até o século XIX, não teve muita relevância. Até as primeiras décadas daquele século, como acusava o governador Antônio José de Franca e Horta, não havia em São Paulo mestres pedreiros e carpinteiros hábeis como os que existiam no Rio de Janeiro e na Bahia3. Fato praticamente desconhecido é que, na Bahia, a partir do final da primeira metade do século XVII, foram criados os cargos de procuradores dos mesteres, hierarquicamente subordinados à Câmara. A exemplo do que existia em Lisboa, procurou-se constituir as guildas de forma ativa, buscando “dar maior relevo à atividade dos juízes dos ofícios mecânicos, criando-lhes função própria sob a denominação de mesteres, como órgão de classe junto à Câmara, onde teriam assento, trazendo mais uma figura ao cenário administrativo da Cidade – o juiz do povo – eleito pela assembléia de 12 mesteres, por sua vez aclamados pelos vários grupos profissionais, regularmente registrados”4. M ã o d e o b r a : o s o F í c i o s M e c â n i c o s Banca de esbarra ou mesa de encostar, rococó, séculos XVIII-XIX. Museu de Arte da Bahia. ~40~ M o b i l i á r i o b a i a n o Instituídos os mesteres, por resolução da Câmara de 21 de maio de 16415, dois dias depois os oficiais mecânicos se reuniram, por convocação da Câmara, e elegeram 24 representantes, escolhendo-se, entre estes, 12 – um ou dois de cada ofício, dos mais indispensáveis6. Seguia-se o exemplo de Lisboa, que possuía um ou dois representantes, a depender do ofício, na chamada Casa dos Vinte e Quatro7. Logo após a escolha dos 12, elegeu-se o juiz do povo e o escrivão, aprovados com dois procuradores dos mesteres8 por Alvará Régio de 28 de maio de 1644, da mesma forma que nas vilas do Reino e com iguais isenções e privilégios9. Cabia-lhes controlar as atividades dos seus companheiros, fixar preços e avaliar as obras. Tratava-se de uma continuação das guildas medievais. As “iniciativas partidas dos proletários”, como as chamou Affonso Ruy, “começaram a agitar os vereadores, originando-se, aos poucos, um ambiente de reação que foi crescendo até à hostilidade contra os representantes corporativos”10. Elegeram-se outros juízes do povo e mesteres. Estes, porém, cada vez mais infiltravam-se nas competências dos vereadores11 que, por sua vez, procuravam cercear o poder daqueles. Os antagonismos continuaram até que, em 1710, os vereadores deliberaram que o juiz do povo e os mesteres só fossem às vereações requererem, segundo Affonso Ruy, “aquilo que entendessem era útil ao povo”12 e que não comparecessem mais às vereações. Os juízes do povo e os mesteres foram acusados de provocar reações populares contra a Câmara, contra o Governo e contra a Coroa13, até que, “por ter mostrado a experiência ser causa dos motins que tem havido em desserviço meu e do público desses moradores”, o rei, através da Carta Régia de 25 de fevereiro de 1713, extinguiu esses cargos, pelas mesmas razões por que o fizerana cidade do Porto, a pedido da própria Câmara. Os vereadores, em 1715 e 1716, apelaram ao rei a fim de que novamente se instituíssem os cargos de juiz do povo e de mesteres, sem os quais, diziam, “ficava a Cidade Capital do Estado do Brasil igual a mais humilde vila dele” e para que houvesse “o sossego do bem comum”14. Tudo inútil. Os cargos estavam extintos definitivamente. Os oficiais mecânicos perderam assim seus representantes junto ao poder público e seus privilégios, e tiveram suas atividades restringidas. A partir de então apenas examinavam, através do juiz e do escrivão do ofício, aqueles que queriam ingressar na atividade, defendiam poucos de seus interesses e avaliavam as obras, em comum acordo com a Câmara. Além da falta de representação junto à Câmara, dois fatores importantes, entre vários outros, contribuíram para enfraquecer a organização das guildas, dentro dos moldes de Lisboa. Em primeiro lugar, a presença do braço escravo, que exercia alguns ~41~ M ã o d e o b r a : o s o f í c i o s m e c â n i c o s ofícios mecânicos, sobretudo aqueles que exigiam maior esforço físico ou que lidavam com sangue; em segundo, a instabilidade e as restrições político-administrativas impostas à Câmara de Salvador, quer pelo governo geral, quer pela corte. Como exemplo de interferência de órgãos superiores da corte, escrevia Vilhena15: “uma outra origem de desordem no Senado é a ascendência que o Supremo Tribunal da Relação tem arrogado sobre ele, sendo certo que querendo o Senado fazer obviar algumas infrações das leis municipais, e ainda portarias dos excelentíssimos governadores interpõem a parte um agravo para a Relação, e tem por certo o provimento com que já conta quando agrava; motivo por que vem a ficar sem validade as posturas, e reiteradas portarias do Senado, ou para melhor, o presidente iludido, e os perversos com a mão alçada para descarregarem quando este obsta as suas pretensões.”16 Apesar disso, a Câmara e os oficiais mecânicos tentaram organizar suas corporações mesmo sem os poderes, isenções e privilégios, que haviam conquistado a partir de 1641, e que perderam em 1713. Essas tentativas estão registradas nos manuscritos existentes no Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal do Salvador, sob a guarda da Fundação Gregório de Mattos. Embora a documentação tenha sofrido várias interrupções ou esteja danificada, pode-se, há alguns anos, de uma maneira genérica, estabelecer a “história dos ofícios mecânicos do Salvador”17, correlacionando-a à de Lisboa. As atividades dos oficiais mecânicos eram reguladas, em parte, pelo Livro de Regimentos dos Oficiais mecânicos de Lisboa, de 1572. Nesses regimentos, reformados pelo marquês de Pombal em 177118, foram baseadas as posturas estabelecidas pela Câmara de Salvador. Em 1704, os oficiais mecânicos requereram ao rei que, em Salvador, se observassem os “estilos”, ou costumes, da corte para a eleição de seus juízes em “casas particulares”, como a Casa dos Vinte e Quatro, de Lisboa. Solicitada a opinião da Câmara, esta procurou dar esclarecimentos ao rei sobre as irregularidades e diferenças na observância desses “estilos”19. A maioria das eleições, apesar desse pedido, continuou sendo realizada na Câmara, conforme o costume desta. Em Salvador, chamava-se vulgarmente de regimento à lista de preços das obras que os oficiais mecânicos executavam, e não um conjunto de normas de procedimentos. Essa lista era estabelecida em comum acordo com a Câmara, enquanto existiram os juízes do povo e os mesteres, e depois somente pela Câmara. Os regimentos dos diversos ofícios ~42~ M o b i l i á r i o b a i a n o constam dos livros de posturas da Câmara. As atividades de alguns artífices, entretanto, eram regulamentadas pelos regimentos das confrarias. Esses regimentos e/ou as posturas da Câmara definiam a vida pública e profissional dos artífices. As posturas, estabelecidas pela Câmara, eram lidas em pregões públicos, nas praças e ruas “costumadas” da cidade, praia e seus arrabaldes, em voz alta e inteligível, para que “fossem bem entendidas por todo povo” e que ninguém pudesse “alegar ignorância”20. Qualquer pessoa do povo podia denunciar os culpados que agiam contra as posturas e tinham direito à terça parte das condenações, as coimas21. As penas impostas eram aplicadas pelos almotacés das execuções, a pedido dos juízes de fora ou da Câmara. Os primeiros livros de posturas foram perdidos. Sabe-se que, com “a entrada dos inimigos rebeldes de Holanda se haviam perdido os livros” da Câmara, e pedia-se, expulsos os invasores, “que se pusessem [...] o traslado das posturas, que se haviam feito antes disso, e estavam nos ditos livros perdidos das quais ainda havia alguma notícia, por estar o traslado delas em poder do escrivão da Almotaçaria João Mendes Pacheco, as quais de novo haviam por boas, e mandaram se copiassem como nelas se continham, e que pelas penas nelas estabelecidas fossem executadas as pessoas que caíssem em coima, e fossem contra elas.22” Com referência aos oficiais mecânicos, as posturas da Câmara de Salvador estabeleciam que “de novo se mandavam cumprir, e executar nas pessoas que forem contra elas” (1625), e definiam: “que nenhum oficial de qualquer ofício ponha tenda sem licença da Câmara, e fiança nela, e seja examinado, e tenha seu regimento a porta, pena de seis mil réis .............................................................................................................................................6$00023. que todos os oficiais serão obrigados a acompanhar a bandeira os dias das procissões del Rei, pena de seis mil réis ..................................................................................... 6$000.24” Ao pedir a licença à Câmara, os oficiais mecânicos pagavam fiança, apresentando avalistas. A fiança era válida por um ano, ou seis meses para aqueles que recebiam pagamento de terceiros25. Registravam-se em livros próprios os nomes dos oficiais e, por vezes, os endereços e tipo de atividade26. As licenças para os escravos eram tiradas em nome de seus senhores, os quais pagavam a fiança. Poucos foram os oficiais que cumpriram com regularidade essas duas obrigações: licença e exame. ~43~ M ã o d e o b r a : o s o f í c i o s m e c â n i c o s o F í c i o s e H i e r a r q u i a Existiam, na Cidade do Salvador, os seguintes ofícios denominados mecânicos: barbeiro, sapateiro, carpinteiro de obra branca ou de edifícios, carpinteiro das naus da ribeira, carapina, correeiro, dourador, espadeiro, esparteiro, ferreiro, latoeiro, marceneiro, ourives do ouro e da prata, parteira, pasteleiro, pedreiro, polieiro, sangrador, seleiro, serralheiro, sombreiro, tanoeiro, tintureiro, torneiro, alfaiate, anzoleiro. Muitos dos ofícios existentes em Lisboa não passaram para o Brasil por não serem de primeira necessidade ou, então, foram anexados a outros ofícios. As demais atividades constituíam, normalmente, monopólio real. Como dizia José da Silva Lisboa a Domingos Vandelli, em 1781, “as artes na Bahia se reduzem aos ofícios mecânicos de pura necessidade”27. Hierarquicamente, encontravam-se em São Paulo o mestre, o oficial, os aprendizes e os serventes, enquanto na Bahia existiam o mestre, o oficial, os aprendizes e os jornaleiros. Com a exceção dos serventes e jornaleiros, os demais podiam e deviam prestar exames para galgar os títulos superiores da hierarquia. Os exames consistiam na confecção de uma obra própria do ofício ou em questionário sobre os principais conhecimentos que o candidato devia possuir. A execução da obra, objeto de exame, não tinha prazo definido. Podia estender-se por meses. Apenas em caso de troca de juízes ficavam os examinados obrigados a concluí-laem um tempo predeterminado. A avaliação cabia aos juízes anteriores. O exame era individual, válido para o profissional nele inscrito. Se não fosse habilitado na primeira examinação, o candidato deveria submeter-se a outros exames seis meses depois. Nesse intervalo, permanecia como aprendiz na tenda de um mestre, voltando tantas vezes quantas fossem necessárias até receber aprovação. Alguns ofícios, dependendo do lugar e da época, foram interditados. Em 1578, em São Paulo, o ferreiro Bartolomeu Fernandes foi proibido de ensinar o seu ofício a um índio “porque era grande prejuízo da terra”. Já em Porto Seguro, ao contrário, na segunda metade do século XVIII, determinou-se que os meninos índios fossem alocados em casas de oficiais mecânicos, separando-os das famílias, para que não continuassem a falar a língua materna, aprendessem algum ofício e se civilizassem. Ficavam em companhia dos mestres ou amos até o tempo do casamento. O produto dos pagamentos devia ser aplicado no vestuário, na compra de gado ou ferramentas para a lavoura, telhas e confecção de suas casas. Em qualquer circunstância, como compensação pela ajuda, os mestres e amos deviam sustentar seus aprendizes e dar-lhes vestuário de uso semanal e festivo, além de remuneração por outros “serviços prestados”28. Mas, como grande parte dos habitantes do Brasil, estavam todos envolvidos, a partir de 1763, na procura do ouro, não importa onde. ~44~ M o b i l i á r i o b a i a n o a p r e n d i z e s A aprendizagem de um ofício era direta, realizando-se por meio da convivência, da observação. Podia durar de dois a doze anos. Há notícias de que, em 1727, a Santa Casa da Misericórdia da Bahia colocava os filhos de seus escravos como aprendizes de barbeiro para que aprendessem a arte de sangrar. No fim de três anos, o barbeiro recebia 12$000 réis por cada criança que ensinasse. Em São Paulo, em 1716, Manoel Mendes dos Santos, após a morte de sua mulher, Antônia da Conceição, encaminhou seu filho, João de Passos, para aprender o ofício de alfaiate com o mestre Martinho Rodrigues Tinoco. Na ocasião, assinou um termo de compromisso pelo qual se obrigava a pagar 30 mil réis ao mestre caso o jovem fugisse ou adoecesse. O compromisso valia por dois anos. José dos Passos contava, então, 18 anos. Nem todos os pais faziam um contrato por escrito. Este podia ser oral, permanecendo entre ambos, pais e mestre, um contrato moral. Não havia idade certa para o início da aprendizagem. O aprendiz era colocado sob a guarda do mestre ou, como chamavam, do amo. Este não somente lhe ensinava o ofício, como o educava e, a título de educação, também se servia dele para todos os demais serviços, principalmente domésticos. O aprendiz podia ser castigado, eventualmente, com penalidades corporais. Permitia-se aos mestres ter no máximo dois aprendizes, para garantir a eficiência da aprendizagem. A falta de mestres, no entanto, por todo o Brasil, mesmo em Salvador, levou os aprendizes a procurar as tendas dos oficiais, sem que estes fossem ou tivessem o título de mestre. Na Bahia, a inobservância de regimentos, ou posturas, favoreceu essa prática. Não existia, pelo menos em Salvador, a categoria de meio-oficial, de que Serafim Leite29 dá notícia, repetida por José Mariano Filho30. Existiam, como se disse, jornaleiros e escravos admitidos como obreiros31. Não há registros sobre os custos desse aprendizado. Entre os brancos, o pai do aprendiz estabelecia um contrato formal, ou moral, com o mestre. A aprendizagem podia ser paga em espécie ou em serviços prestados pelo aprendiz. No caso dos escravos, supõe- se que prevalecessem as mesmas práticas de remuneração, sob a responsabilidade de um amo ou mestre, como se observou em relação aos aprendizes da Misericórdia. Por vezes era o próprio senhor de escravos, com uma ocupação artesanal, quem ensinava gratuitamente, possibilitando aos aprendizes aperfeiçoarem-se até chegar a oficiais. Os escravos podiam também aprender com os oficiais da própria senzala. (Não eram os senhores que iam ensinar na senzala, mas existiam escravos oficiais de algum ofício que, naquele lugar, podiam ensinar aos outros) ~45~ M ã o d e o b r a : o s o f í c i o s m e c â n i c o s J u í z e s e e s c r i v ã e s Para cada ofício havia um ou dois juízes e um escrivão. Em Lisboa e outras cidades e vilas do Reino, podiam ser eleitos apenas os que fossem mestres e, no caso dos escrivães, aqueles que soubessem escrever, ler e contar. De acordo com os regimentos de 1572 e 1771, de Lisboa, a reeleição só era permitida três anos após o último exercício, salvo quando não houvesse oficiais categorizados32. Em Salvador, entretanto, parece ter havido carência de homens com as qualidades requeridas, pois eram eleitos os mesmos juízes e escrivães por anos consecutivos. O espírito de liderança e o maior empenho de alguns devem ter exercido certa influência para que a escolha recaísse sobre determinados representantes consecutivamente, mesmo porque o número de profissionais não era grande, como já se observou. As eleições eram efetuadas anualmente. Os regimentos de Lisboa estabeleciam datas fixas para cada ofício. Em Salvador, porém, de acordo com os registros dos termos de eleições, essa norma não foi seguida. As datas das eleições variavam de ano para ano. Como já mencionado, os oficiais mecânicos recorreram ao rei em 1704, reivindicando que em Salvador se observassem os “estilos” da corte. Na carta dirigida a Sua Majestade, a Câmara comunicava: “[...] sendo os ditos Oficiais os que com vários pleitos e agravos se têm eximido de eleger juízes dos seus Ofícios e examinar se do ano de mil setecentos e um até o presente (1704) sendo uma e outra coisa conforme ao estilo desse Reino se atrevem eles a queixar se a Vossa Majestade das ditas demandas requerendo ao mesmo tempo a observância dos estilos que até o presente tem impugnado os quais parece não deve Vossa Majestade mandar observar nesta Cidade por Lei porque assim como a Câmara dessa Corte e mais desse Reino as introduziram segundo a cada uma mais conveniente pareceu podemos nós também estabelecer os que mais convenientes forem a este Estado que em muitas causas discrepa desse Reino e com efeito neste Senado há também neste particular estilo que há muitos anos nele se pratica quase conforme com o de Lisboa e só diferente no modo das eleições dos seus juízes e cartas dos seus examinados por que de se fazerem ditas eleições fora deste Senado contra a forma que até o presente se usa se lhes dá motivos aos subornos desatenções e tumultos que resultaram de se fazerem em uma casa particular e trazendo as assim feitas para se lhes dar o juramento vem este Senado a ser quase constrangido a aprovar eleições que podem ter muitas nulidades não sendo obradas em sua presença e o quererem que os seus nomes sejam somente escritos nos Livros da Câmara é contra a regalia que ela tem de os confirmar por Provisão e dar-lhes nas costas dela o juramento estilo que se observa com os mais ofícios e oficiais que este Senado prove de juízes escrivães pedâneos e outros que com este exemplo não quererão servir com mais título nem com outro ~46~ M o b i l i á r i o b a i a n o instrumento que o de estarem os seus nomes escritos nos livros dele e sobre os examinados foi cá sempre uso que com a certidão dos examinadores lhes passamos suas provisões o Senado.”33 Nada conseguiram os oficiais. Os juízes eleitos e escrivães continuaram a ser confirmados nos cargos por provisão do Senado da Câmara, com sinais e selo próprios, para um período de um ano, “até o último (dia) de dezembro”. No verso da provisão transcrevia-se o termo de juramento dos Santos Evangelhos, para que “bem e direitamente”servissem o ofício, guardando o “serviço de Deus” e “de Sua Majestade”34. Aos juízes cabia efetuar as examinações dos que desejavam exercer as atividades mecânicas, fazer visitas periódicas às tendas e lojas, avaliações e vistorias das obras, estas últimas quando convocados pela Câmara. Uma vez habilitado, o candidato recebia uma certidão de exame, que devia apresentar à Câmara, onde era também registrada em livro próprio. Recebia, então, transcrita na própria certidão de examinação, uma carta de exame e a confirmação da certidão. A certidão era feita pelo escrivão do ofício e assinada por ele e pelos juízes. O juiz de fora, os vereadores e o procurador assinavam a carta concedida pela Câmara. Na ocasião da apresentação da certidão, os aprovados também prestavam juramento, segundo o qual ficavam sujeitos às posturas do Conselho da Câmara e demais acordos da mesa de Vereação, e se comprometiam a não se valer de nenhum privilégio. As cartas de examinação davam direito aos mestres de exercer seus ofícios e ter tenda aberta na Cidade do Salvador e seu termo, que compreendia parte do Recôncavo. Teoricamente, os juízes e escrivães não podiam examinar seus familiares, como filhos e parentes até quarto grau, cunhados ou aprendizes. Deviam requerer à Câmara que lhes indicasse um substituto, de preferência um juiz que tivesse servido no ano anterior. Também essa norma não foi rigidamente obedecida em Salvador. Os oficiais ou mestres estranhos, vindos de outras regiões do Brasil ou de qualquer parte do Reino, deviam apresentar sua certidão à Câmara. Examinada e tida como verdadeira e sem “vício algum que duvidosa a fizesse”, era confirmada sob a condição de que o requerente ficasse sujeito, enquanto residisse na cidade ou seu termo, às mesmas obrigações que os demais oficiais mecânicos. Caso não possuísse certidão ou carta, o oficial devia submeter-se ao exame dos juízes do ano. Uma postura de 1716 previa que, na falta de examinação, era necessária a licença do Senado da Câmara para ter tenda pública35, facultando, de certa forma, o exame. ~47~ M ã o d e o b r a : o s o f í c i o s m e c â n i c o s Os profissionais não podiam desempenhar atividades que não fossem de seu ofício, sob pena de cadeia e multa, para garantir a boa execução das obras e os limites entre as ocupações – teoricamente, porque sempre houve conflitos resultantes de intromissões nas atividades alheias. No Rio de Janeiro, segundo ocorrência registrada nos Autos de Litígio de 1759-1761, os mestres entalhadores não estavam sujeitos a exame, como se exigia dos carpinteiros e marceneiros. O litígio foi movido pelo mestre marceneiro Manoel da Costa Carvalho contra o mestre entalhador Francisco Félix Cruz, porque este estaria usando ilicitamente o ofício daquele. Segundo os depoentes, alguns entalhadores vinham trabalhando em obras de marcenaria sem que ninguém os impedisse, sendo freqüentemente solicitados por outros ofícios, como os de pedreiros, carpinteiros, marceneiros e ourives, para dar riscos, moldes ou executar obras de talha, o que era hábito em Lisboa. Todas as testemunhas afirmaram pertencer aos marceneiros a função de encaixilhar ou ensamblar obras lisas ou com talha, e que tanto marceneiros quanto entalhadores interferiam nessas obras, como acontecia na corte e outras cidades do Reino, trabalhando uns nas casas dos outros. Em seus depoimentos, esclareciam como uns artífices complementavam o trabalho dos outros. Uma das testemunhas dizia que “sabe pelo ver, que ao marceneiro pertence fazer cadeiras, e tamboretes, leitos, catres, e outras semelhantes obras lisas, emolduradas, mas entalhe, que em algumas das ditas obras de marceneiro se faz as mandam estes fazer a entalhador”36. Vê-se que, como na escultura, várias pessoas colaboravam numa peça. Manoel de Araújo, furriel do Terço de Auxiliares do Rio de Janeiro, testemunha no mesmo litígio, dizia que há vinte e um anos trabalhava na cidade de Lisboa e no Rio de Janeiro e que nunca lhe proibiram de fazer, em sua loja de entalhador, as obras de talha ou sem ela. E disse mais: “ [...] que sabe pelo ver, que os entalhadores desta Cidade não são obrigados ao exame, nem examinados, e só o foram em Lisboa por se anexarem a bandeira, e Irmandade dos marceneiros para entrarem na Casa dos Vinte e Quatro alternativamente com os ditos marceneiros.”37 Conflitos semelhantes ocorreram em Lisboa. Ao fim de meio século de litígios entre carpinteiros da rua das Arcas e marceneiros, estes passaram a se denominar, a partir de 1767, carpinteiros de móveis e samblagem. Isso explica a denominação daqueles mecânicos que chegaram ao Brasil na segunda metade dos setecentos e a adoção da mesma designação na Bahia. Eram os carpinteiros de obra preta e se diferenciavam dos carpinteiros de obra branca, figuras estas das mais essenciais nos engenhos. ~48~ M o b i l i á r i o b a i a n o Em Salvador não se encontram referências a registros de cartas de exames, eleições ou provisões relativas a entalhadores. Constituem exceções as solicitações dirigidas à Câmara a partir de 1790 por Tomás Rodrigues de Santana, que pretendia então obter licença para ter tenda de entalhador na rua das Laranjeiras38. Em 1797, entretanto, ele aparecia como marceneiro39 e, a partir de 1819, passou a solicitar licença para vender obras de marcenaria40. A malícia dos oficiais mecânicos deu origem a “acrescentamentos”, ou acréscimos, às antigas posturas e, em fins do século XVIII, com respeito às cartas de examinações e licenças, diziam: “que nenhum oficial, ou qualquer outra pessoa, cujo trato careça de licença, carta de exame, digo, do Senado da Câmara para usar dela não se valha de licença, carta de exame, ou regimento concedido a diversa pessoa tomando para esse fim o nome de terceiro ausente, ou defunto” [...] o não faça antes tire as ditas licenças em seu nome com pena de seis mil réis e trinta dias de cadeia pela malícia com que se houver neste requerimento.41” Com base nessa prática, muitos trabalhavam como jornaleiros para algum mestre – fugindo à obrigação de tirar a licença necessária e submeter-se aos exames – ou em parceria com oficiais licenciados. Todos deviam ter o seu regimento à porta: “[...] que nenhum oficial de qualquer ofício esconda a taxa do seu ofício caso que a tenha, a qual vulgarmente se chama Regimento antes a pender-se a porta da mesma tenda para que o povo leia nela os preços das obras, que lhe vai encomendar pena de quatro mil réis.”42 O regimento, ou melhor, a lista de preços era estabelecida pela Câmara. Por meio da listagem das obras e respectivos preços ou salários, esta procurava controlar de perto as obras executadas. As intervenções das Câmaras portuguesas nos exercícios mecânicos, administrativa e judicialmente, foram sempre mais rigorosas. Em Salvador, a própria situação de Câmara de terra conquistada tirava desta grande parte de seu poder, como notificado pelo Tribunal da Relação. o b r i g a ç õ e s r e l i g i o s a s Além das obrigações burocráticas, os oficiais mecânicos tinham obrigações de ordem religiosa. Todos deviam acompanhar a bandeira43 representativa de seu ofício nos dias das procissões “del Rei” ou do Senado, sob pena de multa e prisão. ~49~ M ã o d e o b r a : o s o f í c i o s m e c â n i c o s A instituição chamada bandeira não existiu em Salvador. A palavra designava apenas o estandarte que os oficiais mecânicos deviam portar nas festas organizadas pela Câmara ou pelas confrarias. Esse estandarte era zelosamente guardado. Em Minas Gerais, os oficiais mecânicos eram obrigados a mantê-lo na Câmara. Acredita-se que os oficiais mecânicos de Salvador também guardassem os estandartes naCâmara, retirando-os por ocasião das festas, por não disporem de casa particular ou de instituição como a Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa. Nas festas, cabia à Igreja o cerimonial litúrgico, enquanto o brilhantismo do acontecimento dependia do Senado da Câmara. Esta dividia os grupos por profissões e elegia um encarregado dos festejos – o cabo da festa –, que assinava um termo de responsabilidade comprometendo-se a organizar, especialmente, os festejos oficiais44. Os artesãos deviam participar ativamente dessas procissões, comparecendo com os estandartes dos padroeiros e insígnias dos respectivos ofícios mecânicos. O costume de realizar essas procissões – chamadas “del Rey”, por serem obrigatórias e regidas pelas Ordenações Filipinas – passou de Lisboa para o Brasil45. As procissões “del Rey” eram obrigatoriamente patrocinadas pela Câmara, que além de Corpus Christi, São Sebastião, São Felipe e Santiago, Santo Antônio de Arguim e São Francisco Xavier, eram as procissões “de São Sebastião [que foi] criada em memória do Sereníssimo Rei Dom Sebastião, a de São Filipe Santiago, em ação de graças da feliz restauração desta Cidade e a de Santo Antônio de Arguim, cuja criação foi por razão dos inimigos o tomarem na força de Arguim, tratando mal o Santo, o fez dar a Costa na dita Capitania [Bahia] e apareceu o Santo em uma pedra em pé [em Itapuã].”46 Essas procissões e a obrigatoriedade de acompanhá-las foram extintas em 1828, com exceção da de Corpus Christi47. A procissão de São Francisco Xavier, escolhido como padroeiro da cidade, foi instituída por voto solene do povo baiano em 10 de maio de 1686 (figura 1). A confraria dessa invocação estava instalada na atual Igreja Catedral. A procissão, que havia sido extinta com as demais, em 1828, foi restabelecida em 1860 pela mesma confraria. A festa de Corpus Christi parece ter caído em desuso nas cidades brasileiras por volta de 1668, segundo informou Balthazar da Silva Lisboa48. Notificação do Senado da Câmara da Cidade do Salvador49 destacava a necessidade de retomar os usos e costumes, e é interessante descrever como, em 1673, se recomendava realizar a procissão. 1 – Busto de São Francisco Xavier, século XVII, padroeiro da Cidade do Salvador. Acervo da Catedral Basílica do Salvador. ~50~ M o b i l i á r i o b a i a n o “Por haver crescido muito todos os ofícios, e estavam alguns sem concorrerem para as ditas procissões com parte nem coisa alguma”, concordaram os oficiais da Câmara de Salvador, estando presentes o juiz do povo e mesteres, que os oficiais de carpinteiro deviam apresentar na procissão de “Corpus Christi” a bandeira de costume e a armação de madeira para a serpe [serpente] e mais madeira que se precisasse, tendo a mesma obrigação os marceneiros e torneiros. Os oficiais de alfaiate deviam apresentar a bandeira de costume e o pano com que se cobria a serpe, pintado e aparelhado. Uns e outros deviam fornecer os negros necessários para carregar a serpe. Os sapateiros deviam apresentar a bandeira do costume e o drago [dragão]; os pedreiros uma bandeira, os tintureiros, sombreiros, funileiros e tanoeiros apresentar uma bandeira e quatro cavalinhos fuscos; os padeiros e confeiteiros apresentar dois gigantes e uma giganta e um anão, que o vulgo, ou povo, chamava “Pai dos gigantes”. Os ferreiros, serralheiros, barbeiros, espadeiros, correeiros, todos pertencentes à Confraria de São Jorge, eram obrigados a apresentar uma bandeira, ou guião, conforme o costume e o ”Santo de vulto na sua charola, sendo este Santo de figura a cavalo, armado, ou acompanhado, de pagem, alferes, trombeta, tambores e seis sargentos da guarda, todos vestidos decentemente e armados”. As vendeiras de porta, taverneiros e taverneiras e esparteiros deviam apresentar quatro danças. Os marchantes fornecer três tourinhas. À falta com essa determinação, prometia-se “pena de seis mil réis que seriam pagos da cadeia”. A coima, ou multa, seria encaminhada para as obras da Câmara e Cadeia nova.”50. Documento idêntico foi expedido no Rio de Janeiro, dando apenas aos marceneiros a incumbência de contribuir com a imagem do Menino Jesus e aos marchantes a atribuição de apresentar, além das tourinhas, a figura de Davi – “e que não sejam coisas ridículas”, recomendava-se naquela capitania, em 170451. Os acrescentamentos, ou modificações, feitos às posturas em 1742, determinavam que os oficiais mecânicos, nas procissões do Senado e nas demais em que eram obrigados a levar bandeiras, deviam comparecer com toda a modéstia, quietação e compostura, vestidos com suas casacas e gravatas, e não com capotes, como até então usavam, sob pena de seis mil réis de multa, pagos da cadeia, onde ficariam presos por trinta dias52. Por volta de 1830, desapareceu a exigência de se registrar na Câmara os documentos referentes aos ofícios mecânicos. As profissões passaram a ser exercidas independentemente de qualquer intervenção da edilidade, dentro da nova organização que se estabeleceu, transformando-se os Senados da Câmara em Intendências e, depois, em Prefeituras e Câmaras Municipais53, através da Lei de 1º de outubro de 182854. Como os demais comerciantes, os oficiais mecânicos continuaram com a obrigação de pedir licença para abrir estabelecimento próprio. Entre eles encontravam- se os marceneiros, executores das obras que interessam diretamente a este estudo, e os torneiros, correeiros e serralheiros, que contribuíam com os acessórios. ~51~ M ã o d e o b r a : o s o f í c i o s m e c â n i c o s o s o F i c i a i s M e c â n i c o s d o s M ó v e i s As atividades dos correeiros e dos serralheiros eram regulamentadas pelas posturas dos respectivos ofícios. Já as dos marceneiros regulamentavam-se, em parte, pelo regimento de Lisboa e, em parte, pelo da Confraria de São José, dos pedreiros e carpinteiros. Somente em 1785 é encontrado, nos livros de posturas, o Regimento dos Marceneiros55. Nas primeiras décadas do século XVIII, pediram licença à Câmara diversos oficiais e mestres marceneiros, torneiros e ensambladores, vindos principalmente do Norte de Portugal. No fim do mesmo século, vários “carpinteiros de móveis e samblagem”, provenientes de Lisboa56, passaram a trabalhar em Salvador57. Seguindo o costume do Porto, Viana ou Lisboa, os oficiais apresentavam suas certidões e cartas de exame na Câmara de Salvador, que lhes passava, como o fazia a todos os que vinham do Reino, uma licença geral, como a do exemplo abaixo, ou simplesmente registrava suas cartas nos livros próprios. “Registro de uma Licença geral de marceneiro e torneiro de Simão Henrique. O Doutor Juiz de fora Vereadores e procurador do Senado da Câmara desta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos etc. Fazemos saber a todos os juízes, vereadores e procurador do Conselho desta Capitania e bem assim a todos os corregedores, provedores, ouvidores, julgadores e justiças e mais pessoas do Reino de Portugal e suas Conquistas a quem apresente licença geral for apresentada, e o conhecimento dela deva e haja de pertencer que a nos enviou a dizer Simão Henrique oficial de marceneiro e torneiro que pela carta junta consta haver sido examinado na cidade do Porto no ano de mil e seiscentos e noventa e sete pelos juízes do dito ofício que no dito ano serviam o qual exame fora julgado por bom como da dita carta consta, porém como a jurisdição daquele Senado senão estendia a mais que a todo o seu termo nos requeria que visto de presente se achar nesta cidade queria usar do dito seu ofício de marceneiro e torneiro com sua tenda aberta e por nos constar da dita carta ser verdade o que relatava por não ter vício que dúvida fizesse, havemos por bem de lhe confirmar e pela presente lhe confirmamos, ficando sujeito as posturas
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