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156 Jorge Pedro Sousa tremo a receita de Pulitzer, não se coibindo, por vezes, de inventar factos (mesmo que fossem desmentidos em duas linhas no dia se- guinte). A esta linha de jornalismo chamou-se jornalismo ama- relo (yellow journalism). Timoteo Álvarez (1992) acusa mesmo Hearst de ter sido um dos principais instigadores da Guerra Hispano- Americana, já que o empresário inventou notícias apenas para le- var os Estados Unidos a declarar guerra a Espanha, por causa de Cuba. Mas Hearst terá tido, igualmente, os seus méritos jornalísti- cos, mandando repórteres seus para todo o mundo como enviados especiais e dando bastante relevo às imagens como veículos de in- formação (embora, por vezes, se usassem fotografias truncadas). Embora tenha contribuído para mudanças paradigmáticas no jornalismo, tornando-o mais factual e de linguagem acessível, a imprensa popular coexistiu com a imprensa informativa "de qualidade”, ou "de referência", e não impediu o seu floresci- mento. Na versão de Timoteo Álvarez (1992), a imprensa de refe- rência herdou, ao mesmo tempo, as qualidades analíticas e argu- mentativas da party press e o rigor e factualidade da imprensa de negócios do século XIX. Rigor, exactidão, sobriedade gráfica e de conteúdos, análise e opinião, independência e culto da objec- tividade (até aos anos setenta) foram e ainda são as marcas do jornalismo de referência. Entre os jornais de referência que sub- sistem desde o século XIX, contam-se, por exemplo, The Times (que até é do século XVIII) e The New York Times. Em Portu- gal, também se encontram descendentes neste ramo da imprensa. Diário de Notícias, Expresso ou Público são bons exemplos. Timoteo Álvarez (1992: 57-78) mostra que as mudanças que se deram no jornalismo americano foram exportadas para a Eu- ropa, começando pela Inglaterra. Pode, assim, dizer-se que a im- prensa evoluiu de forma semelhante em todo o Ocidente, de um e do outro lado do Atlântico. Nos séculos XVII e XVIII, a lide- rança pertenceu à Europa; a partir do século XIX, as principais inovações que ocorreram no jornalismo ocidental tiveram origem nos Estados Unidos. www.bocc.ubi.pt Elementos de Teoria e Pesquisa 157 Datam também do final do século XIX as primeiras preocu- pações sistemáticas com a regulação e auto-regulação do jorna- lismo. A segunda geração da imprensa popular, a profissionali- zação dos jornalistas e os excessos do "jornalismo amarelo"não terão sido alheios a essas preocupações. Assim, salienta Traquina (2002: 71), o primeiro artigo de crítica da imprensa que usou a palavra ética no título foi publicado em 1889 e o primeiro código de conduta para jornalistas apareceu em 1890. Em 1900, os sue- cos elaboraram o primeiro código deontológico, mas este apenas entrou em vigor em 1920, dois anos após a aprovação do código deontológico dos jornalistas franceses (Traquina, 2002: 71). A I e a II Guerra Mundial, talvez por força das circunstân- cias excepcionais que o mundo atravessou, tornaram o jornalismo ocidental tendencialmente descritivo, apostando na separação en- tre “factos” e “comentários”. Fez escola o "he said journalism", ou seja, o jornalismo das declarações/citações, do qual estavam arredadas a análise, o contexto, a interpretação e até a investiga- ção (Sloan, 1991). Mas, a partir de meados dos anos sessenta do século XX, o jornalismo, particularmente o jornalismo de refe- rência, evoluiu para um modelo de análise, que pressupõe a es- pecialização dos jornalistas (v.g., Barnhurst e Mutz, 1997; Pinto, 1997). A orientação do jornalismo de referência para um modelo analítico e especializado, que se contrapõe ao modelo genera- lista e descritivo (predominante entre a I Guerra Mundial e os anos sessenta do século XX), tem, porém, raízes históricas. De facto, pelos anos vinte, de acordo com Schudson (1978; 1988) já se fazia jornalismo interpretativo nos jornais de referência norte- americanos. Para mostrar como o jornalismo evoluiu, Michael Schudson (1978; 1988) analisou a forma como os jornais americanos tra- tavam o discurso sobre o Estado da União, que o Presidente dos Estados Unidos profere anualmente no Congresso. O aconteci- mento é basicamente o mesmo desde há cerca de duzentos anos. www.bocc.ubi.pt 158 Jorge Pedro Sousa Mas Schudson notou que as notícias sobre esse acontecimento mudaram ao longo do tempo. Nos jornais mais antigos, reproduzia-se o discurso do Presi- dente. Em meados do século XIX, o discurso era incluído numa notícia sobre os trabalhos do Congresso nesse dia. Não era se- guida uma ordem de importância para os temas, mas sim uma or- dem cronológica, baseada na agenda do dia do Congresso. Por ve- zes, era dedicado um editorial ao discurso do Presidente. No final do século XIX, as notícias pouco abordavam o conteúdo do dis- curso presidencial. Antes atentavam nas reacções do Congresso. Falava-se dos congressistas que adormeciam nas bancadas, dos senadores que saíam da sala, e até das senhoras e das flores que or- namentavam a sala. A mensagem presidencial era pouco referen- ciada. Nos primeiros anos do século XX, começaram a realçar-se os pontos mais importantes da mensagem, o que pressupõe inter- pretação e valorização da informação, e a incluir um lead19. O Presidente também começou a ser tratado pelo nome. A partir de 1910, o jornalista começou a situar a mensagem no seu contexto. Nos anos vinte, analisava-se a mensagem, numa expressão de au- tonomia e autoridade profissional, e procurava dizer-se o que o Presidente tinha dito nas entrelinhas e ainda se procurava salien- tar o que ele não disse mas deveria ter dito - "Toma-se como certo o direito e a obrigação de mediar e simplificar, cristalizar e identi- ficar os elementos políticos no acontecimento noticioso", explica Traquina (2002: 72). "O que mudou não foi o reconhecimento da importância do presidente, mas antes a ideia do que devia ser uma notícia e do que devia fazer um repórter. (...) Isto (...) ajudou a construir um novo mundo político que aceitou o repórter como intérprete de acontecimentos políticos". (Schudson, 1988: 18) 19 Traquina (2002: 72) escreve: "É precisamente com o estabelecimento do lead como convenção, que podemos identificar a crescente afirmação de uma autoridade profissional, embora houvesse já outras manifestações de crescentes saberes ligados à actividade jornalística, tais como: 1) a estenografia; 2) a invenção de novos géneros, como a entrevista e a reportagem; 3) a elaboração de uma linguagem específica". www.bocc.ubi.pt Elementos de Teoria e Pesquisa 159 Beneficiando da conjuntura histórica, propícia à experimen- tação e às rupturas (movimento hippie, Maio de 68, Guerra do Vietname, movimentos alternativos, novas formas de expressão musical...), assistiu-se, nos anos sessenta, à erupção de movi- mentos como o do Novo Jornalismo, ou seja, do segundo Novo Jornalismo que nos surge na história. Este segundo movimento de Novo Jornalismo teve duas forças motrizes principais: a as- sumpção da subjectividade nos relatos sobre o mundo; e a retoma do jornalismo de investigação em profundidade, que revelou ao mundo escândalos como o do Watergate. Hoje ainda é uma va- riante válida para o jornalismo, havendo quem o defenda sob a forma de um jornalismo narrativo, capaz de tornar histórias cin- zentas mais atraentes. As raízes do novo Novo Jornalismo encontram-se não só na literatura de viagens mas também na obra de escritores como Orwell (Na Penúria em Paris e em Londres é um bom exemplo). Mas é em meados da década de sessenta que essa forma de jor- nalismo surge como um movimento de renovação estilística, ide- ológica e funcional nos Estados Unidos. Tom Wolfe, no livro The New Journalism (London: Picador, 1975), diz que ouviu o termo, pela primeira vez, em 1965. O movimento do novo Novo Jornalismo surge como uma ten- tativa de retoma do jornalismo aprofundado de investigação por